Os animais não humanos como titulares de direitos no ordenamento jurídico brasileiro – base histórico-filosófica e o acesso ao judiciário

Resumo: Este trabalho expõe o ordenamento jurídico brasileiro e sua relação com os animais não humanos, iniciando por uma base histórico-filosófica, seguida pela discussão dos animais como sujeitos de direito e a possibilidade do acesso desses ao judiciário, assim como sua relação com os entes personificados e despersonificados criados pelo direito para participar das diversas relações jurídicas, os conceitos de personalidade e capacidade, além de exemplificações fáticas em diversos âmbitos a respeito da tutela dos animais como titulares de direitos. fenômeno e apontar como revertê-lo. Fundado em pesquisa bibliográfica, em trabalhos de especialistas, na legislação, em artigos científicos e páginas da internet dedicadas ao debate em questão.

Palavras-chave: Animais; Sujeitos de direitos; Especismo; Entes personificados; Entes despersonificados;

Abstract: This paper exposes the Brazilian legal system and its relationship with non-human animals, starting with a philosophical historical base, followed by a discussion of animals as subjects of law and the possibility of access of the judiciary, as well as its relation with the personifieds and despersonifieds beings created for the right to participate in various legal relations, besides the concepts of personality and capacity , and lastly factual exemplifying in various fields regarding animal protection as rights holders. Founded in literature, in the work of experts, scientific articles and web pages dedicated to the discussion in question.

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Keywords: Animals; Subjects of rights; speciesism; Personified Subjects; Despersonified Subjects.

1. Introdução

Diante dos avanços no âmbito doutrinário e jurisprudencial, no Brasil e internacionalmente, a respeito da tutela de direitos dos animais sencientes (sensíveis à dor), faz-se necessário o presente artigo científico para expor e analisar tal fenômeno, posto que há questionamentos a serem construídos sobre o assunto.

Esse trabalho é fruto de uma inquietação acerca do vácuo filosófico jurídico e da ausência de produção científica existente atualmente e se propõe a argumentar os direitos dos animais não humanos e analisar estado historicamente antropocêntrico, a evolução do direito para proteger os diversos nichos vulneráveis da sociedade e o “especismo” (analogia ao sexismo, racismo, etc), assim como a capacidade jurídica desses seres e sua comparação com os entes personificados e despersonificados presentes no ordenamento jurídico.

É necessário, ainda, levantar um questionamento sobre a real existência do direito dos animais (como sujeitos de direito) no Brasil ou apenas a proteção dos bens particulares e do princípio fundamental do meio ambiente equilibrado e, por fim, a possibilidade desses seres não humanos buscarem o judiciário para tutelar seus interesses.

O presente artigo, de cunho crítico e expositivo, busca trazer à tona a discussão a respeito de uma readequação no conceito jurídico em que os seres não humanos estão inseridos nas relações jurídicas de nosso país, fundado em pesquisa literária em livros, artigos científicos e páginas da internet especializadas no debate em questão.

2. Considerações iniciais

É necessária uma contextualização histórica e filosófica para que o leitor possa entender a desigualdade social, a evolução dos direitos dos animais como minorias, os diversos avanços da sociedade no decorrer do tempo, o antropocentrismo, o especismo [1] como forma de discriminação, a contribuição das religiões no senso comum em relação aos direitos dos animais, etc.

2.1. Antropocentrismo

Em um sentido filosófico, dentre as várias escolas de pensamento, partindo do teocentrismo e do escolasticismo, que levavam em consideração o poder de Deus como a maior preocupação da sociedade, seguindo até o Humanismo e o Iluminismo, consideradas antropocentristas, que trouxeram diversos avanços para as ciências humanas como conhecemos hoje, pois houve mais liberdade para se estudar as diversas áreas “ocultas do conhecimento”, seria o antropocentrismo uma figura essencial para a reafirmação do pensamento e da produção científica humana, necessários naquele momento.

Chegando até o último grande filósofo clássico moderno, o famoso Immanuel Kant, e seu pensamento idealista humanístico, sempre preocupado com a ética e a razão humana (isso é um apontamento simplista), claro que levando em consideração os conflitos da época em que estava inserido e suas próprias pretensões, de fundamentar a capacidade humana de pensar livre de condicionamentos externos para buscar o verdadeiro valor moral das ações (mesmo que para muitos sejam tais teorias utópicas), é válido colacionar uma ínfima parte de uma das suas várias discussões conceituais que supervalorizavam a razão humana, como se pode constatar no recorte a seguir:

“Kant revela a ideia iluminista da existência de possibilidade de o homem seguir por sua própria razão, sem deixar enganar pelas crenças religiosas,, tradições e opiniões alheias. Ilustração aí seria “a saída do homem de sua menoridade”, ou seja, um momento em que o ser humano se torna consciente da força e inteligência para fundamentar a sua própria maneira de agir, sem a doutrina ou tutela de outrem.”[2]

É perceptível, nesse conceito, a citada valorização da razão, do pensamento, do questionamento do homem, no qual seres não racionais não teriam qualquer chance de relevância, muito menos vez ou voz. O foco era outro, ainda um amadurecimento necessário para ideias posteriores, mesmo que o próprio Kant tenha expressamente demonstrado sua posição a respeito do tratamento e natureza com os seres “infra-humanos”:

“[…] Kant destaca que não há nenhum outro ser capaz de obrigação, ativa ou passiva, entendendo-se aí, o obrigante e o obrigado, além do próprio ser humano. Assim, não teríamos deveres para com outros seres por estes não terem a capacidade de obrigação ou de coação moral, pois, para que isso se dê, é necessária uma vontade. Em outras palavras, o ser humano não estaria na condição de obrigado em relação a outros seres não humanos,, eles não o obrigariam […]”[3]

Em um sentido geral (não filosófico), mais comumente utilizado em nossos dias, porém ainda profundo, o antropocentrismo pode significar a conduta humana de entender que o universo gira em torno do homem, sem preocupar-se, de fato, com questões relacionadas ao meio ambiente e bem-estar social, o significado literal no dicionário, conforme Figueiredo [4] aponta, “Antropocêntrico: adj. Diz-se do sistema segundo o qual o homem é o centro de todo o universo, sendo-lhe por isso subordinadas todas as coisas criadas”.

