Causa e motivo do negócio jurídico no direito brasileiro e no direito estrangeiro

Resumo: A vontade constitui a base do negócio jurídico, que se perfaz como norma individual definindo a conduta dos contratantes. Da vontade advém a causa e o motivo determinantes do negócio jurídico. Contudo, causalistas e anticausalistas divergem a esse respeito. Para os primeiros, a causa é elemento essencial à validade e eficácia do negócio jurídico; para os segundos, a causa é irrelevante, já que os efeitos gerados pelo negócio jurídico independem da existência de uma causa. O artigo aborda essa temática identificando a causa de modo objetivo, vinculada à função econômica e social do negócio. Também se faz um paralelo entre o tratamento da matéria no direito brasileiro e no direito estrangeiro, concluindo por apresentar nossa adesão à corrente causalista, porém sem o mesmo rigor adotado no direito francês, por exemplo, para quem a causa é apontada como requisito de validade do negócio jurídico.

Palavras-chave: Negócio jurídico. Causa e motivo. Causalistas e anticausalistas.

Abstract: The will consists on basis of the legal business, which becomes an individual norm defining the conduct of the contractors. From the will comes the cause and the determining motive of the legal business. However, causalists and anticausalists differ in this respect. For the former, the cause is an essential element to the validity and effectiveness of the legal business; For the latter, the cause is irrelevant, since the effects generated by the legal transaction do not depend on the existence of a cause. The article addresses this theme by identifying the cause in an objective way, linked to the economic and social function of the business. There is also a parallel between the treatment of matter in brazilian law and in foreign law, concluding by presenting our adherence to the causalist, but without the same rigor adopted in french law, for example, for whom the cause is pointed as a requirement of validity of the legal business.

Kaywords: Legal business. Cause and motive. Causalists and anticausalists

Sumário: Introdução. 1. Causa e motivo do negócio jurídico no direito brasileiro. 2. Causa e motivo do negócio jurídico no direito estrangeiro. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Todo negócio jurídico possui uma base que justifica a sua formação. A base do negócio jurídico se situa na vontade, que, afinal, se projeta por meio de uma ação humana, exteriorizada através de uma declaração. O negócio jurídico representa, portanto, uma declaração de vontade conforme o direito, isto é, uma declaração de vontade respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia ditados pelo ordenamento jurídico. Sendo seu fundamento a vontade humana, seu habitat o ordenamento jurídico e seu efeito a criação, modificação ou extinção de direitos e obrigações, o negócio jurídico se perfaz como norma individual, pois as partes acordam que se devem conduzir de determinada maneira, uma em face da outra (DINIZ, 2014, p. 32).

A declaração de vontade constitutiva do negócio jurídico nasce de determinadas circunstâncias subjetivas e objetivas presentes no momento da conclusão do negócio, ou seja, na constituição da base do negócio jurídico há que se considerar a vontade dos contratantes e a finalidade que decorre do programa contratual constituído. Por base do negócio jurídico entendam-se todas as circunstâncias fáticas e jurídicas que os contratantes levaram em consideração ao celebrar o contrato, que podem ser vistas em seus aspectos subjetivos e objetivos (NERY, 2006, p. 416).

É nesse contexto que se discute a respeito da causa e do motivo presentes no negócio jurídico. Quem adquire uma propriedade imóvel o faz impelido por vários motivos: motivos íntimos, pessoais – reminiscência da infância ou para o lazer com a família –; motivos econômicos – o desejo de aplicar o dinheiro e obter lucro –; por ambos os motivos ou por motivos diversos. Ocorre que ao lado desses motivos, existe um aspecto que recebe a tutela do ordenamento jurídico, qual seja: dar uma quantia em recebimento de uma coisa. A esse aspecto objetivo, de relevância jurídica, se atribui a denominação de causa do negócio jurídico, malgrado a existência de motivos elevados à categoria de razão determinante ou condição do negócio jurídico, como se verá adiante.

A temática da causa e do motivo do negócio jurídico está longe de ser pacífica. No Brasil e no estrangeiro, causalistas e anticausalistas se debatem a respeito desses aspectos. Para os causalistas, a causa é objetiva e indispensável ao negócio jurídico, sendo a fonte geradora das obrigações e o fim econômico do negócio. Os anticausalistas, por seu turno, negam a existência de causa no negócio jurídico, aduzindo que a causa na realidade equipara-se ao objeto ou ao consentimento, de maneira que no contrato bilateral a obrigação do vendedor é a causa da obrigação do comprador, e vice-versa.  

Com estas considerações, passa-se à análise da matéria no direito brasileiro e no direito estrangeiro.

