Resumo: O presente artigo expõe a análise da busca pelo exercício pleno do direito de personalidade e da dignidade da pessoa humana pelo doente terminal atrelados à prática da eutanásia. Com o intuito de abrir precedentes para a possibilidade da legalização da eutanásia no Brasil, foi realizado um comparativo entre duas sociedades que, em que pesem possuírem realidades distintas, vislumbram um fundamento essencial em comum: um Estado democrático e livre. Brasil e Holanda visam a prática da eutanásia sob diferentes aspectos, todavia, ao longo do trabalho mostrou-se a possibilidade de adequar a prática da eutanásia aos parâmetros do ordenamento jurídico brasileiro, utilizando a essência do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito de personalidade atrelados às inovações do direito moderno. Ao final, concluiu-se pela nítida necessidade da adequação dos princípios e de alguns direitos regentes do ordenamento jurídico brasileiro às reais necessidades dos doentes terminais, dando mais empatia e humanização às normas, a fim de “desengessar” o que hoje entendemos como direitos e garantias fundamentais do ser humano.[1]
Palavras chave: Eutanásia, direito de personalidade, dignidade da pessoa humana, autonomia privada, Holanda.
Abstract: This article presents an analysis of the search for the full exercise of the right of personality and the dignity of the human person by the terminal patient linked to the practice of euthanasia. In order to open precedents for a possibility of the legalization of euthanasia in Brazil, a comparison was made between two societies that, although they may have different realities, envisage an essential common ground: a democratic and free State. Brazil and the Netherlands aim at the practice of euthanasia under different conditions. However, throughout the work, the possibility of adapting the practice of euthanasia to the parameters of the Brazilian legal system, using an essence of the principle of the dignity of the human person and making the right to Personality tied to the innovations of modern law. In the end, it was concluded that there was a clear need to adapt the principles and some regulative rights of the Brazilian legal system to the real needs of fundamental rights, giving more empathy and humanization to the norms, in order to “disengage” what we nowadays understand as rights and fundamental guarantees of the human being.
Keywords: Euthanasia, right of personality, dignity of the human person, private autonomy, Netherland.
Sumário: Introdução. 1. Eutanásia no Brasil. 2. Eutanásia na Holanda. 3. Efeitos da adaptação da lei holandesa no Brasil. 4. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
Ao longo da pesquisa realizada, notou-se que há uma busca incessante do homem pela completude da satisfação de suas necessidades mais intrínsecas, em especial aquelas garantidas através do direito de personalidade. Direito este que abarca tantas quantas dimensões forem necessárias para a reafirmação do homem como sujeito de direitos e deveres em uma sociedade. Como toda garantia, o direito de personalidade também encontra barreiras, limitações e conflitos quando posto diante de outros direitos que, consequentemente, podem acabar causando a constrição de seu livre exercício
Inicialmente foi realizado um breve levantamento da atual conjuntura brasileira acerca do assunto. Foi exposta a legislação penal brasileira e o parecer da sociedade médica (Conselho Federal de Medicina) que dá azo à criminalização de tal prática. Foram expostas também as visões de alguns autores renomados no cenário jurídico brasileiro, apontando as opiniões controversas existentes, contudo, extremamente importantes, pois dão fomento ao debate e amplas discussões acerca do tema, além disto, foram utilizados dois institutos norteadores ao trabalho que regem boa parte, se não a basilar, do ordenamento jurídico brasileiro: o princípio da dignidade humana e o direito de personalidade.
Adiante, apresentamos a lei holandesa que legaliza a eutanásia, analisando com minúcia os pontos mais importantes a serem considerados no referido regulamento, utilizando os parâmetros do princípio da dignidade da pessoa humana bem como do direito de personalidade, a fim de constituir uma base sólida hipotética da possibilidade de adesão da essência desta norma à sociedade brasileira. A escolha da Holanda como país paradigma deu-se de forma quase que óbvia e inevitável, por se dizer. Não é raro tal país figurar como modelo em questões que promovam relevantes e históricas revoluções e evoluções no campo do direito moderno, principalmente no que tange à autonomia do indivíduo, tratando com coragem assuntos que em muitos outros lugares se evita debater. O que desperta a atenção e corrobora com a aposta do presente trabalho em utilizar o modelo holandês como vitrine, se dá em especial, ao modo como questões polêmicas são encaradas pelo país sem que sejam desrespeitados ou reduzidos os fundamentos elementares constitutivos do Estado, primando sempre pelo bem estar do indivíduo.
A seguir, foi realizada uma demonstração positiva da eventual, e esperada, perfilhação do modelo legal holandês, baseado na plausibilidade de tal prática poder ser instituída dentro dos moldes do Estado de Direito no qual estamos inseridos. Sem deixar de considerarmos as implicações e complexidades que o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito de personalidade exigem, foram traçados vários aspectos que permeiam nosso cotidiano e nos fazem refletir não só no atual cenário legal brasileiro vivida atualmente, como também o valor que tem sido dado ao ser humano, fazendo surgir a dúvida se realmente temos sido sujeitos de direitos e deveres ou apenas receptores de uma norma tendenciosa imposta.
A EUTANÁSIA NO BRASIL
A eutanásia, objeto de estudo do presente trabalho, consiste na prática de antecipação da morte do indivíduo, utilizando métodos indolores e brandos, a fim de que este possa ter uma morte sem sofrimento. Daí a etimologia da palavra de origem grega: ευθανασία – ευ “bom”, θάνατος “morte”, significando “boa morte”, em sentido literal, também podendo ser interpretada como “morte benéfica” ou “morte fácil”.