2.2. Especismo

O termo “especismo” foi cunhado pelo filósofo Richard Ryder [5], em 1970, porém aperfeiçoado posteriormente pelo filósofo australiano Peter Singer, que, mesmo tendo um pensamento eminentemente utilitarista, ganhou notoriedade internacional, reconhecido por sua obra literária voltada à ética animal, em meados de 1975, mesmo assim levava em consideração a habilidade dos animais de experienciar a dor (dentre outras sensações) para atribuir-lhes direitos, diferente de outras correntes de pensamento que levariam em consideração as características cognitivas e a inteligência de várias espécies de seres não humanos, como o bem estarismo defendido dentre vários filósofos, um deles Roger Scruton [6], e a corrente baseada nos direitos, que lhes habilitaria como “sujeitos” de uma vida, que dentre os vários adeptos vale frisar o filósofo Tom Regan [7]. Pouco a pouco a palavra foi popularizada e atualmente é utilizada por vários outros estudiosos do assunto. Singer entendia que a partir de uma analogia simples, em relação aos conceitos de racismo e sexismo, seria possível rapidamente entender a ideia do termo, atualmente utilizado para declarar que uma espécie se sente superior à outra.

Como preleciona Singer,

“[…]devem assentar as causas que se opõem ao racismo e ao sexismo; e é nos termos deste princípio que a atitude que poderemos designar como “especismo”, por analogia com “racismo”, deverá também ser condenada. O especismo – a palavra não é bonita, mas não consigo pensar num termo melhor – é um preconceito ou atitude de favorecimento dos interesses dos membros de uma espécie em detrimento dos interesses dos membros de outras espécies. […]” [8]

2.3. As religiões e o tratamento aos animais

Historicamente, as religiões, de um modo geral, contribuíram para a desigualdade entre humanos e não humanos. Mundo afora, as diversas formas de fé tentaram explicar a natureza dos animais e influenciaram diretamente na cultura onde estavam inseridas, inclusive na questão do tratamento para com as outras espécies. Na grande maioria das vezes as religiões serviram como álibi para o uso, o abuso, a comercialização, a alimentação e a exploração dos animais por parte do homem.

Levando em consideração o ocidente, onde a maioria das pessoas religiosas ou não se orientam a partir das religiões abraâmicas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), na figura de suas maiores denominações (maioria de fiéis), estas colocaram o homem no centro da criação, como os filhos mais importantes criados por Deus, onde tal ideia é facilmente evidenciada na Bíblia Sagrada, em que após criar o homem, esse próprio Deus lhe dá o direito de dominar os outros animais. Tal entendimento está materializado no livro do Gênesis, ou com suas singularidades, o “Bereshit” para os judeus. Esse domínio seria também considerado uma forma de “guarda” (para algumas denominações cristãs) dada aos humanos como espécie dominante, no livro do Gênese 1.1:

“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.”[9]

Ainda em relação ao cristianismo, várias correntes de pensamento surgiram no decorrer do tempo e ainda hoje há discussões filosóficas e conceituais a respeito da dieta vegetariana, do respeito aos seres não humanos e da exploração dos recursos de origem animal. Vale salientar como exemplo os cristãos ortodoxos em suas dietas restritivas, que buscam a purificação através da não matança, e os adventistas do sétimo dia, denominação cristã protestante, na qual parte de seus adeptos adota a dieta vegetariana como forma de harmonia em relação à criação, partindo do princípio de que no Éden (paraíso) não havia matança entre as espécies [10]. Tal entendimento seria inclusive justificado por passagens bíblicas também expostas no Gêneses 1.29, assim como: “E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento”[11].

O Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, em muitas de suas passagens também transparece tais ideias de domínio em relação ao reino animal, onde os seres não humanos teriam sido feitos por Allah (Deus) para servir aos humanos de todas as formas possíveis.

Como exposto no livro sagrado dos mulçumanos a seguir, o Alcorão 16:5-8:

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“E os rebanhos, ele os criou para vós. Neles tendes vestimentas quentes e outros benefícios, e deles comeis. E neles tendes beleza, quando ao anoitecer os fazeis voltar para casa e quando ao amanhecer os levais para pastar. E eles carregam vossas cargas para regiões as quais não chegaríeis senão com imensa dificuldade. Por certo vosso Senhor é Compassivo, Misericordioso. E ele criou os cavalos e mulas e os asnos, para os cavalgares e para os terdes como um ornamento. E ele cria o que não sabeis”.[12]

No tocante às religiões indianas (mais precisamente, hinduísmo, budismo, jainismo), estas têm como princípio comum a não violência (Ahimsa), e nutrem certo respeito pelos animais (em maior ou menor grau), pois têm também em comum a crença no renascimento, ou seja, a possibilidade do homem renascer em diversos reinos de existência, portanto, um homem pode renascer na pele de um animal não humano. A alma não tem espécie e pode transitar pelos diversos reinos de existência desde o inferno até os reinos divinos, passando pelo reino humano e animal. Um filósofo indiano, renomado no ocidente, chamado Bhaktivedanta Swami Prabhupada, deixa claro que não somos, apenas estaríamos humanos, através da proposição comumente usada, “não somos estes corpos”[13].

Em sua transliteração de um livro sagrado para os hinduístas, Prabhupada esclarece Bhagavad Gita 14.20:

“[…] quando o ser corpificado é capaz de transcender estes três modos (bondade, paixão e ignorância), ele pode libertar-se do nascimento, da morte, da velhice e de suas aflições, podendo desfrutar do néctar, mesmo nessa vida […]”[14]

O Hinduísmo e o Jainismo na Índia prezam e pregam o vegetarianismo a “ahimsa”, bem como o culto a diversos animais sagrados. O budismo atual não advoga a respeito de vegetarianismo, pois há um dogma de que os monges devem aceitar o que lhes derem para comer (para colocar em prova a caridade dos devotos). O Buda histórico, Siddartha Gautama, mesmo que algumas escrituras budistas lhe atribuam o ato de ter comido carne diversas vezes, apenas certificando-se de que aquele animal não havia sido morto exclusivamente para seu consumo, em diversos sutras (escrituras budistas de diferentes escolas) fala a respeito de não comer carne alguma, uma conduta de extremo respeito à vida na cultura indiana, pois não significa necessariamente “não comer carne”, mas não matar outro ser, e esse se mostra o cerne da questão:

“O Iluminado disse então a ele: Por inúmeras razões, Mahamati, o Bodhisattva, cuja natureza é compaixão, não deve comer nenhuma carne; Explicarei: Mahamati, nessa longa jornada de renascimentos, não há um ser que, tendo assumido a forma de um ser vivo, não tenha sido sua mãe, pai, irmão, irmã, filho ou filha, ou outro dos laços que unem; ao renascer poderão adquirir a forma de animais, selvagens ou domésticos; assim sendo, como pode um Bodhisattva-Mahasattva, que tenciona aproximar-se de todos os seres como se fossem ele mesmo e praticar as verdades ensinadas pelo Buda, comer a carne de seres vivos que possuem a mesma natureza que ele mesmo? Mahamati, mesmo o Rakshasa que ouve os discursos do Tathagata sobre a elevada essência do Dharma alcança a percepção da necessidade de proteger o Dharma e ter compaixão; até mesmo ele evita o consumo de carne. Então Mahamati, onde quer que haja evolução de seres vivos, que as pessoas divulguem com alegria o sentimento de equanimidade, e pensem que todos os seres vivos devem ser amados como filhos únicos, que todos deixem de comer carne! A carne de um cachorro, jumento, búfalo, cavalo, homem ou qualquer outro ser, não é para ser comida. O Bodhisattva, portanto, não deve comer carne”.[15]