1. CAUSA E MOTIVO DO NEGÓCIO JURÍDICO NO DIREITO BRASILEIRO

Para Ruggiero, o negócio jurídico possui um motivo próximo ao lado de um remoto. O primeiro, seria sempre um e não mudaria jamais; o segundo, corresponderia a representações psíquicas íntimas, que podem ser tão variáveis e infinitas como as circunstâncias individuais que levam os homens a criar relações entre eles (ABREU, 1988, p.127/128).

Com efeito, a causa no negócio jurídico é representativa do chamado motivo próximo. É o fator determinante, o fim prático a que se destina o negócio jurídico. A causa se identifica com a função econômica e social do negócio, com a finalidade prática a que o mesmo se destina, sem nenhuma indagação pertinente à considerações de ordem subjetiva, psíquica, dos interessados. “A causa do negócio se traduz, portanto, na relevância que se empresta à vontade privada, capacitada à realização de um interesse que mereça a tutela do direito” (ABREU, 1988, p.128).

Como a causa se identifica com a finalidade prática a que se destina o negócio jurídico, no contrato de compra e venda de imóvel, por exemplo, a causa do contrato, para o vendedor, é o recebimento do preço e, para o comprador, a aquisição do bem. No contrato de locação, a causa, para o locador, é o recebimento do preço e, para o locatário, a utilização do bem que lhe é onerosamente cedido. Já na doação, onde o doador, sem qualquer vantagem econômica, se demite da propriedade do bem em favor do donatário, a causa do negócio jurídico, para o doador, consiste na própria manifestação de sua vontade, na liberalidade que move seus propósitos altruísticos. A diferença de causa nestes exemplos se explica através da troca de prestações existente nos negócios jurídicos onerosos; e a liberalidade verificada nos negócios jurídicos gratuitos. Nestes últimos, da parte do doador, a liberalidade é o próprio fim prático a que se destina o negócio jurídico da doação.    

Outra particularidade pertinente à causa do negócio jurídico se verifica nos chamados negócios jurídicos abstratos ou formais. Os exemplos acima citados – compra e venda, locação e doação – são classificados pela doutrina como negócios jurídicos causais, considerando que a produção de efeitos se vincula, necessariamente, a uma determinada causa, que deve ser lícita, sob pena de nulidade por falta ou vício de elemento essencial. Já nos negócios jurídicos abstratos ou formais, a forma assume um papel de relevo e torna-se elemento preponderante no negócio, como ocorre com os negócios cambiários. Nestes é irrelevante indagar a respeito de sua causa originária, cujos efeitos se produzem de qualquer modo, ainda que não exista uma causa determinada para o negócio jurídico ou ainda quando ilícita a causa. Em caso de ilicitude, por evidente, existem providências judiciais cabíveis destinadas a combater o enriquecimento ilícito.

De qualquer sorte, arremate-se dizendo não haver negócio jurídico sem causa. Mesmo nos negócios jurídicos abstratos ou formais, a causa não se suprime e estará vinculada a uma outra relação negocial, vinculando as partes (ABREU, 1988, p.127/128). 

Se a causa no negócio jurídico (ou motivo próximo, conforme Ruggiero), representa o fim que se tem como relevante, capaz de determinar as regras jurídicas que regerão o ato, os motivos (motivo próximo) são as pré-intenções que dão ensejo ao negócio, segundo Pontes de Miranda. Os motivos são estranhos ao direito, que os desconhece no vigiar se o negotium entra em alguma figura jurídica. Também o fato de conhecer ou de ser informado do motivo o outro figurante não o torna essencial, não lhe muda o caráter de motivo (MIRANDA, 2012, p.159/160).

Vê-se que Pontes de Miranda alude aos motivos como pré-intenções negociais, estranhas ao direito, eis que não representam a finalidade que determina a regra jurídica aplicável ao negócio. Pontes, contudo, não restringe os motivos do negócio jurídico à razões de ordem psíquica, que precedem e determinam a declaração negocial, como ocorre com frequência na doutrina civilista.[1]

São fortes os argumentos para não se restringir a limitação dos motivos à elementos psicológicos antecedentes à declaração do negócio jurídico. Não que razões psicológicas, íntimas, pessoais, não integrem a motivação do negócio jurídico, porém os motivos negociais não se restringem a esses aspectos.