Cumpre realizar uma breve distinção entre as duas modalidades existentes da prática da eutanásia, quais sejam: a eutanásia ativa e a eutanásia passiva.
Na modalidade ativa, é preciso que um terceiro, geralmente o médico, que, impulsionado pelo sentimento piedoso, atue, provocando a morte do indivíduo que assim deseja. A realização da prática exige que seja utilizado o método mais eficiente para que o paciente não sofra no momento de sua morte, suavizando os efeitos, para que a morte seja rápida e tranquila. No ato, geralmente é aplicada uma dose letal, que primeiro provoca a inconsciência do paciente para então, posteriormente, ter o coração paralisado.
Já a eutanásia passiva, também chamada de ortotanásia, consiste na abstenção do médico em continuar com o tratamento do paciente quando, em razão da ínfima ou nenhuma chance de melhora, o próprio paciente ou sua família por assim decidam. É chamada de eutanásia passiva, pois nestes casos o médico não age de forma efetiva para a morte do paciente, apenas cessa os meios terapêuticos deixando que a morte sobrevenha ao paciente de maneira natural. De todas as técnicas existentes, esta é a única atualmente permitida no Brasil.
Em tempo, cumpre expor ainda duas modalidades presentes no campo da medicina e também ligadas ao tema proposto que são a distanásia e o suicídio assistido.
A distanásia, ao contrário da eutanásia e da ortotanásia, é a prática que prolonga a vida do doente ao máximo, mesmo que os métodos de tratamento utilizados já não sejam mais úteis. Tal prática prolonga ainda mais o sofrimento do indivíduo que padece diariamente em detrimento de, nas palavras de Martin (apud SÁ, 2000, p.62) “[…] uma postura ligada especialmente aos paradigmas tecnocientífico e comercial empresarial da medicina”.
Quanto ao suicídio assistido, tem os mesmos preceitos da eutanásia, exceto no que condiz a ação do médico. Pois este, ao contrário da eutanásia, em nada contribui para a morte do paciente. O próprio paciente é quem toma as medidas cabíveis para que sua morte ocorra, também utilizando de meios indolores e não cruéis.
Vislumbra-se, ainda, os casos em que o suicídio assistido se torna impossível, devendo recorrer à eutanásia, caso o paciente assim requeira:
“Constata-se, porém, que o significado original da palavra foi evoluindo pouco a pouco no sentido de abarcar novas situações. Assim, a eutanásia, na atualidade, não se refere apenas aos casos de pacientes terminais que querem pôr fim aos seus sofrimentos através de uma morte rápida e indolor, mas abrange também hipóteses igualmente complexas, como as relacionadas à morte de recém-nascidos com malformações congênitas, de pacientes em estado vegetativo irreversível, embora não necessariamente terminais, e das vítimas de acidentes ou enfermidades cujos graves padecimentos lhes impedem provocar-se por si mesmas a própria morte (pacientes tetraplégicos e vítimas de doenças degenerativas como a esclerose laterial amiotrófica)”. (CARVALHO, 2011, p.163).
Apesar de seu caráter piedoso, a prática da eutanásia ativa no Brasil – em que pese não estar expressamente tipificada em seu específico termo – é considerada crime. A conduta foi absorvida pelo art. 121 do Código Penal, equiparando a eutanásia ao crime de homicídio: “Art. 121: Matar alguém. Pena: reclusão, de seis a vinte anos”. Atualmente, não há qualquer excludente de ilicitude que possa eximir o agente ativo desta conduta de sofrer sanção.
Há apenas uma atenuante contida no parágrafo primeiro do mesmo artigo que prevê a possibilidade de diminuição da pena “se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”, ato este chamado pela doutrina penal de “homicídio privilegiado”.
Pela exposição de motivos da Parte Especial do Código Penal Brasileiro onde está contida a tipificação do crime citado alhures, a justificativa dada ao homicídio praticado “por motivo de relevante valor social ou moral” é de que o motivo, em si mesmo é aprovado pela moral prática, denominando como exemplo o “homicídio eutanásico” – neste caso, no modo passivo. A controvérsia está no fato de que, apesar de reconhecida a conduta positivamente moral do médico, este continua passível de penalização, em que pese reduzida, caso haja da maneira considerada de “relevante valor social e moral”.
Além da existência dos aspectos religioso, econômico e social, fatores de grande relevância para o tema, ao presente trabalho cabe o enfoque da discussão no campo jurídico, tratando dos parâmetros essenciais que formarão pilares para a concretização de tal instituto e sua aplicação na sociedade brasileira.
É impossível tratar sobre a eutanásia e não estabelecer um liame entre esta e os princípios, direitos e garantias bem como deveres constitucionais e infraconstitucionais previstos. Preceitos estes que norteiam todo o ordenamento e firmam a base sólida do Estado Democrático de Direito no qual estamos inseridos.
Claro e evidente é o conflito existente atualmente entre os fundamentos, diretrizes e princípios basilares adotados pelo Estado brasileiro e a criminalização da eutanásia. A proibição de tal prática vai de encontro a tudo que é essencial ao ser humano e que, teoricamente, deveria revestir de tanto valor quanto o direito à vida. Impedir o indivíduo de optar pelo momento de sua morte em determinadas situações é privá-lo ao exercício de suas garantias mais básicas enquanto sujeito de direitos.
