A função social da propriedade

Resumo: Este artigo tem como objetivos apresentar a função social no âmbito do Direito Civil; analisar a função social que todo o direito tem em suas novas perspectivas com o advento do novo Código Civil e refletir a função social específica da propriedade: como ela deve ser exercida para cumprir a sua função social. A função social é fenômeno que atualmente inspira o ordenamento jurídico e mostra que o direito de propriedade sempre existiu nas sociedades ocidentais, ainda que de formas distintas, sendo atualmente garantido em nosso Direito pelo art. 5º, XXIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, bem como disciplinado pelo Código Civil nos seus artigos 524 a 648. Conforme preceitua o citado art. 524, o proprietário tem o direito de usar e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua; o que a princípio leva a crer que há um direito absoluto de utilização. O estudo também anuncia a valorização da função social verificada nas relações contratuais preconizadas pelo art. 421 do novo Código Civil – o qual reza que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, afastando, dessa forma, o individualismo, visando implementar a fraternidade e solidariedade sociais mais ostensivas.

Palavras-chave: função social – contrato – novo Código Civil.

Abstract: This article has as objective to present the social function in the scope of the civil law; to analyze the social function that all the right has in its new perspectives with the advent of the new Civil Code and to reflect social the function specific of the property: as it must be exerted to fulfill its function social. The social function is phenomenon that currently the legal system inspires and sample that the property right always existed in the occidental societies, despite of distinct forms, being currently guaranteed in our Right for art. 5º, XXIII, of the Constitution of the Federative Republic of Brazil, as well as disciplined for the Civil Code in its articles 524 the 648. As preceitua cited art. 524, the proprietor has the right to use and to make use of its good and to recover them of the power of who wants that it possesss unjustly them; what the principle leads to believe that has an absolute right of use. The study also it announces the valuation of the verified social function in the contractual relations praised by art. 421 of the new Civil Code – which prayer that the freedom to contract will be exerted in reason and the limits of the social function of the contract, moving away, of this form, the individualism, aiming at to implement the more ostensive social fraternity and solidarity.

Keyword: social function – contract – new Civil Code.

Sumário: Introdução. 1. Função social das empresas. 1.1. Função social do contrato. 1.2. O Estatuto da Cidade e sua função social. 2. Função social da propriedade. Conclusão. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

As transformações sociais, econômicas e políticas ensejam mudanças na sociedade. Tais transformações provocam  mudanças no direito; mudam-se os princípios, alteram-se os paradigmas legais, surgem novas formas contratuais. A massificação da sociedade e das relações sociais, provocadas pela intensa intervenção da economia e da sociologia no direito, levou à massificação contratual.

Injustiças sociais acontecem em todas as fases da história da humanidade. Verifica-se, por vezes, um descompasso entre o direito e os fenômenos sociais. Como no eterno fluxo e refluxo das ondas, as matrizes filosóficas do Direito procuram manter o equilíbrio social. Equilíbrio social esse, que a cada momento histórico se transmuda ao sabor do ir e vir das demandas e das necessidades da própria sociedade.

Assim é que a doutrina da função social emerge como uma dessas matrizes, limitando institutos de conformação nitidamente individualista, em contraposição aos ditames do interesse coletivo – que se apresentam acima dos interesses particulares – concedendo aos sujeitos de direito não só uma igualdade em seu aspecto estritamente formal, mas permitindo uma igualdade e liberdade aos sujeitos de direito, os igualando de modo a proteger a liberdade da cada um deles, em seu aspecto material.

O presente trabalho justifica-se em tentar mostrar que a propriedade hodierna não mais tem o perfil daquela de outrora. Aliás, a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Nesse sentido, pode-se abordar a concepção da função social com o significado de que o contrato não deve ser concebido como uma relação jurídica que só interessa às partes contratantes, impermeável às condicionantes sociais que o cercam e que são por ele própria afetada.

A sociedade, após um longo e doloroso processo de lutas e convulsões, assumiu o compromisso de redistribuir a riqueza por ela produzida, ou seja, integrar aquelas camadas marginalizadas pela concentração abusiva de renda, transformar a massa em cidadãos Entretanto, as camadas que detêm os meios e bens de produção, a elite composta pelos grandes latifundiários e conglomerados empresariais, impõem resistências a esse escopo e aferram-se às suas posses de modo intransigente e, muitas vezes, violento, num esforço cego e inconseqüente. E esse fenômeno se reproduz com bastante freqüência nas classes sociais baixas, não sendo, portanto, privativo da elite dirigente. Da bicicleta ao automóvel, da pequena gleba rural ao latifúndio, da pequena empresa à grande corporação industrial, ninguém se dispõe a renunciar ao direito de propriedade em prol desse interesse coletivo.

Existe no direito positivo brasileiro todo um sistema integrado por institutos de direito material e processual para a propriedade e todas as suas manifestações. Tem a propriedade um regime jurídico constitucional e infraconstitucional onde se faz sempre presente um rígido e cauteloso cuidado para com o direito de propriedade. Nunca o operador jurídico se ressentiu da ausência de meios legais para garantir a posse e a propriedade individual, haja vista o conjunto dos poderosos interesses que surgem em sua defesa. O que se reivindica hoje do Direito, são soluções pacíficas e legais para a posse e propriedade sociais.

A função social é intrínseca à propriedade privada. As concepções individualistas sucumbiram ante à força das pressões sociais em prol de sua democratização. Pode-se dizer que não basta apenas o título aquisitivo para conferir-lhe legitimidade: é preciso que o seu titular, ao utilizar o feixe dos poderes – absolutos, amplos ou restringidos – integrantes do direito de propriedade, esteja sensibilizado com o dever social imposto pela Constituição Federal.

Quando se fala em função social da propriedade não se indicam as restrições ao uso e gozo dos bens próprios. Tais restrições seriam limites negativos aos direitos do proprietário. A noção de função social da propriedade relaciona-se com a capacidade produtiva da propriedade, ou seja, trata-se do poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo.