No campo dos negócios jurídicos, para justificar a existência de motivo desapartado de razões psicológicas, Antônio Junqueira de Azevedo lembrar situações que exigem justa causa ou que decorrem do cumprimento de obrigação. A deserdação, por exemplo, negócio jurídico que deve ser feito por testamento (CC/2002, art. 1.964), exige a expressa menção de causa (CC/2002, arts. 1.814 e 1.962), a indicar a presença de uma situação objetiva à realização do negócio jurídico. Colhendo outra hipótese apresentada por Antônio Junqueira de Azevedo, onde o legislador emprega motivo sem conotação psicológica, o art. 559 do Código Civil de 2002 preconiza que a revogação da doação, “por qualquer desses motivos”, deverá ser pleiteada dentro de um ano. O referido autor, arremata:

“Quando a motivação é obrigatória, sua razão de ser é dupla: obriga o declarante a se conscientizar da adequação de sua declaração às exigências do preceito, legal ou contratual, e facilita, para os declaratários, o controle dessa mesma adequação” (AZEVEDO, 1986, p.211/212).

Sendo certo que prevalece o princípio da irrelevância dos motivos, porquanto não integrantes do suporte fático do negócio e, por isso, não entram no mundo jurídico, não há falar em invalidação dos atos jurídicos por erro nos motivos. “Se A doou a B o relógio, crendo que foi B quem auxiliou o filho a salvar-se no banho de mar, ainda que B tenha conhecimento do erro, a doação vale” (MIRANDA, 2012, p.164).

Acontece que existem motivos que são elevados à categoria de condição determinante, ainda que não se confundam com a causa do negócio jurídico. Nesse sentido, o art. 140 do Código Civil de 2002 estabelece o seguinte: “O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante”.  

A lei e a vontade humana são as duas fontes de atribuição de relevância aos motivos, elevando-os à categoria de condição determinante. Como reza o art. 123, inciso II, do Código Civil de 2002, “Invalidam-se os negócios jurídicos que lhes são subordinados: as condições ilícitas ou de fazer coisa ilícita”. Assim, por força de lei, o ato ilícito é alçado à categoria de motivo relevante, rendendo ensejo à invalidação do negócio jurídico.  

No tocante à relevância dos motivos por atribuição de vontade, o Código Civil de 2002, em seu art. 166, inciso III, preconiza a nulidade do negócio jurídico quando “o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito”. Observe-se aqui a necessária exigência da comunhão de vontade entre os contratantes a respeito da ilicitude do motivo (CC/2002, arts. 122 e 187), sendo este o requisito para eleva-lo à categoria de condição determinante. Pontes de Miranda explica bem essa hipótese, inclusive ilustrando com exemplos:

“Para que a vontade faça relevante o motivo é preciso o acordo: não basta que o figurante esteja a par do motivo imoral do outro, e não de abstenha de praticar o ato jurídico. A doação à mulher casada, com quem o doador tivera relações sexuais, vale. Se o doador tinha intuitos imorais e o donatário não, ainda que conhecesse o motivo da doação, não há anulabilidade. O empréstimo que o dono do cassino toma para abrir banca de jogo é válido, ainda que o mutuante saiba do motivo” (MIRANDA, 2012, p.164).     

2. CAUSA E MOTIVO DO NEGÓCIO JURÍDICO NO DIREITO ESTRANGEIRO

Os sistemas jurídicos em geral se dividem entre causalistas e anticausalistas. Os primeiros, atribuem à causa o valor de elemento essencial à validade e eficácia do negócio jurídico; os segundos, negam à causa essa característica, conferindo efeito ao negócio jurídico independentemente da causa.

A França figura como uma tradicional representante da escola causalista. O art. 1.108 do Código Civil francês, relaciona a causa como um dos requisitos de validade dos contratos, ao lado do consentimento, da capacidade e do objeto determinado. Vários outros países igualmente enumeram a causa como requisito dos contratos: Código Civil italiano, art. 1.325; Código Civil argentino, art. 499; Código chileno, art. 1.145; Código belga, art. 1.108; Código uruguaio, art. 1.287; Código venezuelano, art. 1.141, Código espanhol e cubano, art. 1.261, dentre outros. O Código Civil Português, assim como o Código Civil brasileiro de 2002 (art. 140), não aponta a causa como requisito dos contratos, mas a ela faz referência nos arts. 657 a 660 e 292.

Por não fazerem qualquer referência à causa no negócio jurídico em seus diplomas civis, Suíça, Peru, México e Alemanha integram a chamada escola anticausalita. Na Alemanha, o BGB, no § 138, limita-se a prever a nulidade do negócio jurídico “que ofende os bons costumes”. A propósito, reforçando a posição anticausalista, o direito alemão não faz nenhuma distinção de tratamento entre os negócios jurídicos causais e os abstratos, estes últimos, a propósito, de criação germânica.

