Geovana Raulino Bolan – Bacharela em Administração – UFSC; Bacharela em Direito – UNISUL; Especialista em Direito Civil; Especialista em Direito Notarial e Registral; Curso de Derecho Registral para Registradores Iberoamericanos – UAM – Espanha – 2017. Conciliadora judicial. ([email protected])
Resumo: O tema principal do presente artigo mostra-se multidisciplinar, permeando o Direito Empresarial e o Direito Civil. Buscou-se analisar a forma apropriada para a outorga conjugal no ato de integralização do capital social da sociedade limitada, quando realizada por sócio casado em regime de comunhão universal de bens. A pesquisa, sem pretensão de exaurir o tema, é baseada nas divergências judiciais e doutrinárias, apresenta os valores basilares de cada um dos ramos, com vista a extrair, de cada uma das vertentes, seus argumentos e ponderações e assim contribuir para afastar a atual insegurança jurídica sobre a questão. Utilizou-se o método de procedimento monográfico e o comparativo, contemplando livros, artigos, jurisprudência.
Palavras-chave: Capital social. Integralização. Sociedade limitada. Outorga conjugal.
Abstract: The main theme of this research is multidisciplinary, permeating Business Law and Civil Law. An attempt was made to analyze the appropriate form for the marital grant in the act of paying up the share capital of the limited liability company, when carried out by a married partner under a regime of universal communion of goods. The research, without pretending to exhaust the theme, and based on judicial and doctrinal divergences, presents the basic values of each of the branches, with a view to extracting, from each aspect, their arguments and considerations and thus contributing to remove the current one. legal uncertainty on the issue. The monographic and comparative procedure method was used, including books, articles, and jurisprudence.
Keywords: Company capital. Payment. Limited society. Marital grant.
Sumário: Introdução, 1. Direito empresarial, 1.1. A pessoa jurídica, 1.1.1. Existência legal da pessoa jurídica, 1.1.2. Regime de responsabilidade limitada, 1.1.2.1. Capital social, 2. Do casamento, 2.1. Conceito, 2.2. Natureza Jurídica, 2.3. Regimes do casamento. 2.4. Regime da comunhão universal de bens. 2.4.1. Aspectos gerais. 2.4.2. Alienação de bens imóveis. 3. Divergências sobre a forma de participação do cônjuge na integralização de capital social. 3.1. Desnecessidade de ato específico. 3.2. Pela necessidade da outorga conjugal por escritura pública. 3.3. Pela possibilidade da outorga conjugal por documento particular – entendimento atual do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo. Conclusão. Referências.
Introdução
O Direito Civil e o Direito Empresarial compreendem ramos do direito que estão diretamente ligados às atividades do ser humano. O Direito Civil regula as mais diferentes situações da vida do cidadão, a exemplo do início e fim da personalidade, além das relações familiares e negociais. O Direito Empresarial, por sua vez, conduz as atividades empresariais, como por exemplo, a formação da pessoa jurídica, as espécies de empresários, formação das sociedades, entre outros.
A proposta deste artigo é apresentar tema que reflete preocupação e vigilância tanto para o Direito Civil quanto para o Direito Empresarial, de forma a analisar os argumentos apresentados pela doutrina e jurisprudência que visam espelhar a melhor solução dada para a questão da anuência do cônjuge do sócio de sociedade limitada no momento da integralização de capital social por bem imóveis, quando casados no regime da comunhão universal de bens.
- Direito empresarial
O Direito Empresarial refere-se ao ramo do direito responsável por abarcar todas as diretrizes que englobam os bens e serviços que o ser humano necessita para sobrevivência.
Numa tentativa de esclarecer no que consiste o Direito Empresarial, importante destacar os dizeres de Coelho (2018, p. 43): “As organizações em que se produzem os bens e serviços necessários ou úteis à vida humana são resultado da ação dos empresários, ou seja, nascem do aporte de capital – próprio ou alheio-, compra de insumos, contratação de mão de obra e desenvolvimento ou aquisição de tecnologia que realizam.”
Partindo dessa premissa, tem-se o Direito Empresarial como o ramo do direito que pretende regulamentar o funcionamento das atividades empresariais e seus principais agentes.
1.1. A pessoa jurídica
Diferentemente da pessoa natural, a pessoa jurídica é um ser abstrato, criado pelo homem para adquirir personalidade e distinguir as atividades pessoais das profissionais.
Gonçalves (2008, p. 181-182) diz que “o homem, por natureza, é um ser social que busca associar-se com sujeitos que o auxilie a atender suas necessidades”. Observando que, cada vez mais, formavam-se citadas associações, não pôde o direito ignorá-las, procurando então auxiliar na sua regulamentação.
No mesmo sentido, ao analisar o comportamento do homem, Gagliano e Pamplona (2017, p. 83) ensinam que “o homem é um ser gregário, ou seja, que busca agrupamento para atingir seus objetivos, sendo um comportamento que possui origem na natureza social e antropológica”.
Desta forma, ao originar um grupo de pessoas para atingir determinados objetivos, o direito concede a este grupo a possibilidade de aquisição da personalidade jurídica, de forma a viabilizar o exercício autônomo e funcional com personalidade própria.