Diante deste conflito, o marco teórico do presente trabalho tem por base o questionamento retórico feito pela ilustre autora Maria Freire de Sá, em sua obra “Direito de morrer” (2000) onde é levantada a seguinte indagação:
“[…] como garantir a efetividade do princípio da igualdade entre pessoas sãs e sadias, que têm a vida atrelada à saúde do corpo e da mente, e aquelas que sofrem as consequências de doenças várias, tendo a vida, nestes casos, se transformado em dever de sofrimento? A resposta está exatamente na liberdade de escolha para os indivíduos que se encontram na segunda situação mencionada. É inadmissível que o direito à vida, constitucionalmente garantido, se transforme em dever de sofrimento e, por isso, dever de viver. Certo é que a dignidade deve aliar duas dimensões ao seu conceito: a dimensão biológica, quanto ao seu aspecto físico-corporal, e à dimensão biográfica, que pertine ao campo dos valores, crenças e opções. E o Direito não pode preocupar-se somente com a primeira questão, mas, ao contrário, buscar a unidade do ser humano. A indisponibilidade da vida precisa ceder à autonomia daquela pessoa que se encontra na fase terminal da vida, em meio a agonia, sofrimento e limitações”. (SÁ, 2000, p.192).
Seguindo esta linha de raciocínio, a primeira indagação pertinente a se fazer é a seguinte: deve o Direito se ocupar de tal assunto? Isto porque, atualmente, tem o Direito abarcado muitos conflitos para si, tornando-se verdadeiro centro de absorção de todos os problemas sociais cotidianos, funcionando como uma espécie de “para-raios” para todas as grandes polêmicas que surgem e que, inevitavelmente causam grande impacto nos indivíduos.
Pois bem, sendo o presente tema um assunto primórdio da medicina, cabe a esta a obrigação da análise e exposição da visão médica acerca de tudo que orbita neste sentido. O que de fato o fez o Conselho Federal de Medicina (CFM) brasileiro, expondo seu posicionamento contrário à da prática da eutanásia através do Código de Ética Médica (Resolução n.1.931/2009):
“Capítulo V: É vedado ao médico: […]
Art.41: Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. (CFM, 2009)
Contudo, o CFM é favorável à prática da ortotanásia sob o enfoque da Resolução nº 1.805/2006, que dispõe:
“Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.
§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.
Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.
Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário”. (CFM, 2006)
Assim, nota-se que a visão da medicina brasileira tende a se solidarizar com o paciente em estado terminal e irreversível, porém, se abstém de conferir responsabilidade ao profissional de poder/dever praticar a eutanásia a pedido de seu paciente. É crível que na atual conjuntura todo cuidado seja pouco em se tratando da relação médico paciente. É cultural que as pessoas tendam a enxergar no médico a figura inabalável de um instrumento percussor da cura. De um médico nunca se espera o desengano, a cessão das tentativas, a possibilidade do fim da vida. Como se a este profissional fosse proibido “não curar”. Este status conferido ao médico, por óbvio, reflete na maneira como a sociedade médica se porta perante seus pacientes. Sempre com o intuito de zelar pela crença difundida, mantendo a confiabilidade e crédito ao profissional de exímio “salvador”.
Apesar do caráter louvável da profissão, infinitas vezes merecedora de toda a gratidão e respeito, não se pode olvidar que como em todas as demais áreas, a medicina é exercida por seres humanos, tão sensíveis a dor do outro quanto qualquer familiar, amigo ou mesmo do próprio paciente. Este fardo que o profissional carrega se transmite na sua conduta irredutível de não permitir, seja qual o motivo for, de pôr fim à vida daquele que sofre, mesmo que tal decisão parta de sua livre e espontânea vontade.
Não se pode desconsiderar a relação médico-paciente que é criada ao longo do tempo de tratamento. Neste lapso temporal, há certa envolvência que estreita os laços, fazendo nascer verdadeira empatia às necessidades do outro. Nestes casos, é que se torna mais importante ainda o cuidado com o bem-estar daquele que sofre. Não parece crível que sejam diminuídos, desconsiderados ou relevados os direitos do paciente em razão de seu estado clínico, quando é criado, nas palavras de Brunello Souza Stancioli (2004, p.25) verdadeira “objetificação do homem”, o que veremos mais detalhadamente nos capítulos subseqüentes.
Verificado, pois, que o CFM, instituto legítimo representante da sociedade médica já se posicionou acerca do assunto, permite-se afirmar que resta ao Direito analisar os desdobramentos de tal impedimento perante a sociedade e seu impacto sobre os exercícios dos direitos básicos do indivíduo. Deste modo, verifica-se relevante o intuito jurídico do presente trabalho em atrelar a realidade do cenário brasileiro com a possibilidade de uma revolução no campo médico a fim de balizar tanto os direitos dos médicos e corpo clínico quanto os direitos dos pacientes, sem ferir os princípios básicos que dão tônica e base para sua garantia e exercício.
Neste compasso, como decorrência normal de todo assunto polêmico que gere grandes debates dando azo a grandes opiniões controversas, há doutrinadores positivos e contrários à prática da eutanásia no campo jurídico brasileiro, cabendo a nós expô-los e analisá-los.
