Resumo: Talvez um dos mais conhecidos jargões do mundo jurídico seja o famigerado pacta sunt servanda, que prega que os contratos, depois de firmados, devem ser cumpridos. Porém, a atual conjuntura da sociedade nos faz refletir sobre este conceito. Os contratos devem sim, ser cumpridos, mas a que custo? O momento de crise que o Brasil enfrenta faz com que a economia se torne volátil e instável. É aí que entra a necessidade de analisarmos a possibilidade de aplicação a cláusula hardship nos contratos no cenário empresarial, para os casos em que, a cris econômica, venha a causar um desequilíbrio entre as partes contratantes que possa porventura inviabilizar a atividade de uma delas. Portanto, a clausula hardship surge como uma espécie de mitigação ao famoso pacta sunt servanda, devendo ser observada como uma ferramenta de manutenção do equilíbrio contratual, uma maneira de cumprir a função social dos contratos, evitando com que uma das partes contratantes tenha sua atividade inviabilizada pelas mudanças econômicas constantes que possam a vir ocorrer por causa do momento de instabilidade econômica atual do Brasil.[1]
Palavras-chave: pacta sunt servanda; Cláusula hardship; função social dos contratos; crise econômica; equilíbrio contratual.
Abstract: Perhaps one of the most well-known jargons in the legal world is the notorious pacta sunt servanda, it preaches that contracts, once signed, must be fulfilled. However, the current conjuncture of society makes us reflect on this concept. The contracts must, yes, be fulfilled, but at what cost? The moment of crisis that Brazil faces makes the economy volatile and unstable. This is where we need to analyze the possibility of applying the hardship clause in the contracts in the business scenario, in cases where the economic crisis will cause an imbalance between the contracting parties that might possibly jeopardize the activity of one of them. Therefore, the hardship clause appears as a kind of mitigation to the famous pacta sunt servanda, and should be observed as a tool to maintain contractual equilibrium, a way to fulfill the social function of contracts, avoiding that one of the contracting parts has its activity unviable by the constant economic changes that may occur due to the current economic instability that Brazil actualy goes through.
Palabras clave: pacta sunt servanda; hardship clause; social function of contracts; economic crisis; contractual balance.
Sumário: Introdução; 1. A cidadania a partir da geração de direitos de Norberto Bobbio; 2. Cidadania com início na dimensão de direitos de Thomas Humphrey Marshall; 2. Brasil: um modelo de cidadania a começar dos direitos sociais; Conclusão; Referências.
Introdução
Vivemos em tempos nos quais a imutabilidade contratual já não mais reina intocável. A força obrigatória do contrato vem sendo retirada de seu pedestal de verdade absoluta para adaptar-se a um mundo mais dinâmico, à uma modernidade líquida em que nada é feito para durar.
A vontade livre das partes está sendo mitigada? O pacta sunt servanda não tem mais espaço em nosso meio jurídico? Como lidar com essa mudança paradigmática? Diante destes questionamentos é que surgem ferramentas capazes de lidar com o momento histórico que abala as vetustas estruturas do direito.
A superação dos princípios supracitados se dá através de uma ideia de cooperação entre as partes, ganhando mais espaço formas de se manter o equilíbrio contratual, a fim de se pleitear um ambiente mais justo e democrático.
Outro fator que acentua a necessidade de mudanças no âmbito contratual é o cenário de caos financeiro em que estamos imbuídos, nos vemos em uma situação em que mais e mais pessoas não são mais capazes de cumprir com o pactuado. Tal situação não é proveitosa para nenhuma das partes, por óbvio, então, que as ideias de cooperação entre estas vêm ganhando espaço.
É diante dessas problemáticas que o presente texto se propõe a abordar o potencial da relativização contratual a partir da cláusula de hardship, levando em consideração, ainda, os reflexos da crise financeira que atinge o país e, por consequência, o setor empresarial.
1. A força obrigatória dos contratos no Direito empresarial
Os contratos foram instituídos enquanto uma forma de registrar os acordos ou pactos realizados entre duas ou mais pessoas, com base na vontade livre das partes envolvidas, expressando a estipulação dos termos aos quais se submeteriam a fim de cumprir as obrigações acertadas.
Assim, trata-se de um instrumento que tem como objetivo assegurar o cumprimento do que foi estabelecido entre as partes, seus direitos e seus deveres, ou seja, tem o poder de garantir o cumprimento do acordado entre as partes, ao que se chama de força obrigatória.
Ao se abordar o princípio da força obrigatória do contrato no Direito Empresarial compreende-se como necessário que se tenha com clareza os conceitos basilares do Direito Civil, tal como será exposto a seguir.
