A Constituição de 1946: alguns aspectos

Introdução.

A análise da Constituição de 1946 inicia-se pelo estudo desenvolvido por  Pontes de MIRANDA em sua obra.[1]

O primeiro ponto levantado é a questão envolvendo problema de técnica constitucional na qual se pergunta se o funcionário público pode ser político ou se a Constituição deve torná-lo apolítico. Isto em virtude do fato de o mesmo estar em contato com assuntos da administração e exercerem autoridade.

Faz longa explicação a respeito das teorias existentes que procuravam caracterizar a relação entre o Estado e seus agentes.  Cita as teorias contratualista, a da locação de serviços, a do mandato, a que negavam a natureza de mandato e de locação de serviços, a que considerava tal relação jurídica como sui generis, teoria a qual considera vazia de conteúdo, a teoria do contrato de adesão e a estatutária.

Termina a análise inicial do assunto ao afirmar que o Título VIII daquela Carta Magna trata de todos os funcionários públicos, federais, estaduais e municipais.

A Constituição de 1946 dedicou o seu Título VIII aos “Funcionários Públicos”.

Silenciou no que diz respeito à obrigatoriedade do estabelecimento de estatuto do funcionalismo. O Estatuto de 1939 foi recepcionado pelo texto de 1946, mas, mesmo assim, no ano de 1952, foi promulgado o novo Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União (Lei 1711/1952).

Importante também foi o fato de ser promulgada a Lei 1890, em 13/06/1953. A mesma Lei marcou a introdução da legislação trabalhista comum no âmbito da função pública.

Assecibilidade aos cargos públicos.

Já na análise do art. 184 daquela Carta Constitucional, o qual tratava da acessibilidade dos cargos públicos a todos os brasileiros, destacavam os autores a existência de desconfiança de nosso povo em relação aos funcionários públicos. Isto em virtude de herança do Estado despótico e monárquico.

A Carta de 1946 sofrera influência da Constituição alemã que rompera com tradição mundial de até então  não se falar a respeito dos funcionários em seus textos. Esta influência já ocorrera na Constituição de 1934.

O texto constitucional de 1946 trazia o princípio de igualdade perante a lei, princípio o qual fazia clara a possibilidade de quaisquer brasileiros, natos ou naturalizados, ocupassem cargos públicos.

O princípio de igual acessibilidade dos cargos públicos aos brasileiros não excluiria, por si só, lei que permitisse entrada no serviço público a estrangeiros. O que havia, entretanto, era princípio de privilégio dos brasileiros natos e princípio de privilégio dos brasileiros em geral, de acordo com textos expressos da Constituição.

BRANDÃO CAVALCANTI, por sua vez, comenta o artigo 184 da mesma Constituição de 1946 tecendo críticas no que corresponde à terminologia usada. Para ele, dentro da terminologia então em vigor, que restringia o conceito de “funcionário público”, impróprio era o título do capítulo cujo conteúdo abrangia outras categorias de servidores, que não a dos funcionários.[2]

Para este autor, outras impropriedades existiam no artigo da Constituição, como a abertura dos cargos públicos a todos os brasileiros. Comentava que as demais funções públicas existentes e aceitas pela nossa terminologia jurídica não foram contempladas.

A despeito da crítica acima formulada, o preceito tinha natureza liberal e democrática, pois abria oportunidades para todos ingressarem no serviço público mediante provas de habilitação e requisitos, estabelecidos em lei.

Desta forma, devendo a lei estabelecer os requisitos para o ingresso na função pública, estes não poderiam desrespeitar os princípios de igualdade, sob pena de contrariar a Constituição.

Também não deveriam ser vedadas as exigências necessárias ao bom desempenho do cargo, tais como as físicas ou de sexo mais adequados ao exercício da função. Além disto, tais restrições não contrariavam as garantias constitucionais porque nelas se achavam explícitas, no final do artigo correspondente. O único ponto necessário era que as mesmas estivessem contidas em leis.

Ainda, certas exigências gerais que não estabelecessem discriminações poderiam fazer parte dos editais de concurso.