A autora Maria Helena Diniz se posiciona contrária à prática alegando ser arriscada a liberação da eutanásia dada à possibilidade de eventual diagnóstico errôneo, abuso do poder médico ou familiar e abertura de precedentes para a eutanásia involuntária. Sob o argumento de que “o único objetivo da medicina é fazer o bem em prol da vida”, a autora, esteada no Código de Ética Médica, conclui que “a eutanásia ou morte piedosa não envolve o direito de matar, sendo sempre um homicídio, mesmo que o paciente esteja condenado a morte próxima e em prolongado sofrimento” (DINIZ, 2014, p. 496 e 497).
Outros autores também se mostram desfavoráveis à tal prática. Alegando a hipótese do questionável valor jurídico do consentimento do paciente terminal:
“SISSELA BOK expressa grande preocupação em relação à impossibilidade prática de se verificar com certeza se o consentimento do paciente advém de sua vontade livre ou da aquiescência irresignada dos desejos de seus parentes e de outras pessoas, ou ainda, de estado depressivo ou de uma visão equivocada do diagnóstico ou prognóstico” (BOK apud VIEIRA, 2004, p. 204)
O desvirtuamento do princípio da dignidade da pessoa humana também é traduzido pela autora Mônica Silveira Vieira:
“[…]a subjetivação do princípio da dignidade da pessoa humana é absurda e desvirtua e contraria a Constituição da República, permitindo às pessoas manipularem este princípio de forma a legitimar todo e qualquer ato de disposição da vida, inclusive da vida alheia. […] especialmente com base nas ideias de VALADIER, trata-se de uma ideia muito diversa do verdadeiro significado da dignidade da pessoa, decorrente de uma lógica individualista, egoística, utilitarista, elegendo como medida da dignidade de cada um a imagem que a pessoa tem de si própria”. (VALADIER apud VIEIRA, 2004, p. 198 e 199)
Em que pese as preocupações suscitadas serem válidas por recaírem sobre elementos básicos da preservação à vida e segurança do doente, urge salientar os conflitos que toda prática relevante como a eutanásia podem acarretar. Todavia, isto não quer dizer que a sua proibição também não gere conflitos.
O princípio da dignidade da pessoa humana trouxe com o seu surgimento várias indagações acerca de sua essência. Inúmeras foram as conceituações. Ainda hoje busca-se a construção deste mandamento incorporado por muitos países, todavia, ainda não totalmente exitosa a sua aplicação.
Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p.67), o princípio da dignidade da pessoa humana:
“[…] embora esteja atrelado à evolução história do Direito Privado, ela tornou-se também um dos pilares do Direito Público, na medida em que é o fundamento primeiro da ordem constitucional, portanto, vértice do Estado de Direito.”
O autor vai além e conceitua o referido princípio como sendo uma espécie da macroprincípio que abrange tantos outros direitos e valores essenciais, resultado de lutas e conquistas políticas, além considerar que “a dignidade passou a ser princípio e fim do Direito” (PEREIRA, 2004, p. 67).
Aprofundando no tema, o autor ainda faz uma análise da dignidade em Kant, e considera:
“Kant afirma de forma inovadora que o homem não deve jamais ser transformado num instrumento para a ação de outrem. Embora o mundo da prática permita que certas coisas ou certos seres sejam utilizados como meios para a obtenção de determinados fins ou determinadas ações, e embora também não seja incomum historicamente que os próprios seres humanos sejam utilizados como tais meios, a natureza humana é de tal ordem que exige que o homem não se torne instrumento da ação ou da vontade de quem quer que seja. Em outras palavras, embora os homens tendam a fazer dos outros homens instrumento ou meios para suas próprias vontades ou fins, isso é uma afronta ao próprio homem. É que o homem, sendo dotado de consciência moral, tem um valor que o torna sem preço, que o põe acima de qualquer especulação material, isto é, coloca-o acima da condição de coisa. Ao tratar disso na Fundamentação da Metafísica dos costumes, Kant é explícito em seus termos. O valor intrínseco que faz do homem um ser superior às coisas (que podem receber preço) é a dignidade; e considerar o homem um ser que não pode ser tratado ou avaliado como coisa implica conceber uma denominação mais específica ao próprio homem: pessoa. Assim, o homem, em Kant, é decididamente um ser superior na ordem da natureza e das coisas. Por conter essa dignidade, esse valor intrínseco, sem preço e acima de qualquer preço, que faz dele pessoa, ou seja, um ser dotado de consciência racional e moral, e por isso mesmo capaz de responsabilidade e liberdade”. (PEREIRA, 2004, p.68)
Partindo deste pressuposto, conseguimos estabelecer precedentes sólidos para a aceitação da eutanásia como prática legal. Pois, pela simples apreensão do exposto nas palavras do autor que utilizou como base a obra de Kant, pioneira e difusora da dignidade humana, já é possível depreender que inexiste dignidade sem autonomia do ser, e isto inclui a promoção da sua liberdade em qualquer situação que se encontre. Não há vida digna, portanto, se todos os demais elementos a ela intrínsecos restam limitados, reprimidos, lesados.
Sob o prisma da dignidade, liberdade e autonomia da pessoa humana, outros autores também se posicionaram favoráveis à prática da eutanásia. Antes de adentrarmos nas explanações de alguns destes defensores, ressalta-se que o presente trabalho tem por escopo analisar a eutanásia apenas sobre o prisma do doente terminal sem qualquer perspectiva de cura e que em razão disto, traga consigo a terrível dor física e psicológica causada por sua moléstia.
