A Doutrina da Desconsideração da Personalidade Jurídica e alguns de seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro: Lei n.º 8.078/90, Lei n.º 8.884/94, Lei n.º 9.605/98 e Lei n.º 10.406/02

A necessidade faz com que certos instrumentos sejam criados pelo ordenamento jurídico com a finalidade de auxiliar nas relações sociais. Em reação a essa adequação, novos problemas podem surgir, alguns decorrentes do uso indevido dos próprios instrumentos criados. Com isso, novamente surgirá uma busca por equilíbrio, seguida de outro desequilíbrio, e assim sucessivamente num ciclo dialético. Assim ocorreu com os problemas gerados pela instituição da pessoa jurídica, que ensejaram o nascimento da doutrina de sua desconsideração. Essa doutrina se reflete, embora de formas diferentes, em alguns pontos do ordenamento jurídico brasileiro.

Introdução

O direito sedimenta um acordo entre os homens sobre a conduta devida para determinados casos. Conforme vão surgindo os entraves sociais, sejam eles conflitos ou apenas impasses, busca-se, por meio da lei, regular a situação.

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Quanto aos impasses, a pessoa jurídica representa importante avanço no campo dos instrumentos utilizados nas relações jurídicas. Basta imaginar quantas reuniões e assinaturas seriam necessárias para um simples negócio jurídico praticado por uma grande multinacional. Sem a pessoa jurídica, cada membro do grupo precisaria outorgar uma procuração.

Quanto aos conflitos, uma das formas de se manter o funcionamento pacífico da sociedade é garantir o equilíbrio das relações.

Um instituto utilizado para tanto é a responsabilização, que, em cada caso, atribui a determinado indivíduo ou grupo um dever de restabelecimento ou compensação.

Quando se verificou que este restabelecimento do equilíbrio não estava sendo possível em certos casos, em razão da utilização indevida da pessoa jurídica, buscou-se corrigir este problema.

Essa nova necessidade ensejou diversas soluções: ora o sistema jurídico utilizou a responsabilização solidária da pessoa jurídica com seus membros; ora, serviu-se da subsidiariedade.

Entretanto, estas duas formas de corrigir o mau uso da pessoa jurídica podiam levar ao prejuízo indevido de inocentes, entre os quais poderiam estar alguns membros, e até a própria pessoa jurídica.

Em razão disso, surge a doutrina da desconsideração da pessoa jurídica, que possibilita a responsabilização do verdadeiro causador do ilícito.

O presente trabalho analisa alguns reflexos dessa doutrina no ordenamento jurídico brasileiro.

1.Da pessoa jurídica

1.1.Das pessoas e sua qualificação legal

THOMAS HOBBES (2003:123) liga a idéia de pessoa ao personagem que os homens representam na sociedade:

“A palavra ‘pessoa’ é de origem latina. Para lhe dar significado os gregos tinham prósopon, que significa ‘rosto’, tal como em latim persona significa o disfarce ou a aparência exterior de um homem, imitada no palco. Por vezes, mais particularmente aquela parte dela que disfarça o rosto, como máscara ou viseira. Do palco a palavra foi transferida para qualquer representante da palavra ou da ação, tanto nos tribunais como nos teatros. Uma pessoa é o mesmo que um ator, tanto no palco como na conversação corrente. Personificar é representar, seja a si mesmo ou a outro.”

Conclusão semelhante foi obtida por MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:141), quanto à origem etimológica da palavra:

“a própria palavra pessoa, quer se a considere advinda de per sonare, querendo referir-se à voz que saia através da máscara, segundo afirmado desde Aulo-Gélio, ou do grego prósopon, como sugerido por Keller, quer se a admita, como se mostra mais correto, vinda do verbo latino perso, personare, originário do etrusco ρersu, que quer dizer máscara de teatro, gente com máscara, expressa um modo de ser do homem, o homem como personagem no ambiente social, o homem em suas relações intersubjetivas, portanto, não apenas o próprio homem em sua natureza. Pessoa é a veste social do homem, na feliz expressão de Miguel Reale.”

A teoria tradicional identifica pessoa com sujeito de direito. Essa teoria é adotada, por exemplo, por PONTES DE MIRANDA, conforme lembra FABIO KONDER COMPARATO (1976:272).

Para PONTES DE MIRANDA (1954:153), os sujeitos de direito são pessoas titulares de “direito” (abrangendo aqui direitos e obrigações). As pessoas, por outro lado, são entes aos quais a lei atribui a possibilidade de se tornar sujeitos de direito, ou seja, figurar em uma relação ou situação jurídica, ou ainda, nas palavras do imortal jurista (1954:155):

“Pessoa é o titular do direito, o sujeito de direito. Personalidade é a capacidade de ser titular de direitos, pretensões, ações e exceções e também ser sujeito (passivo) de deveres, obrigações, ações e exceções. Capacidade de direito e personalidade são o mesmo.”

Ainda segundo ele, tendo a pessoa direitos inatos, a possibilidade de direitos inerente aos sujeitos de direito diz respeito aos direitos não inatos (1954:155).

Atualmente, é inegável que aquele conceito de pessoa deve ser revisto, uma vez que, conquanto “pessoa” seja sempre “sujeito de direito”, a recíproca não é verdadeira.

Essa confusão, aliás, é mencionada por MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:126), que ressalta a existência de sujeitos de direito que não são pessoas, como, por exemplo: a sociedade não-personificada, a sociedade irregular, o espólio, a massa falida, o condomínio, a herança jacente, a herança vacante, o nascituro e o nondum conceptus.

Uma diferença entre os sujeitos de direito personalizados e os não-personalizados é apontada por FÁBIO ULHOA COELHO (2002:10), para quem, enquanto aqueles possuem autorização genérica para a prática de atos jurídicos, exceto os que a lei expressamente proibir, estes somente podem realizar “os atos essenciais para o seu funcionamento e aqueles expressamente definidos”.

Deve-se ressaltar, todavia, que as pessoas de direito público apenas podem praticar o que a lei expressamente autorizar, conforme assinala CARLOS ARI SUNDFELD (1996:152):

“Esse princípio – em verdade um subprincípio do direito público, decorrência que é da submissão do Estado à ordem jurídica – determina que ato algum do Estado surgirá senão como comando complementar da lei.”

Quanto às demais pessoas jurídicas, também sua atuação é limitada pelos fins previstos em seus atos constitutivos.

As pessoas, nos termos do Livro I do Código Civil, são as naturais e as jurídicas. Entre aquelas, está o ser humano nascido com vida, nos termos do art. 2.º.

Por sua vez, as pessoas jurídicas podem ser: a) de direito público interno (CC, art.41) – União, Estados, Distrito Federal, Territórios, Municípios, Autarquias, demais entidades de caráter público criadas por lei; b) de direito público externo (CC, art. 42): os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público; e c) de direito privado (CC, art. 44): associações, sociedades, fundações, organizações religiosas e partidos políticos.

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Embora MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:154) mencione que “pessoas jurídicas são entidades criadas pelo homem às quais o ordenamento jurídico atribui personalidade jurídica”, merece destaque o fato de que certas pessoas jurídicas são criadas por outras pessoas jurídicas. O que não se nega é que sempre haverá intervenção humana, ainda que indiretamente.

Para FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:272) a pessoa não tem direitos ou deveres, mas é um conjunto direitos e deveres, assim como “a árvore não tem tronco, ramos, folhas e flores, mas é o conjunto desses elementos”.

Diante dessa exposição, pode-se concluir ser a pessoa um sujeito de direito resultante da eficácia legal atribuída a certos fatos jurídicos (MELLO,2003:140).

1.2.Principais teorías sobre a pessoa jurídica

A pessoa jurídica é produto da vida em sociedade. Assim como a sociedade, ela resulta das deficiências da natureza humana (RODRIGUES,1995:64).

As principais teorias que procuraram explicar este instituto, segundo SILVIO RODRIGUES (1995:65), foram: a) ficção legal; b) realidade objetiva; c) realidade técnica; d) institucionalista.

1.2.1. Tepria da ficção legal

Esta teoria teve como principal defensor Savigny (Traité de droit romain, trad. Guéneoux, Paris, 1845, § 85 apud RODRIGUES, 1995: 65).

Segundo ela, ao contrário da pessoa natural que existe por criação da natureza, a pessoa jurídica só existe em razão de determinação legal, que a considera, ficticiamente, um ser existente.

Conforme assinala MIGUEL REALE (1988:230), “preferiu Savigny ver no conceito de pessoa jurídica mais um exemplo de fictio juris, existente apenas como artifício técnico imposto pelas necessidades da vida em comum”.

SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:255) menciona que essa teoria sofreu críticas em razão de não explicar adequadamente quem teria atribuído personalidade ao Estado, uma vez que este é quem atribui personalidade aos entes, mesmo aos seres humanos.

Além disso, MIGUEL REALE (1988:230) menciona diversas dificuldades enfrentadas pelo judiciário para conciliar a pessoa jurídica como simples ficção ao mesmo tempo que não se podia responsabilizar associados pelas dívidas de uma sociedade civil, ou estender os efeitos da falência aos sócios da Sociedade Anônima.

1.2.2. Tepria da realidade objetiva

Também chamada de realidade orgânica (VENOSA, 2003:256), nasceu na Alemanha com Gierke e Zitelmann em reação à teoria da ficção legal (RODRIGUES, 1995: 66).

A linha desta corrente considera a possibilidade de a vontade pública ou privada ser capaz de dar vida a um organismo autônomo em relação a seus componentes, uma realidade sociológica que pode participar das relações e situações jurídicas (RODRIGUES, 1995:66).

Leciona, sobre ela, MIGUEL REALE (1988:230-231):

“Segundo a teoria organicista, quando os homens se reúnem para realizar qualquer objetivo, de natureza política, comercial, civil, estética ou religiosa, forma-se efetivamente uma entidade nova. Constitui-se um grupo que possui existência inconfundível com a de seus membros, tendo sido, mesmo, observado, por adeptos dessa teoria, que também nas combinações químicas o corpo composto apresenta qualidades que nem sempre são as dos elementos que o formam.”

Destaca SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:256) que esse posicionamento foi adotado no Brasil por CLÓVIS BEVILÁQUA.

1.2.3. Teoria da realidade técnica

A pessoa jurídica seria uma realidade e não uma ficção, mas uma realidade técnica e não sociológica, um instrumento para satisfação de certos interesses humanos (RODRIGUES, 1995: 66).

Segundo MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:144), essa teoria foi difundida por Gény.

É um mero expediente para resolver certos impasses surgidos das necessidades humanas. Assim como o direito reconhece a personalidade ao ser humano isoladamente, a personalidade deve ser atribuída de maneira autônoma aos agrupamentos humanos cujos interesses transcendem a esfera individual (VENOSA, 2003:257).

1.2.4. Teoria institucionalista

Para MIGUEL REALE (1988:231), esta seria a teoria que tentou se situar entre os pólos realidade e ficção.

Formulada por Maurice Hauriou, prega que “a instituição preexiste ao momento em que a pessoa jurídica nasce” (RODRIGUES, 1995:66).

Cuida-se de uma organização com fins comuns aos membros que a compõem. É o grau de concentração e de organização que converte automaticamente a instituição em pessoa jurídica (RODRIGUES, 1995:67).

Independentemente de a lei reconhecer a personalidade das instituições, é fato que elas participam da vida social com personalidade moral (VENOSA, 2003:258).