Ressalta Pontes de MIRANDA a possibilidade da União estabelecer limites para o exercício de profissões através da criação de lei material específica:

“De modo que o exercício de qualquer profissão é livre, mas observadas as condições de capacidade e outras que a lei estabelecer.”

Para o autor, as leis ordinárias deveriam criar os pressupostos para que os cargos fossem providos. Além do mais, os princípios da igualdade perante a lei e o da igual acessibilidade aos cargos públicos deviam ser respeitados. Por fim, não constituía infração a exigência de determinada idade máxima ou mínima, para a investidura.

Ao comentar que a Constituição de 1937 herdara quase todos os preceitos cogentes da Constituição de 1934 e que os programas de ambas eram quase superponíveis, ressalta o autor:

“Valia, portanto, a respeito de funcionários públicos, dizer-se que, desde 1934, pois a Constituição de 1946 enveredou pelo mesmo caminho, o feito do direito constitucional brasileiro é inconfundível, e por sua minúcia inigualado.”[3]

Já em relação aos direitos constitucionais dos servidores públicos e aos direitos constitucionais de acesso aos cargos públicos, em virtude da ausência dos mesmos na Constituição de 1891, no tocante às posteriores Constituições de 1394, 1937 e 1946, os tribunais naquele momento ainda se ressentiam de insuficiente meditação.

Entretanto, logo a seguir o autor explica, baseado em comentário de decisão que apreciara o direito público subjetivo de pessoa que pretendera inscrever-se em o concurso para o cargo de pretor tendo apenas 23 anos de idade sendo que o regulamento do mesmo exigia a idade mínima dos candidatos de 25 anos, que o direito subjetivo público de entrar em concurso:

“ Os direitos públicos subjetivos que podem derivar do princípio são muitos: a) o de se inscrever nos concursos, desde que satisfaça o peticionário as condições legais, constitucionalmente válidas, em geral exigidas, ou só exigidas na espécie; b) o de não ser tratado com desigualdade; c) o de ser escolhido de acordo com a lei; d) o de somente concorrer com os que se achem nas mesmas condições ou em condições equivalentes, segundo critérios legais, constitucionalmente válidos; e) o de não ter acesso condicionado de modo diferente do acesso de outros concorrentes que se acharem nas mesmas condições.”[4]

Acumulações remuneradas.

O trabalho de Pontes de MIRANDA com o texto do artigo 185 traz a noção primeiramente comparada da carta de 1946 em relação às Constituições de 1891,1934 e 1937.[5]

Primeiramente, a Constituição de 1891 vedava as acumulações remuneradas no texto de seu art. 73. Já a Constituição de 1934, no art. 172 e parágrafos, como é de conhecimento do leitor, vedava a acumulação de cargos públicos remunerados da União, Estados e Municípios, apresentando, porém, exceção das hipóteses previstas em seus quatro parágrafos.

A Constituição de 1937, novamente, de forma simples e sem exceções, através do seu art. 159, vedava a acumulação remunerada de cargos públicos da União, dos Estados e Municípios.

O intuito de se coibir o mal das acumulações era antigo. Os já conhecidos “cabides de empregos”  faziam referência a pessoas que tinham até oito empregos.[6]

O Decreto de 18 de junho de 1822, referendado por JOSÉ BONIFÁCIO já dizia:

Não tendo sido bastante as repetidas determinações ordenadas pelos Senhores Reis dêstes Reinos na Carta Régia de 6 de maio de 1623, no Alvará de 8 de janeiro de 1627, no Decreto de 28 de julho de 1668 e mais Ordens Régias concordantes com êles, pelos quais se proíbe que seja reünido em uma só pessoa mais de um ofício ou emprêgo e vença mais de um ordenado; resultando do contrário manifesto dano e prejuízo à Administração pública e às partes interessadas, por não poder de modo ordinário um tal empregado público ou funcionário cumprir as funções e as incumbências de que é duplicadamente encarregado, muito principalmente sendo incompatíveis êsses ofícios e empregos; e acontecendo, ao mesmo tempo, que alguns dêsses empregados e funcionários públicos, ocupando os ditos empregos e ofícios, recebam ordenados por aquêles mesmos que não exercitam, ou por serem incompatíveis ou por concorrer o seu expediente nas mesmas horas, em que se acham ocupados em outras repartições: Hei por bem, e com parecer do meu Conselho de Estado, exercitar a inteira observância das sobreditas determinações, para evitar todos estes inconvenientes, ordenando que os presidentes, chefes e magistrados das repartições, a que são adidos êsses funcionários, não consintam, debaixo de plena responsabilidade, que êles sejam pagos dos respectivos ordenados, ou sejam metidos nas fôlhas formadas para êsse pagamento, sem que tenham assiduo exercício nos seus ofícios e empregos; e que isto mesmo se observe, ainda mesmo com aquêles que tiverem obtido dispensa régia para possuírem mais de um ofício ou emprego na forma permitida no citado Alvará de 8 de janeiro de 1627, pois que essa graça não os dispensa por modo algum do cumprimento das funções e incumbências inerentes os seus ofícios e empregos.”[7]

