Ciro Rangel Azevedo
Resumo: Este artigo tem por propósito trazer um panorama geral das características dos Contratos EPC, que assumiram papel relevante na estruturação jurídica de projetos de infraestrutura no Brasil ao longo da última década. Tratam-se de contratos de alta sofisticação, caracterizados com complexa sistemática de alocação de riscos entre as partes envolvidas. Seu regime jurídico se insere no contexto dos contratos atípicos mistos.
Palavras-chave: Contrato EPC. Riscos. Características. Empreitada.
Abstract: The purpose of this article is to present an overview of the main features of the EPC Contracts which played an important role regarding the legal structure of infrastructure projects in Brazil throughout the past decade. These are sophisticated contracts characterized by a complex risk allocation methodology between the contracting parties. The legal framework is inserted in the context of the atypical agreements.
Keywords: EPC Contract. Risks. Features. Construction Contracts.
Sumário:Introdução. 1. Os Contratos EPC. 1.1. Características Gerais. 1.2. Natureza Jurídica. 1.3. Contrato de Empreitada e o Contrato EPC. Conclusão.
INTRODUÇÃO
O segmento de infraestrutura é marcado pela realização de complexos projetos de infraestrutura submetidos a um sofisticado regime jurídico-contratual entres os diversos agentes envolvidos, incluindo empreendedor, financiador, construtor, seguradores, dentre outros.
Dentro deste contexto, emergem os denominados Contratos EPC, instrumentos contratuais usualmente adotados neste segmento com o objetivo de disciplinar a relação jurídica entre o empreendedor ou dono da obra e o contratado responsável pela implantação do empreendimento.
Diante do protagonismo assumido por este modelo contratual nos empreendimentos de construção no Brasil, o presente artigo tem por objetivo trazer as características essenciais dos Contratos EPC a partir da regência da legislação brasileira.
1 OS CONTRATOS EPC
1.1 Características Gerais
Nos Contratos EPC, as partes contratantes são representadas pelo dono da obra, sendo este o empreendedor direto na implantação do projeto de infraestrutura para sua posterior exploração comercial; e o contratado responsável pela implantação do empreendimento, também denominado de “Epecista”, o qual ficará responsável pela construção e entrega do empreendimento já em condições operacionais.
A sigla EPC traduz os seguintes escopos assumidos pelo Epecista, a saber: (i) Engineering – o Epecista assume a obrigação de elaborar os projetos de engenharia referentes ao empreendimento de infraestrutura; (ii) Procurement – o Epecista se responsabiliza pelo fornecimento dos materiais e equipamentos necessários; e (iii) Construction – o Epecista se obriga a executar a etapa de construção do empreendimento.
Neste sentido, ensina Leonardo Toledo da Silva:
A perspectiva de escopo pode ser inferida pela própria sigla EPC (do inglês, engineering, procurement and construction), que se refere à atribuição em um único agente de toda a responsabilidade pelo escopo de implantação do empreendimento, desde a fase de engenharia e suprimento até a total construção, montagem (quando for o caso) e o início de operação do empreendimento, em conformidade com os requisitos técnicos de qualidade, segurança e desempenho estabelecidos pelo dono da obra. Evita-se, dessa forma, que, falhas de uma fase de implantação, especialmente a fase de engenharia, impactem o custo e o cronograma de implantação das fases seguintes, as quais são a ela, engenharia, intrinsecamente vinculadas. [1] (Grifos nossos)
No Brasil, via de regra, o Epecista, em ordem a cumprir com todos os escopos de trabalho inerentes ao regime de EPC, é representado por consórcio empresarial ou eventualmente sociedade de propósito específico – SPE constituído (a) por/pelas empresas especializadas em cada escopo de trabalho integrante de um regime contratual de EPC. Assim, o consórcio ou SPE reúne empresas de engenharia de projetos, de fornecimento de equipamentos, montagem (quando for o caso), construção civil e comissionamento.