Em primeiro lugar, ao se tratar de contratos, convém que se tenha em mente o conceito do próprio contrato, a fim de se evitar equívocos quanto à sua interpretação. Em relação ao conceito de contrato, Rizzardo comenta:
“A própria origem etimológica do termo conduz ao vínculo jurídico das vontades, com vistas a um objetivo específico: contractus, do verbo contrahere, no sentido de ajuste, convenção, pacto ou transação. Ou seja, a ideia de um acordo entre duas ou mais pessoas para um fim qualquer. Constitui um ato injurídico, cuja finalidade visa criar, modificar ou extinguir um direito” (RIZZARDO, 2013, p. 05-06).
De acordo com Gonçalves (2012):
“O contrato é uma espécie de negócio jurídico que depende, para a sua formação, da participação de pelo menos duas partes. É, portanto, negócio jurídico bilateral ou plurilateral. Com efeito, distinguem-se, na teoria dos negócios jurídicos, os unilaterais, que se aperfeiçoam pela manifestação de vontade de apenas uma das partes, e os bilaterais, que resultam de uma composição de interesses. Os últimos, ou seja, os negócios bilaterais, que decorrem de mútuo consenso, constituem os contratos. Contrato é, portanto, como dito, uma espécie do gênero negócio jurídico” (GONÇALVES, 2012, p.22).
Outrossim, GONÇALVES (2012, p.21) ainda afirma que o “contrato é a mais comum e a mais importante fonte de obrigação, devido às suas múltiplas formas e inúmeras repercussões no mundo jurídico”. Nesse sentido, se faz necessário abordar o princípio da autonomia da vontade das partes a partir da visão do direito empresarial e que diz respeito a algo essencial na instituição de contratos, isto é, a liberdade das partes de contratar sem qualquer tipo de coerção ou constrangimento. A manifestação dessa livre vontade é um elemento indispensável à própria validade desse ato jurídico. Em outras palavras, o contrato se origina com a declaração da vontade das partes. Conforme afirmam GAGLIANO e PAMPLONA FILHO (2005, p.39) “o contrato é um fenômeno eminentemente voluntarista, fruto da autonomia privada e da livre iniciativa”.
Comenta Gonçalves:
“O princípio da autonomia da vontade se alicerça exatamente na ampla liberdade contratual, no poder dos contratantes de disciplinar os seus interesses mediante acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. Têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos, sem qualquer interferência do Estado. Podem celebrar contratos nominados ou fazer combinações, dando origem a contratos inominados” (GONÇALVES, 2012, p.41).
Compreendendo-se que, para a realização é necessário o encontro de, pelo menos, duas vontades livres, visto que deve haver, pelo menos, esse referido encontro manifesta o que se conhece como a bilateralidade do contrato. Isso significa o encontro de duas vontades livres e contrapostas, capazes de dar sua anuência, gerando o fenômeno do consentimento. Como afirma RIZZARDO (2013, p.18), “autonomia da vontade está ligada à liberdade de contratar, que se submete, no entanto a limites, não podendo ofender outros princípios ligados à função social do contrato”. O autor afirma ainda:
“A teoria da autonomia da vontade humana foi desenvolvida pelos enciclopedistas, filósofos e juristas que precederam a Revolução Francesa e afirmaram a obrigatoriedade das convenções, equiparando-as, para as partes contratantes, à própria lei” (RIZZARDO, 2013, p. 08).
De acordo com PEREIRA (2003, p.22-24), a liberdade de contratar se constitui de alguns elementos fundamentais, que são: (a) a faculdade de contratar e de não contratar, ou seja, o momento em que há o arbítrio de se decidir, ou não, pelo contrato; (b) a escolha da pessoa com quem contratar, bem como o objeto do contrato; (c) o poder de estabelecer o conteúdo do contrato, pois este deve ser estabelecido em conformidade com o interesse das partes. Por fim, (d) uma vez concluído o contrato, ele se torna uma fonte formal de Direito, cabendo, quando da sua inobservância, de suas cláusulas, pode-se recorrer à Justiça a fim de se garantir o cumprimento do mesmo.
Como no contrato empresarial devem estar expressas as regras, as cláusulas, os direitos e deveres de cada uma das partes, o contrato serve como um instrumento de regulação das relações entre os contratantes. Assim, esse instrumento particular que livremente firmaram entre si passa a exercer uma força obrigatória sobre eles, pois, estando já firmado o contrato, este vincula as partes, deixando-as obrigadas a cumpri-lo.