Este estudo tem como objetivos: apresentar a função social no âmbito do direito civil; analisar a função social que todo o direito tem e as novas perspectivas com o advento do novo Código Civil, e refletir a função social específica da propriedade: como ela deve ser exercida para cumprir a sua função social.

A metodologia apresentada será a pesquisa qualitativa, isto é, a bibliográfica, consultando idéias de autores consagrados no assunto.

1 FUNÇÃO SOCIAL DAS EMPRESAS

O direito de propriedade é o mais sólido e amplo de todos os direitos subjetivos patrimoniais. É o direito real por excelência, em torno do qual gravita o direito das coisas. É um direito complexo, que consiste em um feixe de atributos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto. Todavia, a propriedade sobreviverá, mesmo que temporariamente esteja o seu titular afastado dos poderes que lhe são inerentes.

De acordo com Teizen Júnior (2004), a propriedade – do latim proprium – aquilo que me pertence – abrange todos os direitos que formam nosso patrimônio, isto é, todas as situações jurídicas aferíveis pecuniariamente, sobre os quais um titular pode ter ingerência socioeconômica. Poder-se-ia falar em propriedade sobre coisas corpóreas e incorpóreas. A propriedade é uma idéia ampla, pois não só se refere ao domínio do titular sobre o bem, como sintetiza as complexas relações jurídicas entre o titular do direito real e os não-proprietários, estruturada no dever geral de abstenção em torno das faculdades da propriedade e funcionalizada pelo dever do proprietário de não frustrar os anseios coletivos, concedendo ao bem regular destinação econômica.

O novo Código Civil optou por apenas adotar o termo propriedade, diversamente ao código de 1916, que indiscriminadamente alternava os vocábulos propriedade e domínio. Para o estatuto substantivo, a propriedade reserva-se a uma relação de pertinência entre pessoa e coisa corpórea.

Na Constituição Federal, o termo propriedade é conceituado de forma ampla, servindo a qualquer espécie de bem aferível patrimonialmente. Em verdade, a Lei maior tutela diversas propriedades. A garantia do direito de propriedade não se limita por consequência aodireito real, mas também incide em direitos pessoais, de conteúdo patrimonial. O conteúdo constitucional da propriedade abrange em seu manto os bens corpóreos e incorpóreos que podem constituir objeto do direito, desde que redutíveis a dinheiro.

Todavia, a propriedade constitucionalmente tutelada é apenas aquela que revela adimplemento da função social. Sabemos que o direito subjetivo pode ser conceituado como o poder do indivíduo de satisfazer interesses próprios (facultas agendi), concretizando o comando legal abstrato (norma agendi). Todo direito subjetivo, incluindo-se aí o direito subjetivo de propriedade, tem o seu conteúdo formado por faculdades jurídicas. Elas são os poderes de agir consubstanciado no direito subjetivo.

O Código Civil não traz uma definição exata do conceito de propriedade, porém acaba por dispor acerca do seu conteúdo, ao relacionar as faculdades conferidas ao proprietário: usar, gozar, dispor de seus bens e reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua. Tais faculdades compõem a estrutura do direito de propriedade.

Direito de usar: é a faculdade do proprietário de servir-se da coisa de acordo com a sua destinação econômica. O uso será direto ou indireto, conforme o proprietário conceda utilização pessoal ao bem ou deixe-o em poder de alguém que esteja sob suas ordens – servidor da posse.

Direito de gozar: consiste na exploração econômica da coisa, mediante a extração de frutos e produtos.

Direito de dispor: Entende-se como dispor a faculdade que tem o proprietário de alterar a própria substância da coisa. A disposição pode ser material ou jurídica.

Direito de reivindicar: é denominado o elemento externo ou jurídico da propriedade, por representar a faculdade de excluir terceiros de indevida ingerência sobre a coisa, permitindo que o proprietário mantenha a sua dominação sobre o bem, realizando verdadeiramente a almejada atuação socioeconômica.

A propriedade moderna não possui o mesmo significado que a propriedade de outrora. Antes, o proprietário era senhor possuidor, podendo fazer o que bem quisesse de seu bem. Agora, sua propriedade não é mais tão soberana. Acima de tudo, a propriedade, muito mais que servir ao seu dono, tem que servir a toda uma comunidade. Aí entra a função social.

A  função social é  um princípio inerente a todo o direito subjetivo. Tradicionalmente, definia-se o direito subjetivo como o poder concedido pelo ordenamento jurídico ao indivíduo para a satisfação de um interesse próprio. Todavia, a evolução social demonstrou que a justificação de um interesse privado muitas vezes é fator de sacrifício de interesses coletivos. Portanto, ao cogitarmos da função social, introduzimos no conceito de direito subjetivo a noção de que o ordenamento jurídico apenas concederá legitimidade à persecução de um interesse individual, se este for compatível com os anseios sociais. Caso contrário, o ato de autonomia privada será considerado inválido. Atualmente, cogita-se de uma função social do contrato, da família e de outros institutos de Direito Privado.

Enfocando-se especificamente o direito de propriedade, costumam enfatizar os autores clássicos que o proprietário poderia gozar e dispor da coisa como bem entender (abandoná-la, aliená-la ou desmembrá-la em outros direitos reais); todavia, a propriedade vem relativando-se.

Mesmo antes de qualquer referência doutrinária à função social, a partir do final do século XIX, surgiram na França às primeiras restrições ao absolutismo do direito de propriedade, por intermédio da teoria do abuso de direito. Trata-se de dois casos paradigmáticos: proprietário que edifica uma enorme chaminé para emanar gases no terreno vizinho; proprietário que levanta muro com hastes de ferro para causar danos aos dirigíveis que partiam do prédio contíguo.