Sensível a estas pessoas que padecem diariamente o desengano e a angústia, esta obra se dispõe a expor as mazelas do ordenamento jurídico brasileiro de modo a abrir espaço para que as vontades destas pessoas também sejam ouvidas, e não que sejam ligadas a estereótipos em razão de sua enfermidade, reduzindo-as a sujeitos sem capacidade de discernimento e escolha.
Neste passo, conforme detalhado na obra de Mônica Silveira Vieira (2004, p. 162 a 182), posicionam-se os autores Rachel Sztajn, José Idelfonso Bizzato, Evandro Corrêa de Menezes, dentre outros, pela defesa da eutanásia sob os aspectos ligados à solidariedade ao doente, à vida como um direito fundamental desde que se possa viver bem, ao direito de não sofrer e da autonomia do paciente e dos direitos humanos de um modo geral.
Mais além vai a autora Maria de Fátima Freire de Sá que propõe a existência do “direito de morrer”, sustentando que este “deve ser visto como viável àquelas pessoas que só veem a vida como dever de sofrimento, sem a mínima perspectiva de melhora de suas dores físicas e/ou psíquicas” (SÁ, 2000, p. 208).
A EUTANÁSIA NA HOLANDA
A legalização da eutanásia e do suicídio assistido na Holanda foi instituída 2001, quando o país decidiu por legalizar tal prática, dentro dos parâmetros previstos no Regulamento intitulado “Término da Vida e Suicídio Assistido sob solicitação” (tradução livre)[2].
Apesar do pioneirismo, a Holanda não se desvencilha dos conflitos internos ideológicos existentes, pois, naturalmente há aqueles contrários à legalização da eutanásia.
Nas palavras da doutrinadora Maria Helena Diniz (2009, p. 490), por exemplo, “Na Holanda, o suicídio assistido, na verdade, não passa de uma dissimulação de participação criminosa em suicídio”. Todavia, o legislador holandês não deixou margem para tais interpretações, posto que no ato de tal disposição, regulamentou a prática, indicando, detalhada e estritamente, os casos em que a eutanásia e suicídio assistido são cabíveis.
O artigo 293 do Código Penal Holandês assim dispõe²: 1. Quem rescindir a vida de outro a seu pedido expresso e sincero será punido com prisão não superior a doze anos ou multa. 2 O fato referido na subseção não é punível se for cometido por um médico, atendendo aos requisitos de devida diligência, referido no Artigo 2 do ato “Término da Vida e Suicídio Assistido sob solicitação” e deve comunicá-los ao forense municipal de acordo com o Artigo 7, segundo parágrafo da Lei de sepultamento e cremação (tradução livre). [3]
De acordo com o referido dispositivo penal holandês, qualquer ação destinada a encerrar a vida é, em princípio, uma infração penal. A única isenção da responsabilidade criminal é o caso de um paciente estar submetido a sofrimento insuportável sem perspectivas de melhoria e o médico assistente cumpre os critérios legais de cuidados devidos.
Passamos então, à análise minuciosa do Regulamento. O art. 2º determina os requisitos a serem observados no procedimento. São eles: a) convicção do médico de que havia um pedido voluntário e bem ponderado do paciente; b) a convicção de que havia sofrimento insuportável do paciente; c) o paciente deve ser informado sobre a situação na qual se encontra e sobre suas perspectivas; d) que o paciente conclua que a sua situação seja irreversível; e) que pelo menos um outro médico independente tenha diagnosticado o paciente e dado um parecer escrito sobre os critérios de cuidados devidos previstos nas alíneas anteriores, ratificando o fato; f) que a prática da eutanásia ou o suicídio assistido sejam feitos cuidadosamente.[4]
Observa-se, portanto, que os casos aptos a não configurarem a ilicitude da eutanásia se limitam a estritas hipóteses, visando primordialmente o bem-estar do paciente terminal. Tal comportamento mostra nitidamente não só a preocupação com o paciente terminal em razão de sua atual condição, mas, sobretudo, ao atendimento de sua necessidade enquanto ser humano e sujeito de direitos. Nas palavras de STANCIOLI (2004, p.25) o que é costumeiro ver atualmente, principalmente no cenário brasileiro, é a relação médico-paciente limitada à “objetificação do homem”, que assim dispõe:
“A primeira forma de objetificação é o status imposto pelo isolamento e consequente segregação do enfermo. (…) A segunda forma (…) é sua classificação científica. (…) O indivíduo passa a assumir o contorno específico de sua doença, deixando de ser “normal” para ser aidético, canceroso etc. A terceira forma (…) é a reconstrução de seu ego. Através de um aparato linguístico, o paciente internaliza recomendações médicas. E o
faz, pelo temor das consequências (veladas, sugeridas, supostamente graves), caso desobedeça o profissional da saúde. Suporta, assim, passivamente, várias formas de tratamento, mesmo que lhes sejam desconhecidas ou desagradáveis”. (FOCAULT, apud STANCIOLI, 2004, p.25)
Importante é observação feita pelo autor, pois, partindo do pressuposto de que tal “objetificação” é real, nota-se verdadeira afronta ao direito de personalidade intrínseco ao indivíduo, que em razão de sua doença deixa de ser dono de si (mente e corpo) e passa a ser mero instrumento de tratamento médico e da vontade egoísta de seus familiares.