1.1.1. Existência legal da pessoa jurídica
Para a pessoa jurídica regularizar suas atividades, necessário se faz o registro no órgão competente, conforme se depreende da leitura do art. 967 do Código Civil Brasileiro: “Art. 967. É obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início de sua atividade.”
No ato de constituição da sociedade os sócios elegem o regime de responsabilidade.
O presente artigo possui como escopo analisar o regime da responsabilidade limitada, motivo pelo qual limita-se a explicitar referido regime.
1.1.2. Regime de responsabilidade limitada
Ao tratar dos regimes de responsabilidade dos sócios, importante destacar desde já que as sociedades empresárias sempre responderão por suas obrigações, independentemente de seus sócios possuírem responsabilidades limitada ou ilimitada.
Assim, quando se fala em regime ilimitado ou limitado de responsabilidade, o tema se liga à figura dos sócios e não da sociedade empresária.
O regime de responsabilidade limitada busca uma proteção maior para os sócios, uma vez que sua função é limitar a responsabilidade conforme a participação no capital social. Trata-se do regime de maior utilização nos dias atuais pois confere segurança jurídica e autonomia patrimonial.
O Código Civil Brasileiro, em seu art. 1.052 aduz: “Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social”.
Ao analisar o artigo mencionado, verifica-se que pode haver hipótese de responsabilidade do sócio além da parcela referente ao capital social correspondente, o que acontece quando o capital social não está totalmente integralizado.
Sobre o assunto Coelho (2018, p. 142) elucida que: “Anote-se que o limite da responsabilidade subsidiária dos sócios pode ser “zero”. Vale dizer, se todo o capital social já estiver integralizado, os credores da sociedade não poderão alcançar o ativo do patrimônio particular de qualquer sócio com responsabilidade limitada. Deverão, em decorrência, suportar o prejuízo.”
Após expor os aspectos gerais do regime de responsabilidade limitada, importante conceituar capital social e a forma como pode ser constituído.
1.1.2.1. Capital social
O capital social é o patrimônio inicial da sociedade. Conforme ensina Zanetti (2008, p. 88) “o capital social é representado por um valor nominal em moeda corrente nacional no momento da formação do contrato social”.
Ao conceituar capital social, diz-se que “o capital social representa o montante de recursos que os membros da sociedade limitada pactuaram e subscreveram para o exercício da atividade da empresa, esta entendida, nos termos do art. 1.178 do CC/2002, como sendo qualquer ação ou trabalho relacionado à empresa, ou seja, objeto social ou a atividade negocial. Portanto, atividade da empresa é todo tipo de ato ou fato, atividade fim ou meio, vinculado à função normal do objeto social da sociedade empresarial, delineado, este objeto, pela função social da propriedade (CF/88, art. 170, III), em decorrência da supremacia do direito coletivo sobre o privado. (HOOG, 2008, p. 27).”
É da natureza da sociedade que os sócios contribuam para o capital social para que se totalizem as cotas sociais. Na maioria dos casos a contribuição para a formação do capital social se dá pelo pagamento em dinheiro. Porém, existe a possibilidade do sócio contribuir para a formação do capital social com bens ou serviços prestados, a depender do tipo societário. Sobre a formação do capital social importa destacar que, esta ocorre “através dos aportes, ou seja, da soma das contribuições dos sócios que é formado o capital social. Os aportes são transferidos em proveito da sociedade e não de seus sócios (TEIXEIRA, 2014, p. 80)”.
A integralização do capital social nas sociedades com regime de responsabilidade limitada pode acontecer em espécie, ou seja, com pagamento em moeda corrente, ou em bens de valores econômicos que serão incorporados ao patrimônio da sociedade.
O aporte em espécie dispensa maiores digressões. Em contrapartida, o aporte em bens merece algumas observações. O bem a ser integralizado pode constituir-se, por exemplo, em bem imóvel, móvel, crédito, direito de um contrato de locação, entre outros.
Merece destaque a diferenciação entre as cotas subscritas e as cotas integralizadas. O capital social subscrito é aquele prometido pelos sócios no momento da realização do contrato social, ao passo que a integralização do capital social se dá quando da entrega, efetivamente, do valor – ou bem – à sociedade.
Exemplificando o capital subscrito e integralizado
COELHO, Fábio Ulhoo, Fábio UlhoCoelho (2018, p. 179) traz que: “O limite da responsabilidade dos sócios, na sociedade limitada, é o total do capital subscrito e não integralizado. Capital subscrito é o montante de recursos que os sócios se comprometem a entregar para a formação da sociedade; integralizado é a parte do capital social que eles efetivamente entregam. Assim, ao firmarem o contrato social, os sócios podem estipular que o capital social será de $ 100, dividido em 100 quotas no valor de $ 1 cada. Se Antonio subscreve 70 quotas e Benedito, 30, eles se comprometeram a entregar respectivamente $ 70 e $ 30 para a formação da sociedade.”