Nas duas hipóteses, as cortes francesas entenderam que o direito de propriedade não poderia ser utilizado apenas com a finalidade de causar danos a terceiros, sem o intuito de produzir qualquer proveito ao seu titular. Seriam chamados atos emulativos todos aqueles animados pela simples intenção de lesar interesses alheios.

O § 2º do artigo 1228 do Código Civil considera proibidos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade ou utilidade e sema animados pela intenção de prejudicar outrem. Com mais de cem anos de atraso, consagramos a teoria dos atos emulativos e o abuso de direito de propriedade. Todavia, esse dispositivo não introduz o princípio da função social, pois, o abuso consiste na imposição de limites negativos e externos ao exercício do direito subjetivo de propriedade; já a função social vai muito além, pois estabelece limites internos e positivos à atuação do proprietário.

A Constituição alemã de Weimar, de 1919, introduz uma visão nova ao instituto, ao afirmar que “a propriedade obriga”. Acresce-se ao milenar instituto o lema da solidariedade social, que havia sido esquecido pelos liberais franceses, ao apropriarem-se dos motes revolucionários. A intervenção legislativa serve como freio ao egoísmo humano, valorizando-se o princípio da justiça comutativa.

Essa mudança de paradigma provoca uma necessária conciliação entre poderes e deveres do proprietário, tendo em vista que a tutela da propriedade e dos poderes econômicos e jurídicos de seu titular passa a ser condicionada ao adimplemento de deveres sociais. O direito de propriedade, até então tido como um direito subjetivo na órbita patrimonial, passa a ser encarado como uma complexa situação jurídica subjetiva, em que, ao lado dos poderes do titular, colocam-se obrigações positivas deste perante a comunidade.

Teizen Júnior (2004) ressalta que a refundição da propriedade prende-se a três princípios: o bem comum, a participação e a solidariedade. Quanto ao primeiro, à sociedade surge porque as pessoas descobrem uma vontade geral e um bem que é comum e dispõe-se a construí-lo. A ele se subordinam os bens particulares; a participação resulta na contribuição de todos, a partir daquilo que são e daquilo que têm. A participação transforma o indivíduo em ser humano; por último, a solidariedade, que nasce da percepção de que todos vivem uns pelos outros, valor sem o qual a sociedade não é humana.

É fundamental ressaltar que a tutela constitucional da propriedade, mencionada no artigo 5º, inciso XXII, é imediatamente seguida pelo inciso XXIII, disciplinando que a propriedade atenderá a sua função social. Essa ordem de inserção de princípios não é acidental, e sim intencional. Há uma obrigatória relação de complementaridade entre a propriedade e a sua função social, como princípios da mesma hierarquia. A Lei Maior somente tutelará a propriedade, garantindo a sua perpetuidade e exclusividade, quando esta for social. Não subsistirá a propriedade anti-social.

A proposital ênfase à dimensão axiológica da propriedade é novamente evidenciada no artigo 170 da Constituição Federal. Ao ser abordado o Capítulo da Ordem Econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, o legislador não perdeu a oportunidade de inserir, no inciso III do mesmo dispositivo, a conciliação da propriedade empresarial com a sua função social.

A locução função social traduz o comportamento regular do proprietário, exigindo que ele atue numa dimensão na qual realize interesses sociais, sem a eliminação do direito privado do bem que lhe assegure as faculdades de uso, gozo e disposição. Vale dizer, a propriedade mantém-se privada e livremente transmissível, porém detendo finalidade econômica adequada às atividades urbanas e rurais básicas, no intuito de circular riqueza e gerar empregos.

Busca-se paralisar o egoísmo do proprietário, com prevalência de valores ligados à solidariedade social, a fim de que aquele seja guiado por uma conduta ética, pautada no respeito aos direitos fundamentais e o acesso de todos a bens mínimos capazes de conferir- lhes uma vida digna.

De acordo com Teizen Júnior (2004) a classificação dos bens em produtivos ou do consumo não se funda em sua ou consistência, mas na destinação que se lhe dê. A função que as coisas exercem na vida social é independente da sua estrutura interna. Ou, como afirma Comparato, apud Teizen Júnior (2004, p. 150):

“(…) a função assinada a determinada bem no ciclo econômico – como instrumento de produção ou como coisa consumível – pode ser realizada não necessariamente por um só tipo de relação jurídica, mas por vários. A mesma máquina, componente de capital técnico numa empresa, pode ser objeto de propriedade, ou ser possuída em razão de financiamento com alienação fiduciária de arrendamento mercantil, ou de comodato.”

Importa, pois, distinguir a função econômica de uma coisa da função econômica da relação jurídica que tem essa coisa por objeto, ou a função econômica do negócio jurídico que estabelece essa relação.

O conceito constitucional de propriedade é bem mais amplo que o tradicional do direito civil. Inclui-se na proteção constitucional, também, a propriedade de outros bens patrimoniais. Sugere-nos, Comparato, que, como conseqüência, dentre tal proteção se situa também o poder de controle empresarial, o qual não pode ser qualificado como um ius in re, há de ser incluído na abrangência do conceito constitucional de propriedade.

Na lei de sociedades por ações (Lei 6.404/76), determina-se (art. 154) que: “Art. 154: O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.” (TEIZEN JÚNIOR, 2004, p.144)

Já o artigo 116, parágrafo único, dispõe esta mesma lei que:

“Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.” (TEIZEN JÚNIOR, 2004, p. 144)

No exercício da atividade empresarial, reconhece a lei que devem ser respeitados os interesses internos à atividade empresarial, ou seja, os interesses dos capitalistas e trabalhadores, mas também os interesses da comunidade em que ela atua.

Porém, há que delinear adequadamente quais os reais contornos desses deveres e responsabilidades do acionista controlador.