Vale, por fim, salientar que, por influência do budismo (também como sistema político filosófico), foi na Índia que foram adotadas as primeiras leis de proteção animal, no século II a.C. É muito difundido entre seus adeptos o termo “ser senciente”, que seria qualquer ser sensível à dor, passível a sensações e sentimentos. Ao Buda histórico ainda é atribuída uma frase famosa que demonstra profundo respeito pela vida animal, “Haverá um dia em que o homem verá o assassinato de um animal, como assim vê o de um homem”.

É importante ainda deixar claro que tais comentários, inseridos no presente artigo, buscam apenas esclarecer a ideia de que a religião influencia significativamente no modo como as pessoas enxergam o mundo ao seu redor e, por conseguinte, sua relação com as outras espécies.

2.4. Esclavagismo

Uma mazela comum na história da humanidade foi a escravidão, que esteve presente em diversas civilizações do mundo, como egípcia, grega e romana. O Brasil destacou-se nesse contexto a partir de sua descoberta (contato) pela Coroa portuguesa, em meio a expansão marítima ocorrida no século XV, onde a escravidão seria abolida somente em 13 de maio de 1888. Segundo o dicionário, “Escravo é aquele que vive em absoluta sujeição a outrem. Cativo (Do b. lat. sclavus = slavus)”[16], ou seja, que é propriedade, tem vontade própria negada e preso ao seu dono. Os animais de circo, de tração, de abate e animais utilizados em pesquisas para produtos farmacêuticos e cosméticos, por analogia, poderiam ser considerados escravos.

Vale a pena a comparação com o termo utilizado na biologia para descrever um tipo de relação entre espécies, o esclavagismo que segundo os biólogos César da Silva Junior e Sezar Sasson, “É um tipo de relação ecológica entre seres vivos onde um ser vivo se aproveita das atividades, do trabalho ou de produtos produzidos por outros seres vivos”[17]. O homem pratica o esclavagismo interespecífico (entre espécies diferentes), na maioria das vezes aprisionando e se utilizando das diversas matérias-primas oferecidas pelos animais não humanos sem preocupar-se com o que essa prática pode causar. Ainda segundo Junior e Sasson, os seres humanos têm essa prática de forma generalizada, valendo salientar que durante nossa evolução social aperfeiçoamos e ampliamos tais métodos:

“Nossa superpopulação de seres humanos pratica o esclavagismo em praticamente todas as atividades agropecuárias e em todas as áreas da zootecnia. Todas as atividades de domesticação feita pelos humanos são relações de esclavagismo interespecífico, são exemplos: apicultura, aquicultura, avicultura, bovinocultura, caprinocultura, cunicultura, equinocultura,ovinoculturasericiculturasuinocultura.”[18]

Como exemplo de avanço social em relação ao esclavagismo, vale invocar um breve recorte a respeito da cidade de Florianópolis que promulgou uma lei que irá gradativamente proibir a utilização de tração animal dentro da capital citada. A Lei 1352/2014 ainda prevê a apreensão dos animais que serão levados para organizações de bem-estar para serem libertados:

“[…] -Fica proibido o transporte de cargas que utilize a força animal superior ao peso do próprio animal;

– As exceções são para locais privados, regiões periféricas, passeios turísticos e rotas ou baias que sejam autorizadas pela Prefeitura;

– Os catadores de lixo, principais trabalhadores que utilizam as carroças, terão dois anos para se cadastrarem junto ao Poder Público, que dará encaminhamentos com base nas diretrizes da Política Nacional de Resíduos Sólidos […]”[19]

2.5. A evolução dos direitos humanos

Desde os primórdios das sociedades humanas há desigualdade de direitos entre seus indivíduos. A teoria jusnaturalista, defendida por vários autores gregos, em especial Aristóteles, na Grécia de IV a. C, em sua concepção, entendia que o estado surge a partir de uma necessidade imanente (natural) do homem em criar instituições que garantam a felicidade de seus cidadãos. Partindo desse pressuposto, tal filósofo tenta defender com seus argumentos que “O homem é por natureza um animal político”[20]. Além do mais, sendo o homem ser social, necessitava integrar-se a outros membros para formar a sociedade, ideia expressa no seguinte pensamento colacionado:

“Esse processo de formação das cidades ao longo da história deu-se de maneira lenta e gradual. A primeira forma de sociedade foi à família que era constituída de indivíduos que visavam suprir suas necessidades cotidianas;; a associação dessas famílias ao longo da história deu origem ao burgo,, uma espécie de colônia de famílias que tinham relações sejam elas políticas ou econômicas, por fim, a associação desses burgos deu origem à cidade”.[21].

Porém não havia igualdade entre esses entes, uma vez que nem todos eram cidadãos. A desigualdade era pilar que mantinha a sociedade firme e a igualdade um mal a ser combatido:

“Na visão aristotélica, o que formava a cidade era a diversidade de funções exercidas pelos seus cidadãos como também a desigualdade entre os homens, ou seja, a unidade das funções e a igualdade entre os indivíduos representavam a morte de uma cidade. Por causa dessa ideia de diversidade e desigualdade, Aristóteles vai dizer… não é possível que todos exerçam a autoridade ao mesmo tempo (…) melhor seria também que os mesmos homens ficassem sempre no poder se isso fosse possível.”[22]

O exemplo grego é apenas mais um em que o estado era formado por espécies de castas (explícitas ou implícitas), onde o cidadão é aquele que tem direito de voto nas Assembleias e de participação no exercício do Poder Público, em suma, o que não inclui mulheres, crianças, estrangeiros e escravos, ou quaisquer que fugissem a uma rígida série de critérios. Vários modelos de desigualdades podem ser observados em civilizações antigas e refletem-se na arte, história, literatura e economia mundial até hoje.

Passando pelos pensamentos kantianos, utilitarista, pragmaticistas e outros, algo começou a mudar de forma tímida a partir da Revolução Francesa com os ideais de igualdade, fraternidade e liberdade, até os dias atuais, com a materialização dos direitos fundamentais pelas Ciências Jurídicas. Um marco histórico em relação aos direitos fundamentais foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948. Dentre seus vários artigos, vale salientar o seguinte:

“Artigo 2.