Em regra, no caso de consórcio, as empresas integrantes se responsabilizam solidariamente perante o dono da obra pela implantação e entrega do empreendimento em condições para iniciar a sua operação comercial. A relação jurídica entre as pessoas jurídicas integrantes do consórcio é disciplinada em instrumento apartado de constituição do consórcio empresarial.
No caso de SPE, o Epecista se materializa numa entidade específica dotada de personalidade jurídica própria, que responderá perante o dono da obra, na qualidade de contratado, por todas as obrigações assumidas no Contrato EPC. Como a constituição de uma sociedade envolve complexa negociação de acordo de acionistas e rigoroso regime de governança, a opção do consórcio, por ser mais flexível, tende a ser mais adotada no Brasil e, por esta razão, servirá de referência para o presente trabalho.
O Contrato EPC geralmente é estruturado na modalidade Turn-key Lump Sum. A expressão Turn-Key, também conhecida como “chaves na mão”, significa que o produto final do contrato – o empreendimento de infraestrutura – deve ser entregue completo e em operação comercial. Por outro lado, a expressão Lump Sum indica que o preço contratado é global, ou seja, considera e abrange todos custos necessários para a implantação do empreendimento.
Essas características, ou seja, a obrigação de o Epecista entregar o empreendimento de infraestrutura em operação comercial e a fixação de preço global, têm grande relevância sob o ponto de vista jurídico-contratual e de alocação de riscos entre as partes. Em relação ao primeiro aspecto, na hipótese de o Epecista não entregar o empreendimento em condições de operação comercial, mesmo que tenha concluído todas as etapas de implantação física do empreendimento (por exemplo, sem comissioná-lo), ocorrerá inadimplemento contratual.
No que tange ao preço global, esta característica traduz a ideia de que o preço fixado pelas Partes considera todos os custos necessários à implantação do empreendimento[2], circunstância que, a rigor, dificulta eventuais pleitos de revisão do contrato.
A modalidade contratual de Contrato EPC também traz consigo relevantes aspectos operacionais e econômico-financeiros. Vejamos.
A transferência e concentração no Epecista de todos os escopos de trabalho necessários à implantação do empreendimento exonera o dono da obra da obrigação tradicional de gerenciar as diferentes e independentes pessoas jurídicas contratadas para a realização de cada um dos escopos individuais de trabalho, os quais são intrinsecamente conectados, cabendo-lhe apenas exigir de um único interlocutor – o Epecista – a entrega do empreendimento de acordo com os custos e cronograma acordados.
Esta opção contratual, em razão da substancial alocação contratual no Epecista, em que pese ser mais onerosa do que em outras modalidades, ao menos na perspectiva teórica, tende a beneficiar o dono da obra, principalmente porque (i) reduz os custos de transação na medida em que o dono da obra tem apenas uma única contraparte que é o Epecista; e (ii) libera o dono da obra dos riscos decorrentes do gerenciamento dos diferentes escopos de trabalho e suas interfaces.
Quanto ao aspecto econômico-financeiro relativo à metodologia de precificação por preço global, vale destacar que esta metodologia assume papel fundamental no mercado de construção de empreendimentos de infraestrutura, na medida em que facilita o acesso a financiamentos pelo dono da obra, já que o empreendimento como um todo está, ou deveria estar, definitivamente orçado.
Sobre este ponto, vale a pena destacar os apontamentos de Leonardo Toledo da Silva sobre os organismos internacionais acerca dos Contratos EPC:
Neste contexto, o contrato EPC torna-se, de certo modo, verdadeira garantia aos organismos financiadores, os quais não raramente participam de forma ativa na definição e na negociação das condições do contrato. Daí porque algumas instituições financeiras já solicitam a adoção de modelos específicos de contrato, como é o exemplo do banco Mundial, que, em suas operações de financiamento, procura recomendar a utilização dos modelos de contrato elaborado pela FIDIC – Fedération Internationale des Ingênieurs – Conseils, em especial o modelo constante do chamado Silver Book, que traz condições para contratação de EPC/Turnkey na modalidade de preço global (Lump Sum).[3] (Grifou-se)
Feitos os esclarecimentos sobre as características gerais do Contrato de EPC, passa-se agora a analisar a alocação específica dos riscos do empreendimento nas esferas contratuais das partes contratantes. Este estudo tem fundamental relevância na avaliação quanto às responsabilidades de cada parte à época da efetiva materialização de um risco contratual.