Estabelece o art. 170 da Constituição Brasileira de 1988 que:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – Soberania Nacional;

II – Propriedade Privada;

III – Função Social da Propriedade; IV: Livre Concorrência;

V – Defesa do Consumidor;

VI – Defesa do Meio Ambiente;

VII – Redução das desigualdades Regionais e Sociais; VIII – Busca do Pleno Emprego;

IX – Tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país”. (TEIZEN JÚNIOR, 2004, p.144-145)

A livre iniciativa, aqui entendida como a liberdade de criação empresarial ou de livre acesso ao mercado, somente é protegida enquanto favorece o desenvolvimento nacional e a justiça social. Trata-se, portanto, de uma liberdade-meio ou liberdade condicional.

Tal dispositivo constitucional apresenta-se como norma programática. Sua observância vincula não apenas o Estado, mas a todos, órgãos do Poder público ou pessoas de direito privado. Este e outros dispositivos fundamentais da ordem econômica e social do País obrigam as empresas ao seu cumprimento, visto que são os principais agentes da vida econômica.

Há, no entanto, que se identificar e classificar as empresas segundo a natureza e o interesse e reconhecida função social. Algumas atividades empresariais não podem ser encetadas sem que preceda de uma autorização de poder público, tendo em vista a relevância do empreendimento no que tange ao interesse nacional, econômico, social ou político. É o caso das instituições financeiras, dos agentes do mercado e capitais, e das sociedades seguradoras; das empresas de armamentos e das localizadas na faixa de fronteira, das empresas jornalísticas ou de radiotelecomunicação. A lei reconhece que as empresas atuantes nesses setores exercem autêntica função social.

Função, em direito, como afirma Comparato (apud TEIZEN JÚNIOR, 2004, p.145-146):

É um poder de agir sobre a esfera jurídica alheia, no interesse de outrem, jamais em proveito do próprio titular. A consideração dos objetivos legais é, portanto, decisiva nessa matéria, como legitimação do poder. A ilicitude, aí, não advém apenas das irregularidades formais, mas, também, do desvio de finalidade, caracterizando autêntica disfunção.

1.1 Função social do contrato

Segundo Teizen Júnior (2004), o estudo do princípio da função social do contrato tem como horizonte verificar de que modo se dá a interação entre esse princípio e o princípio clássico da relatividade, cujo isolamento quer circunscrever os efeitos da relação contratual aos contratantes.

Tal contraposição nos conduz a perceber o fenômeno como um declínio da autonomia da vontade como fundamento da força obrigatória do contrato, permitindo um novo delineamento principiológico no qual se insere o contrato na modernidade.

O princípio da relatividade permite delimitar o âmbito da eficácia do contrato, ou seja, os contratos só produzem efeito relativamente às partes contratantes, não prejudicando ou beneficiando terceiros estranhos à relação contratual.

É nesse sentido que nos apontara Sílvio Rodrigues (apud TEIZEN JÚNIOR, 2004, p. 163): “Como o vínculo contratual emana da vontade das partes, é natural que terceiros não possam ficar atados a uma relação jurídica que lhes não foi imposta pela lei, nem derivou de seu querer”.

Segundo Teizen Júnior (2004, p. 163):

“Verdadeiro dogma em matéria contratual, a eficácia relativa dos contratos, por falta de disposição expressa em nosso direito civil, tinha, no famoso adágio romano “res inter alios acta allis neque nocere neque prodesse potest (o que foi negociado entre as partes não pode prejudicar nem beneficiar terceiros), a representação do princípio, servindo-lhe como fonte de legitimação.

O princípio da relatividade dos efeitos do contrato, interpretado sob a ótica das doutrinas individualistas, que consideram a autonomia da vontade como fundamento da força obrigatória do contrato, infere que terceiros podem ignorar inteiramente a existência do contrato. Assim, aquele que não contratou não pode por ele ficar obrigado, nem tampouco, aquele que não consentiu, tirar proveito. Dessa forma, a vontade ocupa o centro natural de todas as atenções, traduz um dos mais importantes corolários da concepção voluntarista do contrato.”

Esses conceitos de parte e terceiro também são deduzidos a partir da referência à vontade: é parte do contrato aquele cuja vontade deu origem ao vínculo contratual; é terceiro aquele cuja vontade, pelo contrário, é um elemento estranho à formação do contrato.

Em síntese, ninguém pode tornar-se devedor ou credor contra a vontade se dela depende o nascimento do crédito ou da dívida.

Tal concepção subjetivista do princípio da relatividade, que identifica na vontade não apenas um elemento essencial ao contrato, mas sim como a razão de ser da sua força obrigatória cede, perante esse novo princípio da função social do contrato. O princípio da função social pode alterar este quadro, desafiando as categorias dogmáticas clássicas e enfatizando os contornos sociais do contrato – aqueles que o tornam um fato social diante do qual os terceiros não estão, nem devem estar, indiferentes.

Enquanto não houver conflito entre o auto-regramento das partes e a consecução dos fins socioeconômicos do negócio jurídico, prevalecerá o conteúdo da manifestação da vontade e os efeitos jurídicos previstos, em abstrato, para o modelo jurídico. Quanto, todavia, a prevalência do interesse público o determinar, o princípio da autonomia da vontade cederá terreno ao princípio da boa-fé objetiva, de modo a ser integralmente preservada a função social do contrato, de modo a ser integralmente preservada a função social do contrato, entendida como um processo de harmonização dos interesses contrapostos, para garantia da justiça e da paz social.

Quando a vontade deixa de estar voltada apenas para os fins individuais do titular, no novo modelo, passa a assumir um poder-função, uma função social. O princípio da função social do contrato tem papel limitador da vontade dos contratantes, restringindo-lhes a liberdade contratual, impondo-lhes uma limitação à sua extensão volitiva, ou seja, pertinente à limitação do conteúdo do contrato, por força de norma de ordem pública, que lhe impõe esse limite.

“A função social do contrato, reconhecida na nova teoria contratual, o transforma de simples instrumento jurídico para o movimento de riquezas no mercado em instrumento jurídico para a realização dos legítimos interesses da coletividade.