A legislação brasileira não estabelece qualquer prazo para a integralização das cotas subscritas, podendo as sociedades darem início as suas atividades com o capital parcialmente integralizado (FRANCO, 2004, p. 237) Porém, se houver participação de menor no quadro societário, o Código Civil Brasileiro, em seu art. 974, § 3o, II, prevê que o capital deverá estar totalmente integralizado.
Ainda que integralizado, o capital social pode sofrer alterações com aumento ou redução, devendo a mesma constar do contrato social.
O aumento de capital social, muitas vezes, independe de desembolso por parte dos sócios, fazendo-se apenas a incorporação dos lucros. A partir do momento que a sociedade registra superávit contábil, e em sua deliberação os sócios decidem incorporar o valor que seria distribuído a título de dividendos, tem-se o aumento de capital sem o referido desembolso (MAMEDE, 2013, p. 100).
Antes de tratar especificamente das divergências sobre a participação do cônjuge na integralização de capital social por bem imóvel, importante destacar algumas normas vigentes no ordenamento jurídico eis que relevantes para a discussão da problemática a que se pretende abordar.
Da lei n. 8.934/94 (dispõe sobre o registro público de empresas e atividades afins) extrai-se o art. 37. A norma em destaque exige que os atos de constituição ou alteração de sociedade mercantil sejam firmados pelos titulares, pelos administradores, sócios ou seus procuradores, nada mencionando sobre a assinatura dos respectivos cônjuges, seja qual for o regime de casamento que o liga ao sócio envolvido na atividade empresarial.
Do Código Civil extrai-se o art. 1.667. A norma fixa que a comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com algumas exceções.
Do diploma civilista tem-se ainda o art. 220 que impõe para que a anuência ou a autorização de outrem, necessária à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento.
Assim, vê-se que o ordenamento jurídico pátrio estabelece (aparentemente) antinomias, o que implica considerar qual norma deve ser aplicada, levando-se em conta que a leitura dos artigos implica total insegurança jurídica aos sócios.
Se os bens passam a ser comuns, como pode o sócio transferi-lo sem a outorga de seu consorte, tendo em vista que o ato de constituição ou alteração não exige a presença do cônjuge?
Passa-se a examinar aspectos gerais do casamento, para então trazer as divergências sobre a forma de participação do cônjuge no momento de integralização de capital social por bem imóvel.
- Do casamento
Para o desenvolvimento do tema central e antes de abordarmos as divergências que se apresentam atualmente, importante delinear conceitos e elementos jurídicos voltados Direito de Família, especificamente sobre o instituto jurídico do casamento e os atributos formadores desta disciplina.
2.1. Conceito
Para definir o conceito de casamento, importante destacar que esta não é uma tarefa do legislador, mas sim da doutrina especializada, sendo que com o passar dos tempos, juntamente com a evolução da sociedade, o conceito de casamento sofreu diversas mutações.
Buscando elucidar e exemplificar a mudança do conceito de casamento, verifica-se um conceito que permaneceu clássico por muito tempo, trazido por Lafayette Rodrigues Pereira no ano de 1956, que ensinava: “o casamento é o ato solene pelo qual duas pessoas de sexo diferente se unem para sempre sob a promessa reciproca de fidelidade no amor e da mais estreia comunhão de vida (PEREIRA, 1956, p. 34).”
No mesmo sentido, Maria Helena Diniz leciona que o casamento “é o vínculo jurídico entre o homem e a mulher que visa ao auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de uma família (DINIZ, 2007, p. 35).”
Nos ensinamentos de Paulo Lôbo “o casamento é um ato jurídico negocial, solene, público e complexo, mediante o qual um homem e uma mulher constituem família, pela livre manifestação de vontade e pelo reconhecimento do Estado (LÔBO, 2009, p. 76).”
Percebe-se que os conceitos apresentados, ainda que de civilistas clássicos, não refletem o instituto do casamento dos dias atuais. É sabido, por exemplo, que, após diversas alterações legislativas, na contemporaneidade é permitido o casamento por pessoas de mesmo sexo.
Conforme ensina Mario de Carvalho Camargo Neto e Marcelo Salaroli de Oliveira, o estado da pessoa natural é composto pelo estado político, familiar e individual. No que diz respeito ao casamento, este se relaciona com o estado familiar, o qual pode ser definido com a união de duas pessoas, reconhecida e regulamentada pelo Estado, com o objetivo de criação de uma família (CAMARGO NETO e OLIVEIRA, 2014, P. 17).
Ainda, para concluir a conceituação de casamento, Flavio Tartuce cita que “o casamento pode ser conceituado como a união de duas pessoas, reconhecida e regulamentada pelo Estado, formada com o objetivo de constituição de família e baseado em um vínculo de afeto (TARTUCE, 2017, p. 41)”.
Assim, fica demonstrado que o casamento retrata a união de duas pessoas, independentemente dos sexos, que possuem o objetivo de constituir uma família, com todos os direitos e deveres contidos na legislação pátria.
2.2. Natureza jurídica do casamento
No que diz respeito a natureza jurídica do casamento, importante destacar a divergência existente sobre o tema, motivo pelo qual traz-se as posições doutrinárias existentes.