Esclarece MIGUEL REALE (1988:231) que essa teoria parte da tradição tomista que distingue dois tipos de unidade, a física e a finalística. Naquela, há um todo homogêneo, cujas partes não apresentam entre si diferenças fundamentais ou relevantes. Esta, ao contrário, estabelece-se mediante a complementação de partes diferençadas.

Assim, “a pessoa jurídica é uma existência, mas uma existência teleológica, ou seja, finalística” (REALE,1988:232).

1.2.5.A posição de Hans Kelsen

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O entendimento de HANS KELSEN merece destaque especial devido à sua peculiaridade. Anota FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:276-277), a propósito:

“Se as idéias de Kelsen não foram aceitas integralmente por ninguém, é preciso, no entanto, reconhecer que elas exerceram, e continuam a exercer, a importante função de uma espécie de detergente do pensamento jurídico, ajudando-o, de fato, a purificar-se de um certo número de ilusões. Não se pode deixar de reconhecer que, a partir de Kelsen, a teoria da pessoa jurídica jamais voltará a ser o que era antes. A sua influência, aliás, transparece de forma nítida no pensamento de alguns importantes juristas coevos.”

Como se viu, para a teoria da ficção legal, a pessoa jurídica é uma criação do direito. Sendo assim, não parece correto o entendimento de SILVIO DE SALVO VENOSA (2003:255) de que HANS KELSEN seria um ficcionista.

Com efeito, leciona HANS KELSEN (1994:211-212):

“O resultado da análise precedente da pessoa jurídica é que esta, tal como a pessoa física, é uma construção da ciência jurídica. Como tal, ela é tampouco uma realidade social como o é – conforme, apesar de tudo, por vezes se admite – qualquer criação do Direito. […] Porém, esta personificação e o seu resultado, o conceito auxiliar de pessoa jurídica, são um produto da ciência que descreve o Direito, e não um produto do Direito.” (destacou-se)

FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:276) assinala que a posição de KELSEN quanto à pessoa não está ligada à idéia medieval de corpo espiritual, bem como não se confunde com a ficção de SAVIGNY. Na realidade, considera ser uma criação do intelecto, mas não do legislador, e sim dos juristas, que interpretam, “canhestramente, esse centro de imputação normativa como sujeito de direitos.”

Apesar de não se considerar KELSEN como adepto da corrente da ficção legal, é evidente que a pessoa jurídica não é mero produto da ciência do direito. É, de fato, uma parte do objeto desta, ou seja, uma pequena parte do ordenamento.

Para KELSEN, segundo sustenta MIGUEL REALE (1988:234), as pessoas jurídica seriam apenas “conjuntos normativos”, “centros de imputação”.

A posição de KELSEN é adotada por FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:272) em seu “Poder de controle da sociedade anônima”, que define a pessoa como “complexo de deveres”.

1.2.6. Síntese de todas as teorias

Para tratar da pessoa jurídica, mister que se separe o mundo dos fatos do mundo jurídico.

No primeiro, nossa percepção apenas constata que existe um certo tratamento dado pela sociedade (pelos homens) aos entes personalizados, e mesmo aos despersonalizados, como se fossem um “ser existente”, em certos aspectos.

Nessa linha, diz-se que o prédio é da “empresa tal”, ou que o indivíduo X é empregado “daquela firma”, ou que é funcionário público da “Prefeitura de tal cidade”.

Talvez os sócios vejam de uma forma um pouco diferente sua relação com os bens da sociedade que compõe, podendo até chamá-los de “seus”. Mas, de qualquer forma, sabem que não podem usá-los privativamente e para fins pessoais, uma vez que constituem um “condomínio”.

Mas toda essa aparente falta de clareza, essa profunda abstração, torna-se consistente se examinada no âmbito próprio, qual seja, no mundo jurídico.

A pessoa jurídica é um instituto, assim como o é a enfiteuse, o fideicomisso, a propriedade, a responsabilidade etc.

Assim, se se considera como real apenas o que é tangível, estarão corretos os ficcionistas.

Por outro lado, se considerada a realidade algo mais que o simples mundo perceptível, a pessoa jurídica será considerada existente.

Mas essa existência, enquanto está no plano teleológico para os institucionalistas (REALE,1988:232), para os realistas, ela se situa no plano físico (REALE, 1988:231).

Em remate, note-se os esclarecimentos de CHÄIM PERELMAN (1998:86):

“A ficção jurídica, diferentemente da presunção irrefragável, é uma qualificação dos fatos sempre contrária à realidade jurídica. Se esta realidade é determinada pelo legislador, sua decisão, qualquer que seja, jamais constitui uma ficção jurídica, mesmo que se afaste da realidade de sentido comum. Assim é que, ao atribuir personalidade jurídica a associações, o legislador não institui uma ficção jurídica, mesmo que a assimilação dos grupos a pessoas físicas se afaste da realidade psicológica e moral.

Mas, se o juiz confere a um grupo que não tem personalidade jurídica o direito de interpor uma ação judicial, quando tal direito é reservado pela lei apenas às pessoas jurídicas, ele recorre à ficção.”

1.3. Fundamento sético da pessoa jurídica

Do ponto de vista dogmático, o questionamento acerca dos fundamentos da pessoa jurídica circunscrevem-se à sua validade, e se esgota na própria norma, de modo que o estudo fica adstrito ao ordenamento.

A propósito, leciona TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR (2003, p.48):

“Já falamos dessa característica da dogmática. Ela explica que os juristas, em termos de estudo estrito do direito, procurem sempre compreendê-lo e torná-lo aplicável dentro dos marcos da ordem vigente. Essa ordem que lhes aparece como um dado, que eles aceitam e não negam, é o ponto de partida inelutável de qualquer investigação. Ela constitui uma espécie de limitação, dentro da qual eles podem explorar as diferentes combinações para a determinação operacional de comportamentos juridicamente possíveis.”

Do ponto de vista zetético, porém, vai-se além, para perquirir a razão da existência e os valores utilizados na lei ao criar o instituto, com o que se inferirá um mecanismo eficaz de interpretação, orientando a aplicação do direito.

FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:271), baseado em KELSEN (1994), sustenta que inicialmente tanto o conceito de pessoa como o de direito subjetivo foram uma proposta do jusnaturalismo para defender a ordem capitalista e a instituição da propriedade privada contra a ação estatal.

Conclui, enfim, ser a personalização “uma técnica jurídica utilizada para se atingirem determinados objetivos práticos – autonomia patrimonial, limitação ou supressão de responsabilidades individuais – não recobrindo toda a esfera da subjetividade, em direito” (COMPARATO, 1976:290).

Na mesma linha, ressalta FÁBIO ULHOA COELHO (1989:13) que, dentre os principais efeitos da criação da pessoa jurídica, destaca-se sua autonomia, inclusive patrimonial, em relação à pessoa de seus membros ou sócios.

Sendo certo que, nos termos do art. 391 do CC, o patrimônio do devedor responde por seus débitos, os sócios ou membros da pessoa jurídica não são atingidos pelas dívidas desta.

Na lição de FÁBIO ULHOA COELHO (2002:13-14), em relação às sociedades empresárias:

“na medida em que a lei estabelece a separação entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, consagrando o princípio da autonomia patrimonial, os sócios não podem ser considerados os titulares dos direitos ou os devedores das prestações relacionados ao exercício da atividade econômica, explorada em conjunto. Será a própria pessoa jurídica da sociedade a titular de tais direitos e devedora dessas obrigações.”

O objetivo do legislador com esse princípio é promover o desenvolvimento econômico, consoante salienta FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:359): “Não se pode esquecer que a responsabilidade limitada é fator de progresso econômico, pois, permitindo um maior afluxo de capitais para as atividades produtivas, contribui para uma redução relativa de custos e preços”.

Nesse sentir, a pessoa jurídica pode ser vista como uma sanção premial (JUSTEN FILHO,1987:46-51), ou seja, considerando a intenção do Estado em promover o investimento e conseqüente desenvolvimento da nação, utiliza-se de instrumentos como a pessoa jurídica como atrativo para tanto.

Com isso, presente o suporte fático consistente no grupamento de pessoas ou bens com a finalidade de atingir certos fins queridos pelo Estado, atribui-se-lhes o efeito da personalização.

Diante do atual ordenamento jurídico brasileiro, para FÁBIO ULHOA COELHO (2002:15-16), parece ser esta a principal utilidade da pessoa jurídica na visão de seus sócios, qual seja, proteger o patrimônio destes, estimulando o investimento, e o desenvolvimento econômico:

“A partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da sociedade, motivam-se investidores e empreendedores a aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco.”

Merece ser salientado, contudo, que apenas certas pessoas jurídicas, e desde que constituídas atendendo aos termos legais, podem ter a responsabilidade dos sócios efetivamente limitada.

Mas não se restringe ao âmbito econômico a influência desse princípio. No tocante à Administração Pública, caso os administradores respondessem pessoalmente, independentemente de dolo ou culpa, por eventuais prejuízos causados no mero exercício de suas competências funcionais, dificilmente alguém se proporia a tal mister.

O mesmo em relação a Associações e Fundações, inclusive aquelas com fins humanitários.

Cabe ainda neste tópico serem tecidas algumas considerações especificamente acerca da autonomia patrimonial.

De acordo com a lição de FÁBIO ULHOA COELHO (2002:20-22), nota-se que, em relação às sociedades empresárias, foi levada em consideração a natureza das obrigações para se estabelecer a autonomia da pessoa jurídica.

Assim, enquanto no campo das obrigações negociáveis, existentes grosso modo no direito privado, prestigia-se a autonomia, com o objetivo salientado supra; no âmbito das obrigações não negociáveis, mormente situadas no direito público, especialmente os tributos, verifica-se que o ordenamento restringiu a separação entre a pessoa jurídica e seus sócios ou membros (COELHO,2002:21).

A fundamentação dessa diferenciação está em que, enquanto nas relações empresariais os empresários podem calcular seus riscos e embutir em seus preços o valor destes, o mesmo não é possível, por exemplo, nas relações entre empregado e empregador, ou entre contribuinte e fisco.

Porém, mesmo nas relações negociáveis, passou-se a flexibilizar a autonomia da pessoa jurídica em busca de novos limites, a fim de se chegar a um ponto de equilíbrio na aplicação do direito, conforme mencionado no início deste trabalho.

Isso se deu quando se verificou o desvirtuamento do instituto da pessoa jurídica, mesmo no âmbito das relações privadas, e as mazelas que gerariam na sociedade (COELHO,2002:20).

Foi eminentemente essa situação que ensejou o nascimento da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica.

1.4. Breve nota sobre a limitação da responsabilidade do empresário individual

Consoante tópico 1.3 supra, a constatação de que certas atividades demandariam um maior número de pessoas e recursos para serem realizadas levou à personalização das sociedades empresárias, com a limitação da responsabilidade patrimonial (COMPARATO,1976:359; COELHO,2002:15-16;59-60).

Com isso, o legislador quis estimular o investimento, pois assegurava aos investidores ou empreendedores que, caso o negócio não vingasse, só perderiam sua contribuição para o capital da sociedade.

Vale ressaltar que a limitação de responsabilidade não tem ligação direta com a personalização (COELHO,2002:7), mesmo porque existem sociedades em que os sócios respondem ilimitadamente (OLIVEIRA,1979: 261).

Nada obstante, ao que parece, a visão que levou a essa normatização, atualmente pelo menos, não parece estar correta.

É cediço que muitos indivíduos, sozinhos, têm recursos suficientes para desenvolver atividades de grande porte.

Porém, caso queiram, logicamente irão preferir a garantia da separação patrimonial e limitação de responsabilidade, que são mais efetivas nas sociedades por ações. Mas normalmente são escolhidas as sociedades limitadas por questões de ordem prática.