Sobre este ponto, vale a pena destacar a lição de Leonardo Toledo da Silva:
É crucial para as partes que o contrato busque soluções de alocação dos principais riscos associados à implantação do empreendimento, obedecendo à matriz de alocação de riscos negociada entre dono da obra e epecista. Esse é um ponto de distinção dos contratos de implantação de complexas obras de engenharia: as partes procuram identificar os principais riscos do projeto, dividindo-os entre si e já preestabelecendo soluções específicas sobre como lidar com esses riscos, independentemente de quem os assumir[4].
Neste sentido, as partes costumam ajustar que os riscos afetos à execução da implantação do empreendimento devem ser suportados pelo Epecista. Este é o caso dos riscos de mão de obra, geológicos, hidrológicos, pluviométricos etc.
É importante ressaltar, contudo, que a responsabilidade do Epecista pela construção e entrega do empreendimento em operação não significa a assunção pelo mesmo de todo e qualquer risco da implantação do empreendimento. O Epecista assume tão somente os riscos previsíveis e passíveis de identificação por construtor experiente à época da celebração do Contrato EPC. Os riscos, inclusive os geológicos, hidrológicos, pluviométricos, que extrapolem a capacidade de previsão de um diligente construtor e que tenham natureza extraordinária, normalmente não são por este assumidos.
A esse respeito, é da natureza do processo de orçamentação de uma obra que será regida por um Contrato EPC, que o construtor busque refletir no orçamento valores para fazer frente a contingências previsíveis, dadas as características do empreendimento como um todo, questões climáticas, trabalhistas etc.
Por outro lado, costuma-se alocar no dono da obra os riscos relativos ao desembaraço legal do empreendimento, como é o caso da obrigação de obter e manter as licenças ambientais válidas e eficazes, da liberação do local de implantação do empreendimento livre e sem impedimentos de qualquer natureza, tudo isso para que o Epecista possa implantar o empreendimento sem obstáculos alheios à sua vontade.
Como antecipado, em razão desta alocação de riscos, será possível identificar as responsabilidades de cada parte quando algum risco efetivamente se materializar. Neste contexto, no caso de não obtenção das licenças ambientais emitidas pelos órgãos ambientais competentes, circunstância esta que impede o início das obras e, portando, da execução do Contrato EPC, caberá ao dono da obra as providências necessárias para assegurar a regular construção do empreendimento, restando garantido ao Epecista a prorrogação do prazo do contrato pelo tempo que perdurar o atraso na emissão das licenças, bem como o ressarcimento de todos os custos adicionais incorridos com a referida extensão de prazo, a exemplo custos com mobilização de pessoas e de equipamentos.
Sob outro viés, o Epecista, a rigor, deve assumir os custos decorrentes de riscos geológicos previsíveis para um diligente construtor, resguardando o dono da obra de quaisquer ônus desta natureza.
Assim, qualquer conflito entre dono da obra e Epecista deverá ser avaliado, principalmente, de acordo com a alocação de riscos refletida no Contrato EPC, observado princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Como é natural de se esperar num contrato desta natureza, o Epecista está sujeito a rigoroso cronograma contratual, em que são definidos os marcos contratuais intermediários e, o mais importante, a data final para a entrega do empreendimento em operação comercial. Os marcos contratuais e data final de conclusão do projeto são vinculados a penalidades contratuais incidentes a partir da consumação de eventuais atrasos.