 1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

 2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.”[23]

Assim, historicamente falando, os vários países do mundo começavam a levar em consideração os direitos humanos (o valor da pessoa humana, pensado por Kant, inicialmente), o direito das minorias, até então não havia políticas de proteção às partes frágeis da sociedade, assim como as mulheres, as crianças, os índios, os negros, etc. Porém, como a sociedade, o direito evolui, e a custo de muitas mortes e luta, várias “classes” tiveram seus direitos tutelados pelo estado. Em seu discurso que entrou para história, Martin Luther King, há cerca de cinquenta anos, não imaginaria as mudanças que temos hoje na sociedade em que negros e mestiços têm oportunidades e voz em países democráticos como um todo:

“Mas, cem anos mais tarde, o negro ainda não está livre. Cem anos mais tarde, a vida do negro ainda é duramente tolhida pelas algemas da segregação e os grilhões da discriminação. Cem anos mais tarde, o negro habita uma ilha solitária de pobreza, em meio ao vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o negro continua a mofar nos cantos da sociedade americana, como exilado em sua própria terra. Então viemos aqui hoje para dramatizar uma situação hedionda.”[24]

Por fim, onde essa produção científica tenta alcançar, não seriam os animais não humanos, dotados de faculdades próximas às dos homens, uma minoria? E não seriam os animais uma minoria que por representação poderia lutar pelo reconhecimento de seus direitos fundamentais? A mesma Organização das Nações Unidas, em 1978 ratificava a Declaração dos Direitos dos Animais em que prematuramente, de forma expressa em seu preâmbulo, entendia que os mesmos são sujeitos de direito. Vale salientar a seguinte passagem:

“[…]Preâmbulo:

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Considerando que todo o animal possui direitos;

Considerando que o desconhecimento e o desprezo desses direitos têm levado e continuam a levar o homem a cometer crimes contra os animais e contra a natureza;

 Considerando que o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das outras espécies animais constitui o fundamento da coexistência das outras espécies no mundo; Considerando que os genocídios são perpetrados pelo homem e há o perigo de continuar a perpetrar outros;

Considerando que o respeito dos homens pelos animais está ligado ao respeito dos homens pelo seu semelhante;

Considerando que a educação deve ensinar desde a infância a observar, a compreender, a respeitar e a amar os animais […]”[25]

Ano após ano, como em uma evolução histórica multifacetada, porém linear, os animais não humanos têm seus direitos reconhecidos em maior ou menor grau pelas diversas legislações dos países ao redor do globo, sendo necessário o afastamento da nomenclatura trazida pelo Código Civil, que considera animais “coisas” que se movimentam “semoventes” e, em contrapartida, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, traz proteção às mesmas coisas (animais), demonstrando um contrassenso quando se parte do princípio lógico de que coisas não têm direito algum.

2.6. Abolicionismo Animal

Historicamente, o termo “abolicionista” representa a luta de diversos segmentos sociais que buscavam a liberdade de um desses (no Brasil, das pessoas negras, por exemplo), e, de fato, a história nos prova o quanto demorou para que ano após ano a exploração de servos, prisioneiros de guerra e pessoas negras fosse abolida do senso coletivo moral de cada sociedade como algo “comum”; o que nos restaria seria esperar para ver até onde essa tendência chegaria?

Mesmo para grandes pensadores, de Aristóteles, passando por Durkheim, até Kant, existe uma barreira espiritual entre os seres humanos e os animais; essa seria a alma. De forma simplista, hoje, Durkheim entenderia que todos os homens são iguais, pois, em seu pensamento, várias atribuições metafísicas e psicológicas colocariam todos os homens como possuidores de uma alma (sonhos, estado de vigília), visto que, em determinadas situações, essas sairiam do corpo físico para passear por um âmbito transcendente. Mesmo Kant com sua teoria de que o homem tem seu valor em si mesmo e não como um meio para um fim (e é único que possui essa atribuição).

É obvio que os homens antigos (retirando algumas exceções) não comiam a carne de seus escravos, mas, tirando isso como já exposto nesse artigo, uma simples analogia coloca as outras espécies como escravas dos homens, pelos simplistas argumentos de que essas não pensam ou não têm liberdade de fato; sempre seriam inocentes (não assinaram o pacto social?).

Um autor contemporâneo se destaca por se atrever a postular a abolição dos animais através de duas principais obras, The case for animal rights (1983), que traz os fundamentos de uma teoria moral, e Empty Cases, livro chamado no Brasil de Jaulas Vazias (2006). Esse se chama Tom Regan, professor emérito da Universidade da Carolina do Norte, EUA. Para Regan, em uma teoria quase que kantiana, os chamados direitos humanos, largamente defendidos como dogma de nossa civilização moderna, precisariam ser um referencial aplicável de forma universal (para assim buscar seu real valor) para todos os casos. Outro argumento nada estranho aos defensores dos direitos humanos, no âmbito jurídico, seria o fato dos animais também serem sujeitos de uma vida (e também terem seu valor em si mesmos e não como um fim para alguém).

3. A visão antropocêntrica da constituição federal de 1988 do direito ambiental

A Constituição de 1988, em seu artigo 225, expressou o protecionismo aos animais, tendo como compromisso a vedação dos maus tratos e tratamentos degradantes aos mesmos, e o incentivo à educação ambiental. Essa linha protecionista, ainda que tímida, juntamente com as leis ambientais, nada tem a ver com a nomenclatura em que o código civil de 2002 enquadra os seres não humanos. Como citado supra para o direito civil brasileiro, o animal é um objeto como uma cadeira ou uma pedra, com uma pequena peculiaridade de se mover sozinho. Levando em consideração tal contrassenso e os trabalhos científicos anteriormente escritos, cabe um questionamento a respeito do assunto. Teriam os animais, de fato, direitos em nosso ordenamento jurídico?

Analisando as proposições a seguir:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.[26]

– O artigo 225, caput, materializa o direito fundamental dos humanos ao meio ambiente equilibrado, incluindo a fauna (animais silvestres) e flora (meio ambiente na figura da biodiversidade das diversas espécies de plantas); direito este decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana, trazido no artigo, inciso III, da CRFB 88.

“Art. 1º. Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha. (Lei 5.197 de 1967)”[27]

– O artigo 1º, caput da Lei 5.197/97, a conhecida lei de proteção à fauna, expressa que os animais silvestres são de propriedade da união.

“Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.”[28]

– O artigo 82 do Código Civil de 2002, supramencionado, expressa a visão majoritária do ordenamento jurídico brasileiro de que os animais são objetos semoventes.
Em análise, após a leitura dos artigos apresentados anteriormente, pode-se verificar um limiar tênue onde o protecionismo animal, disposto na constituição, seria mera proteção ao nosso próprio direito ao meio ambiente equilibrado, sem, de fato, reconhecer a natureza senciente dos seres não humanos, ou dotá-los de qualquer tipo de nomenclatura diferente. O mesmo Código Civil, em seu artigo 186, expressa que “Aquele que por ação ou omissão causar dano a outrem, deve repará-lo”[29]. Em suma, aquele que causar danos (maus tratos) aos bens alheios (animais domesticados) deve reparar o dano, ressarcir o prejuízo, restituir o bem danificado. Tal status, conferido aos seres não humanos, deixa-os a mercê do uso e do gozo de suas vidas e das matérias-primas advindas das diversas espécies, sobre as quais o homem exerce domínio. Entretanto. uma vez que a análise feita estivesse de toda equivocada, seria um contrassenso que um “objeto” fosse preocupação recorrente de dispositivos legais, do ordenamento brasileiro e estrangeiro, uma vez que “coisas” não têm qualquer aspiração a sujeitos de direito.

4. Animais como sujeitos de direitos

Os animais, como mencionado anteriormente, observados os artigos 82 e 1263, são objetos semoventes, passíveis de apropriação ou assenhoramento caso não tenham dono anterior. Esse seria um dos motivos pelos quais os animais não humanos não podem estar em juízo, pois não têm personalidade jurídica e, por conseguinte, não possuem também capacidade jurídica, não podem acessar o judiciário para tutela de seus interesses.

4.1. Animais e capacidade

Seguindo a teoria do jurista Tagore Trajano, a ordem jurídica concedeu aos seus protagonistas personalidade e capacidade jurídica:

Para Tagore:

“A ordem jurídica não concedeu aos seus protagonistas apenas a personalidade, mas os dotou de capacidade para a aquisição de direitos e para seu exercício, seja por si mesmo, seja por representação ou mediante a assistência de outrem. Assim, se a capacidade representa o gênero, pode-se dizer que suas espécies são: (a) a capacidade de direito ou gozo (jurídica) e (b) a capacidade de fato ou de exercício, correlata à efetivação desses direitos”.[30]

Tais conceitos de personalidade e capacidade mudam de autor para autor, muitas vezes relativizados em relação ao assunto tratado. Porém, as duas coisas não se confundem, pois, segundo o professor Miguel Reale, seria a capacidade uma extensão da personalidade:

“[…] O conceito de capacidade, em sentido estrito e próprio, não se confunde, porém, com o de personalidade. A palavra ‘capacidade’ por si mesma está dizendo que ela indica uma extensão do exercício da personalidade, como que a medida da personalidade em concreto. […]”[31]

Em linhas gerais, se determinado sujeito possui personalidade, possuiria, também, capacidade (em maior ou menor grau), entretanto não seriam somente os sujeitos dotados de personalidade que poderiam ter capacidade. O direito atribuiu capacidade aos entes despersonalizados (o nascituro, a massa falida, o condomínio, etc) para que esses possam fazer parte de relações jurídicas como sujeitos. Para Tagore, “Os entes despersonalizados, mesmo que não registrados, possuem condições de estabelecer relações jurídicas com quaisquer pessoas ou outros entes e apesar de não configurar sob um aspecto normativo-dogmático pessoas de direitos, são considerados sujeitos de direito.”[32] O que evidencia claramente que algo “não humano” tem aptidão para capacidade e para buscar seus interesses ou pelo menos seus direitos básicos, ou ainda parte disso junto às vias judiciais.

O Código de Processo Civil[33], em seu artigo 12, traria alguns dos entes despersonalizados, evidenciando a problemática desses “sujeitos” que não receberam qualquer denominação legal (em pauta o condomínio, a massa falida, o espólio, a herança vacante e jacente e as sociedades irregulares), diferentemente das pessoas jurídicas, que são praticamente “paridas” pelos seus atos constitutivos e foram delimitadas e elencadas nos artigos 40 e seguintes do mesmo código em clara lacuna para analogia por parte dos operadores de direito.

4.2. Animais como sujeitos personificados

Para Singer, os termos “sujeito” e “pessoa” são obviamente ampliados segundo seu objeto de estudo, onde poderia levar-se em consideração níveis de racionalidade e autoconsciência revistos pelo mesmo após diversas críticas a seu utilitarismo, porém partindo do ponto da sensibilidade animal:

“[…] “Pessoa” é qualquer ser racional e autoconsciente, capaz de levar uma vida biográfica e não apenas biológica; percebe a si mesmo no tempo, possui interesses, projeta sua existência e realiza planos para o futuro. Essa definição se aplica à maior parte dos seres humanos (exceto fetos, recém-nascidos e pacientes terminais que perderam sua consciência, conforme veremos mais adiante), mas inclui uma notável porção de animais,, especialmente mamíferos como cães, porcos e primatas superiores[…]”[34]

Entretanto, por conta de seu utilitarismo, tal filósofo não serviria de salvaguarda para a presente proposta abolicionista, posto que, na prática, esse não negaria seu cunho de individualismo utilitarista, que em prol da maioria ainda se filiaria ao pensamento comum.

Para Regan, todos “nós” seriamos sujeitos de uma vida. Independente de espécie, teríamos nosso valor inerente. Essa premissa kantiana não deveria servir para nos distanciar, e sim de forma extensiva como algo que nos aproximaria como espécies. Nós seriamos agentes e pacientes morais. Aos agentes, dotados de deliberar seus atos logicamente, estaria a função de respeitar os sujeitos de uma vida, enquanto aos pacientes morais, esses também com a mesma dignidade e valor intrínseco, têm a mesma capacidade de sofrer danos (esses não são somente os animais, mas as crianças, os incapazes, os ébrios, etc). Regan se utiliza do exemplo dos adultos com as crianças e da sociedade com os mentalmente incapazes.[35]

Cabe o uso dos silogismos, para citar ainda o jurista Carlos Roberto Gonçalves. Esse leciona que, conforme o Código Civil de 1916, em seu artigo 2: “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”[36]. Esclarece, em seguida, que a expressão “todo homem” fora empregada em sentido amplo e genérico, abrangendo de fato todas as pessoas sem distinção (sexo, raça, cor, nacionalidade), e que, posteriormente, a mesma definição necessitou ser alterada, uma vez que, no relatório do Código Civil seguinte, o Senado Federal aprovou a expressão “todo homem”, novamente modificada na Câmara dos Deputados por “toda pessoa”, de modo a adequar o texto aà nova constituição e suprimir possíveis dúvidas com relação à interpretação[37] (havia necessidade de uma definição extensiva que abarcasse as evoluções legislativas e jurídicas). Ora, na mesma linha de raciocínio, o termo “toda pessoa” poderia ser interpretado de forma extensiva e abarcar todos os sujeitos corpóreos e incorpóreos possíveis, dada a natureza sui generis da expressão. que muito possivelmente foi pensada levando em consideração as novas pessoas em evidência nas relações jurídicas contemporâneas (os entes despersonalizados). Entretanto, o autor expressa sua opinião claramente pouco depois, prelecionando: “O Título I do Livro I do Código Civil de 2002, concernente às pessoas, dispõe sobre as “pessoas naturais”, reportando-se tanto ao sujeito ativo quanto ao sujeito passivo da relação jurídica”[38]. Buscando “amarrar” o dispositivo legal.