Cumpre ressaltar que a essência do direito de personalidade é a promoção pela vida humana e tudo aquilo a ela intimamente vinculado. Vários são os doutrinadores que já conceituaram tal direito, dando-lhe características e classificando seus desdobramentos, sendo os mais comuns e reconhecidos: o direito à vida, à saúde e à incolumidade; direito à honra; direito à liberdade; direito à identidade pessoal; direito à liberdade de consciência e de religião; direito de livre manifestação, dentre tantos outros¹. E todos abarcados pela Constituição Federal da República do Brasil de 1988.
Desta forma, a partir do momento em que o Estado, o corpo clínico (profissionais) e a família é que decidem sobre a vida do enfermo, sem que se respeite a sua vontade, tem-se por violado o direito de personalidade e consequentemente todas as demais modalidades a ele interligadas.
Outra preocupação importante por parte do legislador holandês foi a observância da autonomia privada não só do paciente, como também do médico. A posição do governo holandês é de que os médicos não são obrigados a conceder um pedido de eutanásia. Um médico que não quer realizar o próprio procedimento deve discutir isso com o paciente e pode decidir encaminhá-lo para outro médico[5].
Quanto à autonomia do paciente, Brunello Souza Stancioli dispõe brilhantemente, utilizando do modelo de Beauchamp e Faden, no seguinte sentido: “[…] três são, ao menos, os requisitos necessários para que um indivíduo realize um ato autônomo: a) Compreensão; b) Intenção; c) Ausência de influências controladoras.” (STANCIOLI, 2004, p. 34 a 42). Sendo que, no que tange à compreensão, é necessário que o paciente esteja ciente de suas reais condições, tratamentos aos quais será submetido e suas chances de cura ou não. Já quanto à intenção, é preciso que o paciente saiba do risco imposto e compartilhe desta responsabilidade conjuntamente com o profissional médico. E, por fim, que o médico (e todo corpo clínico) não deixe que seu conhecimento técnico afete nas decisões do paciente, sendo necessário que este último sempre questione as imposições daqueles. Baseado nesta relação de confiança estabelecida entre médico e paciente, a autonomia privada estaria plenamente atingida.
Há aqueles que dão à eutanásia a qualidade de conduta arbitrária e equivocada, exaltando a esperança em uma cura sequer cogitada:
“A incurabilidade, a insuportabilidade da dor e a inutilidade do tratamento não justificam a eutanásia porque: a) a incurabilidade é prognóstico, e como tal falível é, e, além disso, a qualquer momento pode surgir novo e eficaz meio terapêutico ou uma técnica de cura. No passado, a lepra, a tuberculose e a sífilis eram incuráveis. Hoje, com o progresso da ciência, a sua cura é possível”. (DINIZ, 2014, p.498).
Todavia, esquecem as pessoas de que a dor do outro é inestimável, e quem a sente tem pressa. Cada minuto vivido pode tornar-se verdadeiro tormento quando se espera por algo imprevisível. De maneira alguma questiona-se a fé e a crença do indivíduo em sua cura, ao contrário, a conduta é louvável e exemplar. Contudo, não se pode impor a alguém que espere por algo que não acredite, ou que aguente por mais alguns dias, meses, ou até anos, a existência de um método curativo para a sua enfermidade. Aqui, não se trata de medir a resistência do doente, mas sim de aliviá-lo o pesado e angustiante fardo que carrega.
Por fim, quanto às formalidades de fiscalização do procedimento da eutanásia, o Regulamento dispõe que cada caso de eutanásia e suicídio assistido deve ser relatado em 1 dos 5 comitês regionais de revisão da eutanásia. O comitê julgará se o médico tomou o devido cuidado. Esses comitês compreendem, no mínimo, um médico, um ético e um especialista jurídico. O procedimento do comitê de revisão destina-se a garantir uma maior transparência e consistência na forma como os casos são reportados e avaliados. O médico deve observar tais procedimentos sob pena de incorrer na pena por homicídio prevista no art. 294 do Código Penal Holandês[6].
Apesar do exemplo da legislação holandesa, é importante esclarecer a importância de cada sociedade buscar, por si própria, as soluções para os seus problemas de acordo com a sua própria realidade, aquilo que segundo a autora Mônica Silveira Vieira (2004, p.303) “Experiências estrangeiras têm sua utilidade como subsídio para encontrar uma solução própria, mas jamais devem ser adotadas como resposta pronta para os problemas brasileiros.”.
EFEITOS DA ADAPTAÇÃO DA LEI HOLANDESA NO BRASIL
O fato de que Brasil e Holanda são países que têm em comum os valores constitutivos de Estado, que primam pela promoção dos direitos fundamentais (direitos humanos, sociais e democráticos)[7], torna a possibilidade da legalização da eutanásia ainda mais próxima e razoável.
Não se pode olvidar das dificuldades que serão impostas ao longo do caminho por fatores externos que, apesar de não deverem ser considerados como aspectos primordiais, causam demasiada interferência nos direitos ora discutidos. A exemplo disto, a religião é um fator que incide a todo momento e tem grande participação na criminalização da eutanásia. Não obstante o legislador ter o dever de agir com racionalidade, muitas vezes este se deixa influenciar pelo apelo emocional de certos grupos, deixando prevalecer o caráter parcial de suas normas.