Os marcos intermediários geralmente são aqueles que representam caminho crítico para o prazo final acordado para entrega do empreendimento em operação comercial, ao passo que a data final de entrega representa o marco final em que o Epecista deverá ter concluído o empreendimento, passando-o ao dono da obra “com a chave na mão”, ou seja, em plenas condições operacionais.
Os marcos intermediários e a data final de conclusão podem servir de base, ainda, para a concepção e definição do cronograma financeiro, isto é, a programação de pagamento do preço contratual pelo dono da obra ao Epecista. Com efeito, o preço global definido para o EPC é distribuído ao longo da execução do empreendimento, sendo habitual, ainda, a alocação de uma parcela apenas na ocasião da conclusão do projeto. Esta formatação representa eficaz ferramenta ao dono da obra, que pode se valer da metodologia da retenção caso entenda que o Contrato EPC não está sendo regularmente executado, isto sem prejuízo das demais consequências contratuais previstas no instrumento para as hipóteses de inadimplemento.
De outro lado, é bastante usual a negociação de bônus ao Epecista para o caso de antecipação da data pactuada para a entrega do empreendimento em operação comercial. No segmento de energia, por exemplo, o dono da obra pode atribuir ao Epecista parcela do resultado decorrente da venda antecipada da energia elétrica. Este representa importante mecanismo de estímulo e incentivo ao Epecista.
Ainda dentro da perspectiva dos riscos, em razão da complexidade e vultuosidade dos projetos de infraestrutura, sem prejuízo das garantias contratadas, é habitual a negociação de cláusulas limitativas de responsabilidade, de forma que os agentes, em especial o Epecista, se responsabilize até determinado montante.
1.2 Natureza Jurídica
O Contrato de EPC consiste em contrato de construção de origem anglo-saxã que se assemelha ao tradicional contrato de empreitada previsto no Código Civil brasileiro, mas com este não se confunde[5].
Como já exposto, o Epecista assume a obrigação de implantar o empreendimento e colocá-lo em operação comercial. O trabalho de implantação envolve a execução de diversos escopos de trabalho. Nos empreendimentos de infraestrutura, o Epecista assume a obrigação de elaborar os projetos, fornecer os insumos equipamentos, bem como executar as obras necessárias.
A partir da interpretação de tais peculiaridades do Contrato EPC, notadamente aquelas relacionadas às diversas relações jurídicas existentes entre o dono da obra e o Epecista, podemos concluir que a sua natureza jurídica é de contrato atípico misto.
Nas palavras de Orlando Gomes, os contratos atípicos são aqueles que “se formam à margem dos paradigmas estabelecidos – como fruto da liberdade de obrigar-se (…)[6]”, ao passo que os contratos mistos são aqueles que “compõem-se de prestações típicas de outros contrados, ou de elementos mais simples, combinados pelas partes.”[7]
Com efeito, o Contrato EPC é atípico porque decorre da liberdade contratual das partes, não existindo previsão legal específica sobre o mesmo; e misto em razão da presença de características inerentes a outros tipos de contratos, a exemplo do contrato de empreitada, mandato, locação, prestação de serviços etc.
No mesmo sentido, assim leciona José Emilio Nunes Pinto:
Contratos atípicos não é novidade no mundo jurídico. O Direito Romano já reconhecia a existência desse tipo de relação contratual e classificava os contratos atípicos em vários tipos. No Brasil, a melhor doutrina nos fornece uma classificação ampla dos contratos atípicos. Dentre estes, vale ressaltar os contratos atípicos mistos categoria em que se inserem, a nosso ver, os EPCs, já que englobam obrigações das partes que são encontradas em mais de um contrato típico. No entanto, a correlação entre essas obrigações e respectivas contraprestações faz com que se crie um arranjo contratual diverso dos dois ou mais de que essas obrigações se originam, representando uma verdadeira fusão das disposições de ambos num todo unitário.[8] (Grifou-se)
Além de tais características, vale dizer, ainda, que o Contrato EPC é bilateral, oneroso, não solene, de execução continuada, pessoal, consensual e comutativo.