Nota-se, assim, que esses sujeitos acabam sendo forçados a instituírem sociedade quando, na verdade, não necessitariam de ninguém para tanto.

Como conseqüência dessa distorção entre a realidade e a visão legal, muitas vezes são presenciadas sociedades onde um dos sócios chega a possuir 99% das ações.

Questiona-se, então: por que a limitação da responsabilidade continua condicionada à criação de uma sociedade?

De outro lado, se o empresário individual responde ilimitadamente pelas dívidas da atividade, não se vê razão para a exigência de indicação do capital. Seria, então, mais coerente exigir que apresentasse sua declaração de bens e rendimentos.

Assim, talvez fosse o momento de o legislador brasileiro garantir ao empresário individual a limitação de sua responsabilidade ante a ausência de conexão razoável entre esta e a formação de sociedade. Já existe, a propósito, exemplo no direito comparado, conforme aponta JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:261).

2.Desconsideração da personalidade jurídica

2.1.Noções gerais

RUBENS REQUIÃO (1969:17) explica no que consiste e qual o objetivo da desconsideração da personalidade jurídica:

“[…] com efeito, o que se pretende com a doutrina do disregard não é a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude).”

Desconsiderar a personalidade jurídica significa flexibilizar a autonomia desta, ou seja, atingir a eficácia da personalização. Nas palavras de FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:294), é uma sanção que consiste na “suspensão dos efeitos da separação patrimonial in casu”.

MARÇAL JUSTEN FILHO (1987:57) formula a seguinte definição:

“É a ignorância, para casos concretos e sem retirar a validade de ato jurídico específico, dos efeitos da personificação jurídica validamente reconhecida a uma ou mais sociedades, a fim de evitar um resultado incompatível com a função da pessoa jurídica.”

No direito brasileiro, segundo FÁBIO ULHOA COELHO (2002:35), há duas teorias acerca do assunto. Uma que ele denomina “teoria maior”, que admitiria a desconsideração da personalidade jurídica para evitar o mau uso desta; e outra, que chama “teoria menor”, segundo a qual a simples insuficiência patrimonial da pessoa jurídica para arcar com suas obrigações autorizaria a responsabilização de seus sócios.

A teoria maior adota como pressuposto da desconsideração a fraude e o abuso da personalidade jurídica. Em razão da insuficiência desses pressupostos para resolver todos os casos, bem como da dificuldade de sua prova, dada sua subjetividade (OLIVEIRA,1979:555), FÁBIO KONDER COMPARATO defendeu um critério objetivo (OLIVEIRA,1979:552) para autorizar a desconsideração, consistente, principalmente, na confusão patrimonial (COELHO,2002:43).

A confusão patrimonial é apenas um dos motivos que FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:295) defendeu como ensejadores da desconsideração. Para ele a desconsideração “é sempre feita em função do poder de controle societário”, tendo por critério os pressupostos da separação patrimonial: “de tipo formal, como por exemplo, o respeito à espécie societária; ou o pressuposto substancial da permanência do objeto e do objetivo sociais, como escopo inconfundível com o interesse ou a atividade individual dos sócios.” (1976:297).

Porém o pressuposto de tipo formal apontado por FÁBIO KONDER COMPARATO foi criticado, por exemplo, por JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:553), uma vez que, a ausência de tal pressuposto levaria à irregularidade da sociedade e, por conseguinte, à ausência de limitação de responsabilidade, razão pela qual não se cogitaria da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

Enquanto a teoria maior é bem próxima da formulação original da doutrina da desconsideração, a menor chega a ser uma afronta ao atual ordenamento jurídico, pois viola o princípio da separação patrimonial onde não deveria, minando o instituto da pessoa jurídica (COELHO,2002:46).

Isso porque é imprescindível ater-se a dois enfoques antes de se verificar se é cabível a desconsideração. Em primeiro lugar, considerando, em abstrato, a finalidade da pessoa jurídica como instituto, nos moldes mencionados no tópico 1.3 (COELHO, 2002:37). Em segundo, apreciar o caso concreto tendo em vista se determinadas condutas desviaram do cumprimento do objeto social da pessoa jurídica sob análise.

Merece destaque o posicionamento de JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:262), para quem a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica nasce em reação à crise de função da pessoa jurídica, utilizada em contradição com os princípios informadores do ordenamento jurídico.

Essa é a base da teoria da desconsideração: a busca de um ponto de equilíbrio onde, ao mesmo tempo em que se proteja a autonomia patrimonial e a própria existência da pessoa jurídica, seja assegurada a sociedade contra o uso indevido deste instituto.

Saliente-se que, quando se diz sociedade, este termo pode abranger até mesmo sócios ou membros da pessoa jurídica, quando estes são prejudicados por outro ou outros sócios ou membros da corporação, ou instituição. Até mesmo a própria pessoa jurídica, conforme o caso concreto, é protegida com a aplicação da desconsideração. Isso ocorre porque, ao ser desconsiderada, seu patrimônio pode ficar intacto, sendo atingidos somente os bens de seus membros.

2.2.Alcance dos efeitos da desconsideração

MARÇAL JUSTEN FILHO (1987:64) elabora uma classificação da desconsideração da personalidade jurídica de acordo com dois critérios. Conforme o primeiro deles, denominado intensidade, a desconsideração pode ser (1987:61): a) máxima: quando se ignora totalmente a eficácia da personalização, de modo que o sócio ou membro da sociedade seja colocado na relação jurídica que seria assumida pela pessoa jurídica ou vice-versa, como se esta não existisse; b) média: quando, embora se considere eficaz a autonomia da pessoa jurídica, seu membro ou sócio é colocado juntamente com ela na relação jurídica, como se fossem uma só pessoa, ou solidariamente; e c) mínima: quando, conquanto admitida a autonomia da pessoa jurídica, seu sócio ou membro tenha responsabilidade subsidiária pelos atos daquela, ou vice-versa.

Por sua vez, segundo o critério da extensão (1987:62):

“Pode-se distingui-la [a desconsideração] conforme incida sobre um específico ato jurídico, sobre uma série de atos e relações jurídicas entre a sociedade e uma pessoa específica e sobre todos os atos e relações jurídicas ocorridas dentro de um certo período de tempo.”

Da mesma forma, a posição de JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:610) não pode merecer acolhida. Segundo ele “para que se possa falar de verdadeira técnica desconsiderante, em termo de responsabilidade, será necessária a presença do princípio da subsidiariedade, explicitado à luz de uma concepção dualista da obrigação: responsabilidade subsidiária por dívida de outrem”.

Se a desconsideração é a suspensão da eficácia da personalização, então a pessoa jurídica não pode figurar na relação obrigacional de responsabilização, pois, caso contrário, ela estaria “sendo considerada”.

Tendo em vista que em certas ocasiões a própria pessoa jurídica pode ser beneficiada por certos atos abusivos ou fraudulentos de seus membros, justifica-se, conforme seu proveito decorrente do ilícito, ser responsabilizada.

No caso da confusão patrimonial, de outro lado, se há a desconsideração, o patrimônio da pessoa jurídica é considerado como se fosse de seu membro, razão pela qual não se pode dizer que a pessoa jurídica esteja respondendo solidária ou subsidiariamente.

A desconsideração da personalidade jurídica é uma outra técnica de responsabilização que não se confunde com a solidariedade ou com a subsidiariedade.

Nada obstante, não se pode esquecer que a desconsideração nem sempre ocorre para responsabilizar um sócio ou membro de uma pessoa jurídica, mas também para responsabilizar esta por atos de seus membros ou sócios (COMPARATO, 1976:364). FÁBIO ULHOA COELHO (2002:44) denomina essa hipótese de desconsideração inversa, e exemplifica com um caso em que determinado sócio transfere seu patrimônio para a pessoa jurídica para proteger seus bens quando dissolução do vínculo conjugal.

Por fim, ressalte-se que, para alguns autores, a desconsideração só ocorre quando a pessoa jurídica se coloca como obstáculo à coibição da fraude ou do abuso de direito, enfim, do uso indevido da autonomia. Isso porque, caso haja previsão expressa no ordenamento de imputação direta de responsabilidade por certos atos ao membro ou sócio, torna-se dispensável a desconsideração da personalidade jurídica (COELHO,2002:42; LOPES,2003:40; OLIVEIRA,1979:610).

A propósito, eis as palavras de JOÃO BATISTA LOPES (2003:40), para quem “as hipóteses legais de responsabilidade dos sócios por atos ilícitos ou contrários ao contrato social não devem ser qualificadas como desconsideração.”

De outro lado, há uma corrente que entende configurada a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica quando o ordenamento atribui responsabilidade aos sócios desta ou a outras pessoas jurídicas a ela ligadas de alguma forma (JUSTEN FILHO,1987:102 e segs.; ALMEIDA, 2003).

Há casos ainda em que a lei simplesmente diz expressamente que a “personalidade jurídica será desconsiderada”, sem contudo estarem preenchidos os requisitos elaborados pela doutrina da desconsideração.

Essa polêmica será analisada no decorrer do trabalho.

2.3.HISTÓRICO

O caso Salomon vc. Salomon & Co., julgado pela justiça inglesa em 1897, e mencionado na monografia “Il Superamento della Personalità Giuridica delle Società di Capitali” do Prof. Piero Verrucoli, da Universidade de Pisa, é apontado por RUBENS REQUIÃO (1995:277) como a origem da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica.

Contudo, segundo FÁBIO ULHOA COELHO (1989:9), as primeiras referências ao assunto teriam sido feitas pelo jurista norte-americano Maurice Wormser em 1912, na obra “Piercing the veil of Corporate Entity”, que, aliás, é citada pelo Prof. Piero Verrucoli.

AMADOR PAES DE ALMEIDA (2003:186) anota que Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, em seu livro “A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas”, 2. ed. Forense: 1995, p. 64, noticia como sendo o primeiro caso de aplicação do instituto o Bank of United States vs. Deveaux julgado nos Estados Unidos em 1809.

Ainda de acordo com a posição de FÁBIO ULHOA COELHO (1989:9; 2002:36), a sistematização da teoria teria ocorrido pela primeira vez na Alemanha, na tese de doutorado apresentada por Rolf Serik à Universidade de Tübigen em 1953.

Nesta conferência, RUBENS REQUIÃO (1969:15) defende que a personalização deve ser vista como relativa, e não como um efeito absoluto. Por isso, caso a pessoa jurídica fosse utilizada com abuso de direito ou fraude, seria admissível desconsiderar a separação entre ela e seus sócios.

Para FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:295), a explicação que funda a desconsideração da personalidade jurídica apenas na fraude e no abuso de direito não seria admitida em sua totalidade, pois “ela deixa de lado os casos em que a ineficácia da separação patrimonial ocorre em benefício do controlador, sem qualquer abuso ou fraude…”.

Nada obstante seu trabalho se restringir à questão societária, FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:293-294) aponta quais seriam, no seu entender, os critérios utilizados para admitir o afastamento do efeito da personalização:

“…quando falte um dos pressupostos formais, estabelecidos em lei; e, também, quando desapareça a especificidade do objeto social de exploração de uma empresa determinada, ou do objeto social de produção e distribuição de lucros – o primeiro como meio de se atingir o segundo; – ou, ainda, quando ambos se confundem com a atividade ou o interesse individuais de determinado sócio.”

Seja qual for o critério, para ele (1976:295) “a desconsideração é sempre feita em função do poder de controle societário”.