A função social, lato sensu, consiste na proteção conferida pelo ordenamento jurídico aos mais fracos na relação contratual, tendo como critério o favorecimento da repartição mais equilibrada da riqueza. É a aplicação, no fundo, do princípio da igualdade substancial. É um preceito constitucional, qual seja, zelar pela liberdade e pela igualdade dos indivíduos. Porém, deve haver uma real e substancial liberdade e uma verdadeira igualdade, compelindo a sociedade a eliminar a miséria, a ignorância, a excessiva desigualdade entre os indivíduos, classes e regiões.” (TEIZEN JÚNIOR, 2004, p.165)

Nesse sentido, pode-se construir um conceito de função social do contrato como sendo a finalidade pela qual visa o ordenamento jurídico a conferir aos contratantes medidas ou mecanismos jurídicos capazes de coibir qualquer desigualdade dentro da relação contratual.

1.2 O estatuto da cidade e sua função social

Com o advento do Estatuto da cidade, a função social da propriedade imóvel ganha nova roupagem. Ela passa a estar atrelada ao aproveitamento e à destinação que o Plano Diretor lhe atribuiu.

Diz Elida Séguin (apud TEIZEN JÚNIOR, 2004, p.156-157):

“Novamente, o direito do proprietário receberá novo contorno no plano municipal. As punições para o que descumpra o ordenamento recaíram sobre a res. É a propriedade que responderá através da edificação compulsória, do IPTU progressivo e da desapropriação-punição.”

Existe uma necessidade física de se estabelecer uma correlação entre habitante e metro quadrado de área verde. A existência de uma política de incentivo à arborização urbana, por meio da extrafiscalidade e da reformulação/rearborização, mobiliário urbano (jardineiras) é uma forma de mitigar a impermeabilização do solo urbano.

Afirma ainda Elida Séguin (apud TEIZEN JÚNIOR, 2004, p. 157):

“Esta política teria como objetivo aumentar a área verde do centro, proporcionando diminuição da temperatura ambiente (mais sombras). As árvores também diminuem o efeito da poluição sonora das ruas e das partículas em suspensão (poluição atmosférica), promovendo uma melhoria geral das condições de vida na região. Este conforto ambiental atingido através do aumento da área verde, poderá ser inserido em diversos aspectos, como em leis de uso do solo, colocação de imobiliário urbano, com características da região, realocação da arborização, etc.”

Os espaços de vivência ambiental têm como objetivo evidenciar os contrastes entre as sensações vivenciadas frequentemente nos grandes centros (medo, stress, desconfortos diversos) e aquelas que raramente paramos para perceber e apreciar como o olfato, o silêncio, a tranqüilidade.

Nesse sentido, diz Comparato (apud TEIZEN JÚNIOR, 2004, p. 158):

“A função social da propriedade não se confunde com as restrições legais ao uso e gozo dos bens próprios; em se tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa sua destinação compatível com o interesse da coletividade transmuda-se, quando tais bens são incorporados a uma exploração empresarial, em poder-dever do titular do controle de dirigir a empresa para a realização dos interesses coletivos.”

As áreas verdes, com apelos sonoros e olfativos, recebem o nome de parques temáticos. Fazem com que a cidade perca um efeito homogeneizante, chamando atenção por sua peculiaridade, adquirindo uma identidade coletiva e individual.

2 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Segundo Teizen Júnior (2004) nos primórdios do direito romano, em cujos limites estranhos não poderiam penetrar sem ofender os deuses dos lares, e em cujo centro se encontrava o templo em que o pater famílias dedicava o culto aos antepassados, a propriedade passou a ser considerada um direito absoluto, sujeito ao poder ilimitado do proprietário. Com o advento do Estado intervencionista, em substituição ao Estado liberal da Revolução Francesa, passou-se a considerar que também o direito de propriedade devia conhecer limites, para que atendesse a sua função social.

O primeiro grande defensor da idéia de que a propriedade gerava para o seu titular o dever de empregar esta riqueza no interesse da sociedade foi Leon Duguit. Já em 1914, na sua obra Las Transformaciones Generales Del Derecho Privado desde el Código de Napoleón. Duguit afirma que: A propriedade é uma instituição jurídica que se formou para responder a uma necessidade econômica, como, por outra parte, todas as instituições jurídicas e que evoluciona necessariamente com as necessidades econômicas.

O pensador francês notou que a sociedade moderna se transformava rapidamente e também o conceito jurídico da propriedade deveria acompanhar esta transformação, a fim de assegurar seu relevante papel econômico. Por isso, para ele, a sociedade deixou de ser um direito individual para converter-se em uma função social. Por isso mesmo, Duguit pregava a necessidade de leis (até então inexistentes) que impusessem ao proprietário a obrigação de cultivar o campo, de conservar a casa, de dar à riqueza que tinha em mãos uma utilidade econômica e social. Defendia  como legítima a intervenção do legislador para evitar que grandes propriedades imobiliárias se prestassem à especulação, de forma que seus donos deveriam lhe dar uma destinação produtiva.

Segundo o pensamento de Duguit, o conteúdo da propriedade como função social é definido em suas proposições:

“O proprietário tem o dever e, portanto, o poder de empregar a coisa que possui na satisfação das necessidades individuais e, especialmente, das suas próprias de empregar a coisa no desenvolvimento de sua atividade física, intelectual e moral.

O proprietário tem o dever e, portanto, o poder de empregar a sua coisa na satisfação das necessidades comuns de uma coletividade nacional inteira ou de coletividades secundárias.” (apud TEIZEN JÚNIOR, 2004. p. 154)

Em síntese, todo exercício do direito de propriedade que não perseguisse um fim de utilidade coletiva seria contrário à lei e poderia dar lugar a uma prestação ou reparação.