Luiz Guilherme Loureiro destaca que: “A natureza jurídica do casamento é controvertida. Para alguns, o casamento é um contrato, uma vez que se centra no acordo de vontades. Os autores que defendem essa posição, reconhecem, entretanto, que não se trata de um contrato comum: ele cria uma família e estabelece deveres de ordem patrimonial e não patrimonial entre os cônjuges. Para outra corrente da doutrina, o casamento é uma instituição. O contrato, sob ponto de vista técnico-jurídico, sempre tem por objeto um bem que possui valor patrimonial. Este não é o caso do casamento que, na verdade, é uma espécie de corpo social que ultrapassa as vontades individuais (LOUREIRO, 2019, p. 249)”.
O autor citado defende a posição de que o casamento trata-se de um contrato, uma vez que este importa em direitos e obrigações fixados por normas de ordem pública. Tal ideia é defendida também por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, que destacam: “o casamento é um contrato especial de Direito de Família. Claro está que, ao afirmarmos a sua natureza jurídica contratual, não estamos, com isso, equiparando o casamento às demais formas negociais, como a compra e venda, a locação, o leasing ou a alienação fiduciária (GAGLIANO E PAMPLONA, 2017, p. 1143).”
Sobre a teoria institucionalista, Maria Helena Diniz discorre que: “A concepção institucionalista vê no matrimônio um estado em que os nubentes ingressam. O casamento é tido como uma grande instituição social, refletindo uma situação jurídica que surge da vontade dos contraentes, mas cujas normas, efeitos e forma encontram-se preestabelecidos pela lei. As partes são livres, podendo cada uma escolher o seu cônjuge e decidir se vai casar ou não; uma vez acertada a realização do matrimônio, não lhes é permitido discutir o conteúdo de seus direitos e deveres, o modo pelo qual se dará a resolubilidade da sociedade ou do vínculo conjugal ou as condições de matrimonialidade da prole, porque não lhes é possível modificar a disciplina de suas relações (DINIZ, 2008, p. 41).”
Além da teoria institucionalista e da teoria contratualista, tem-se uma terceira corrente que classifica o casamento como sendo uma teoria mista ou eclética. Sobre esta teoria, Flávio Tartuce elucida que: Segundo essa corrente, o casamento é uma instituição quanto ao conteúdo e um contrato especial quanto à formação, corrente esta que é defendida por Eduardo de Oliveira Leite (Direito civil…, 2005, p. 50), Guilherme Calmon Nogueira da Gama (Direito…, 2008, p. 10-11), Roberto Senise Lisboa (Manual…, 2004, v. 5, p. 82), Flávio Augusto Monteiro de Barros (Manual…, 2005, p. 25), entre outros (TARTUCE, 2017, p. 43)”.
Flávio Tartuce defende a teoria mista, uma vez que menciona ser melhor considerar o casamento como um negócio jurídico bilateral sui generis, especial, o que o faz se tornar um negócio híbrido (TARTUCE, 2017, p. 44).
Assim, conclui-se que existem atualmente três teorias que buscam justificar a natureza jurídica do casamento, sendo elas: teoria institucionalista, teoria contratualista e teoria mista ou eclética.
2.3. Regimes do casamento
É sabido que o matrimônio enseja inúmeros efeitos de ordem pessoal, e ainda, outros tantos na esfera patrimonial, produzindo consequências que interessam ambos os cônjuges.
Ao optarem por unirem-se através do instituto do casamento, os nubentes devem adotar um regime de bens que regerá suas relações patrimoniais. Corroborando com o assunto, Maria Berenice Dias, aduz que: “Quando do casamento, é indispensável que esteja definido o regime de bens que irá reger as questões patrimoniais dos consortes. É necessária a existência de um regime de bens, pois o matrimônio não pode subsistir sem ele (DIAS, 2016 p. 302).”
Conforme Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho “por regime de bens, entenda-se o conjunto de normas que disciplina a relação jurídico-patrimonial entre os cônjuges, ou simplesmente, o estatuto patrimonial do casamento (GAGLIANO e PAMPLONA, 2017, p. 1235).”
Os diferentes regimes de bens existentes no sistema jurídico brasileiro encontram escopo no Código Civil Brasileiro, sendo eles: a) regime da comunhão parcial de bens, descrito entre os arts. 1.658 a 1.666; b) regime da comunhão universal de bens, descrito entre os arts. 1.667 a 1.671; c) regime da participação final dos aquestos, descrito entre os arts. 1.672 a 1.686, e, d) regime da separação de bens, descrito entre os arts. 1.687 a 1.688.
Importante destacar que o legislador cuidou de enumerar algumas hipóteses em que os cônjuges não podem optar por regime diferente da separação de bens. Essas hipóteses encontram-se descritas no art. 1.641 do Código Civil Brasileiro dando origem ao chamado regime da separação legal de bens.
Existe no ordenamento jurídico o regime da separação convencional de bens, que é aquele no qual os nubentes escolheram contrair matrimônio pelo regime da separação, e ainda tem-se o regime da separação legal de bens, que é a separação imposta pela lei, na qual os nubentes não podem pactuar de forma diversa.