Enquanto a posição do primeiro é chamada de subjetiva, a do segundo é considerada objetiva (COELHO,1989:41; LOPES,2003:39).

Como se verá, no item 2.4 infra, esses dois autores brasileiros, juntamente com JOSÉ LAMARTINE CORREA DE OLIVEIRA, seriam os maiores responsáveis pela inclusão da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento brasileiro, mormente no Código Civil.

2.4.Direito comparado Norte-americano

Em razão da natureza do sistema federalista dos Estados Unidos, os Estados americanos apresentam muitas diferenças, principalmente no âmbito jurídico, de modo que as Cortes de cada unidade têm diferentes critérios para aplicar a desconsideração da personalidade jurídica (NEVADA & OFFSHORE BUSINESS FORMATION, INC., 2003).

Segundo FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:295), os pressupostos de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica nos Estados Unidos são perqueridos casuisticamente, mencionando o seguinte julgado:

“in determining whether corporate entity should be disregarded, each case should be regarded as sui generis (Industrial Research Corporation v. General Motors, D.C. Ohio, 29 F 2d 623). [Na determinação acerca de quando a pessoa jurídica deve ser desconsiderada, cada caso deve ser considerado como sui generis]” (tradução livre)

Apesar do casuísmo, o ilustre comercialista (1976:296) menciona um julgado freqüentemente citado, que estabelece uma regra geral para a aplicação do instituto:

“Nos Estados Unidos, é freqüentemente citada, como critério geral de disregard of corporate entity, a seguinte declaração do voto do Juiz Sanborn, no caso United States v. Milwaukee Refrigerator Transit Co., julgado no princípio do século: ‘If general rule can be laid down, in the present state of authority, it is that a corporation will be looked upon as a legal entity as a general rule, and until sufficient reason to the contrary appears; but when the notion of legal entity is used to defeat public convenience, justify wrong, protect fraud, or defend crime, the law will regard the corporation as an association of persons’.[Se uma regra geral pode ser assentada, no presente estado de autoridade, é que a pessoa jurídica será, em regra, respeitada como uma entidade legal, e até que surja razão suficiente em contrário; mas quando a noção de entidade legal é usada para prejudicar a conveniência pública, justificar um erro, proteger fraude, ou amparar crime, a lei considerará a corporação como uma associação de pessoas]”(tradução livre).

No mesmo sentido, em recente artigo, GRANT M. YOAKUM (2003) anota, basicamente, as seguintes circunstâncias que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica nos Estados Unidos:

“Em geral, um sócio pode ser responsável quando: 1. O controle da corporação por um ou mais sócios é tão completo que ela não tem uma existência distinta; 2. Este controle é exercido para cometer fraude ou ato ilegal contra terceiros; e 3. Terceiros sofrem ofensas ou perdas injustas como resultado do nível de controle e do mau procedimento do sócio.” [tradução livre]

O item 1 dessa citação guarda íntima relação com o critério da confusão patrimonial, considerado como fundamental por FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:362):

“E compreende-se, facilmente, que assim seja, pois a pessoa jurídica nada mais é, afinal, do que uma técnica de separação patrimonial. Se o controlador, que é o maior interessado na manutenção desse princípio, descumpre-o na prática, não se vê bem porque os juízes haveriam de respeitá-lo, transformando-o, dessarte, numa regra puramente unilateral.”

Um outro critério utilizado para desconsiderar a personalidade jurídica nos julgados norte-americanos, lembrado por FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:362) é a inadequada capitalização. Como exemplo de aplicação desse critério, ele cita a decisão proferida no caso Arnold v. Phillips (117 F. 2d 497 (5th Circ. 1941), cert. denied 313 U.S. 583, 61 S. Ct. 1102, 85 L.E. 1539 (1941)).

No referido caso, o Sr. Arnold constituiu uma companhia com um capital autorizado de determinada quantia. Ocorre que ele subscreveu apenas pequena parte das ações, embora, de fato, tenha assumido o controle societário, uma vez que a companhia só contava com mais dois sócios, que subscreveram uma ação cada um. O aludido acionista majoritário emprestou dinheiro à companhia e recebeu uma garantia real em troca. Após uma crise econômica, quando o mencionado acionista já havia lucrado muito com juros de seu empréstimo e honorários por ser diretor da companhia, ele a executou, e ela, em seguida, veio a falir. Nesse caso, o tribunal julgou ineficaz essa execução, colocando o Sr. Arnold no quadro geral de credores, ao lado dos demais quirografários. (COMPARATO,1976:363-364).

Atualmente, um dos Estados americanos que proporciona maiores atrativos para as empresas é o de Nevada, seja pela baixa carga tributária, seja em decorrência de outros benefícios econômicos. Nessa linha de cultura, conforme informações de NEVADA & OFFSHORE BUSINESS FORMATION, INC. (2003), a Corte daquele Estado é a mais rigorosa de todas, permitindo a desconsideração da personalidade jurídica em casos estritos, desde que preenchidos os seguintes requisitos, cumulativamente, os quais devem ser provados pelo requerente:

“1. A corporação deve ser influenciada e governada pela pessoa criada para ser o alter ego [outro eu]; […] 2. Deve existir uma tal unidade de interesses e propriedades de modo que um seja inseparável do outro; e 3. Os fatos, se atribuídos apenas à corporação como uma entidade autônoma, sob as circunstâncias concretas, aprovariam a fraude e promoveriam a injustiça. Se qualquer um desses três itens não estiver adequadamente provado, a desconsideração não será deferida.” (tradução livre)

Já no Estado da Califórnia, consoante assinala MARY HANSON (1997), casos datados do início de 1900 têm exigido de forma persistente dois requisitos antes de responsabilizar os sócios: a) deve haver uma unidade de interesses e propriedades entre a corporação e os sócios de modo que as personalidades ou identidades não possam ser distinguidas; e b) o resultado de se considerar os atos como sendo apenas da corporação deve ser injusto.

Como se vê, a linha adotada nos Estados Unidos, de modo geral, não se afasta daquela que inspirou o atual Código Civil, conforme se verá abaixo. Aliás, o Código Civil é mais coerente do que as demais disposições do ordenamento brasileiro que autorizam a desconsideração sem que a pessoa jurídica tenha sido utilizada como instrumento de abuso ou fraude.

2.5. O ordenamento jurídico brasileiro e a desconsideração

RUBENS REQUIÃO (1969:21), quando defendeu a aplicação da doutrina em nosso país, esclareceu, na época, não haver no ordenamento jurídico brasileiro nenhum dispositivo que a autorizasse, apesar de existirem diversos artigos que poderiam ter o mesmo objetivo da desconsideração da personalidade jurídica. Citou, a propósito, o grupo econômico mencionado na CLT, bem como os artigos 121, 122 e 167 do Decreto-lei n.º 2627/40, que dispõem respectivamente sobre responsabilidade dos diretores por descumprimento da lei ou dos estatutos e acerca da dissolução da sociedade quando exercer atividade ilícita.

Nessa linha, assinala FÁBIO ULHOA COELHO (2002:49) que a doutrina da desconsideração foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro com o Código de Defesa do Consumidor, que dispõe em seu art. 28, verbis:

“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

[…]

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”

Ainda de acordo com o referido autor (COELHO,2002:52), o segundo dispositivo legal a adotar a teoria, embora sem obedecer sua formulação original, foi o art. 18 da Lei n.º 8.884/94, cujo teor segue abaixo:

“Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”

A terceira menção à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica foi feita pelo art. 4.º da Lei 9605/98 (COELHO,2002:53), com a seguinte redação:

“Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”

Por fim, chega-se ao Código Civil, Lei n.º 10406/02, que apresentou a seguinte disposição em seu art. 50, verbis:

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

Esse dispositivo introduziu no ordenamento uma posição mais próxima da doutrina melhor elaborada do instituto da desconsideração (COELHO, 2002:54).

Nota-se no art. 50 do Código Civil as posições de RUBENS REQUIÃO e de FÁBIO KONDER COMPARATO acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. De fato, além das contribuições desses dois doutrinadores, a de JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA também foi lembrada no parecer final n.º 749 de 1997 (FREITAS, 2002:265).

Apesar de algumas críticas que possam surgir contra o art. 50, o fato é que, para RUBENS REQUIÃO (1995:278), é dispensável a previsão legal para a aplicação da desconsideração. No mesmo sentido, FÁBIO ULHOA COELHO (2002:54) afirma que a aplicação da desconsideração independe de previsão legal, e a melhor interpretação dos dispositivos legais acima:

“é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica, reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando necessário à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa jurídica.”

O entendimento exposto supra, acerca da ordem cronológica dos primeiros dispositivos legais que consagraram a teoria da desconsideração no ordenamento jurídico brasileiro, não é unânime.

AMADOR PAES DE ALMEIDA (2003:186) opõe-se a ele, defendendo que a CLT teria sido o primeiro diploma legal a prever o instituto no art. 2.º, § 2.º.

Esse dispositivo também é citado por outros autores como sendo um exemplo de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica (JUSTEN FILHO,1987:102; FREITAS, 2002:274).

Todavia, a simples atribuição de responsabilidade solidária não pode ser considerada uma hipótese de aplicação da doutrina da desconsideração, muito embora possa, às vezes, ter objetivos análogos (REQUIÃO, 1969:21).

3. Desconsideração no Código de Defesa do Consumidor

No Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078/90, a desconsideração aparece do art. 28, nos seguintes termos:

“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1.º (vetado)

§ 2.º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.

§ 3.º As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.

§ 4.º As sociedades coligadas só respondem por culpa.

§ 5.º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”

Essas disposições são criticadas por conterem no caput casos de imputação direta, que não se confundem com desconsideração da personalidade jurídica, bem como por exigir no § 5º apenas a existência de prejuízos ao consumidor não indenizados pela pessoa jurídica, indo de encontro ao princípio da autonomia patrimonial (COELHO, 2002:52).

Além disso, também apresentam hipóteses que podem se encaixar na teoria dos atos ultra vires (vide tópico 7.4)

MOTAURI CIOCCHETTI DE SOUZA (2000:226), a propósito, aponta que o dispositivo do §5.º deve ser interpretado juntamente com o caput do art. 28, de modo que só será autorizada a desconsideração se presentes os requisitos deste. No mesmo sentido, ELIZABETH CRISTINA CAMPOS MARTINS DE FREITAS (2002:207).

Merece destaque a menção feita por estes dois autores a um comentário de ZELMO DENARI, em sua obra Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto – Rio de Janeiro: Forense universitária, 1994, p.159-, no sentido de que o veto do §1.º deveria ter sido direcionado ao §5.º.

Apenas a primeira parte do caput do art. 28 se aproxima da formulação original da doutrina da desconsideração, tendo em vista a utilização abusiva da pessoa jurídica. Porém, acresce o elemento “em detrimento do consumidor” como requisito para tanto (FREITAS, 2002:172).

Quanto ao conceito de má administração, deve-se buscar no próprio ordenamento um delineamento adequado.

Inicialmente, dentro das normas gerais que cuidam da pessoa jurídica, está o CC, que, em seu art. 1011, prevê o que se pode chamar de boa administração: “O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.”

De outro lado, o art. 1016 do CC esclarece que os administradores respondem perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções. Também no mesmo sentido a disposição do art. 158 da Lei 6404/76:

“Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:

I – dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;

II – com violação da lei ou do estatuto;”

Diante dessas disposições, constata-se que, ao mesmo tempo em que a lei estabelece que o administrador não é pessoalmente responsável “pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão” quando “tiver, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”, determina que será responsabilizado quando houver exercício irregular da administração, improbidade, culpa ou dolo, infração da lei ou do estatuto.