Conforme mostra Carlos Alberto Dabus Maluf (apud TEIZEN JÚNIOR, 2004) a idéia da função social da propriedade começou a tomar vulto após a Primeira Grande Guerra Mundial, sendo prevista pela primeira vez na Constituição de Weimar, cujo art. 153 estabelecia que a propriedade é garantida de pela Constituição. Seu conteúdo e seus limites serão fixados em lei. A propriedade acarreta obrigações. Seu uso deve ser igualmente no interesse geral.

De fato, as novas constituições redesenham o direito de propriedade: de uma concepção absoluta, imprimida pelo liberalismo exacerbado do Código de Napoleão, a propriedade continua a ser considerada um direito individual, mas que não deve ser exercido para fins puramente egoísticos, e sim de forma a permitir utilidades e benefícios não só para o titular do direito, mas para a sociedade em geral.

A corrente doutrinária civilista majoritária vincula os direitos reais a natureza econômica decorrente do aproveitamento pelo homem sobre os diversos bens disponíveis. O termo contemporâneo função social da propriedade tem sua fonte nas mais remotas fontes de Direito Privado. Quando o homem, da forma mais frugal possível, conduzia o rebanho de ovelhas da coletividade já demonstrava a forma genuína de apropriação social dos bens, que foi sendo ao longo do tempo substituída pelo caráter individualista sem afastar a idéia de utilidade, de exploração adequada presente nas concepções de função social que chegaram até os dias atuais. A idéia de propriedade privada emerge somente após o segundo estágio evolutivo da humanidade, quando surgem sinais de uma frágil agricultura e criação de animais. Nessa fase devem ser considerados os gregos da época heróica, as tribos itálicas anteriores à fundação de Roma, bem como os nórdicos que haviam desenvolvido a cultura da terra em escala, mas não individualizaram a propriedade agrária. .

De acordo com Teizen Júnior (2004), o vocábulo proprietas dos romanos significava muito mais a possibilidade de utilização de fundus do Estado do que com os poderes plenos do titular sobre o bem, distinguindo-se do conceito atual de propriedade privada. Segundo magistério de Luiz Edson Fachin cronologicamente, a propriedade começou pela posse, geralmente posse geradora da propriedade, isto é, a posse para a usucapião. Vinculada à propriedade a posse é um fato com algum valor jurídico, mas, como conceito autônomo, a posse pode ser aceita como um direito. A posse qualificada levando-se em conta sua competência em instaurar nova situação jurídica é a causa e a necessidade do direito de propriedade. Toda propriedade privada constitui um direito fundamental do ser humano e por esta razão carece de proteção constitucional? Seria um verdadeiro contra-senso garantir proteção constitucional a um latifúndio improdutivo ou a propriedade usada por grupo acionário para especulação imobiliária. Referidas situações, que ensejam mais deveres e responsabilidades fundamentais do que direitos, são o reverso dos direitos humanos. Comparato (apud TEIZEN JÚNIOR, 2004) lembra que os deveres humanos são o exato correspectivos dos direitos humanos: ius et obligatio correlata sunt e quando dispõe a Constituição vigente terem as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais aplicação imediata está de fato determinando que também os deveres fundamentais independem de declaração legislativa para serem considerados como eficazes.

Teizen Júnior (2004) nos lembra que o direito de propriedade passou por transformações históricas. Inicialmente detentor de um tradicional caráter absoluto, inviolável e sagrado, egoísta assume uma concepção altruísta, mudou o referencial, o direito de propriedade passou e ser medido pelos interesses coletivos e não mais simplesmente pela ótica do proprietário. Caio Mário da Silva Pereira fala em publicização do direito privado, fundamenta sua afirmação alegando que a influência do Estado e a necessidade de se instituírem fórmulas dirigidas à realização da finalidade preliminar do direito no propósito de garantir e proteger o bem-estar do indivíduo in concreto geram tendência a publicização da norma jurídica. Segundo ele, tal fato é verificado nas restrições que o proprietário sofre na utilização e disponibilização do bem. As mudanças demográficas, representadas pelo aumento significativo da população, a industrialização e as transformações econômicas, e sociais do século XX demandaram significativas alterações dos paradigmas do Direito. A relativização do direito de propriedade é decorrência da necessidade de atender novas situações sociais emergenciais. Apesar das várias restrições impostas, o direito de propriedade ainda goza de situação privilegiada no sistema jurídico pátrio, verificadas no Código Penal, Título II, Código de Processo Civil e na Lei Federal n. 6.015/73, de Registros Públicos.

Com o advento da Constituição da República de 1988, a propriedade foi inserida com um direito fundamental do cidadão, devendo ser observada sua função social. Nesse sentido, reza o artigo 5.º, XXIII, que a propriedade atenderá a sua função social.

Destarte, a propriedade é uma das bases do sistema socioeconômico do Estado, a sua importância transcende o âmbito dos direitos individuais, indo alocar-se também na ordem econômica e social, o que torna plenamente compreensível e razoável o entendimento de que a propriedade deve atender aos anseios tanto do proprietário quanto da sociedade.

O proprietário, como senhor da coisa, pode usá-la, gozá-la e dispô-la, além de poder reavê-la de quem injustamente a detenha (direitos de seqüela), desde que o exercício do direito corresponda aos anseios da sociedade, já que os reflexos do bom ou mau uso da propriedade irão, invariavelmente, sobre ela se projetar. Destarte, a propriedade – urbana ou rural – deve ser usada em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.

Não mais se concebe a propriedade como um direito ilimitado como o era no direito antigo. A Constituição da República tutela o direito de propriedade, desde que atenda a sua função social. Vários de seus dispositivos expressam essa limitação ao direito de propriedade, como é o caso, por exemplo, daquele que admite a expropriação em caso de necessidade ou utilidade pública ou ainda por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos na própria Lei Maior.

A função social da propriedade permite ainda que a coisa seja utilizada pela autoridade competente, independentemente da vontade do proprietário, em caso de iminente perigo público, assegurada ao proprietário indenização ulterior, mas apenas se houver dano à coisa da qual é dono (art. 5.º, XXV, da CF).