BRANDÃO CAVALCANTI considera matéria de maior importância do título dos funcionários públicos na Constituição de 1946. Em função disto, faz o autor análise histórica desde a Carta de 1891 e aponta, antes, que a importância da matéria é:

“…tanto maior quanto se considera a sua repercussão econômica na vida do funcionalismo e a aplicação dos princípios de justiça social, pela distribuição dos cargos públicos por maior número de pessoas.”[8]

Ao comentar o art. 185 da Carta de 1946, explica que o exame retrospectivo e o desenvolvimento histórico do problema das acumulações são facilitadores da compreensão do regime instituído pela Constituição.  Ressalta que houve regressão ao sistema de 1934, criando situações onerosas ao Tesouro, pelo restabelecimento de vantagens que haviam sido suprimidas pela Constituição de 1937.[9]

Entretanto, o que foi estabelecido mais rigorosamente foi a proibição de acumulação com as exceções do cargo de juiz com o magistério secundário, superior e os casos previstos na Constituição; dois cargos de magistério; um cargo de magistério com outro técnico ou científico desde que haja correlação com a matéria e compatibilidade de horário.[10]

Primeira investidura.

O art. 186 da Constituição de 1946 trazia a determinação de que a primeira investidura em cargo público de carreira  e outros que a lei determinasse se daria por meio de concurso público e inspeção de saúde.

Chame-se atenção, portanto, para a exigência do concurso público para a seleção dos candidatos mais habilitados para o exercício do cargo pretendido.

A Constituição de 1891 era omissa a respeito e a de 1934 previa, em seu art. 169, a exigência de concurso público para que os funcionários públicos obtivessem o que mais tarde foi denominado estabilidade, após dois anos de efetivo exercício do cargo. Previa ainda que, para os funcionários não concursados, somente dez anos de efetivo exercício dos cargos eram capazes de assegurar-lhes a estabilidade que se referia a possibilidade de serem os mesmos destituídos em virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo. Em seu art. 170 era prevista a votação pelo Poder Legislativo de Estatuto dos Funcionários Públicos, o qual deveria obedecer à necessidade de que a primeira investidura do funcionário público no seu posto fosse precedida de exame de sanidade e de concurso de provas e títulos.

Deve ser lembrado que a Constituição de 1937, em seu art. 156 previsão de que o Poder Legislativo organizasse o Estatuto dos Funcionários públicos que, igualmente à previsão da Constituição de 1934, deveria preceder a realização de concurso público de provas ou de títulos para o ingresso de funcionários na carreira.

Nos postos de carreira das repartições administrativas a entrada também se dava através de concurso.

Diz  MIRANDA:

” A Constituição de 1946, art. 186, como a Constituição de 1934, art. 170, 2º, e a de 1937, art. 156, b), exige que a primeira investidura nos postos de carreira das repartições administrativas e nos demais que a lei determinar, se efetue depois de concurso (de provas ou de títulos).” [11]

Em seguida, explica o autor que os poderes públicos estavam todos eles impedidos de nomearem para postos de carreira das repartições administrativas, funcionários sem o concurso de provas ou de títulos.[12]

Em seus comentários ao art.186, BRANDÃO CAVALCANTI diz que o concurso é o meio normal e regular de provimento dos cargos públicos, pelo menos os do quadro. Isto o autor fala que é assim em virtude do próprio texto do artigo.