O regime de bens legal, conforme Código Civil Brasileiro, é o regime da comunhão parcial de bens. Assim, se nada constar em sentido diverso no momento da habilitação do casamento, o regime adotado será o da comunhão parcial de bens. Entretanto, se for da vontade dos nubentes a eleição de regime de bens distinto do legal, será necessária a lavratura de um instrumento público para eleição do regime pretendido. Este instrumento denomina-se pacto antenupcial.
O presente artigo possui como foco analisar o regime da comunhão universal de bens, abordando o sócio da sociedade de responsabilidade limitada, bem como suas consequências na integralização de capital social por bens imóveis, motivo pelo qual limitou-se a trazer as características principais do referido regime.
2.4. Regime da comunhão universal de bens
De início será feita uma breve introdução abordando os aspectos gerais sobre o regime de bens em questão. Após, será apresentado o procedimento para alienação de bens, enfatizando como se dá a transferência de bem imóvel em integralização de capital.
2.4.1. Aspectos gerais
O regime da comunhão universal de bens era o regime legal até a entrada em vigor da lei n. 6.515/77, a chamada Lei do Divórcio. Desde a vigência da referida lei, para que os nubentes contraiam matrimônio por este regime necessário se faz a lavratura do pacto antenupcial, uma vez que o regime legal atual é o da comunhão parcial de bens, e para a eleição de qualquer outro regime o pacto antenupcial é instrumento obrigatório, conforme explicitado anteriormente.
Ao contrário da separação total de bens, o regime da comunhão universal de bens possui como finalidade a unicidade patrimonial. Está-se diante da fusão patrimonial de bens passados e futuros salvo exceções legais ou pactuadas através do pacto antenupcial.
No regime da comunhão universal de bens tem-se a comunicabilidade dos bens havidos onerosamente ou gratuitamente no curso do casamento, incluindo-se as obrigações assumidas (GAGLIANO e PAMPLONA, 2017, p. 1263).
Ainda que se tenham algumas hipóteses de exclusão da comunicabilidade, esta representa, na maioria das vezes, pequena parcela dos bens se comparados aos que integram a comunhão.
2.4.2. Alienação de bens imóveis
Com a celebração do casamento, salvo exceções, os bens passam a ser comuns, sendo que para a alienação de qualquer bem imóvel ambos os cônjuges necessitam consentir.
O tema proposto no presente artigo refere-se a integralização de capital social por bens imóveis efetuada por sócio de sociedade limitada casado pelo regime da comunhão universal de bens.
De início destacam-se alguns artigos do Código Civil Brasileiro que norteiam a transferência de bens imóveis. “Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. […] Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; III – prestar fiança ou aval; IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação. Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada (grifo nosso).”
Da leitura dos artigos acima transcritos depreende-se a necessidade de escritura pública para alienação de bens imóveis com valor superior a trinta salários mínimos além da necessidade da outorga conjugal para alienação de bens.
Como exceção à regra geral, a legislação extravagante abarca algumas hipóteses em que a regra do instrumento público para transferência de bens imóveis é mitigada.
Uma dessas exceções pode ser extraída do próprio art. 108 do Código Civil Brasileiro. A obrigatoriedade do instrumento público prevista refere-se aos imóveis com valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. Logo, imóveis com valor inferior podem ser alienados por instrumento particular, porém ambos os cônjuges devem participar do ato para que o negócio jurídico seja válido.
Porém, questão delicada e objeto do presente artigo, refere-se aos atos de transferência de imóvel para sociedade limitada através de integralização de capital social.
A participação do cônjuge casado pelo regime da comunhão universal de bens, no ato da integralização de cotas sociais por bem imóveis, enseja motivo de atual divergência, surgindo correntes que tratam diferentemente o tema.
A principal questão a ser analisada consiste nas antinomias jurídicas sobre a alienação de bens imóveis. O Código Civil prevê a necessidade de escritura pública para transmissão de bens imóveis com valor superior a 30 (trinta) salários mínimos, no mesmo momento em que prevê que anuência do cônjuge provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento.
Assim, se a integralização de capital social, pela lei específica, pode ocorrer por instrumento particular, poderá a anuência do cônjuge ocorrer por instrumento particular também? Destaca-se que a lei específica não menciona que o cônjuge pode participar do ato de constituição ou alteração da sociedade, mas apenas os sócios. E o cônjuge não sendo sócio, pode participar do ato pelo instrumento particular, ou deve obedecer o disposto no Código Civil sobre a exigência de escritura pública para o ato de transmissão de bens?
Fixados estes questionamentos, passa-se a analisar as decisões já exaradas pelos mais diferentes tribunais.
- Divergências sobre a forma de participação do cônjuge na integralização de capital social
3.1. Desnecessidade de ato específico
Como já mencionado, a lei n. 8.934/94 que dispõe sobre o registro público de empresas e atividades afins, em seu art. 64, deixa claro que a subscrição de cotas sociais através de bem imóvel poderá ocorrer por instrumento particular.
Anota-se que o próprio ato de constituição ou alteração da sociedade mercantil, depois de passado pela junta comercial competente, é instrumento hábil para a transferência do bem junto ao Ofício do Registro de Imóveis.