Basta, assim, aplicar o argumento a contrario (PERELMAN,2000:11) às situações em se seria injustificável estarem enquadradas como boa administração.

ELIZABETH CRISTINA CAMPOS MARTINS DE FREITAS (2002:172) aponta a aparência de tratamento desigual entre empresas bem administradas e mal administradas, pois somente no caso destas seria permitida a desconsideração no caso de encerramento.

Ocorre que, se não houve a má administração, se não houve abuso ou outro pressuposto para a desconsideração, não há porque se cogitar de sua aplicação.

Por fim, em relação aos parágrafos 2.º, 3.º e 4.º, não tratam da desconsideração da personalidade jurídica, mas simplesmente de responsabilidade em sentido lato (FREITAS, 2002:204).

4.Desconsideração na Lei 8884/94

A Lei 8884/94 prevê em seu art. 18:

“Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver por parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”

A CR determinou em seu art. 173, § 5.º, que tanto pessoa jurídica, quanto seus membros, devem ser responsabilizados por atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

A primeira parte do art. 18 é um tanto quanto confusa. Quando diz que a personalidade do infrator pode ser desconsiderada, parece estar fazendo menção à pessoa jurídica. Porém, logo a seguir, refere-se a um abuso praticado por esta. Ora, o abuso é praticado pelo membro da pessoa jurídica, e não por ela, pois, se assim fosse, não haveria porque desconsiderá-la.

Ante o absurdo que essa interpretação acarretaria, infere-se que “abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social” devem ser praticados pelos membros da pessoa jurídica (PERELMAN,2000:11).

Salienta FÁBIO ULHOA COELHO (2002:53) que, como o legislador reproduziu nesse dispositivo o teor do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, merecem as mesmas críticas, no sentido de incluir casos que não se confundem com a doutrina da desconsideração, como no encerramento da empresa por má administração.

No que tange à má administração, já foi tratado quando da análise do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, no tópico 3 supra.

5.Desconsideração na Lei 9605/98

Dispõe o art. 4.º da Lei 9605/98, verbis:

“Art. 4.º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”

Esse dispositivo cogita, obviamente, da hipótese em que é a pessoa jurídica que está sendo responsabilizada por prejuízos causados ao meio ambiente, e não seus sócios ou membros.

Isso porque, se estes já estiverem sendo obrigados a ressarcir os danos, não haveria falar em pessoa jurídica como obstáculo.

Salvo se referidos membros houverem transferido seus bens à pessoa jurídica, de modo a resguardá-los de eventual execução. Todavia, se essa transferência torná-los insolventes, ensejará a aplicação do instituto da fraude contra credores, ou da fraude à execução, dispensando-se a desconsideração.

Acresça-se, contudo, que, se apesar da transferência, os membros continuarem a se utilizar dos bens como se seus fossem, estará configurada a confusão patrimonial, máxime se o aludido patrimônio não tiver qualquer serventia à finalidade da pessoa jurídica. Desta maneira, ainda que não configurada fraude à execução ou a credores, a personalidade poderá ser desconsiderada.

Entretanto, se se atentar para a redação do art. 4.º, verificar-se-á que, conquanto seja permitida a desconsideração da personalidade jurídica, essa permissão não se sujeita ao preenchimento dos pressupostos da doutrina original.

Assinala MOTAURI CIOCCHETTI DE SOUZA (2000:49) que bastará a pessoa jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento, ou seja, havendo um dano e esgotado seu patrimônio, se não for possível alcançar os bens dos sócios em razão da limitação legal de responsabilidade, ou da aplicação do princípio da autonomia do ente jurídico, será possível a desconsideração.

De outro lado, para FÁBIO ULHOA COELHO (2002:53), se a pessoa jurídica não tiver bens para arcar com o ressarcimento de prejuízos ao meio ambiente, este fato, isoladamente, não pode ser considerado um obstáculo a autorizar a desconsideração. O referido autor entende que a interpretação deve ser feita de acordo com a formulação teórica acerca do instituto da desconsideração, ou seja, é indispensável perscrutar a utilização indevida da personalidade jurídica, seu desvirtuamento.

A primeira posição se mostra mais compatível com os princípios do direito ambiental e com a teoria do risco. A segunda, afina-se com princípios econômicos, pois consegue visualizar que, ao impor tal responsabilização, além de o custo desta ser repassado para a produção, poderá afastar os investimentos.

Deve-se localizar um ponto de equilíbrio, onde convivam desenvolvimento e proteção ao meio ambiente, ou seja, o desenvolvimento sustentável.

Um sócio que, sabendo do risco de uma determinada atividade, vote contra sua execução, poderá ser responsabilizado? Por um lado se argumentará que sua vontade não deu causa a eventuais danos. Por outro, poderá ser levantado que, nada obstante ser contrário a tal atividade, deixou seu capital disponível para a empresa utilizá-lo e, caso houvesse lucro, ele receberia parte deste. Além disso, tendo em vista que não há limite para o lucro próprio e para o prejuízo ambiental, sua limitação de responsabilidade atrelada à participação societária se mostra como um privilégio um tanto quanto sem razoabilidade.

Enfim, sem embargo dessa reflexão, o fato é que a posição de MOTAURI CIOCCHETTI DE SOUZA deva ser acatada, pois, do contrário, estar-se-ia negando vigência ao disposto no art. 4.º. Além disso, se cada magistrado acabar por aplicar, no caso concreto, o que achar mais justo, ora desconsiderando a personalidade, ora não, isso implicará ofensa à isonomia, bem como insegurança jurídica.

5.1.Pessoa jurídica criminosa

O art. 2º imputa responsabilidade, na medida da respectiva culpabilidade, aos diretores, administradores, membros de conselho e de órgão técnico, auditores, gerentes, prepostos ou mandatários que, “sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”.

Esse artigo só diz respeito a crimes, e não aos demais atos ilícitos. Na mesma linha adotada pelo Código Penal, a omissão só tem relevo jurídico quando presentes cumulativamente dever jurídico e possibilidade de agir.

Questiona-se, todavia, acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Num trabalho em que se investiga quais atos podem ou não ser atribuídos às pessoas jurídicas, bem como a seus membros, essa questão não poderia deixar de ser mencionada.

O §3.º do art. 225 da CR dispõe que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

Alguns autores negam a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas (JESUS, 1995:150; DELMANTO et alli, 1998:57-8).

O argumento fundamental nessa corrente doutrinária é a ausência do elemento psicológico na pessoa jurídica, que, por conseguinte, não permitiria atribuir-lhe culpabilidade (DELMANTO et alli,1998:57).

Para DAMÁSIO E. DE JESUS, só o homem pode cometer crime, pois “só ele possui a faculdade de querer”. Não seria possível admitir que a pessoa jurídica possuísse consciência e vontade. Por isso, a interpretação do art. 225, § 3.º, e do art. 173, §5.º, da CR, para referido autor, é no sentido de que as sanções penais dizem respeito somente às pessoas físicas, ao passo que as administrativas, às jurídicas (JESUS, 1995:150), ante a impossibilidade de aplicação da pena restritiva de liberdade a estas (DELMANTO et alli,1998:57).

Este último argumento, porém, é fraco. Obviamente que somente as sanções penais compatíveis com a pessoa jurídica é que serão aplicáveis a ela. Aliás, o § 5.º do art. 173 da CR é mais claro quanto a isso, ao prever que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”.(grifou-se)

A propósito, para FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO (1991:137), é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica, desde que haja tipo penal que a admita como sujeito ativo, e a pena cominada lhe seja compatível com sua natureza.

A polêmica maior, como se vê, decorre da posição filosófica penalista de que o direito penal tem em mira a subjetividade dos agentes.

O legislador, quando comina uma pena, espera, sinceramente, que esta não tenha que ser aplicada, e que seu efeito de ameaça seja suficiente para impedir a ocorrência dos delitos. O mesmo se pode dizer de toda sociedade. Daí, o caráter preventivo do Direito Penal (TOLEDO,1991:3).

Porém, somente os seres humanos, que compreendem o significado das leis e de seus efeitos, é que podem corresponder ou não à expectativa do legislador, assim como, somente eles podem, na prática, realizar os fatos típicos – ainda que não venham a figurar na relação jurídica em nome próprio.

Apenas o homem tem possibilidade de ter vontade, compreensão e discernimento da realidade perceptível, e capacidade de se comportar de acordo com essa percepção.

Com isso, fica evidente não ser lógico que um preceito legal que imponha uma sanção penal seja compreendido por uma pessoa jurídica.

Só é cabível juridicamente a imputabilidade penal da pessoa jurídica se for desconsiderado o elemento subjetivo do crime, ou seja, se ela for responsabilizada objetivamente; ou se, por meio da teoria organicista, for atribuída a ela a vontade de seus agentes.

Deve ficar claro, porém, que os limites até onde se pode considerar a pessoa jurídica como um ente existente e autônomo devem ser estabelecidos com razoabilidade.

Se a autonomia da pessoa jurídica em relação a seus membros fosse absoluta, e se a prática dos atos de seus órgãos fosse sempre atribuída a ela, a eficácia da norma penal seria proporcional ao interesse dos sócios em relação ao patrimônio social.

Isso porque, na prática, somente este e a própria atividade da pessoa jurídica seriam atingidos -com a pena de multa ou perda de bens, e a limitação de exercício-, e não a liberdade ou o patrimônio pessoal dos sócios.

Diante dessa constatação, as sanções penais previstas na Lei n.º 9605/98 procuraram abarcar tanto a pessoa jurídica quanto os membros desta diretamente. Note-se, outrossim, que só se falou em culpa destes últimos, e não da pessoa jurídica.

Além disso, ela apenas responderá por crime quando tiver obtido algum benefício com a infração, ou se esta for perpetrada em seu interesse, conforme art. 3.º da Lei n.º 9605/98.

É o mesmo que ocorre quando um indivíduo coage um terceiro a cometer um delito. Quem realiza os elementos do fato típico é o coagido, mas quem responde é o coator, nos termos do art. 22 do Código Penal.

De qualquer forma, à pessoa jurídica deverá ser assegurado o devido processo legal, mesmo porque, para que seja condenada, é essencial que ela figure como réu na ação penal.

Vale lembrar que, mesmo em relação às pessoas físicas, conquanto a pena não possa passar da pessoa do condenado, essa regra admite, como exceção, que a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens sejam estendidas aos seus sucessores, a teor do disposto no inciso XLV do art. 5.º da CR.

“Art. 5.º […]

XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;”

Seja como for, em termos práticos, é irrelevante o questionamento acerca de quem deve figurar como praticante da conduta, mesmo porque isso não soluciona o problema.

O que importa, e é isso que a lei buscou fazer, é atribuir a responsabilidade. Não é demais reiterar que somente com prévia determinação legal alguém pode ser obrigado a fazer alguma coisa – art.5.º, II, CR.

Lembrando que é a própria lei que atribui autonomia à pessoa jurídica, ela também pode relativizar essa separação, por mais criticável que isso possa ser no plano prático.

Quanto à ontologia das penalidades, mormente as de caráter pecuniário, para se aferir se seriam penais ou administrativas, e as diferenças práticas, jurídicas ou fáticas, alongariam demais o presente trabalho, e se distanciariam do tema.

6.Desconsideração no Código Civil

6.1. Princípios gerais do Código Civil

Diante do que foi aduzido até aqui, nota-se que há perfeita consonância entre a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica e os princípios que sustentam a Lei n.º 10.406/02, o Código Civil.