Nos ensinamentos de DINIZ (2014, p.483):
“No século XXI é imprescindível que o legislador, o aplicador do direito e o jurista reflitam sobre esses tormentosos problemas, ante o seu conteúdo altamente axiológico, sem olvidarem que a dignidade da pessoa humana é o valor fonte legitimador de todo o ordenamento jurídico. A consciência jurídica atual, diante da indiferença de um mundo tecnicista e insensível, precisa ficar atenta à maior de todas as conquistas: o respeito absoluto e irrestrito pela dignidade humana, que passa a ser um compromisso inafastável e um dos desafios para o século XXI.”
Outro fator externo que tem forte influência sobre a criminalização da eutanásia é o resguardo exacerbado da conduta médica na relação com o paciente. Ao longo da história a figura do profissional da medicina foi construída para ser o modelo de exímio salvador e curador de todos os males. Sequer cogita-se a hipótese da falibilidade humana, e qualquer erro pode ser fatal. Deste modo, a sociedade médica tenta se cercar ao máixmo, da possibilidade da responsabilização pela falha. A eutanásia praticada pelo médico lhe retiraria, portanto, o caráter “heroico” subjetivo.
Através desta conduta é que se nota como a autonomia do paciente é infringida, sufocada, limitada e ignorada a todo tempo na relação médico-paciente. A exemplo disto, o art. 34 do Código de Ética Médica faculta ao médico informar ou não ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano. Ou seja, o paciente sequer terá a informação de seu estado clínico, que poderá ser repassado a terceiros e não a este, que é o principal interessado.
Neste mesmo aspecto do direito à informação, urge ressaltar o papel importante do consentimento informado do paciente no que tange às suas disposições em relação aos cuidados médicos que este porventura venha a receber. O Código de Nuremberg, difusor dos direitos de personalidade na era Pós Segunda Guerra Mundial, que serviu como “inspiração para Códigos de Ética posteriores” (STANCIOLI, 2004, p. 49 a 54), prima pela essencialidade do consentimento informado do paciente, passando a servir não apenas para pesquisas, mas para qualquer outro tipo de intervenção médica.
Neste caso, entende-se ser completamente possível a admissibilidade do Testamento Vital[8], para atingir o fim desejado que é a autonomia do paciente.
Apesar de tais disposições estarem previstas pelo CFM através da Resolução nº 1.995/2012, estas não abarcam a possibilidade de escolha do paciente pela eutanásia. Com fulcro em todos os institutos já analisados no presente trabalho, também seria possível a admissibilidade de tais disposições para o fim eutanásico. Desta forma, seria derrubada a concepção de muitos doutrinadores contrários à eutanásia acerca de eventual vício na vontade do paciente com o intuito de descredibilizar a eutanásia.
Noutro giro, é preciso também que seja repensada a interferência familiar quando da opção do doente pela eutanásia. Importante esclarecer que o conceito de “família” aqui, abrange todos os demais componentes de uma relação afetiva e/ou de afinidade entre o paciente e as demais pessoas de seu círculo social. A família nunca está preparada para enfrentar uma questão tão delicada como esta. Apesar do apelo emotivo que a situação carrega, não se pode negar que pior do que ver a vida de um querido ser abreviada, é vê-lo padecer diariamente “na carne, na pele, na mente e no coração” (VIEIRA, 2004, p.175). Por isto, além de requerer empatia ao doente que se encontre nestas condições, também é preciso haver respeito à sua escolha. Pois imensurável é a dor daquele sofre, mas ainda vive, apenas para ceder aos caprichos da família que o ama demais para perdê-lo.
Por outro lado, há também os doentes que sofrem a indiferença da família. Muitas vezes em razão de sua inutilidade, são ignorados, desprezados, esquecidos. O abandono afetivo também contribui para a dor psíquica, ficando o indivíduo fadado à indignidade. Sendo a dignidade da pessoa humana, pois, “o valor do ser humano em si mesmo e não um meio para os fins dos outros” (RIZZATO NUNES, apud VIEIRA, 2004, p. 39), a legalização da eutanásia neste caso resgata a natureza deste princípio, hoje, porém, por vezes deturpado, juntamente com os direitos de personalidade, que nas sábias palavras de ASCENSÃO (apud VIEIRA, 2004, p. 51 e 52):
“A sociedade em que vivemos só festeja tão gostosamente os direitos da personalidade porque os deturpa. Na sua densidade ética, a categoria é-lhe incompreensível. A crise do Direito de Personalidade é na realidade tão grande que leva a fazer inverter o sinal a este ramo do direito. O que deveria ser o direito da pessoa ontológica transformou-se no puro direito dos egoísmos individuais. Os direitos de personalidade ganham cariz anti-social, perdendo o sentido de comunhão de solidariedade que lhes é constitutivo. […] A transformação do direito de personalidade em uma grandeza meramente negativa descaracteriza-o. O elemento personalístico perdeu-se. Espelha a sociedade desumanizada que se generaliza e a definição do outro como inimigo; mas nas antípodas do sentido ético do Direito da Personalidade.”
A realidade hoje vivida no Brasil em razão da falta de escolha ao doente terminal quanto à eutanásia, pode ser ilustrada metaforicamente em uma passagem na obra de Maria Helena Diniz, onde a doutrinadora expõe um interessante caso narrado por John Hansen:
“[…] três missionários aprisionados por canibais puderam escolher entre a morte ou a mamba, serpente africana cuja picada provoca grande sofrimento antes de causar a morte. Dois deles optaram pela mamba e, antes de faleceram, sofreram a mais torturante das agonias. O terceiro, ante isso, implorou pela morte, mas o chefe da tribo respondeu-lhe: morte você terá, mas primeiro um pouquinho de mamba. E indagou Hansen: “não seria isso o que ocorre nas Unidades de Terapia Intensiva dos modernos hospitais?” (DINIZ, 2014, p.512 e 513)
Portanto, valioso seria tanto para a evolução do direito brasileiro quanto para a evolução humana, a legalização da eutanásia. De modo a evitar que o ser humano seja exposto a tamanha situação indigna em todos os sentidos. Salienta-se, mais uma vez, o dever de promover a vida digna, e não a desvalorização desta.