Sarmento Filho (2017, p. 244), analisando a questão em comento, defende que a subscrição de cotas sociais pode se dar através de integralização de capital social, ainda que somente por um dos consortes, desde que o cônjuge compareça no ato na qualidade de transmitente do imóvel, e não mero anuente .
Veja-se, a integralização de capital social não exige forma específica, podendo ser realizada por instrumento público ou particular. Assim, independente do instrumento, o autor defende que, se houver a participação do cônjuge na qualidade de transmitente, o ato é perfeitamente válido.
3.2. Pela necessidade da outorga conjugal por escritura pública
Sobre o tema é possível encontrar decisões exigindo escritura pública para tal outorga fundamentadas no art. 108 do Código Civil Brasileiro, uma vez que o cônjuge não é sócio, e, portanto não está incluso no rol do art. 64 da lei n. 8.934/94.
Nesse sentido, traz-se decisão do Tribunal de Justiça do Paraná: “APELAÇÃO CÍVEL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. REGISTRO DE IMÓVEIS. INTEGRALIZAÇÃO DE IMÓVEL OUTORGA UXÓRIA QUE NÃO PODE SE DAR POR SIMPLES ANUÊNCIA EM CONTRATO SOCIAL. INAPLICABILIDADE DO ART. 220 DO CÓDIGO CIVIL. TRANSFERÊNCIA DOS IMÓVEIS DAS CÔNJUGES E SUA CONCORDÂNCIA QUE DEVE SE DAR ATRAVÉS DE ESCRITURA PÚBLICA.AUSÊNCIA DE QUALIDADE DE SÓCIAS.INAPLICABILIDADE DO ART. 64 DA LEI Nº 8.934/1.994.SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DE APELAÇÃO NÃO PROVIDO (grifo nosso).”
Defendendo a obrigatoriedade de escritura pública, e ainda, exigindo que a cônjuge transfira a parte que lhe cabe no imóvel em favor da sociedade limitada, o Conselho da Magistratura de São Paulo decidiu que: “REGISTRO DE IMÓVEIS. Dúvida julgada procedente. Recusa de registro de instrumento particular de constituição de sociedade, pelo qual um dos sócios, casado sob o regime da comunhão universal de bens, pretende a conferência de bens imóveis para integrar suas quotas sociais mediante mera anuência de sua mulher. Inviável o registro, em razão da necessidade de a mulher transferir a parte que lhe cabe e não apenas anuir, o que é possível somente por escritura pública, já que não é sócia e, portanto, não busca integrar quotas sociais, a exemplo de seu cônjuge. Sentença mantida. Recurso não provido.”
Conforme exposto, ambas decisões culminaram na obrigatoriedade da escritura pública para a efetivação da integralização do capital social.
3.3. Pela possibilidade da outorga conjugal por documento particular – entendimento atual do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo
Sustentando que a anuência do cônjuge pode se efetivar por instrumento particular em consonância com o art. 220 do Código Civil Brasileiro, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo reformulou a tese anterior (que exigia a escritura pública para a outorga, com fundamento no art. 108 do Código Civil Brasileiro, uma vez que o cônjuge não é sócio, e, portanto não está incluso no rol do art. 64 da lei n. 8.934/94), passando a entender atualmente que a outorga uxória pode ser dada, sempre que possível, no mesmo instrumento. “REGISTRO DE IMÓVEIS – Negado registro de certidão de ato de alteração de contrato de sociedade empresária, para fim de transferência de imóvel com escopo de aumento de capital social – Dúvida julgada procedente, sob o fundamento de que não basta a anuência da esposa no instrumento contratual para viabilizar integralização, mediante conferência de bens, por parte de seu marido, que figura como sócio – Suposta necessidade de escritura pública – Entendimento que não deve prevalecer – Outorga uxória que se prova de igual modo que o ato autorizado, constando, sempre que possível, do mesmo instrumento – Inteligência do art. 220 do Código Civil, combinado com o art. 64 da Lei nº 8.934/94 – Título apresentado que se afigura, in casu, hábil para ser registrado – Recurso provido.”
O mesmo órgão ratificou o entendimento em decisão proferida em 30.03.2010: “REGISTRO DE IMÓVEIS – Instrumento particular de alteração contratual de empresa, em que deliberada a integralização de capital social pela conferência de bem imóvel – Registro negado – Dúvida julgada procedente – Exigência de que a transferência do quinhão do cônjuge virago para a sociedade seja materializada por escritura pública – Descabimento – Outorga uxória que se prova da mesma forma que o ato autorizado, nos termos do artigo 220 do Código Civil c.c. artigo 64 da Lei 8.934/94 – Registro viável – Recurso provido.”
Seguindo o raciocínio da dispensa de escritura pública, em decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, apelação cível n. 1.0324.14.000977-4/001, restou vencido o voto da relatora que entendeu pela necessidade de escritura pública no caso em questão. “EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL – IMÓVEL COMUM – SÓCIO CASADO EM REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS – ESCRITURA PÚBLICA – DESNECESSIDADE – OUTORGA UXÓRIA – DÚVIDA IMPROCEDENTE.