Em relação ao erro nos motivos, muito embora a tendência geral dos sistemas jurídicos seja afastá-lo da invalidação dos negócios, o BGB, no § 119, e o Código Civil português, no art. 252, conferem relevância aos motivos psicológicos na hipótese de erro sobre a qualidade essencial da coisa ou da pessoa, se intuitu personae o negócio.

Nos casos de dolo e coação, os sistemas jurídicos costumam conferir relevância aos motivos psicológicos de manifestação da vontade, o mesmo podendo ser dito em relação ao motivo ilícito. A respeito deste último, o Código Civil italiano, com fundamento no art. 1.418, prescreve a pena de nulidade do negócio jurídico quando a ilicitude for comum a ambas as partes, nas seguintes hipóteses: por causa ilícita (art. 1.343); contrato celebrado com fraude à lei (art. 1.344); por motivo ilícito (art. 1.345). Já o Código Civil português, no art. 281, apresenta a seguinte disposição: “Se apenas o fim do negócio jurídico for contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, o negócio só é nulo quando o fim for comum a ambas as partes”.  Neste particular, observe-se que as legislações italiana e portuguesa adotam o mesmo entendimento do Código Civil brasileiro de 2002 que, em seu art. 166, inciso III, preconiza a nulidade do negócio jurídico quando “o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito”.

CONCLUSÃO

Longe de ver pacificado o dissenso entre causalistas e anticausalistas, ambas as correntes doutrinárias convergem em reconhecer que a consideration, apontada pela jurisprudência anglo-norte americana, representa uma proteção importante a quem se obrigou sem causa. Nesse sentido, se alguém assumiu uma obrigação e não houve o correspectivo da parte contrária, a obrigação se extingue irremediavelmente.

Embora não o faça explicitamente, a legislação brasileira reconhece em várias situações a necessidade de uma causa para o negócio jurídico, ainda que não aponte a causa como requisito de validade dos contratos, como ocorre no direito francês. A exceção de contrato não cumprido, prevista no art. 476 do Código Civil de 2002, é hipótese típica do reconhecimento da existência de causa no negócio jurídico. As hipóteses de resolução das obrigações de dar coisa certa (CC/2002, arts. 234 e 238), de fazer (CC/2002, art. 248) e de não fazer (CC/2002, art. 250) são situações de reconhecimento da falta de causa no negócio jurídico. O mesmo pode ser dito com a nulidade da venda de coisa alheia. Também na repetição do indébito, cujo fundamento é a ausência de razão para a obrigação, vê-se que o locupletamento deriva da falta de causa para o negócio jurídico.

É de se concluir, portanto, que nosso direito civil optou por aderir à corrente causalista, porém sem o mesmo rigor adotado no direito francês. Além disso, resta nítida entre nós a distinção entre causa e motivo como razão determinante do negócio jurídico, como se infere da modificação operada no art. 90 do Código Civil de 1916, atual art. 140 do Código Civil de 2002.

 

Referências
ABREU, José, O negócio jurídico e sua teoria geral. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1988.
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico e declaração negocial: noções gerais e formação da declaração negocial. São Paulo, 1986. Tese (Professor Titular da USP).
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil.3. Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. São Paulo: Saraiva, 2014.
FREGNI, Gabriella. A eficácia dos direitos fundamentais na definição da base objetiva do negócio jurídico na direito brasileiro e no direito comparado. Dissertação de Mestrado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP. São Paulo: 2010.
MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. Parte especial. Tomo III; atualizado por Marcos Bernardes de Melo, Marcos Ehrhardt Jr. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY, Nelson. Código Civil comentado. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
 
Nota:   
[1] “Os motivos da contratação são definidos como considerações íntimas, psicológicas, pessoais, flexíveis e mutáveis utilizadas pelo contratante no estabelecimento do vínculo. São importantes balizas na decisão de cada parte ao contratar, mas não são levados ao conhecimento do outro contratante e, mesmo quando conhecidos pela parte contrária, não devem interferir na eficácia do negócio, sob pena de se abalar a segurança do negócio” (FREGNI, 2010, p. 8).


Informações Sobre o Autor

Madson Ottoni de Almeida Rodrigues

Juiz de Direito Titular da 9 Vara Cível da Comarca de Natal/RN. Aluno de Doutorado do Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito Área de Concentração: Efetividade do Direito; Linha de Pesquisa: Efetividade do Direito Privado e Liberdades Civis; Núcleo de Pesquisa: Direito Civil Comparado da PUCSP


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