Nesse quesito, o que parece ser mais importante observar é o princípio da força obrigatória dos contratos, que segundo afirma GONÇALVES (2012, p.48), é “em essência, a irreversibilidade da palavra empenhada”.
Comenta ainda Gonçalves:
“O aludido princípio tem por fundamentos: a) a necessidade de segurança nos negócios, que deixaria de existir se os contratantes pudessem não cumprir a palavra empenhada, gerando a balbúrdia e o caos; b) a intangibilidade ou imutabilidade do contrato, decorrente da convicção de que o acordo de vontades faz lei entre as partes, personificada pela máxima pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos), não podendo ser alterado nem pelo juiz. Qualquer modificação ou revogação terá de ser, também, bilateral. O seu inadimplemento confere à parte lesada o direito de fazer uso dos instrumentos judiciários para obrigar a outra a cumpri-lo, ou a indenizar pelas perdas e danos, sob pena de execução patrimonial” (CC, art. 389) (GONÇALVES, p. 2012, p. 48).
O Princípio da Força Obrigatória dos Contratos, conhecido também pela expressão em latim pacta sunt servanda que significa ‘’os pactos devem ser cumpridos’’ tem seu fundamento na própria vontade dos contratos. Além disso, é regra de vinculação das partes, neste caso, das empresas, com o contrato e, também, com a norma legal tangenciando a imutabilidade.
Considerando-se, como já se afirmou anteriormente, os contratos no direito empresarial são acordos bilaterais ou plurilaterais em que as vontades de duas ou mais partes convergem para a realização de um objetivo comum, no momento em que os direitos e deveres do mesmo estiverem expressos, as partes ficam obrigadas ao cumprimento dos mesmos. Mas esse poder de vincular as partes, ou seja, a Força Obrigatória dos Contratos, apenas pode vigorar se todos os requisitos de existência, validade e eficácia dos contratos tiverem sido observados.
2. Da relativização dos contratos empresariais em tempo de crise econômica
O Brasil passa por um período de economia instável desde meados de 2015. Entre as causas e fatores deste momento de instabilidade, está o processo crescente da inflação. Em 2015, a taxa de inflação em 2015 chegou à casa dos dez por cento, mais especificamente 10,67%[2], sendo esta a maior taxa de inflação registrada desde 2002. Levando isto em consideração, somado ao fato de que o salário mínimo nacional não é, e nunca foi, reajustado mensalmente, este aumento da inflação faz com que a população perca poder aquisitivo, acarretando em crise no mercado financeiro, queda de circulação de dinheiro no mercado, cortes de gastos no setor empresarial, desemprego crescente. Tudo isso faz com que a economia do Brasil passe por um momento de retração, no intuito de frear o consumo e incentivar o pagamento de dívidas já existentes, fazendo com que os estoques das empresas aumentem, tendo isto como consequência a redução de custos. Tudo na tentativa de impedir que a inflação cresça ainda mais. No entanto, esse mecanismo frear a inflação, também contribui com a retração da economia.
Outros fatores da crise são: a queda na demanda e preços de comodities, em função da recessão em vários países e da própria crise brasileira de 2008; a insuficiência de infraestrutura, relacionada aos processos produtivos, no país; a falta de investimento no setor produtivo; a elevação dos gastos públicos, com o aumento da dívida pública; o aumento de preços dos serviços públicos básicos, como energia e transporte; a variação do dólar o que prejudica as importações, das quais o Brasil é dependente, principalmente, no que tange aos bens de produção. Outrossim, pode-se dizer que são fatores da crise econômica brasileira: a instabilidade política e a corrupção; fatores que geram a descredibilidade do país no cenário exterior e, consequentemente, desmotiva os investimentos internacionais no mesmo.
Nesse contexto, 1,8 milhão[3] de empresas, de variados portes e setores da economia, foram extintas no país no ano de 2015. O maior índice em 05 anos. Diante dessa instabilidade financeira, ou seja, diante de uma situação excepcional, alheia a vontade e que atinge a toda população, é válida a reflexão acerca das cláusulas que possibilitam, frente às situações novas, a revisão do contrato, buscando o reequilíbrio na relação contratual, ou a desobrigação do devedor, diante da onerosidade.
A Teoria Revisionista dos Contratos é fundamentada na noção de igualdade material, de equidade, ou seja, para além da igualdade formal. A impossibilidade de cumprimento do contrato, é associada à impossibilidade relativa, em que o cumprimento do contrato não é plenamente impossível, mas ocasionará excessiva onerosidade à parte obrigada.