Nos termos do art. 220, CC, combinado com os arts. 64, da Lei 8.934/94 e 167, I, 32, da Lei 6.015/73, a exigência pelo Registrador de escritura pública em detrimento da outorga uxória não deve subsistir, eis que a autorização da varoa para integralização do capital social do bem imóvel pertencente ao varão é suficiente para, assim como a escritura pública, provar a ciência e aceitação da esposa. EMENTA: DÚVIDA – CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS – EMPRESA – CAPITAL SOCIAL – INTEGRALIZAÇÃO – IMÓVEL – SÓCIO CASADO – ANUÊNCIA DA ESPOSA – ESCRITURA PÚBLICA – NECESSIDADE.
1. Nos termos do artigo 64 da Lei nº 8.934/94, a certidão dos atos de constituição e de alteração de sociedades mercantis, passada pelas juntas comerciais em que foram arquivados, será o documento hábil para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação ou aumento do capital social, pelo que, em se tratando de imóvel, necessária se faz a escritura pública para que terceiro que não é sócio da empresa, possa anuir com a disposição (V. R. V.) (grifo nosso).”
Na mesma linha, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já decidiu: “APELAÇÃO CÍVEL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. REGISTRO DE IMÓVEIS. INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL. BENS IMÓVEIS. ESCRITURA PÚBLICA. DESNECESSIDADE. OUTORGA UXÓRIA. PRESCINDIBILIDADE. RECOLHIMENTO DE ITBI. IMUNIDADE. AVALIAÇÃO DOS BENS IMÓVEIS. COMPETÊNCIA FISCAL. – Na hipótese a sentença julgou extinto o procedimento de dúvida, em que a parte recorrente pretende integralizar capital social, consubstanciado em bens imóveis. – Tal ato de integralização, in casu, independe de escritura pública, outorga uxória, recolhimento de ITBI ou avaliação dos bens integralizados, motivo pelo qual a reforma da sentença é medida impositiva para determinar os registros nos moldes do que requerido. – ESCRITURA PÚBLICA: quando da integralização do capital social com bens imóveis, prescinde-se de escritura pública para a incorporação daqueles bens ao patrimônio da pessoa jurídica conforme arts. 35, VII, alíneas ‘a’ e ‘b’, e 64, da Lei nº 8.934/94; e art. 167, I, 32, da Lei nº 6.015/73. – OUTORGA UXÓRIA: a autorização do cônjuge virago, dentro deste contexto é suficiente para provar sua ciência e aceitação, pois uma cônjuge é sócia e a outra consta como anuente no contrato social. – ITBI: conforme artigo 156 da CFRB e artigo 36, I, do CTN não há incidência do imposto de transmissão quando se tratar de incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital social nela subscrito; – AVALIAÇÃO DOS BENS IMÓVEIS: os imóveis que serão transferidos para fins de integralização de capital social sujeitos à avaliação fiscal, fator este que descaracteriza a avaliação por profissional habilitado. APELO PROVIDO.(Apelação Cível, Nº 70075572073, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gelson Rolim Stocker, Julgado em: 25-01-2018)[0] (grifo nosso).”
O mesmo Tribunal ao analisar situação em que houve integralização de capital social por bem imóvel, e que o município competente procedeu à cobrança de ITBI sobre a fração do imóvel pertencente ao cônjuge, alegando que o mesmo não poderia ser imune ao tributo, uma vez que não satisfaz a condição de sócio, decidiu que a cobrança não era devida, tendo em vista que o cônjuge subscreveu anuência na alteração contratual, o que considerou instrumento hábil para referida transferência. “APELAÇÃO. REEXAME NECESSÁRIO. DIREITO TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. ITBI. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. ART. 156, § 2º, I, DA CF/88. INTEGRALIZAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL. OUTORGA MARITAL. CABIMENTO. Incide a imunidade do ITBI sobre todos os bens imóveis indicados à integralização do capital social. Ainda que o esposo não seja sócio, casado no regime de comunhão universal de bens, tem direito sobre as quotas da sócia majoritária. Apelo desprovido, sentença confirmada em reexame necessário.(Apelação e Reexame Necessário, Nº 70037092442, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Silveira Difini, Julgado em: 06-10-2010) (grifo nosso).”
Importante destacar trecho do voto do referido acordão: “[…] Por fim, desnecessária a transferência dos bens imóveis por escritura pública, uma vez que, como bem salientou o Juízo de origem, o art. 64 da Lei n. 8934/94, dispõe que o contrato social, com a devida outorga marital, arquivado na respectiva Junta Comercial é documento hábil para a transferência por transcrição no registro público competente dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação do capital social.”
Da leitura das decisões trazidas pode-se perceber uma inclinação para a dispensa da escritura pública, ainda que não seja o entendimento pacífico.
Conforme visto anteriormente, as juntas comerciais estaduais são responsáveis por registrar e arquivar os instrumentos de constituição das sociedades empresárias. Esses órgãos são subordinados ao Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, ligado ao Ministério da Economia, Indústria, Comércio Exterior e serviços.
O DREI, através de instruções normativas, estabelece normas gerais e procedimentos a serem adotados por todas juntas comerciais.