MIGUEL REALE (2002), quanto às diretrizes adotadas para a elaboração do então anteprojeto do atual Código Civil, apontou a necessidade de modificação geral do Código Civil de 1916 “no que se refere a certos valores considerados essenciais, tais como o de eticidade, de socialidade e de operabilidade”.

O primeiro princípio permite que se recorra “a critérios ético-jurídicos” permitindo “chegar-se à ‘concreção jurídica’, conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa” e também “resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto” (REALE, 2000).

A eticidade para MIGUEL REALE (2000) está baseada “no valor da pessoa humana como fonte de todos os valores”.

Nota-se que, tornando o ordenamento um instrumento mais maleável, permite-se uma aproximação maior do ideal de justiça social.

Pode-se suscitar, de outro lado, que um sistema aberto ensejará injustiças, uma vez que, diante de situações idênticas poderão surgir decisões divergentes, máxime quando proferidas por juízes diversos.

Contudo, no sistema fechado que vinha vigendo até então esse mesmo problema já ocorria. Nessa linha, mostra-se válida, ainda que a título de tentativa, a alteração do CC. Aliás, caso não seja adequado, poderá novamente ser alterado, sempre buscando evoluir e, por conseguinte, melhorar, mesmo porque, para acompanhar a evolução social, ordenamentos rígidos se mostram lacunosos.

Voltando aos princípios adotados no novo CC, ressalta o jusfilósofo (2000) que, apesar de o socialismo não ter conseguido vencer, a “socialidade” teria conseguido, fazendo prevalecer valores coletivos sobre os individuais. Trata-se de um ideal que vem em reação ao individualismo que inspirou o CC de 1916.

Por fim, a operabilidade foi buscada com base na lição de JHERING de que o direito deve existir para ser aplicado, e não para confundir e impedir sua execução, conforme esclarece MIGUEL REALE (2000), citando o seguinte exemplo:

“Quem é que, no Direito Civil brasileiro ou estrangeiro, até hoje, soube fazer uma distinção nítida e fora de dúvida, entre prescrição e decadência? Há as teorias mais cerebrinas e bizantinas para se distinguir uma coisa de outra. Devido a esse contraste de idéias, assisti, uma vez, perplexo, num mesmo mês, a um Tribunal de São Paulo negar uma apelação interposta por mim e outros advogados, porque entendia que o nosso direito estava extinto por força de decadência; e, poucas semanas depois, ganhávamos, numa outra Câmara, por entender-se que o prazo era de prescrição, que havia sido interrompido! Por isso, o homem comum olha o Tribunal e fica perplexo. Ora, quisemos pôr um termo a essa perplexidade, de maneira prática, porque o simples é o sinal da verdade, e não o bizantino e o complicado.”

Uma simples análise do Código Civil leva à constatação da influência desses princípios também no âmbito das pessoas jurídicas. Iniciando-se pelo art. 422 do referido diploma legal, tem-se que:

“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

Como é cediço, as sociedades, em regra, são constituídas por contrato. Em uma análise mais ampla, é inquestionável que toda e qualquer pessoa jurídica é instituída por ato de vontade. Daí o art. 113 do Código Civil ampliando ainda mais a aplicação da boa-fé nos institutos de que trata:

“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”

Conclui-se, destarte, que a eticidade estará presente sempre que for analisada a utilização da pessoa jurídica. A operabilidade garantirá flexibilidade ao aplicador da lei para a realização de tal análise. E a socialidade fundamentará a proteção da sociedade contra a defesa de interesses particulares egoísticos e escusos.

Sendo certo que é nesse sentido que caminha o ideal perseguido pela legislação civil, as condutas contrárias à esperada justificam a sanção contida no art. 50 do Código Civil:

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

A propósito, SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:303) ressalta que a “despersonalização é aplicação de princípio de eqüidade trazida modernamente pela lei.”

Vale ressaltar que o fato de o dispositivo em questão mencionar que o juiz “poderá” atribuir efeitos de certas relações a bens dos sócios retrata bem a operalidade, pois deixa uma margem flexível para uma decisão justa conforme o caso apresentado.

6.2.Definição das hipóteses

Quando se analisou o histórico da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica no tópico 2.2, verificou-se que, no Brasil, havia duas correntes sustentando sua aplicabilidade: a subjetiva, fundada no abuso de direito e na fraude; e a objetiva, fundada na irregularidade formal e confusão patrimonial.

Apesar dessa separação (teoria subjetiva e objetiva), o Código Civil enquadrou a confusão patrimonial e o desvio de finalidade como espécies de abuso, conforme se depreende da leitura do art. 50.

Como forma de deixar mais clara a análise do dispositivo, as hipóteses legais serão analisadas separadamente.

6.2.1. Abuso

No Código Civil, o abuso se apresenta no art. 187 como um ato ilícito consistente no exercício de um direito, por seu titular, que “excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

MARÇAL JUSTEN FILHO (1987:129-130) assinala que a abusividade não é uma questão estrutural, mas funcional, de modo que sua caracterização não estaria na constituição da pessoa jurídica, mas na sua utilização.

Assere ELIZABETH CRISTINA CAMPOS MARTINS DE FREITAS (2002:220) que “o abuso de direito deve ser analisado à luz da teoria segundo a qual o Direito possui uma função social ativa que objetiva atingir os fins do Estado, que, antes de tudo, referem-se ao bem-estar da coletividade”. E acresce, a seguir:

“De qualquer forma, o posicionamento pátrio dominante é no intuito de que o abuso de direito reflete prática que foge à normalidade, à regularidade com a intenção de causar prejuízo a outrem. Diante de tais metas, além da função social do Direito e de seu próprio conceito (que, de privatístico, hoje tenta harmonizar o privado com o público), não haveria como não ‘revisitar’ o conceito de pessoa jurídica. Devem-se diferenciar o livre-arbítrio e os poderes que o Estado se atribui, mediante a instituição de um ordenamento jurídico.”

Anota SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:602) que o problema maior na aferição do abuso é que sua noção seria supra legal.

Embora o eminente doutrinador assim entenda, talvez essa flexibilidade adotada por influência dos princípios sociais do Código, determinando a conduta ética e protegendo a sociedade contra comportamentos egoísticos contrários ao bem-estar social, seja mais adequada do que o rigorismo de um sistema de tipicidade fechada.

Isso porque, apesar da alegada segurança que este sistema propiciava, ele deixava sem solução diversas hipóteses não previstas, conforme já assinalado no tópico 6.1 supra.

6.2.2.Fraude

A fraude, segundo SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:489) “é todo artifício malicioso que uma pessoa emprega com intenção de transgredir o Direito ou prejudicar interesses de terceiros”.

Uma única ressalva quanto a esse entendimento é a intenção de prejudicar terceiros ou violar o Direito.

O que normalmente ocorre é a busca da satisfação dos próprios interesses. Mesmo quando se tenha em mira um prejuízo a terceiro, isso é feito para um deleite próprio.

Da mesma forma, a violação do Direito é apenas meio, e não o fim em si.

Tendo em vista que o Direito coíbe de certa forma a má conduta, a má-fé, o fraudador busca uma forma de seu objetivo ser alcançado com aparência de não violação da lei.

Aliás, fraude, em sua origem latina, fraudatio, é a “ação de enganar, má-fé”. O fraudator, é o “embusteiro, trapaceiro, velhaco” (TORRINHA, 1982, p.347).

A fraude é um instrumento que o indivíduo utiliza para a satisfação de um interesse. Esse instrumento consiste na tentativa de enganar, de fazer passar por lícita ou legítima uma atividade ilícita ou ilegítima, com o objetivo de não ser impedido de alcançar seu interesse, ou ser mantido numa situação de satisfação.

A fraude à lei é uma espécie de fraude em que se tenta fazer parecer legal o que é ilegal. É a fraude utilizada no campo jurídico.

Note-se que, nessa linha de raciocínio, a simulação é uma espécie de fraude à lei.

6.2.3. Desvio de finalidade

O desvio de finalidade pode ser analisado sob dois prismas, conforme assinalado no tópico 2.1 supra.

No primeiro deles, confronta-se com os fundamentos do instituto da personalização, para que se constate se é ou não útil, no caso concreto, a separação patrimonial. O desvio de finalidade sob esse ponto de vista se confunde com o abuso acima tratado, nos tópicos 6.2.1 e 2.1.

No segundo, toma-se o objeto social da pessoa jurídica para que se analise se ele está ou não sendo atendido, consoante análise de FABIO KONDER COMPARATO (1976:292), para quem “essa importância fundamental do objeto social, enquanto causa do negócio, que constitui a chave de interpretação da problemática societária, de modo geral”.

6.2.4.Confusão Patrimonial

Se há confusão patrimonial, a situação é tratada como se houvesse um único patrimônio.

Note-se, contudo, que, não se sabendo onde começa e onde termina determinado patrimônio, mesmo aplicando a desconsideração da personalidade jurídica, pode ocorrer que o patrimônio de um dos envolvidos nem venha a ser comprometido.

Ora, se não se sabe de quem é o patrimônio, não se pode dizer que é o patrimônio do sócio que foi atingido ou se é o patrimônio da pessoa jurídica.

Assim, a desconsideração vai ficar no nível do tratamento, e não no da aplicabilidade prática.

Nada obstante, segundo FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:362), se o próprio sócio, que é beneficiário da separação patrimonial e correspondente limitação de responsabilidade, não trata o patrimônio social como se fosse alheio, não se justifica manter a autonomia nas relações com terceiros.

7.Algumas figuras paralelas no tratamento da pessoa jurídica

Conforme explicitado no tópico 2.1 supra, em algumas hipóteses o ordenamento jurídico atribui responsabilidade ao membro ou sócio de modo a proteger os interesses de terceiros, independentemente de a pessoa jurídica ter sido utilizada de maneira abusiva.

Embora se possa dizer que nesses casos se está de certa forma “desconsiderando” o fato de os sócios não terem participado da relação jurídica original, é certo que isso não necessariamente implicará aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita.

Para esclarecer essas assertivas, serão analisados abaixo apenas alguns casos previstos no ordenamento para apontar as divergências em relação à doutrina desconsideração da personalidade jurídica.

Como o art. 50 do CC é a disposição que mais se aproxima do instituto, e tem ampla abrangência, seja com relação aos danos causados, seja no que pertine ao tipo de pessoa jurídica, ele será usado como parâmetro de comparação.

7.1.Solidariedade dentro do grupo econômico no Direito do Trabalho

Costuma-se apontar o § 2.º do art. 2.º da CLT, como um exemplo no ordenamento brasileiro de previsão da desconsideração da personalidade jurídica (JUSTEN FILHO, 1987: 102; ALMEIDA, 2003: 189; FREITAS, 2002: 274). Eis o que dispõe o referido dispositivo legal:

“Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

[…]

§ 2º – Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.”

Esse dispositivo regula uma hipótese de relativização do princípio da autonomia patrimonial. Não cuida, todavia, de aplicação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica.

Tem-se, em realidade, simples imputação de solidariedade entre entes (TOMAZETTE,2002).

Vale lembrar que, de acordo com o art. 265 do CC, “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.” Tem-se, portanto, simples caso de solidariedade resultante da lei.

O objetivo da norma insculpida no principal diploma trabalhista é assegurar um equilíbrio na relação empregatícia fundado no seguinte preceito: se todo o grupo econômico obtém, ainda que indiretamente, proveitos decorrentes da atividade do trabalhador, deve, por outro lado, responder por sua remuneração.

Com isso, na linha da ideologia adotada no Direito do Trabalho, apenas se pretendeu proteger o empregado (JUSTEN FILHO, 1987:106).