O Contrato EPC é bilateral, pois há a presença de mais de uma declaração negocial[9], a do dono da obra e a do Epecista[10]; e porque as obrigações assumidas pelas partes se equivalem, ocupando cada uma das partes as posições de credor e devedor simultaneamente. A título exemplo, a obrigação primordial do Epecista é implantar e entregar o empreendimento de infraestrutura em operação comercial de acordo com o preço e prazo acordados, ao passo que a obrigação do dono da obra é pagar o preço global fixado no Contrato EPC. Esta obrigação do dono da obra também demonstra a natureza onerosa deste tipo de contrato.
O Contrato EPC é também não solene e consensual, pois o consentimento das partes prescinde de forma especial para ter validade, bastando o mero acordo de vontades das partes contratantes. É também de execução continuada, na medida em que a relação jurídica se protrai no tempo, conforme cronograma contratual estabelecido entre as partes. Ademais, o Contrato EPC é comutativo, uma vez que as obrigações das partes são previsíveis e proporcionais, ou seja, cada uma das partes contratantes sabe exatamente o papel que desempenhará durante a execução do contrato e as respectivas contrapartidas, o que lhes permite dimensionar adequadamente os riscos inerentes ao seu escopo contratual.
Por fim, o Contrato de EPC é, em regra, pessoal ou intuitu personae, ou seja, a pessoa das partes contratantes representa elemento essencial do contrato, razão pela qual as partes não podem se fazer substituir durante a sua execução, salvo expresso consentimento da outra parte. Está é a razão pela qual na maioria dos Contratos EPC são vedadas as prerrogativas de subcontratação integral e cessão da posição contratual sem o consentimento do dono da obra.
1.3 Contrato de Empreitada e o Contrato EPC
Não se pode confundir o contrato de empreitada previsto no Código Civil com o Contrato EPC. Para viabilizar a identificação das diferenças, é necessária breve exposição conceitual sobre o contrato de empreitada.
Por meio do contrato de empreitada as partes contratantes, dono da obra e empreiteiro, pactuam a execução de uma determinada obra por prazo certo e mediante contraprestação pecuniária.
Sobre o contrato de empreitada, explica Carlos Roberto Gonçalves:
Empreitada (locatio operis) é contrato em que uma das partes (o empreiteiro), mediante remuneração a ser paga pelo outro contraente (o dono da obra), obriga-se a realizar determinada obra, pessoalmente ou por meio de terceiros, de acordo com as instruções deste e sem relação de subordinação. Constitui, também, uma prestação de serviço (locatio operarum), mas de natureza especial.[11]
A empreitada pode ser de lavor, hipótese em que o empreiteiro somente fornece a mão de obra, ou mista, quando o empreiteiro fornece os materiais, além da mão de obra. Este é o teor do Art. 610, abaixo transcrito:
Art. 610. O empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho ou com ele e os materiais.
Tal subdivisão conceitual do contrato de empreitada tem importância prática, na medida em que na primeira hipótese (empreitada de lavor), em conformidade com o Art. 612 do Código Civil, o dono da obra assume os riscos da obra, salvo aqueles nos quais o empreiteiro tenha concorrido com culpa para sua verificação.
Na segunda hipótese (empreitada mista), segundo o Art. 611 do diploma civil, correm por conta do empreiteiro os riscos da execução da obra.
O empreiteiro deve executar a obra de acordo com as instruções do dono da obra, sendo certo que no caso de desvio das referidas instruções, o dono da obra terá a prerrogativa de não receber a obra, ou aceitá-la com abatimento do preço. Tais prerrogativas, no entanto, não encontrarão guarida legal se as alterações promovidas pelo empreiteiro decorreram de novas instruções do dono da obra ou se este “sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca protestou”, à luz do que dispõe o Art. 619 e seu parágrafo único do Código Civil de 2002.