Traz exemplos de países como os Estados Unidos da América e a França para indicar que em um o concurso público já é uma realidade e em outro uma idéia vitoriosa.

Para o autor:

“O exame e a indicação dos candidatos classificados, é feito por um juri cuja composição depende de lei ou regulamento.

O poder competente para a nomeação fica sujeito à classificação feita pelo juri, com liberdade, porém, na nomeação, que não deixa de ser assim uma função discricionária, limitada exclusivamente na indicação e classificação do candidato.

Naturalmente a natureza dos concursos depende da função. As matérias e as provas de capacidade variam.”[13]

No nosso país, além do fato de o concurso público ser o meio mais indicado para o provimento dos cargos técnicos, exemplificando com os cargos do professorado e de Fazenda, o provimento dos cargos por concurso é postulado constitucional que não pode ser iludido com sofismas, tal é a sua clareza.[14]

No caso brasileiro, no tocante às mesas examinadoras e às provas, segundo as portarias do Ministro do Trabalho do Diário Oficial do dia 18 de junho de 1933, a regra geral era a da organização a critério de administração de mesas examinadoras para cada caso.

A exceção que havia era destinada aos institutos de ensino superior. Afinal, o Estatuto Universitário (Decreto nº 19.851, de 11 de abril de 1931) estabelecia um critério especial técnico para organização de mesas de concursos para o lugar de professor. Este é o texto de seu art. 54:

“O julgamento do concurso de títulos e de provas, de que tratam os artigos anteriores, será realizado por uma comissão composta de cinco membros que deverão possuir conhecimentos aprofundados da disciplina em concurso, dos quais dois serão escolhidos pelo Conselho Técnico administrativo dentre os professôres de outros institutos de ensino superior ou profissionais especializados de instituições técnicas ou científicas.”

O concurso de títulos consistia na apresentação de documentos que comprovassem a habilitação do candidato e variavam de acordo com a natureza da função.

Era o processo usado, por exemplo, para a nomeação dos juízes federais (art. 27 da Lei nº 221, de 1894; art. 14 do Decreto nº 848, de 1890, e art. 18 do Regulamento interno da Côrte Suprema).

O Estatuto da Universidade do Rio de Janeiro (Decreto nº 19.851, de 11 de abril de 1931) dizia o seguinte:

“O concurso de títulos constará da apreciação dos seguintes elementos comprobatórios do mérito do candidato:

I – dos diplomas e quaisquer outras dignidades universitárias acadêmicas, apresentadas pelo candidato;

II – de estudos e trabalhos científicos, especialmente daqueles que assinalem pesquisas originais, ou revelem conceitos doutrinários pessoais de real valor;

III – de atividades didáticas, exercidas pelo candidato;

IV – de realizações práticas, de natureza técnica e profissional, particularmente daquelas de interêsse coletivo.

Parágrafo único. O simples desempenho de funções públicas técnicas ou não, a apresentação de atestados graciosos não constituem documentos idôneos.”

Quando o concurso de títulos era conjugado com o de provas, apurando-se separadamente o valor de cada um, deveriam ser divididos os títulos em categorias, com valores para cada uma delas e obtida a nota global da soma das notas parciais.

Havia casos em que a conclusão de cursos especializados criados por lei dispensava outras provas, devendo-se considerar dois critérios. Tais critérios eram a prova de conclusão do curso e a atribuição de pontos naquela classificação.

Não havia nem poderia haver padronização das normas e das matérias dos concursos, variando assim de acordo com as peculiaridades de cada cargo a ser preenchido.

A  realização da prova de habilitação e a utilização do princípio do noviciado eram muito utilizados respectivamente pela Marinha e pelos Correios. A primeira era processo de exame para o preenchimento de cargos técnicos e este era o período dentro do qual o funcionário não gozava das garantias inerentes ao exercício efetivo do cargo.

Diplomas profissionais eram exigidos por lei para o exercício de muitos cargos técnicos pois estabeleciam uma presunção de capacidade em favor de seus portadores.