Nesse sentido, afirma Lacerda que:
“O princípio rebus sic stantibus determina que o contrato e suas obrigações são válidos enquanto as circunstâncias permanecerem como estavam no momento de formação do contrato, ou seja, se algo alheio à vontade das partes modificar as circunstâncias e dificultar a realização de determinada obrigação, esta obrigação não será devida e o pacto poderá ser revisto, já que as circunstâncias que envolvem o acordo não são mais as mesmas e que a relação está desequilibrada” (LACERDA, 2005, p. 253).
Assim, sendo o “rebusc sic stantibus” um princípio, as partes podem invocá-lo para a interpretação do contrato como um todo, não sendo necessária uma cláusula com sua previsão. Nesse viés, o princípio “rebusc sic stantibus” irá orientar as cláusulas revisionistas pela necessidade de equilíbrio nas relações contratuais. Logo, o princípio supra é base da cláusula hardship.
A cláusula de hardship está inserida nos Princípios do UNIDROIT (Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado) e, de acordo com esses princípios, a cláusula não exclui o caráter vinculativo dos contratos, podendo ser usada em caráter excepcional, quando o cumprimento do contrato for oneroso e gerar desequilíbrio, com o aumento do custo do cumprimento das obrigações ou pela diminuição do valor da contraprestação.
Outrossim, a definição de hardship encontra-se nos princípios do UNIDROIT, sendo a situação em que ocorrem fatos (ocasionados pelo contexto social, econômico, tecnológico, político) que alteram, substancialmente, o equilíbrio do contrato e por isso permitem a revisão do contrato pactuado. Ademais, os princípios do UNIDROIT demonstram os efeitos da cláusula de hardship, quais sejam: a renegociação e a revisão do contrato ou, em última hipótese, a resolução do contratual.
Além dos requisitos supramencionados, para a aplicação da cláusula de hardship, é necessário observar a presença dos seguintes pressupostos: a) a parte afetada precisa tomar conhecimento dos acontecimentos após a conclusão do contrato; b) a razoável imprevisão das circunstâncias que motivam a hardship, até o momento da celebração do contrato; c) os fatos que justificam o desequilíbrio e, por consequência, a cláusula, devem ser inevitáveis; d) a parte lesada não pode ter concorrido para a ocorrência do fato, que desequilibrou a relação contratual, tampouco ter assumido os riscos inseparáveis do fato.
Quanto à fundamentação do pedido de revisão/renegociação do contrato, afirma Lacerda:
“A imposição de fundamentação do pedido de renegociação pretende dar à outra parte as informações necessárias para que possa avaliar a sua razoabilidade, no entanto, não será necessária essa justificativa se os fatos que deram causa ao hardship forem notórios e/ou do conhecimento geral.”
Diante disso, os contratos que se tornaram excessivamente onerosos, frente à crise da economia, e que preenchem os demais requisitos acima expostos, devem ser passíveis de renegociação e reavaliação sobre a cláusula de hardship, dispensando até mesmo fundamentação. Ou seja, a cláusula de hardship, deve ser uma ferramenta utilizada em tempos de crise econômica, de modo a atender a sua finalidade de manter a equidade e a igualdade material durante o cumprimento da relação contratual. Posto isto, a relativização dos contratos faz-se imperiosa, também, no sentido de atender, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Conclusão
A cláusula de hardship, portanto, não diz respeito a uma mera relativização do pacta sunt servanda, mas sim um mecanismo que objetiva a manutenção da situação inicial das relações contratuais, ou seja, tal qual quando foram pactuadas. O objetivo dessa cláusula é o de assegurar que fatos externos – tal como uma crise financeira que assole o país – prejudique uma relação contratual a ponto de se tornar inconcebível por uma das partes.
Importante ressaltar que a aplicação da cláusula de hardship é bastante criteriosa – conforme já apontado – e isso significa que apenas poderia ser acionado em situações bastante específicas. Sua utilização significaria um maior comprometimento com a manutenção contratual em sua forma primária e geraria um maior espírito de solidariedade entre os envolvidos.
Por fim, observa-se que o direito muitas vezes não é capaz de acompanhar as mudanças na economia, ambos campos parecessem funcionar em tempos diferentes, o direito parece crer que ainda vivemos em um mundo de saberes sólidos e imutáveis, mas a economia nos prova que de sólido temos apenas uma legislação engessada. Se faz necessário, então, atualizar certos conceitos e princípios a fim de que a economia e o direito possam, finalmente, andar compassados.
Informações Sobre os Autores
Vivian Pereira Franchi Dutra
Acadêmica de Direito pela Universidade Federal do Rio Grande
Bruno Bandeira Fonseca
Acadêmicos de Direito pela Universidade Federal do Rio Grande
Pedro dos Anjos Duarte
Acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Rio Grande