Como se depreende dos Arts. 621 e 622, no contrato de empreitada, via de regra, a elaboração dos projetos é confiada a pessoa jurídica ou física contratada diretamente pelo dono da obra, sendo vedado, salvo em hipóteses excepcionais, ao dono da obra introduzir modificações nos projetos sem a anuência do autor.
Por fim, disciplina o Art. 618 que “nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.”
A partir de tais características do contrato de empreitada, pode-se concluir que este não se confunde com os Contratos EPC. Vejamos as razões.
Como visto, o Contrato EPC abrange não somente a execução das obras civis (com o fornecimento de mão de obra e materiais), como também a própria elaboração dos projetos do empreendimento e fornecimento dos materiais e equipamentos necessários.
A partir de tal característica, podemos verificar que no Contrato EPC, o Epecista assume mais escopos de trabalho do que aqueles que integram o escopo da empreitada tradicional. Assim sendo, os riscos alocados ao Epecista, principalmente no tocante ao gerenciamento e organização de todos os referidos escopos, os quais são intrinsecamente interligados, são mais acentuados do que aqueles assumidos pelo tradicional empreiteiro.
Vale lembrar uma vez mais que o Epecista geralmente é constituído por consórcio de empresas responsáveis por cada escopo de trabalho do EPC, ou seja, há uma empresa responsável pela execução dos projetos, outra para o fornecimento dos equipamentos eletromecânicos e outra para a execução das obras. Todas as empresas em conjunto são responsáveis solidárias pela implantação e entrega do empreendimento em condições operacionais. Assim, o Epecista é projetista, fornecedor e construtor, simultaneamente.
A intensidade e complexidade do escopo assumido pelo Epecista, como se pode observar, distancia esta modalidade contratual do tradicional modelo de empreitada previsto no código civil.
Neste contexto, para melhor ilustrar este ponto, no caso de contrato de empreitada típico, o atraso na disponibilização dos projetos não pode ser imputado ao empreiteiro, pois cabe apenas a execução das obras em conformidade com os projetos a serem disponibilizados pelo dono da obra. No Contrato EPC, todavia, o atraso na disponibilização dos projetos não poderá ser utilizado como argumento pelo Epecista para justificar eventual atraso no cronograma da obra, na medida em que faz parte do seu escopo de trabalho a elaboração dos projetos e a coordenação desta atividade com os demais escopos de trabalho.
Ademais, no âmbito do Contrato EPC, as hipóteses de modificação dos trabalhos, a exemplo de alterações de projeto, de fornecimento ou de execução das obras civis, são minuciosamente disciplinadas pelas partes, não havendo espaço, a rigor, para alterações tácitas, como ocorre no contrato de empreitada na forma do Art. 619 e seu parágrafo único.
Sobre a impossibilidade de enquadramento conceitual do Contratos EPC como contrato de empreitada, assim se posiciona José Emílio:
Ocorre que, na realidade, os EPCs contemplam diversas relações jurídicas entre o contratante e o epcista. O epcista é empreiteiro na medida em que se obriga a construir uma obra de grande porte, o epcista será montador sempre e quando deva proceder à montagem e comissionamento da obra em si, o epcista será tratado como fornecedor de equipamentos em razão de ter o contrato como objeto o desenho, projeto, construção, fornecimento e montagem dos equipamentos, comissionamento da obra e teste de desempenho, sendo que o contratante a receberá na modalidade chave na mão, ou seja, pronta para operá-la. O enquadramento dessa série complexa de papéis desempenhados pelo epcista no marco da empreitada é amesquinhar o escopo da relação jurídica existente entre este e o contratante. Equivaleria a enquadrar o contrato num tipo legal com base na atividade mais preponderante no complexo de todas as atividades, criando-se uma distinção internamente ao contrato que não corresponde ao que existe na prática.[12] (grifos nossos)
Vale dizer, no entanto, que, em determinadas circunstâncias, as regras da empreitada poderão ser aplicadas subsidiariamente aos Contratos EPC, principalmente no que pertine à interpretação das disposições contratuais alusivas ao escopo da empreitada, também assumido e gerenciado pelo Epecista. Neste contexto, poderão ser aplicadas, mutatis mutandis, as disposições relativas aos riscos do empreiteiro e do dono da obra sobre os materiais empregados na construção e as disposições relativas à suspensão do contrato.