Seguindo a tese do jurista Tagore Trajano, utilizando-se da classificação das espécies de sujeitos de direito do também jurista Fábio Ulhoa[39], sendo os animais não humanos entes incorpóreos (não humanos) e personificados (personalizados). Assim como as pessoas jurídicas, os animais, para Tagore, seriam, dentro de uma classificação do Direito Civil, melhor enquadrados como “sujeitos não humanos personificados” [40]. Para ir além, Coelho, mesmo deixando claro seu entendimento a respeito do conceito de sujeito de direito, que teria: “finalidade de orientar a superação de conflitos de interesses que envolvem, direta ou indiretamente, homens e mulheres”[41]. Mais adiante, visto a diversidade de entes personalizados e despersonalizados, face o ordenamento jurídico atual, o mesmo autor necessitou enfatizar: “Nem todo sujeito de direito é pessoa e nem todas as pessoas, para o direito, são seres humanos” [42].

Sendo necessário como qualquer outro sujeito de capacidade limitada ser representado pela sociedade (em analogia tutor, curador, etc) ou pelo ministério público (como assistente ou custus legis). Afinal, o fato de terem características cognitivas limitadas (incapacidade civil em maior ou menor grau) não invalida a possibilidade de acesso ao judiciário, partindo de uma comparação despretensiosa (grifo nosso) em relação aos incapazes civilmente, que têm o Ministério Público como “custus legis de” suas relações jurídicas e seus representantes para melhor defender seus interesses.

Tal sujeito não humano não surge para afrontar os sujeitos naturais humanos ou busca equiparação em relação à capacidade de um nascituro, por exemplo,, mas sempre com determinado objetivo, no caso, a busca pelos seus direitos fundamentais, ou ainda a sua dignidade como sujeitos donos de uma vida.

5. Animais como partes em processos judiciais.

As pessoas podem pensar quais direitos seriam atribuídos aos animais e se todos os animais teriam direitos, caso entendêssemos que esses seres não humanos são pessoas para o direito. Vale salientar que, atualmente, existem diversas organizações não governamentais, como a Peta[43], Gap[44], NhRP [45], entre outras, que lutam por direitos fundamentais ligados à vida, liberdade e bem estar de animais com características e perspectivas cognitivas avançadas, como grandes primatas dotados de memória e personalidade, golfinhos (cientificamente comprovada sua capacidade de associação de ideias e inteligência), elefantes (guardam memórias e sentimentos), animais de corte, cobaias em laboratórios, etc. Além dos animais silvestres, que teriam direito, por si só, à sua não extinção, não somente por conta do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, que é dado aos humanos na constituição, bem como os animais domésticos, que, como propriedades, estão sujeitos ao esclavagismo, uso e gozo desmedido pelos humanos, quando dotados de sensibilidade, companheirismo e empatia. Estes deveriam ser resguardados de maus tratos pela sociedade e o poder público.

Cada vez mais, no Brasil e no mundo, os tribunais, inevitavelmente, deparam-se com causas envolvendo guarda, liberdade, bem estar animal, dentre outras lides, que visto na maioria das vezes a omissão da norma escrita (no caso de constituições escritas como a nossa), outras vezes a falta de jurisprudência consolidada (no caso de constituições não escritas), constatando a teoria exposta no presente trabalho e suscitando “readequação” do lugar dos animais não humanos no ordenamento jurídico, em especial o Brasileiro, alvo da seguinte análise.

É válida a demonstração desse fenômeno, para que ainda se possa provar que o presente artigo não é apenas um devaneio filosófico, através de um “hall” exemplificativo e dos casos que se seguem.

5.1. Países que reconhecem a “senciência animal”

Dentre vários países que seguem uma tímida tendência nesse feito estão:

– Bósnia e Herzegovina (Lei de proteção aos animais dotados de sistema nervoso central).

– Chile (Lei 20.380, de 2009, que reconhece animais como seres sencientes).

– República Checa (Formalizado o entendimento legal de “sofrimento animal”).

– Hungria ( Ato de 1998, Capítulo 1, reconhece a capacidade animal de experimentar sentimentos, bem como dor e alegria).

– Mônaco (Lei 1128, de 1989, que reconhece os animais como seres sensíveis).

– Polônia (Ato de Proteção Animal, de 1997, que reconhece a capacidade de sofrimento dos animais).

– Eslovênia (Ato de Proteção Animal que protege animais com sistema nervoso Central).

– Tanzânia (Animal Walfare Act, de 2008, que reconhece os animais como seres sencientes).

– Nova Zelândia (Animal Walfare Act, de 2015, que reconhece os animais como seres sencientes).[46] (tradução nossa)

5.2. Estados Unidos

Em abril deste ano ocorreu um caso que entra para a história do direito dos animais em especial dos grandes primatas, em Nova York, quando a magistrada Barbara Jaffe, do Supremo Tribunal de Manhattan, concedeu habeas corpus a dois chimpanzés que eram utilizados em testes biomédicos pela Stony Brook University on Long Island, em uma decisão sem precedentes na história do Estados Unidos.