Tendo em vista que a aludida norma já assegura a solidariedade dos entes do grupo econômico, nem se cogita da aplicação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita (COELHO,2002:43).

Importante aspecto a ser ressaltado é o fato de que a CLT nem cogita de fraude ou abuso da pessoa jurídica, ou mesmo de confusão patrimonial, para que torne solidários os componentes do grupo econômico.

Caso não haja um grupo econômico, mas tão-somente uma pessoa jurídica isolada, será possível aplicar o art. 50 do CC para responsabilizar seus sócios pelos direitos do empregado, caso comprovado o abuso da personalização.

7.2.A responsabilidade de terceiros no Direito Tributário

Outro dispositivo mencionado como representando hipótese de desconsideração é o art. 134, VII, do CTN (FREITAS, 2002:275).

Esse dispositivo atribui responsabilidade solidária aos sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas, em relação aos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis, na hipótese de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação tributária pelo contribuinte. Acresce o parágrafo único do art. 134 que, quanto às penalidades, a solidariedade só se aplica àquelas de caráter moratório.

Em primeiro lugar, deve-se definir o que seja sociedade de pessoas.

Para RUBENS REQUIÃO (1995:261-2), quando se utiliza a estrutura econômica como critério para classificar as sociedades, elas se dividem em:

“sociedades de pessoas, constituídas em função da qualidade dos sócios – “porque o que forma uma sociedade somente se liga com pessoa de sua eleição” (Tít. n.º XXV, 5, Institutas de Justiniano) […] e sociedades de capitais, constituídas tendo em atenção preponderantemente o capital social.”

No mesmo sentido, SÉRGIO SÉRVULO CUNHA (2003:236) aponta que na composição das sociedades de capitais “são irrelevantes critérios pessoais”, ao passo que, nas de pessoas, “prevalecem critérios pessoais na escolha dos sócios e nas suas relações”.

Ressalvados os casos que a lei eventualmente tenha determinado expressamente em qual dos tipos acima determinada sociedade esteja enquadrada, na prática essa classificação deverá ser feita analisando o caso concreto.

Quando RUBENS REQUIÃO (1995:262), por exemplo, estabelece que seriam sociedades de pessoas as limitadas, esquece-se de que estas podem assumir caráter de sociedade de capitais.

Esclarece, a propósito, FÁBIO ULHOA COELHO (2002:25) que “as sociedades em nome coletivo, comandita simples e limitada podem ser de pessoas ou de capital, de acordo com o previsto no contrato social; as sociedades anônimas e em comandita por ações são sempre de capital.”

Feita essa análise, segue-se que, para ser considerado como responsável solidário, o sócio deve, na liquidação da sociedade de pessoas, ter praticado conduta comissiva ou omissiva que torne impossível a exigência do tributo.

Assim deve ser, uma vez que, se ele respondesse mesmo quando não tivesse dado causa à impossibilidade, seria irrelevante mencionar sua omissão ou intervenção.

Contudo, o que ocorrerá na hipótese de haver um órgão, não ocupado por sócio, que seja responsável pelo recolhimento de tributo na liquidação, mas falte com seu dever, quando poderia tê-lo cumprido?

Nesse caso, o sócio não interveio. Será necessário perquirir se o sócio tinha o dever legal de agir para impedir a infração e se poderia ter agido no caso concreto, de modo a verificar a caracterização de sua omissão.

Deve-se ater à premissa segunda a qual a responsabilidade depende de imposição legal, uma vez que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, nos termos do art. 5.º II da CR.

Por isso, não tendo o órgão efetuado recolhimento de tributo não resultante de infração que tenha cometido, não será aplicável o art. 134 do CTN.

Mas como fica a obrigação tributária não adimplida?

O não recolhimento de tributo constitui ato ilícito, conforme art. 186 do Código Civil.

A sociedade é responsável pelos atos de seus órgãos, conforme art. 932, III, do CC, ainda que não haja culpa de sua parte, nos termos do art. 933 do CC.

Sendo certo que o tributo é devido pela sociedade e não pelo órgão, ela deverá efetuar o recolhimento. Todavia, os acréscimos decorrentes da infração poderão ser cobrados do infrator, na hipótese de culpa ou dolo deste, na forma do art. 934 do CC.

E se não for possível exigir da sociedade o tributo não decorrente de infração do órgão? Será permitido cobrar do sócio?

Se essa impossibilidade não decorrer de uma omissão ou ação do sócio, não se poderá cogitar da solidariedade de que trata o art. 134 do CTN, ressalvada a responsabilidade decorrente da natureza da sociedade (limitada ou ilimitada).

Porém, caso o tributo seja decorrente de infração legal, contratual ou estatutária, o infrator responderá pessoalmente, e não solidariamente, nos termos do art. 135 do CTN, verbis:

“Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração da lei, contrato social ou estatutos:

I – as pessoas referidas no artigo anterior;

II – os mandatários, prepostos e empregados;

III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.”

Novamente, tem-se presente hipótese legal de flexibilização da autonomia da pessoa jurídica, mas não necessariamente de aplicação da doutrina da desconsideração (JUSTEN FILHO, 1987:112).

Nessa linha é o entendimento de JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:520) para quem, no caso do art. 134, VII, do CTN, não há quebra no princípio da separação entre pessoa jurídica e seu membro. Com muito mais razão nos casos de responsabilidade dos diretores em caso de comportamento doloso ou culposo ou que viole diretamente a lei ou os estatutos sociais, pois aqui há simples imputação. Isso porque, quando age desta maneira, não age como órgão, salvo a questão da aparência (1979:520).

Com efeito, certos atos, pela sua grave discrepância em relação ao objeto social, ou pela evidente ausência de poderes para representação da sociedade, nunca poderiam ser atribuídos à pessoa jurídica. Por conseguinte, ela não poderia servir de instrumento para fraudes ou outras formas de abuso.

Somente nos casos em que a própria pessoa jurídica figura na relação é que se deve perquerir se os efeitos desta devem ou não ser imputados aos seus membros.

Deve-se lembrar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica nasceu diante do impasse decorrente da impossibilidade de se responsabilizar o sócio ou membro da pessoa jurídica por atos praticados por eles em nome desta. Esta impossibilidade existia em razão do radicalismo com que surgiu o princípio da separação entre a pessoa jurídica e seus membros, o qual impregnou a legislação desde então.

Nessa linha, constata-se que o art. 135 do CTN retrata um aspecto fundamental no tratamento da pessoa jurídica: somente a prática de atos legais, decorrentes de seus fins, pode ser imputada a ela.

Com isso não se quer dizer que a pessoa jurídica não responda pelos atos de seus agentes. Nem sempre quem pratica determinado ato responde por suas conseqüências. Da mesma forma, pode ocorrer a hipótese em que alguém, embora não tenha realizado algum ato, tenha de responder por ele.

A título de exemplo, pode-se citar a situação em que um menor causa um dano, pois são seus pais que respondem pela reparação (art. 932, I e art. 934 do CC).

Feita essa distinção entre sujeição ativa na realização de ato de um lado; e responsabilização de outro, nota-se que, na hipótese do art. 135 do CTN, o legislador optou por resguardar a pessoa jurídica.

Nada obstante, se o órgão desta, ao praticar um ilícito, trouxer proveito para a pessoa jurídica, esta também poderá vir a ser responsabilizada, conforme o caso.

Imagine-se a situação em que um administrador, violando proibição expressa do ato constitutivo, adquire empréstimo para a pessoa jurídica. O imposto sobre esta operação de crédito é devido pelo referido agente, nos termos do art. 135 do CTN.

Entretanto, quem deverá pagar pelo empréstimo? E se a pessoa jurídica utilizou o dinheiro para pagar dívidas próprias?

Dependendo da análise do caso concreto, a pessoa jurídica poderá ser responsabilizada pelo pagamento da quantia utilizada.

Assim, verificada a aplicação dos artigos 134 e 135 do CTN, pode-se realizar uma comparação com o disposto no art. 50 do CC.

Nota-se que a hipótese de prática de ato com excesso de poderes prevista no caput do art. 135 do CTN restringe-se à responsabilidade por obrigações tributárias que resultem de ato realizado com excesso de poderes, ao passo que o art. 50 abrange todas as relações resultantes do abuso.

Além disso, enquanto no CTN a imputação da responsabilidade é peremptória, no CC é facultado ao juiz decidir se aplica ou não a desconsideração.

De qualquer maneira, em ambos os casos há o uso indevido da personalidade jurídica, bem como a imputação de responsabilidade a sujeito diverso daquele que normalmente responderia.

Um outro caso que mais se aproxima dos ideais da doutrina da desconsideração é mencionado por MARÇAL JUSTEN FILHO (1987:112), previsto no art. 60 e seguintes do Decreto-lei n.º 1.598/77, ao tratar da distribuição disfarçada de lucros.

Nesse caso, verifica-se que a lei cuidou de hipóteses onde pessoas ligadas à pessoa jurídica obtém, por intermédio do uso fraudulento dela, rendimentos.

Tendo em vista que ninguém pode ser obrigado a fazer alguma coisa senão em decorrência de lei, conforme já dito supra, e sendo certo que vigora no Direito Tributário o princípio da legalidade estrita, o legislador procurou resguardar o fisco contra esse tipo de fraude evitando que o contribuinte alegasse faltar disposição legal para ensejar sua responsabilização.

Nada obstante, na linha defendida por FÁBIO ULHOA COELHO (2002:42), se a própria lei permite que se coíba a fraude, responsabilizando diretamente os membros ou sócios da pessoa jurídica, ou mesmo outras pessoas ligadas a ela, não se cogitará da aplicação da doutrina da desconsideração.

Contudo, isso não significa que na prática as conseqüências sejam diversas daquelas decorrentes da aplicação da doutrina da desconsideração.

7.3.Participação recíproc ana Lei de Sociedade por Ações

Um caso tido como exemplo de desconsideração total da personificação por MARÇAL JUSTEN FILHO (1987:147) é a previsão do art. 244, §2.º, da Lei das Sociedades Anônimas, onde se suspende o direito a voto das ações de propriedade de uma sociedade controlada, que componham o capital da sociedade controladora. O fundamento dessa restrição é evitar que o mesmo capital seja utilizado para controlar mais de uma pessoa jurídica.

Como se vê, o entendimento de MARÇAL JUSTEN FILHO é no sentido de que a própria lei possa determinar a desconsideração em abstrato.

Ao contrário, para FÁBIO ULHOA COELHO, a desconsideração só ocorre em concreto, nos casos autorizados por lei, ou mesmo em hipóteses em que não haja esta autorização explícita, uma vez que a doutrina do instituto se aplica independentemente de previsão legal (2002:54).

Tem-se, in casu, autêntica hipótese em que o ordenamento, evitando o desvirtuamento da personalidade jurídica, aplica uma sanção de adequação, que, conquanto possa até mesmo ter objetivos coincidentes com o da teoria da desconsideração, com esta não se confunde (REQUIÃO,1969:21).

7.4.Teoria ultra viveres e a teoria da aparência no Código Civil

Ao criar a pessoa jurídica, seus instituidores descrevem as finalidades desta, bem como atribuem as funções que serão exercidas por seus membros. A omissão acerca de quem representará ou administrará a pessoa jurídica é suprida pela lei na maioria dos casos. Assim, por exemplo, no art. 12 do CPC e no art. 1013 do CC.