Aponta BRANDÃO CAVALCANTI:

“O art. 141 § 14 da Constituição vigente permite a exigência de prova de capacidade, para o exercício de qualquer profissão, e, com mais forte razão, podem as leis e regulamentos impor condições especiais de capacidade, para o exercício de muitos cargos técnicos.”[15]

A exigência era uma tendência que sempre mais ia sendo acentuada na legislação. Exemplo eram os trechos dos seguintes textos legais: dec. 23.196, de 12 de outubro de 1933, dec. 23.569, de 11 de dezembro de 1933, e o regulamento do decreto 57, de 29 de fevereiro de 1935.

No tocante à apuração do resultado das provas, ela era realizada de acordo com o critério estipulado para cada concurso, dando-se valor às diferentes matérias de acordo com a sua importância.

No tocante às provas exigidas nos concursos, algumas eram eliminatórias. Também costumava-se atribuir a cada matéria um determinado valor, expresso em número, índice correspondente à sua importância, índices denominados peso.

A classificação geral correspondia à média ponderada dos diferentes graus obtidos, observado o peso de cada matéria.

Estes eram os princípios regulamentadores da execução do dispositivo constitucional dos concursos para a primeira investidura dos funcionários públicos nos cargos.

A Constituição de 1946 ampliara preceito anterior incluindo, além dos cargos de carreira, os que fossem determinados por lei, além de acrescentar a obrigatoriedade da inspeção de saúde.

É de ser notado que a exigência constitucional do concurso não apresentava nenhum obstáculo à regulamentação legal, podendo esta estabelecer as condições e exigências mínimas para a seleção.[16]

Funcionários estáveis.

O art. 187 da Constituição de 1946 previa que eram somente vitalícios os magistrados, os Ministros do Tribunal de Contas, os titulares de ofício de justiça e os professores catedráticos.

As Constituições anteriores eram omissas a respeito do tema, mas estatuíam a respeito dos juízes como a de 1946 o fazia.

Segundo o texto do art. 189 da Carta de 1946, a diferença no tratamento entre funcionários públicos vitalícios e funcionários estáveis era a de que os vitalícios somente perderiam o emprego em virtude de sentença judiciária, além de que não havia extinção de cargo que estivesse provido.

O art. 188 da Constituição, por sua vez, estabelecia que eram estáveis os funcionários efetivos nomeados por concurso, depois de dois anos de exercício; depois de cinco anos, os funcionários efetivos nomeados sem concurso. Por fim, parágrafo único explicava que aos cargos de confiança e aos que lei declarasse de livre nomeação e demissão, não se aplicava o disposto no ”caput” do artigo.

O direito administrativo brasileiro reconhecia a existência de quatro classes de funcionários públicos. Eram elas as classes dos vitalícios, dos nomeados por concurso que tivessem já dois anos de efetivo exercício, dos nomeados sem concurso de provas, ou não, com cinco anos de exercício e, finalmente, a dos nomeados em virtude de concurso,  que ainda não tinham dois anos de exercício e os que, sem terem sido nomeados em virtude de concurso, ainda não tinham cinco anos de efetivo exercício.

A atribuição de privilégios e prerrogativas especiais exigia referência constitucional expressa. A sua ampliação não poderia ser admitida por lei ordinária.

A estabilidade absoluta no serviço público, só removível desde a sua admissão, em virtude de processo judicial, estava incluída nesta categoria de favores, os quais só poderiam ser ampliados por meio de revisão constitucional. Assim, estavam excluídos quaisquer outros funcionários e só poderiam gozar de vitaliciedade os magistrados, ministros do Tribunal de Contas, titulares de ofício de justiça e os professores catedráticos.

Lembra BRANDÃO CAVALCANTI:

“Não pode, por conseguinte, a lei ordinária estabelecer outros casos de vitaliciedade, dado o caráter excepcional do privilégio.

Os funcionários vitalícios constituem portanto, uma classe privilegiada no quadro administrativo.”[17]

A questão da vitaliciedade era entendida como privilégio contrário aos princípios democráticos só justificável por motivos muito relevantes.

Em função disto, era admitido e sustentado que a vitaliciedade deveria promanar somente de texto constitucional, não por texto de lei ordinária.