Pelas leis de Nova York apenas “pessoas” podem ser pacientes em um processo de habeas corpus, ficando implícito que os dois chimpanzés chamados de Hércules e Leo foram tratados dentro do processo citado como sujeitos de direito, criando então alicerce jurisprudencial para diversas ações que envolvem principalmente grandes primatas nas cortes americanas segundo o artigo citado:

“Os advogados da organização The Nonhuman Rights Project, que representam Hercules e Leo, os chimpanzés, alegam, em sua petição, que os chimpanzés são seres inteligentes, complexos sob os aspectos emocional e cognitivo, autoconscientes, autônomos e têm autodeterminação (tradução nossa).”[47]

5.3. Argentina

Na Argentina, o habeas corpus foi concedido à orangotango fêmea que viveu em cativeiro também abrindo precedentes para os grandes primatas e mamíferos nas cortes desse país. Conforme o artigo da página Carta Brasiliense, o remédio constitucional foi interposto pela Associação de Funcionários e Advogados dos Direitos dos Animais (Afada) e a justiça argentina entendeu que o caso da orangotango se tratava de “confinamento injustificado de um animal com provada capacidade cognitiva”.[48]

5.4. Brasil

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro deparou-se recentemente com uma lide que cada vez mais é comum nos tribunais, porém, há ausência de lei específica que a regule. O caso envolvia um casal que discutia a “guarda” de um cachorro chamado Dully e, conforme a matéria em pauta, ainda é um caso raro nas discussões dos tribunais Brasil afora.

Conforme o teor do recurso de apelação nº 0019757-79.2013.8.19.0208, discutido no TJ/RJ:

“[…]Cuida-se de recurso de apelação contra sentença que julgou procedente o pedido para reconhecer e dissolver a união estável havida entre as partes e determinou que a autora ficasse com a posse do cão de estimação da raça Coker Spaniel […][49]

Insurge-se o réu unicamente com relação à posse do animal de estimação[…]”

O relator em face do ineditismo da causa ainda expressou sua visão a respeito dessa espécie de lide, envolvendo a dissolução da sociedade conjugal:

“[…] já é mais do que hora de se enfrentar, sem preconceitos, e com a serenidade necessária, a questão que aqui se ventila e que envolve, justamente, a posse, a guarda e o eventual direito de desfrutar da companhia do animal de estimação do casal, quando finda a sociedade conjugal […]”[50]

Citou ainda o projeto de lei nº 1.058 de 2011, que tramita na Câmara dos Deputados a respeito da guarda compartilhada de animais de estimação em face da dissolução do vínculo conjugal. Levando em consideração o animal do casal não como objeto, sujeito à propriedade, mas como animal não humano que tem laços afetivos com o casal e deve ficar sob a guarda (os cuidados) de quem apresentar maior vínculo afetivo ao mesmo. Dentre vários artigos, traz o seguinte:

“[…] Art.2°- Decretada a dissolução da união estável hétero ou homoafetiva, a separação judicial ou divórcio pelo juiz, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos animais de estimação, será essa atribuída a quem demonstrar maior vínculo afetivo com o animal e maior capacidade para o exercício da posse responsável.

Parágrafo único: entende-se como posse responsável os deveres e obrigações atinentes ao direito de possuir um animal de estimação[…]”[51]

Por fim, em face da complexidade da lide e do notável afeto que ambas as partes nutriam pelo animal, o relator decidiu pela “guarda compartilhada” do animal, mesmo que para fins jurídicos o termo mais usual fosse “posse compartilhada”, dada a denominação desfavorável dessas criaturas no ordenamento jurídico. Ao ler o teor do acórdão, é notável a preocupação do relator com as condições do animal, que é de idade avançada, e o interesse em que o mesmo possa desfrutar da melhor configuração de guarda possível, em límpido caso em que o judiciário tem que preencher as lacunas deixadas pelo legislador. O teor do voto:

“Ex positis, voto no sentido de conhecer e dar parcial provimento ao recurso, para os fins acima anunciados, quais sejam, permitido ao recorrente, caso queira, ter consigo a companhia do cão Dully, exercendo a sua posse provisória, devendo tal direito ser exercido no seu interesse e em atenção às necessidades do animal, facultando-lhe buscar o cão em fins de semana alternados, às 08:00h de sábado, restituindo-lhe às 17:00h. de domingo, tudo na residência da apelada”.[52]

Considerações finais

Levando em consideração o exposto, desde a evolução do direito como fruto da sociedade, o direito dos animais como uma minoria que merece ser protegida, bem como sua capacidade e a possibilidade de acesso ao judiciário, resta cristalino que é perfeitamente cabível à hipótese de “readequação” do entendimento majoritário brasileiro no âmbito jurídico a respeito das outras espécies.

Não resta dúvida que quanto mais produções científicas houver, maior será o amadurecimento das ideias expostas e o vasto nicho existente para tais estudos. Além disso, a contribuição que o Brasil pode oferecer sobre tal matéria, como um dos países com a maior biodiversidade do mundo, tem peso notável com relação aos países mundo afora.

O presente artigo é uma mínima contribuição em âmbito acadêmico para trazer à tona um assunto por muitos juristas esquecido, vez que o mundo evolui e vivemos em um tempo em que cada vez mais as pessoas prezam pelos direitos fundamentais e percebem a necessidade do respeito e da preservação do meio ambiente. Ora, o homem, através da ciência, percebe que o que era “coisa” tem a capacidade de sentir, pensar, planejar, sofrer e expressar em maior ou menor grau a partir da sua cognição passa a ser responsável (tutor) do bem-estar animal.