A previsão contida no Art. 618[13], no entanto, por ser norma cogente, deverá ser respeitado e observado nos Contratos EPC.
CONCLUSÃO
Diante de todo exposto, podemos concluir que o Contrato EPC representa importante veículo contratual para o desenvolvimento de complexos projetos de infraestrutura. Suas características principais abrangem desde a reunião de diversos escopos de trabalho na figura de um único agente – o Epecista – que fica responsável pela entrega do empreendimento de infraestrutura pronto para operar ou “com a chave na mão”.
O Contrato EPC traz em seu âmago complexa repartição de riscos entre dono da obra e o responsável pela implantação do projeto, os quais devem ser detalhadamente estudados e dimensionados pelas partes contratantes.
BIBLIOGRAFIA
AZEVEDO, Antonio Junqueira. Negócio jurídico e declaração negocial: noções gerais e formação da declaração negocial. São Paulo: [s.e], 1986.
GOMES, Orlando. Contratos. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6ª Ed. Vol. III. São Paulo: Saraiva , 2009.
PINTO, José Emilio Nunes Pinto. O Contrato de EPC para construção de grandes obras de engenharia e o novo Código Civil. Artigo elaborado em 03.2002.
TOLEDO DA SILVA. Leonardo. (Org.) “Os Contratos EPC e os pleitos de reequilíbrio econômico-contratual” in Direito e Infraestrutura. Rio de Janeiro: Saraiva, 2012.
[1] TOLEDO DA SILVA. Leonardo. (Org.) “Os Contratos EPC e os pleitos de reequilíbrio econômico-contratual” in Direito e Infraestrutura. Rio de Janeiro: Saraiva, 2012. p.24.
[2] O preço global se diferencia das modalidades de regime de remuneração por preço unitário e por administração contratada.
[3] TOLEDO DA SILVA. Leonardo. (Org.) “Os Contratos EPC e os pleitos de reequilíbrio econômico-contratual” in Direito e Infraestrutura. Rio de Janeiro: Saraiva, 2012. p. 22.
[4] TOLEDO DA SILVA. Leonardo. (Org.) “Os Contratos EPC e os pleitos de reequilíbrio econômico-contratual” in Direito e Infraestrutura. Rio de Janeiro: Saraiva, 2012. pp 27
[5] Em sentido contrário, Fabio Coutinho de Alcantara Gil e Caio Farah Rodrigues explicam que “quando se trata de construção, fica evidente a equivalência entre a empreitada integral e o EPC, com atribuição ao empreiteiro da responsabilidade pela conclusão da obra em sua totalidade”. TOLEDO DA SILVA. Leonardo. (Org.) “Aspectos do EPCM” in Direito e Infraestrutura. Rio de Janeiro: Saraiva, 2012. p. 22.
[6] GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. pp. 102
[7] GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. pp. 103
[8] PINTO, José Emilio Nunes Pinto. O Contrato de EPC para construção de grandes obras de engenharia e o novo Código Civil. Artigo elaborado em 03.2002. p. 13.
[9] AZEVEDO, Antonio Junqueira. Negócio jurídico e declaração negocial: noções gerais e formação da declaração negocial. São Paulo: [s.e], 1986. p.20
[10] Se o Epecista assumir a forma de consórcio, como este carece de personalidade jurídica, o contrato contará com várias declarações negociais, a do dono da obra e as declarações de todos os consorciados.
[11] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6ª Ed. Vol. III. São Paulo: Saraiva , 2009. pp. 344.
[12] PINTO, José Emilio Nunes Pinto. O Contrato de EPC para construção de grandes obras de engenharia e o novo Código Civil. Artigo elaborado em 03.2002. p. 11-12.
[13] Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.