Perda do cargo.

O texto do art. 189 previa as situações ou hipóteses nas quais os funcionários públicos perderiam os seus cargos. Os funcionários vitalícios somente em virtude de sentença judiciária, os estáveis segundo o art. 188, no caso de se extinguir o cargo ou no de serem demitidos mediante processo administrativo em que lhes tivesse sido assegurado ampla defesa.

Para o caso de extinção do cargo que ocupava, restava o seu titular em disponibilidade remunerada até que se desse o obrigatório aproveitamento em outro cargo que fosse de natureza e vencimentos compatíveis.

MIRANDA aponta as exceções então existentes à regra da investidura nos cargos públicos pela via concursal presentes no art. 63, I. Tais como os postos de missão diplomática e de Procurador Geral da República, além das outras deste último artigo. Isto ele o faz para explicar:

“ Quando a investidura se fêz mediante concurso, o funcionário público não pode ser destituído do cargo para o qual se apresentou e obteve, ou do cargo ao qual ascendeu, se esteve mais de dois anos em exercício, salvo sentença judicial, ou mediante processo administrativo, regulado por lei e no qual se lhe assegure plena defesa, ou se fôr extinto o cargo (caso de disponibilidade).”[18]

O funcionário público que houvesse sido investido no cargo sem concurso e nele permanecido por cinco anos, ou, já o tendo exercido há mais de dois anos, da mesma forma, e, somente posteriormente se submetesse ao procedimento concursal, ou, ainda, o que permanecesse dois anos dentro dos quais fizesse o concurso, estava equiparado ao que há mais de dois anos tivesse sido nomeado em virtude de concurso e exercido o cargo.

A vitaliciedade significava o fato de não poder ser afastado do cargo senão por sentença judicial. Isto teria dificultado as reformas de ensino, haja vista a necessidade de aceitação pela parte dos professores da aceitação de outras cadeiras que não as suas.

Os funcionários estáveis só perderiam seus cargos em caso de extinção do mesmo, por sentença judicial ou por processo administrativo no qual existisse ampla defesa. O mesmo ocorria aos que tivessem os seus direitos reconhecidos por sentença, não havendo cargo que lhe correspondesse naquele momento, ou se algum ato anterior à Constituição lhes houvesse reconhecido o direito ao cargo e os pusessem em disponibilidade.

Do texto do art. 189 emanavam os direitos públicos subjetivos, tanto no concernente às vantagens econômicas, quanto ao título e à categoria. Os arts. 186 a 193, posto estivessem incluídos no título “Dos Funcionários Públicos” , o que equivaleria a garantia institucional, tinham por fim, a proteção jurídica e a estabilidade dos princípios fundamentais a respeito deles, como indivíduos.

O art. 189 assegurava regras de estabilidade a quaisquer funcionários, federais, estaduais e municipais. 

O mesmo autor conclui as suas observações sobre o art. 189 com a afirmação de que toda a disponibilidade, naquele momento, era de vencimentos integrais e para provimento logo que fosse criado ou vagasse o cargo.[19]

Reintegração.

O art. 190 trazia em seu texto a determinação de que, caso fosse invalidada por sentença a demissão de qualquer funcionário, deveria o mesmo ser reintegrado e quem lhe ocupasse o cargo ficaria destituído de plano ou seria reconduzido ao cargo anterior, sem direito a indenização.

A Constituição de 1891 e a de 1937 nada previam a respeito do tema. A de 1934, em seu artigo 173, previa que “Invalidado por sentença o afastamento de qualquer funcionário, será este reintegrado em suas funções, e o que houver sido nomeado em seu lugar ficará destituído de plano, ou será reconduzido ao cargo anterior, sempre sem direito a qualquer indenização.”

Aposentadoria.

A aposentadoria dos funcionários públicos era tratada no art. 191 da Constituição de 1946. Pelo mesmo, o funcionário público seria aposentado por invalidez (inc. I), compulsoriamente e aos 70 anos de idade (inc. II).

Os parágrafos do mesmo artigo previam também que seria aposentado, se o requeresse, o funcionário que contasse com 35 anos de serviço.