Em 02.03.2017 foi emitida instrução normativa n. 38 (posteriormente alterada pelas INs n.s 50, 54, 56, 58, 60, 61, 63 e 66), a qual instituiu os Manuais de Registro de Empresário Individual, Sociedade Limitada, Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, Cooperativa e Sociedade Anônima. Tendo em vista o tema do presente estudo, limitou-se a analisar o Manual de Registro das Sociedades Limitadas – anexo 02 da mencionada instrução normativa n. 38.
O Manual de Registro das Sociedades Limitadas, em sua pág. 14, ao tratar sobre a integralização de capital por bens traz que: “No caso de sócio casado, salvo no regime de separação absoluta, deverá haver a anuência do cônjuge no contrato ou declaração arquivada em separado. A integralização de capital com bens imóveis de menor depende de autorização judicial.”
Nota-se que a instrução normativa restou silente quanto à forma do instrumento, indo ao encontro dos princípios da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da propriedade privada, e ainda, da autonomia patrimonial, pois enseja a simplificação do procedimento, dando suporte a aplicação de mencionados princípios.
Após análise das possíveis formas da participação do cônjuge do sócio na integralização de capital social por bem imóvel, tendo em vista a falta de regulamentação específica, vê-se que o modo que se mostra mais adequado é a anuência do cônjuge no próprio instrumento de integralização, ainda que particular, uma vez que a lei n. 8.934/94 que regula a atividade, constou que o instrumento de integralização é hábil para efetuar o registro da transferência do imóvel, conforme seu artigo 64.
Diante o exposto, no momento da integralização de capital social, mostra-se desnecessária a exigência de documento apartado para fazer constar a outorga conjugal.
Conclusão
Após análise das divergências sobre a forma adequada para outorga conjugal na integralização de capital social por bem imóvel, viu-se que existe uma tendência na inexigibilidade de documento específico para tal ato.
Conforme visto, grande parte das decisões judiciais e administrativas entendem ser possível que o cônjuge compareça no próprio ato constitutivo, ou alteração contratual respectiva, para que exprima seu consentimento na integralização do bem imóvel em favor da sociedade.
O regime da comunhão universal de bens possui o escopo de universalizar os bens dos cônjuges, de forma que todos os bens, presentes e futuros, salvo exceções legais, se comunicam entre os consortes. Já quando se fala em integralização de capital social por bem imóvel, importante observar que haverá a transferência desse bem para o patrimônio da sociedade.
Viu-se que a legislação brasileira, em especial o Código Civil Brasileiro, disciplina como se deve dar a transferência de bens imóveis. O mesmo diploma prevê ainda, a obrigatoriedade de o cônjuge comparecer no ato.
Em contrapartida, a lei n. 8.934/94, que regula o registro público de empresas mercantis e atividades afins, dá suporte para que as integralizações de capital social por bem imóvel, se efetivem com o registro do próprio ato constitutivo, ou alteração contratual respectiva, ainda que seja um documento particular, indo ao desencontro com o previsto no Código Civil Brasileiro.
Sobre a transferência do imóvel para a sociedade empresarial, importante ressaltar que conforme lei n. 6.015, art. 167, “I”, 32, o Oficial do Registro de Imóveis é o responsável por fazer a análise do título apresentado.
Após a análise, o Oficial poderá registrar a transferência, ou ainda, emitir uma nota devolutiva, exigindo aquilo que entender necessário para a efetivação do ato. Vez que a legislação pertinente nada menciona sobre como deve ser a participação do cônjuge do sócio, fica a critério de cada registrador aceitar o título apresentado ou não.
Nesse sentido, dá-se espaço a enorme subjetividade e divergências. Pode-se citar como exemplo um ato constitutivo de uma sociedade limitada, em que um dos sócios – casado pelo regime da comunhão universal de bens -, integraliza suas cotas sociais através de dois imóveis. O primeiro imóvel localiza-se no estado de São Paulo, enquanto o segundo, em Minas Gerais.
Não raras às vezes, em situações similares, o interessado terá seu título registrado em um dos estados, ao contrário do outro, que se recusará e fará determinadas exigências. Por exemplo, o registrador de São Paulo não imporia óbice ao registro, ao passo que o registrador de Minas Gerais, exigiria uma escritura pública para a anuência do cônjuge.
Analisando esses dispositivos, fez-se um estudo de decisões, sendo possível perceber que não existe um posicionamento único sobre o tema. Há decisões que não exigem nenhum ato específico, assim como há outras que determinam a outorga conjugal no próprio ato de constitutivo da sociedade, ou alteração contratual.
Da leitura das decisões trazidas, é possível perceber uma tendência a não exigência de escritura pública para transferência da fração ideal pertencente ao cônjuge do sócio, tampouco para a sua anuência, sendo que esta pode se efetivar no próprio instrumento de constituição, ou alteração da sociedade empresária, amparada no art. 220 do Código Civil Brasileiro, e ainda, na lei n. 8.934/94.
Desta forma, fica demonstrada a importância de pacificação de entendimento a nível nacional, com escopo de proporcionar segurança jurídica e celeridade nos atos de integralização de capital social.
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