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Notas:
[1]SINGER. Libertação Animal, edição original em inglês. EUA, 1975. p. 22
[2] PORTELA. Kant e a concepção iluminista da razão. 2015. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11690&revista_caderno=11 Acesso em 07 Maio 2015
[3] KALSING, Deveres com respeito à natureza enquanto […], Revista Opinião Filosófica, v. 03; nº. 01. Porto Alegre 2012, p.38.
[4] FIGUEIREDO. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Brasil, 1913, p. 151. Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/31552/31552-pdf.pdf Acesso em: 02 Maio 2015.
[5] RYDER, filósofo britânico, psicólogo, estudioso de pesquisas em animais realizadas em laboratório.
[6]SCRUTON, filósofo inglês, escritor, explica sobre o bem estarismo que “uma pessoa pode amar os animais e acredita que têm o direito, sob as circunstâncias, que é moralmente permissível comê-los, caçá-los, mantê-los como animais de estimação, vestir as suas peles e até mesmo usá-los em experimentos. A verdadeira questão não é se devem fazer essas coisas, mas quando e como (tradução nossa). Animals rights and wrongs. Continuum. EUA, 2006, p.8.
[7] REGAN, filósofo norte-americano, professor da Universidade da Carolina do Norte, ativista dos direitos dos animais.
[8]SINGER. Libertação Animal, edição original. EUA, 1975. p. 23. Disponível em <https://olhequenao.files.wordpress.com/2011/12/peter-singer-libertac3a7c3a3o-animal.pdf> Acesso em: 02 Maio 2015.
[9] FIGUEIREDO. Bíblia, Português, Bíblia Sagrada, tradução. Encyclopaedhia Britannica, Edição Ecumênica. Rio de Janeiro, 1980, p. 8.
[10] LEMOS. Educação Adventista, Ser vegetariano. Disponível em: <http://www.educacaoadventista.org.br/blog/9/saude/574/ser-vegetariano.html> Acesso em> 03 Maio 2015.
[11] Ibid, p. 11.
[12] INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS ISLÂMICOS. O Alcorão Sagrado em Árabe, 16ª surata, AN NÁHL. Disponível em: <http:// www.ibeipr.com.br/ibei.php?path=alcorao/annahl> Acesso em 04 Maio 2015
[13] PRABHUPADA. Além do Nascimento e Morte, The Bhakti Vedanta Trust. São Paulo, 2011, p. 14
[14] Ibid, p. 17
[15] AMENTEMENTE. Lankavatara Sutra, Cap. VIII. Disponível em: <http://www.amentemente.com/Textos/O%20Lankavatara%20Sutra.html#Cap%EDtulo_VIII>. Acesso em: 04 Maio 2015
[16] FIGUEIREDO. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Brasil, 1913, p. 776. Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/31552/31552-pdf.pdf Acesso em: 04 Maio 2015
[17] JUNIOR e SASSON. Coleção Biologia – 3 volumes, Biologia 3, Capítulo VI, Atual Editora. São Paulo, 1980, p. 197.
[18] Ibiden, p.204.
[19] HORA DE SANTA CATARINA, Florianópolis, Projeto de Lei 1352/2014, aprovada em 25 de Março de 2015. Disponível em: <http://horadesantacatarina.clicrbs.com.br/sc/geral/noticia/2015/03/lei-que-proibe-tracao-animal-em-florianopolis-e-aprovada-na-camara-por-unanimidade-4726364.htm>. Acesso em: 01 Maio 2015.
[20] CHAVES apud ARISTÓTELES. A Política, Escala. São Paulo, 2011, p. 16.
[21] Ibid, p. 14 – 15.
[22] Ibid, p. 38.
[23] ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. França, 1948. Senado Federal. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf> Acesso em: 07 Maio 2015
[24]EXAME. O Histórico Discurso de Martin Luther King. São Paulo, 2013. Disponível em: http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/veja-na-integra-o-historico-discurso-de-martin-luther-king Acesso: 02 Maio 2015
[25] ONU, UNESCO. Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Bruxelas, Bélgica, 1978. Disponível em: http://www.urca.br/ceua/arquivos/Os%20direitos%20dos%20animais%20UNESCO.pdf Acesso: 02 Maio 2015.
[26] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: Artigo 225, Caput. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/. Acesso em 28 Mar. 2015.
[27] BRASIL. Lei 5.197, de 03 de Janeiro de 1997. Dispõe sobre a proteção a fauna e dá outras providências. Artigo 1º e seguintes. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5197.htm Acesso em 29 Mar. 2015.
[28] BRASIL. LEI N 10.406, de 10 de Janeiro 2002, Código Civil: Artigo 82. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm Acesso em 29 Mar. 2015.
[29] BRASIL. LEI N 10.406, de 10 de Janeiro 2002, Código Civil: Artigo 186. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm Acesso em 29 Mar. 2015.
[30] TAGORE apud EBERLE. Animais em juízo: direito, personalidade jurídica e capacidade processual. Revista de Direito Ambiental, fascículo 2. Salvador Anual. 2012, p. 349.
[31] REALE. Lições preliminares de direito, 9. ed. rev. Saraiva. São Paulo, 1981, p. 228
[32] TAGORE. Op. Cit., loc. Cit.
[33] BRASIL. LEI No 5.869, DE 11 DE JANEIRO DE 1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm Acesso em 29 Abr. 2015.
[34] SINGER. Ética prática. Tradução de Jefferson Luís Camargo, Ed. Martins Fontes. São Paulo, 1998, p. 135.
[35] REGAN, Tom. “The case for animal rights”. EUA, 1996, p. 70.
[36] GONÇALVES, Direito Civil Brasileiro, Parte Geral, Saraiva 12ª edição. Brasil, 2014, p.99.
[37] GONÇALVES. Direito Civil Brasileiro, Parte Geral, Saraiva 12ª edição. Brasil, 2014, p.99.
[38] GONÇALVES. Op cit, p.99
[39] COELHO. Curso de Direito Civil, Parte Geral, Vol.1, Saraiva. 2012, p.139
[40] TAGORE. Animais em juízo: direito, personalidade jurídica e capacidade processual. Revista de Direito Ambiental, fascículo 2. Salvador Anual. 2012., p. 351.
[41] COELHO. Op cit, p.138.
[42] COELHO. Op cit, p.140.
[43] People for the Ethical Treatment of Animals ou Pessoas pelo tratamento Ético aos animais (tradução nossa).
[44] Global Animal Partnership ou Parceria Global Animal (tradução nossa).
[45] The Nonhuman Rights Project ou Projeto dos Direitos não Humanos (tradução nossa).
[46] ACKNOWLEDGING SENTIENCE: GIVING MEANING TO ANIMAL WELFARE, Appendix A, Proposta de Revisão de ato Normativo da Nova Zelândia, publicado em meados de Setembro de 2012, disponível na página oficial do Parlamento da Nova Zelândia, ainda disponível em : <http://www.parliament.nz/resource/en-nz/50SCPP_EVI_00DBHOH_BILL12118_1_A359867/690c9fc65054a64c8f10ff783e967a7e662f6162>. Acesso em: 03 Jul 2015.
[47] THE NONHUMAN RIGHTS PROJECT. Judge Recognizes Two Chimpanzees as Legal Persons, Grants them Writ of Habeas Corpus, publicado em 20 Abr 2015. 2015. Disponível em: <http://www.nonhumanrightsproject.org/2015/04/20/judge-recognizes-two-chimpanzees-as-legal-persons-grants-them-writ-of-habeas-corpus >. Acesso em: 04 Maio 2015
[48] CORREIO BRAZILIENSE, Em decisão inédita, orangotango recebe habeas corpus na Argentina, postado em 21/12/2014 atualizado em 21/12/2014. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2014/12/21/interna_mundo,463006/em-decisao-inedita-orangotango-recebe-habeas-corpus-na-argentina.shtml> Acesso em: 04 Maio 2015
[49] SOUZA. Homem obtém posse compartilhada de cão de estimação, Correio Braziliense, 5 de fevereiro de 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-fev-05/homem-obtem-posse-compartilhada-cao-estimacao> Acesso em 07 Maio 2015
[50] Id. Ibid
[51] Id. Ibid
[52] Id. Ibid

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Luiz Roclayton Nogueira Bastos

 

Graduado em Direito pelo Centro Universitário Estácio do Ceará

 


 

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