Os vencimentos da aposentadoria seriam integrais, se o funcionário contasse com 30 anos de serviço, e proporcionais se por tempo menor.

Também receberia aposentadoria com vencimentos integrais o funcionário que se invalidasse por acidente ocorrido no serviço, por moléstia profissional ou por doença grave contagiosa ou  que conforme determinação legal fosse considerada incurável.

Em atenção à natureza especial de cada tipo de serviço, a lei poderia reduzir os limites de idade e de tempo de serviço para que o respectivo funcionário obtivesse o direito à aposentadoria.

Os casos existentes de aposentadoria eram somente os quatro conforme o artigo em comentário, ou seja, por invalidez; aos setenta anos de idade; a pedido do funcionário público que contasse com trinta e cinco anos de serviço; os casos de diminuição legal do limite de setenta anos para aposentadoria compulsória em função da natureza especial do serviço.

Demonstra Pontes de MIRANDA que existia direito público constitucional à aposentadoria se o funcionário público tivesse trinta e cinco anos de serviço. Segundo ele:

“A ação constitutiva negativa, que há de propor, se lhe fôr negada, administrativamente, a aposentadoria, aposenta o funcionário público desde o trânsito em julgado (eficácia constitutiva positiva).[20]

O texto do §2º fazia resultar direitos públicos constitucionais subjetivos, pretensôes e ações, à semelhança do que se passava no § 1º.

A aposentadoria por invalidez, por sua vez, dependia de lei que realizasse a sua regulamentação.

Explica o comentarista que os acidentes de serviço eram aqueles que resultassem do mesmo, ou que ocorressem durante o tempo do serviço, mesmo que não decorrentes dele. Isto para explicar que se o trabalho fosse perigoso e dele decorresse o acidente, justificada estaria a aposentadoria com vencimentos integrais, fosse qual fosse o tempo de serviço do aposentado. Se, ao contrário, qualquer acontecimento exterior ao serviço mesmo, alguma ocasião não prevista, ainda assim teria direito à aposentadoria integral o funcionário. Para tal, bastava ter o acidente ocorrido entre o início e o fim da jornada de trabalho do funcionário.   Ressalta, ainda, que não deveria ser excluído do benefício do art. 191, § 3º o acidentado:

“…que o tenha sido já no edifício do emprêgo, ou ao aproximar-se dêle, se a causa proveio do edifício, ou de dentro do edifício, bem como aquêle que, sendo chamado ao serviço em dias de perigo, de modo que não lhe cabia preferir a falta ao ponto à exposição ao risco, foi acidentado durante o trajeto. É o caso do empregado público que, havendo explosão, ou motim, ou outro qualquer perigo, entre o lugar em que se acha e aquêle em que é situado o emprêgo, tem de ir ao local, com aumento dos riscos normais, ou por Ter sido chamado, ou por ser o serviço de tal natureza que o obrigue a não faltar. Não é possível que, pesando o seu dever e o risco, não se dê ao Estado a obrigação de aposentar, com vencimentos integrais, o invalidado que pôs o seu dever adiante do perigo pessoal.[21]

Por fim, a lei poderia diminuir o limite para a idade da aposentadoria compulsória nos casos nos quais a natureza especial do serviço o exigísse, desde que obedecido o princípio de isonomia do art. 141, §1.

Tempo, proventos e responsabilidade.

Os três últimos artigos que tratavam dos funcionários públicos na Constituição de 1946 eram os de número 192 a 194 e parágrafo único.

Segundo o art. 192, o tempo de serviço público, em qualquer das três esferas governamentais, federal, estadual ou municipal, seria computado de maneira integral para os efeitos de disponibilidade e aposentadoria. Só não era contado o tempo de serviço em outra entidade estatal para a obtenção da estabilidade.

O artigo 193 tratava dos proventos da inatividade e sua revisão nos casos em que, por motivo de alteração do poder aquisitivo da moeda, se modificassem os vencimentos dos funcionários em atividade.

Nas Constituições anteriores não encontramos tal previsão.

Esta regra era destinada aos legisladores ordinários. De acordo com esta previsão constitucional, qualquer lei ordinária que não observasse este preceito constitucional poderia ser considerada inconstitucional pela justiça.