Assim, o presente trabalho defende a legalização da prática da eutanásia no Brasil, utilizando de toda a base legal e fática já exposta, sob as seguintes condições concomitantes: a) que seja livre e consciente a manifestação de vontade do paciente que sofra de doença incurável, já em estágio terminal, cujo quadro clínico seja irreversível; b) que sua condição lhe cause sofrimento físico e psíquico insuportável e inestimável; c) que este diagnóstico seja atestado, pelo menos, por mais um médico alheio à relação do indivíduo e de seu médico de confiança; d) que tal prática seja realizada por médico de modo puramente altruísta; e) que o doente receba acompanhamento psicológico desde sua opção pela eutanásia até o último dia de vida, sendo tal escolha renunciável a qualquer tempo e, por fim, f) que haja fiscalização do Poder Público, bem como da sociedade médica quanto aos casos existentes e seu regular procedimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto, considera-se atingido o objetivo do presente trabalho, qual seja, o de discutir as inúmeras possibilidades da efetiva descriminalização da eutanásia no Brasil. Isto porque, foram constatados diversos fatores principiológicos diretivos e garantidores que dão azo à recepção de tal prática pela sociedade brasileira.
O real sentido do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito de personalidade merecem ser repensados e reajustados à realidade hoje vivida. As necessidades humanas se transformam constantemente, e é natural que o entendimento que se tinha há anos atrás sobre um mesmo assunto hoje já tenha perdido sua razão de ser. Por isto, o Direito tem que buscar esta constante evolução, de maneira a tentar acompanhar os passos largos, apressados e insaciáveis da humanidade.
O termo “flexibilização” dos princípios tão comumente utilizado para justificar tais mudanças, aqui, deve perder espaço para um vocábulo mais apropriado: amoldamento. Isto porque, a flexibilização traz a ideia de algo que foi feito para ser de uma única e determinada forma e que dado um certo momento, passou a ser mais abrangente. Quanto ao tema tratado, cabe falar no amoldamento do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos de personalidade, pois estes já carregam consigo a essência de o serem, restando apenas a sua correta aplicação a cada caso concreto, diante da realidade e necessidade daqueles que o compõe.
Outro ponto conclusivo atingido foi o da necessidade urgente da humanização por parte do ordenamento jurídico e legislativo brasileiro, da sociedade médica e também das pessoas comuns acerca da eutanásia. Por motivos óbvios de empatia e solidariedade ao próximo, se esquivar de encarar o problema latente que existe hoje na maioria dos hospitais brasileiros é evidenciar o descaso com o próximo que sofre e luta pelos seus direitos diminuídos em razão de sua condição clínica.
Ademais, ao sugerir as condições específicas às quais deve-se delimitar a eutanásia, garante ao instituto maior idoneidade e transparência, de modo a evitar fraudes ou banalizações. Na Holanda, antes mesmo de haver o regulamento específico para a prática da eutanásia, já existia, em 1993, a “Lei do Enterro”[9] (tradução livre), que dava margem para tal prática, isentando os médicos de configurarem como réus em eventuais ações penais em razão da prática. Assim, em 2001, após longos e reflexivos debates acerca do tema, o país delimitou a abrangência da prática da eutanásia, revestindo o ato de caráter formal e ético.
Não obstante as diversas opiniões contrárias existentes e a grande dificuldade na implantação deste instituto, é preciso nos desnudar de toda interferência religiosa, cultural e política alheia ao real sentido do bem-estar do homem. O pensamento racional deve se insurgir e prevalecer contra qualquer misticismo que envolva a morte, a qual devemos entender como consequência natural da vida, razões que encontram alento nos ensinamentos de (Dworkin, 2003, p.280):
“[…] A morte domina porque não é apenas o começo do nada, mas o fim de tudo, e o modo como pensamos e falamos sobre a morte – a ênfase que colocamos no “morrer com dignidade” – mostra como é importante que a vida termine apropriadamente, que a morte seja um reflexo do modo como desejamos ter vivido”.
Isto impõe dizer que o direito à vida não deve ser estabelecido a todo custo, uma vez que “não basta apenas haver o direito de continuar vivo como também o de ter uma vida digna quanto à subsistência” (MORAES, 2009, p.36). A legislação holandesa analisada como modelo abre precedentes para a aceitação da eutanásia como sendo um desdobramento natural na relação médico-paciente, sem que lhes seja retirada a autonomia, podendo ambos optarem pela prática/submissão à eutanásia, ou não. Ademais, os requisitos sugeridos para a realização da eutanásia garantem maior segurança e confiança no procedimento, conferindo legalidade ao ato, visando, a todo momento, dedicar cuidados médicos ao paciente da maneira mais adequada e afetuosa possível.
Informações Sobre o Autor
Ana Carolina dos Santos.
Advogada. Pós-graduanda em Advocacia Trabalhista pela ESA/OABMG. Graduada em Direito pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais FEAD