O Código Civil, por sua vez, é claro ao dispor que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (art. 1228 do CC). Embora o dispositivo não afirme expressamente, é óbvio que o proprietário também não pode, sob pena de violar a função social da propriedade, contaminar o solo do bem imóvel do qual é dono.

Portanto, a propriedade deve ser utilizada como instrumento da produção e circulação de riquezas, para moradia ou produção econômica, não podendo servir de instrumento para a destruição de bens ou valores caros a toda a sociedade como é o caso do meio ambiente sadio e equilibrado.

Conforme Luiz Guilherme Loureira,

Por isso mesmo, são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem (art.1228, § 2.º, CC). Nessa hipótese, não poderia se falar em exercício regular de um direito, mas em abuso de direito, que é considerado em nosso ordenamento jurídico como um ato ilícito. A título de exemplo, não poderia o proprietário simplesmente se recusar a renovar um contrato de locação e deixar de aproveitar seu imóvel, apenas com o intuito de prejudicar seu locatário, que utiliza o imóvel como ponto empresarial de seu estabelecimento.

Em suma, não obstante o direito individual de propriedade não deixe de merecer a tutela jurídica, inclusive de ordem constitucional, deve ceder passagem em confronto com o interesse maior da coletividade. Destarte, pode o proprietário ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por utilidade pública ou interesse processual. A coisa pode ser ainda reivindicada pelo poder público, em caso de perigo iminente (v. g., guerra, enchentes, requisição de imóvel para abrigo de pessoas desalojadas por catástrofes naturais etc.). Obviamente, o proprietário tem direito à indenização justa.” (LOUREIRA, 2008, pág. 116)

A legislação prevê várias espécies de sanções pela inobservância da função social da propriedade. O Poder Público pode intervir de várias formas na propriedade privada, a fim de garantir sua função social: as servidões administrativas, as limitações administrativas, o tombamento, a requisição no caso de iminente perigo público e para intervenção no domínio econômico; a ocupação temporária para uso provisório de terrenos não edificados e a desapropriação por utilidade pública ou interesse social e para reforma agrária. Estas formas de intervenção estatal, de forma geral, dão ensejo à justa indenização ao proprietário.

Não obstante, em caso de mau uso da propriedade, vale dizer, de descumprimento da função social do direito de propriedade, seja pela não utilização, seja pela subutilização, a indenização não será paga em dinheiro e sim em títulos da dívida pública. De qualquer forma, não parece possível a desapropriação sem qualquer indenização, uma vez que estaria configurado o confisco ou o perdimento, sanções possíveis apenas no caso de uso de propriedade como instrumento de crime, e após o devido processo legal. É possível a desapropriação-confisco, sem nenhuma indenização, referente a glebas com culturas ilegais de plantas psicotrópicas.

O Estatuto da Cidade, por sua vez, trouxe importantes sanções ao mau uso da propriedade imobiliária urbana, como a possibilidade de cobrança progressiva do imposto predial territorial urbano, a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública e o usucapião coletivo em benefício de um considerável número de pessoas de baixa renda que exerça a posse contínua, ininterrupta e sem oposição de imóvel urbano com área superior a 250 metros quadrados por mais de cinco anos.

Em caso de mau uso da propriedade imobiliária, a lei pode ainda determinar o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsória do solo urbano. Tal ocorrerá, por exemplo, no caso de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado. O imóvel é subutilizado quando o seu aproveitamento for inferior ao mínimo definido no plano diretor municipal ou em legislação dele decorrente.

O Código Civil traz ainda uma importante inovação no que tange à possibilidade de o proprietário vir a ser privado do domínio que exerce sobre um bem imóvel. Quando tal bem consistir em área extensa e estiver sendo ocupado por um considerável número de pessoas, que exercem posse interrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, e nela houverem realizado – em conjunto ou separadamente – obras e serviços de interesse social e relevante, o proprietário não terá direito a reivindicar o bem.

Nesse caso, há uma desapropriação indireta. O juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário. Pago o preço, a sentença proferida valerá como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.

O dispositivo, não obstante a boa intenção do legislador, é pouco claro. Depreende-se que tal sentença deverá ser proferida na ação de reivindicação intentada pelo proprietário do imóvel e, portanto, o pedido de usucapião por parte dos possuidores deverá ser feito na própria contestação, já que a sentença declaratória constitui requisito para a usucapião e vale como título para o registro da propriedade assim adquirida. A ação, nesse caso, teria natureza dúplice.

Entretanto, o dispositivo exige a posse de boa-fé, ou seja, aquela em que o possuidor acredita que é proprietário da coisa. O possuidor deve acreditar – erroneamente – que adquiriu a propriedade. Além disso, a norma não explica o que se entende por obras e serviços de interesses social e econômico relevantes. Caberá ao juiz, em cada caso concreto, avaliar se os prédios, acessões e benfeitorias construídos pelos possuidores do imóvel possuem valor social e econômico importantes, como é o caso de centros de lazer e de obras comunitárias, casas, ruas, etc.

O Código Civil deixa claro, portanto, que o interesse da comunidade pode limitar o exercício da propriedade e constitui, inclusive, motivo de perda desse direito real.