Por fim, o artigo 194 tratava da responsabilidade extracontratual da administração pública de forma que era aceito que as pessoas jurídicas de direito público interno eram civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causassem a terceiros. O parágrafo único do mesmo artigo previa o cabimento de ação regressiva contra os funcionários causadores de dano, desde que tivesse havido culpa dos mesmos.

Pontes de MIRANDA comenta este artigo revelando que a expressão “funcionários públicos” assim como o fizera no início dos comentários às disposições constitucionais referentes ao funcionalismo público, tem diferentes extensões.

Diz o autor:

“Tanto no direito penal quanto no direito civil e administrativo da responsabilidade perante o Estado, exercício da função pública e qualidade de funcionário público são co-extensivos. Critério estritamente objetivo e, portanto, mais largo, exige que se considerem funcionários públicos no art. 194 todos os que praticaram atos, ou incorreram em omissão, no exercício de função pública, sem se dever entrar, sequer, na apuração da legalidade ou ilegalidade na investidura”.

A modificação que foi operada pela Constituição de 1946 pode ser apontada pela substituição, em relação à Constituição de 1934, do princípio da responsabilidade em ação regressiva enquanto que a primeira adotou o princípio da solidariedade.

É o que diz MIRANDA:

“A Constituição de 1946, em vez de adotar o princípio da solidariedade[22], que vinha de 1934, adotou o princípio da responsabilidade em ação regressiva. Os interêsses do Estado passaram à Segunda plana, – não há litisconsórcio necessário, nem solidariedade, nem extensão subjetiva da eficácia executiva da sentença contra a Fazenda nacional, estadual ou municipal, ou contra outra pessoa jurídica de direito público interno. Há, apenas, o direito de regresso. Inferior, portanto, às Constituições de 1934 e 1937, nesse ponto, a de 1946. A legislação ordinária pode regular, todavia, os casos de litisconsórcio necessário e voluntário, de solidariedade e de extensão subjetiva da eficácia executiva da sentença.

Tal legislação não é excluída pelo art. 194.”[23]

Notas
[1] Miranda, Pontes de. “Comentários à Constituição de 1946” – Vol. IV – RJ: Henrique Cahen Editor, 1947. Pp. 135-175.
[2] ”A Constituição Federal Comentada” – Volume IV – 2ª edição – Revista e aumentada. José Konfino – Editor: RJ, 1953. Pp. 142-147.
[3] Ob. cit. ant. p. 148.
[4] Ob. cit. ant.p. 152.
[5] Ob. Cit. Ant. p. 152.
[6] Ob.  cit. ant. p. 153.
[7] Ob. cit. ant. p.153.
[8] Ob. cit. ant. p. 144.
[9] BRANDÃO CAVALCANTI .”A Constituição Federal Comentada” – Volume IV – 2ª edição – Revista e aumentada. José Konfino – Editor: RJ, 1953.
[10] BRANDÃO CAVALCANTI, Ob. Cit. ant. p. 162.
[11] Ob. cit. ant. p. 158.
[12] Ob. loc. cit. ant.
[13] Ob. cit. ant. p. 165.
[14] Ob. cit. ant. p. 167.
[15] Ob. cit. ant. p. 172.
[16] Ob. loc. cit. ant.
[17] Ob. loc. cit. ant. p. 175 apud URUGUAY, Paulino José Soares de Souza, Visconde do – Estudos praticos sobre a administração das províncias do Brasil (Acto Adicional), pelo Visconde de Uruguay. Rio de Janeiro, B.L. Garnier, 1865. 2v.
[18] Ob. cit. ant. p. 163.
[19] Ob. loc. cit. ant.
[20] Ob. cit. ant. p. 165.
[21] Ob. cit. ant. pp. 166-167.
[22] grifo do autor.
[23] Ob. cit. ant. pp.168-169.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Francisco Mafra.

 

Doutor em direito administrativo pela UFMG, advogado, consultor jurídico, palestrante e professor universitário. Autor de centenas de publicações jurídicas na Internet e do livro “O Servidor Público e a Reforma Administrativa”, Rio de Janeiro: Forense, no prelo.

 


 

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