Ocorre que, em certas ocasiões, é possível que um membro da sociedade, seja ele sócio, administrador, gerente ou simples empregado, pratique, sem ter poderes para tanto, certos atos em nome dela. Pode ainda ocorrer que, embora tenha aparentemente atribuição para a realização de determinado ato, realiza-o em discrepância com os objetivos sociais.

Nesses casos, surge o seguinte problema: se simplesmente for defendido que é o membro da pessoa jurídica que responderá pelos efeitos do ato praticado, isso poderá prejudicar o terceiro que com ele tenha contratado.

De outro lado, se for imputada à pessoa jurídica a responsabilidade, ela e, indiretamente, seus outros membros, serão prejudicados.

Tanto em um caso, como no outro, em princípio, é plenamente cabível o regresso contra aquele que efetivamente praticou o ato.

Nota-se que, colocado assim o problema, a busca da melhor solução é extrajurídica. Juridicamente, basta averiguar o que prevê o ordenamento.

Segundo FÁBIO ULHOA COELHO (2002:445), esse problema fez com que surgisse nas cortes inglesas, em meados do século XIX, a ultra vires doctrine, segundo a qual, qualquer ato praticado sem vínculo com o objeto social seria nulo.

Como se vê, prestigiou-se nessa formulação a proteção dos investidores. O problema que essa doutrina gerou foi o medo de contratar com as pessoas jurídicas ante o risco de não ver honrado o contrato (COELHO,2002:446).

Cabe ressaltar que, segundo sua origem inglesa, a doutrina ultra vires diz respeito tão-somente aos atos da sociedade em relação ao objeto social (REQUIÃO,1995b:177), não se confundindo com a violação do ato constitutivo por parte do administrador (REQUIÃO,1995b:178).

JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:282) faz um paralelo no direito norte-americano entre a teoria dos atos ultra vires e a doutrina da disregard. Naquela “a personalização e a capacidade de uma pessoa jurídica são limitadas às finalidades em virtude das quais ela foi criada”.

“Ao contrário, a doutrina da disregard criaria verdadeiros limites de capacidade não em função das finalidades específicas de uma pessoa jurídica determinada, mas das finalidades genéricas em virtude das quais a ordem jurídica criou tal ficção, justificando-se a desconsideração em nome de idéias de justiça, de public policy, e dos direitos da parte inocente.” (OLIVEIRA, 1979:282)

No direito brasileiro, de acordo com FÁBIO ULHOA COELHO (2002:447), a teoria dos atos ultra vires não teria sido adotada.

Porém, é questionável esse posicionamento diante do que prevê o art. 47 do CC: “Art. 47. Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo”.

Se os atos dos administradores, praticados fora dos limites de seus poderes, também vinculassem a sociedade, não teria qualquer utilidade o disposto nesse artigo.

Além disso o art. 1015, parágrafo único, do CC, admite hipóteses em que o excesso de poderes do administrador na Sociedade Simples pode ser oposto a terceiros, e, desta forma, não obrigar a pessoa jurídica.

Embora não se possa dizer que a teoria dos atos ultra vires tenha sido adotada para todo e qualquer ato dos membros da pessoa jurídica, verifica-se que, pelo menos no caso específico do inciso III do parágrafo único do art. 1015 do CC ela se aplica. Com relação aos atos que extrapolem a limitação de poderes, sejam ou não considerados dentro do conceito de ultra vires, o que importa é que também não vincularão a Sociedade Simples nas hipóteses dos incisos I e II do art. 1015 do CC.

Segundo MARLON TOMAZETTE (2003), o artigo 1015, parágrafo único, do CC, representaria um retrocesso e confrontaria a tendência mundial de proteger os terceiros de boa-fé, bem como a celeridade nos negócios.

Entretanto, esse problema, pelo menos em relação aos administradores, só ocorrerá se as sociedades limitadas vierem a adotar o regime das sociedades simples (COELHO, 2002:447), uma vez que aquelas, e não estas, são a maioria no Brasil (COELHO,2002:22-3)

Também FÁBIO ULHOA COELHO (2002:447) defende que deva ser aplicada a teoria da aparência, ou seja, embora o administrador não tenha poderes no caso para a prática do ato, ele aparenta ter, razão pela qual se deve proteger terceiros que com ele firmem negócios.

Lembrando que para JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:610) a responsabilidade subsidiária é a verdadeira técnica despersonalizante, esta não estaria presente no caso de aparência, ou comportamento contraditório –venire contra factum proprium–, pois aqui a responsabilidade é por ato próprio.

Em remate pode-se dizer que, não sendo cabível in casu a aplicação da teoria ultra vires, prevalecerá a teoria da aparência.

Porém, em último caso, se mesmo com esta teoria a situação ainda não estiver equilibrada, o interessado poderá se socorrer da desconsideração da personalidade jurídica.

7.5.SÍNTESE DO CONFRONTO COM AS FIGURAS PARALELAS

Após essa análise da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica, e de sua comparação com os dispositivos legais acima, pode-se concluir que o art. 50 do CC é uma arma de reserva, que veio para prestar socorro nas situações que escapavam das previsões legais existentes e permitiam a utilização indevida da personalidade jurídica de forma danosa para a sociedade.

A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica tem por fundamento evitar que se sirva da pessoa jurídica para finalidade diversa daquela prevista tanto no ato constitutivo quanto no próprio ordenamento.

Ela resolve os casos em que o sócio ou membro de pessoa jurídica causa danos a terceiros e se esconde atrás do véu da personalidade. A doutrina imputa a responsabilidade a quem merece realmente responder.

Não é meramente responsabilizar outrem sem qualquer questionamento acerca do abuso praticado no uso da pessoa jurídica.

Seja como for, parece irrelevante o questionamento acerca de determinado dispositivo legal tratar ou não de uma hipótese de aplicação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica.

O que importa é saber se, no caso concreto, é ou não permitido atribuir a responsabilidade a sujeito diverso do que figura em determinada relação ou situação jurídica.

O que releva é buscar equilibrar as relações e impedir que se desvirtue as instituições, que se viole o ordenamento, que se faça injustiça.

Entender a doutrina da desconsideração é fundamental para a aplicação dos dispositivos abertos, de modo a fixar, conforme o caso concreto, quais os limites adequados da autonomia da pessoa jurídica.

Mas é dispensável tal conhecimento quando o ordenamento, conquanto diga que permita a desconsideração, não estabelece qualquer requisito para tanto, uma vez que nessa situação basta responsabilizar quem a lei determinar.

8.Breves comentários sobre a desconsideração no processo

Após analisar o direito material e os casos em que se permite seja desconsiderada a personalidade jurídica, merecem ser tecidas algumas considerações sobre a aplicabilidade prática do instituto.

Para tanto, indispensável visitar o campo do direito processual, mormente o civil.

A questão central é: como deve ser feita a desconsideração da personalidade jurídica? É necessário um processo de conhecimento específico para tanto ou pode ser feita por simples requerimento em processo existente?

Para FÁBIO ULHOA COELHO (2002:55), “o juiz não pode desconsiderar a separação entre a pessoa jurídica e seus integrantes senão por meio de ação judicial própria, de caráter cognitivo, movida pelo credor da sociedade contra os sócios ou seus controladores”.

Para o autor, havendo execução baseada em título contra a pessoa jurídica, não é permitido por simples despacho direcionar o processo contra os sócios, pois isso representaria uma “inversão do ônus probatório” (2002:55).

Sem dúvida que a simples inclusão de sócios no pólo passivo da execução, sem que eles figurem no título, pode representar até mesmo ofensa à CR, especialmente ao art. 5.º, LV.

Ainda que se alegue que será possível exercer a defesa por meio dos embargos, não se deslembre que estes dependem da prévia garantia do juízo.

Nessa linha, a constrição efetuada sobre bens dos sócios, que não figurem no título, também afronta o inciso LIV do art. 5.º da CR, pois não deixa de representar uma restrição à propriedade sem o devido processo legal.

Qual seria então o processo legal?

Num primeiro momento, poder-se-ia alegar que, não havendo especificação na lei, dever-se-ia seguir a regra geral, ou seja, o rito comum do processo civil. Seria sumário ou ordinário segundo as peculiaridades do caso, como, por exemplo, o valor da obrigação que se pretende imputar.

Nessa linha, seria suscitado que não caberia simples requerimento, por ausência de previsão legal específica quanto ao rito, razão pela qual se aplicaria a regra geral. Em segundo, geraria tumulto processual. Terceiro: cada juízo processaria de modo diferente o requerimento, gerando ofensa à isonomia dos jurisdicionados.

Além disso, se o objetivo primordial da desconsideração da personalidade jurídica é atingir o patrimônio de uma membro da pessoa jurídica, este deve figurar na lide, ou seja, deverá ser citado para apresentar sua defesa. Só haverá sentido em manter a pessoa jurídica na relação processual se ela também tiver alguma responsabilidade.

Porém, uma última questão antes de terminar: como fica a prescrição com relação à obrigação que se pretende imputar por meio da desconsideração?

É certo que antes de desconsiderada a pessoa jurídica não há pretensão contra os membros desta. Porém, a favor da pessoa jurídica, em princípio, estará fluindo o prazo prescricional para exigir o adimplemento da obrigação.

Se como decorrência da desconsideração houver solidariedade do membro da pessoa jurídica, a ação movida em face desta irá interromper a prescrição também em relação ao sócio. Vale lembrar que, na linha defendida neste trabalho, a desconsideração da personalidade jurídica, em sua formulação original, não pode ter como efeito a solidariedade.

Quando se pretender a desconsideração da personalidade jurídica para que se reconheça ser a obrigação de responsabilidade unicamente do membro da pessoa jurídica, sem qualquer vínculo com esta, então o mais adequado parece ser o ingresso de ação com cumulação de pedidos, sendo o primeiro deles o de desconsideração e, sendo acolhido este, o de condenação ao adimplemento da obrigação.

Ressalte-se que para esta ação a legitimidade passiva é do membro ao qual se pretende imputar a obrigação, e não da pessoa juridica (COELHO,2002: 55).

Conclusão

A pessoa jurídica nasce como forma de suprir certas necessidades nas relações sociais.

Várias teorias procuraram explicá-la, discutindo sobre sua existência ou não, bem como sobre a própria natureza de sua realidade.

Conquanto tenha solucionado diversos problemas, ante seu caráter instrumental, passou a ser utilizada indevidamente.

Isso ensejou o nascimento da doutrina da desconsideração da pessoa jurídica, uma forma de estabelecer limites de uso do instituto da pessoa jurídica.

Essa doutrina gerou diversos reflexos que acabaram sendo acolhidos pelo ordenamento brasileiro, porém de forma diferente de acordo com o ramo do direito.

Assim, verifica-se ser menos rígida a autonomia da pessoa jurídica no direito ambiental. No direito do consumidor e no da concorrência há um grau um pouco mais elevado na separação patrimonial e, no direito civil, é ainda mais difícil a desconsideração.

Se a desconsideração representa ausência dos efeitos da personalização para determinados atos, não cabe dizer que a solidariedade seria efeito de sua aplicação, pois para um sujeito de direito ser solidário é pressuposto sua existência.

Obviamente que a possibilidade de no caso concreto ser atribuída a responsabilidade por determinada obrigação à própria pessoa jurídica e a seus membros conforme a participação nos proveitos ou nos ilícitos causados é uma solução mais adequada do que a buscada pela doutrina original da desconsideração.

Por isso, mais importante do que saber se determinado dispositivo representa ou não hipótese de desconsideração da personalidade jurídica é buscar a solução adequada para cada caso, nos termos da legislação vigente.

 

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Informações Sobre o Autor

Leandro Sarai

Advogado Público. Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie


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