As Constituições de 1824 e de 1891 apresentavam o caráter individualista de propriedade compatível com o período histórico de suas edições, assegurando o direito de propriedade em sua plenitude, com exceção da desapropriação. A Carta Magna de 1934 introduzia, por meio do art. 113, n. 17, a garantia do poder de propriedade não ser exercido contra o interesse social ou coletivo. O Código Supremo de 1946 foi o primeiro texto constitucional pátrio a efetivamente introduzir a definição de função social condicionando o direito de propriedade ao bem-estar social (art. 141, § 16 e art. 147). O art. 141, § 16 do texto constitucional de 1946 promovia a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos. A redação da Emenda Constitucional de 1969 manteve, em parte, o conteúdo do dispositivo anterior, em seu art. 160, III, procurando adaptá-lo à situação vigente, sem afastar a propriedade de sua característica básica, qual seja, o cumprimento da função social. Influenciado pelo Código Napoleônico, diferente do conteúdo do art. 153 da Constituição de Weimar de 1919 cuja redação era: “A propriedade obriga. Seu uso deve, ao mesmo tempo, servir ao bem-estar social”, o Código Civil pátrio de 1916 não trazia qualquer referência à funcionalidade da propriedade. Somente na Constituição de 1946 é que o dispositivo constitucional inscrito no art. 147, parecido com o da Constituição de Weimar adotou o aspecto funcional: “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos.” Referido aspecto foi reproduzido no art. 167 da Constituição de 1967, sendo a função social erigida ao status de princípio da ordem econômica e social, restando como segue o respectivo texto constitucional: “A ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) III- função social da propriedade. Art. 170”. O Código Supremo de 1988 acolheu o direito à propriedade por meio do art. 5º, inserido no Título reservado aos Direitos e Garantias Fundamentais disposto no mesmo plano do direito à vida, à liberdade, igualdade. Na Constituição vigente o direito de propriedade alcançou status de direito inviolável, em sua extensão máxima, como riqueza patrimonial, inciso XXII do caput do art. 5º, e princípio da ordem econômica, inciso II do art. 170, simultaneamente vincula referido direito à realização de uma função social pelos mesmos artigos e respectivos incisos XXIII e III, verificando-se a exigência para que a mesma atenda à função social. Para José Afonso da Silva, referida proposição reveste-se de um caráter programático, vale dizer, determina que os princípios sejam cumpridos pelos correspondentes órgãos, legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos, como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.

Entende, também, que a propriedade é um direito assegurado, não pode ser desconsiderado, mas condiciona-se a sua utilidade que dependendo da espécie poderia inclusive ser socializada. O legislador constitucional preocupou-se em detalhar a pequena propriedade rural a fim de excepcioná-la como bem inatingível pela penhora em execução por débito decorrente da atividade exploratória, art. 5º, XXVI, CF. As intangíveis pela desapropriação, art. 185, I, CF, representadas pelas pequena e média propriedade produtiva.

Percebe-se em ambos os casos a preocupação na preservação da função social da propriedade imobiliária agrária. O art. 186 e incisos I a IV da Constituição vigente reservam atenção especial à função social da propriedade imobiliária, rural certamente por sua importância sócio-econômica e por ser considerado relevante na sobrevivência de uma comunidade.

CONCLUSÃO

Vislumbrou-se ao longo do presente estudo que o conceito de propriedade evoluiu desde sua remota definição, originada no direito romano, transformando-se em direito, por convenção jurídica, e atingindo status de direito fundamental coincidindo, por fim, com o interesse coletivo tutelado pela função social. Em nosso ordenamento jurídico a denominada Lei de Terras, Lei n. 601 de 1850 foi considerada, em virtude do sistema de regularização de posses que dispunha sobre a efetiva utilização da terra, como dispositivo precursor de sua função social. A Constituição de Weimer, de 1919, foi a primeira a reconhecer a propriedade como dever fundamental.

Efetivamente foi Leon Duguit o idealizador do termo “função social da propriedade”. Criticado em sua época, foi considerado radical por difundir o termo função social da propriedade como antônimo do direito subjetivo. Dentre as controvertidas correntes doutrinárias sobre o tema, alguns autores classificam a função social como uma limitação, outros a interpretam como função e não direito.

Por todo o exposto, a função social da propriedade é um direito condicionado. A Constituição Federal de 1988, apelidada de Constituição Cidadã, atribuiu ao direito de propriedade condição especial equiparando-o aos direitos e garantias individuais produzidos pela Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos, fruto da marcante Revolução Francesa, marco do constitucionalismo moderno e instrumento catalisador da implantação do Estado Liberal de Direito.

Restou destarte, evidente a preocupação do legislador constitucional confirmada pelo correspondente legislador codificador do novo Código Civil de 2002, em, por um lado afirmar a função social da propriedade como um direito fundamental, uma cláusula pétrea, por outro demonstrar o cuidado em não interferir no anterior e secular direito de propriedade.

Nesse diapasão, a previsão legal constitucional, sobre o direito à propriedade, disposta juntamente com os direitos à vida, à liberdade e à igualdade, presentes, já no caput do art. 5º do Código Supremo vigente, em franca consonância com os incisos XXII e XXIII do mesmo artigo, não garante direito ilimitado ao proprietário para usar, gozar e dispor da coisa, previsto pelo art. 1.228 do novo Código Civil. Conclui-se sob os influxos das doutrinas analisadas e dos paradigmáticos dispositivos legais que, apesar de exercer papel limitador, em virtude da necessidade de atender o interesse coletivo sobre o direito à propriedade.

 

Referências bibliográficas
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Direitos reais à luz do Código Civil e do Direito Registral. São Paulo: Método, 2004.
RIZARDDO, Arnaldo. Direito das coisas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. ROSENVAL, Nelson. Direitos reais. 3. ed. Editora Impetus, s/d.
TEIZEN JÚNIOR, Augusto Geraldo. A função social no código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

Informações Sobre o Autor

José Mário Delaiti de Melo

Advogado especializado em Direito Civil e Administrativo militante nas áreas de consultoria e contencioso judicial e administrativo Consultor Jurídico Servidor Público Administrador Teólogo Mestre e Doutor em Teologia. Pós-graduando em Direitos Humanos e graduando em Administração Pública e em Filosofia. Pós-doutorando PHD em Filosofia Cristã. É autor de diversos artigos jurídicos nas áreas de Direito Administrativo Civil Ambiental Processual Civil Família Trabalhista Tributário e Penal


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