A construção de uma Constituição: um resgate histórico do processo constituinte de 1987/1988 a partir do Diário da Assembleia Nacional Constituinte

Resumo: O presente artigo busca discutir, a partir dos registros históricos constantes do Diário da Assembléia Nacional Constituinte, a mobilização social que precedeu a deflagração do processo constituinte de 1987/1988 para, em seguida, tratar da instalação da Assembléia Nacional Constituinte e dos instrumentos de participação da sociedade no processo constituinte.

Abstract: This article seeks to discuss, from the historical records contained in the Diary of the National Constituent Assembly, the social mobilization that preceded the outbreak of the constitutional process of 1987/1988 to then deal with the installation of the National Constituent Assembly and participation tools society in the constitutional process.

Palavras-chave: processo constituinte, mobilização social, Assembléia Nacional Constituinte, resgate histórico.

Keywords: constituent process, social mobilization, the National Constituent Assembly, historical review.

Sumário: Introdução. 1. O movimento das Diretas Já. 2.A instalação da Assembléia Nacional Constiutinte. 3. Os instrumentos de participação social no processo constituinte de 1987/1988. Conclusão. Referências Bibliográficas

Introdução

O interesse pelo rico processo de criação da Constituição Federal de 1988 motivou a pesquisa que deu origem ao texto que ora se publica.

O processo constituinte de 1987/1988 foi precedido de uma mobilização social inédita na história brasileira. O contexto de criação da nova Constituição foi de ruptura paradigmática, motivada pelo anseio coletivo por uma mudança estruturante do ambiente político, econômico, social e jurídico.

Uma interessante e importante versão desse processo é contada pelo Diário da Assembléia Nacional Constituinte, constante dos Anais do Senado Federal e Publicações Oficiais da Câmara dos Deputados. O Diário contém registros dos debates que ocorreram durante a realização da Assembléia Nacional Constituinte, bem como de todo o procedimento que culminou na elaboração do texto constitucional de 1988.

Entre as várias perspectivas possíveis de estudo do processo constituinte de 1987/1988, escolhemos trabalhar com o resgate da sua história, tendo como ponto de partida e referencial o Diário da Assembléia Nacional Constituinte.

Assim, no presente artigo, discutiremos a mobilização social que precedeu a deflagração do processo constituinte de 1987/1988 para, em seguida, tratar da instalação da Assembléia Nacional Constituinte e dos instrumentos de participação da sociedade no processo constituinte.

1) O movimento das Diretas Já

Em abril de 1984, milhões de brasileiros foram às ruas pleitear a realização de eleições diretas para presidente da República, um episódio que marcou o processo de redemocratização do Brasil. A Campanha das Diretas Já surpreendeu o país com as dimensões da mobilização popular alcançada[1]. Após vinte anos sob a opressão de um governo ditatorial militar, uma multidão manifestou o descontentamento com o longo período de repressão e supressão de direitos. O pleito de eleições diretas refletia o anseio mais amplo por ruptura com a tradição autoritária tão marcante na sociedade brasileira e pela implantação de um regime democrático.

A reivindicação social por eleições diretas, contudo, resultou frustrada com a rejeição, no dia 25 de abril de 1984, pelo Congresso Nacional, da Emenda Dante de Oliveira, que previa a realização de eleições diretas para presidente da República. As eleições seriam, desse modo, mais uma vez indiretas.

A derrota no Congresso, porém, não significou a derrocada do processo político que conduzira à apresentação da Emenda do deputado Dante de Oliveira. Em artigo publicado em maio de 1984, Florestan Fernandes pondera que “em troca de uma ‘derrota parlamentar’, ganhamos um exército pronto para o combate político e, pela primeira vez em vinte anos, a ditadura não só foi virada pelo avesso, posta no pelourinho e desafiada por milhões de cidadãos conscientes e dispostos a tudo − foi batida dentro do campo da ordem ilegal que ela forjou” (FERNANDES, 1986, p. 179).

De fato, a Campanha das Diretas Já promoveu uma mudança qualitativa no cenário político ao demonstrar o potencial de participação da sociedade no debate das questões políticas. Ao trazer a público a discussão a respeito do sistema eleitoral, a ampla mobilização social alcançada nesse momento estimulou a reflexão mais abrangente acerca da necessidade de ruptura com o regime autoritário, fomentando a luta pela realização de uma Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana.

Em 27 de novembro de 1985, promulgou-se a Emenda Constitucional nº 26, que previa a reunião dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, no dia 1º de fevereiro de 1987. A convocação da Constituinte, embora tenha partido de cima para baixo e frustrado as expectativas de realização de uma Constituinte exclusiva e independente, resultou da articulação popular pela construção de uma nova ordem constitucional. A mobilização social surpreendeu até mesmo o governo militar, que sustentava o discurso da transição lenta e gradual, fechada à participação social e sem rupturas[2].

As limitações[3] impostas pelo ato convocatório da Assembléia Nacional Constituinte, todavia, não impediram a participação ativa da sociedade no processo de elaboração da nova Constituição. Em todas as fases do processo constituinte, setores mobilizados da sociedade se organizaram para dialogar com os constituintes e influir nas decisões políticas que sabiam ser fundamentais para o futuro do país[4].

2) A instalação da Assembléia Nacional Constituinte

A Assembléia Nacional Constituinte instalou-se em 1º de fevereiro de 1987, sob a presidência do Ministro José Carlos Moreira Alves, então presidente do Supremo Tribunal Federal, tal como determinado pelo Ato Convocatório. A sessão foi acompanhada por centenas de autoridades e convidados e, do lado de fora do Congresso, uma manifestação popular acompanhava a abertura dos trabalhos (COELHO, 1988, p. 41). Na sessão seguinte, também dirigida pelo Presidente do STF, elegeu-se o Presidente da ANC, o constituinte Ulysses Guimarães (PMDB-SP).

Definidas as bancadas partidárias e suas lideranças, a etapa seguinte foi a da elaboração do Regimento Interno. O momento foi marcado por conflitos e debates, sendo que uma das questões mais polêmicas referiu-se ao modo de elaboração e votação do futuro projeto de Constituição (COELHO, 1988, p. 43). Deveria ou não ser admitida a elaboração de um projeto prévio, tal como se tentara fazer antes da instalação da ANC, com a criação da Comissão de Assuntos Constitucionais, que ficou conhecida como “Comissão dos Notáveis”? A idéia de um projeto prévio, contudo, não encontrava apoio na opinião pública. Temia-se que tal projeto se tornasse “perigoso instrumento de controle sobre a Assembléia, quer partisse do governo, dos notáveis ou de uma comissão interna” (COELHO, 1988, p. 43).

 Decidiu-se, ao final, que não haveria projeto prévio. A atuação da ANC deveria ser organizada em quatro etapas: 24 subcomissões, 8 comissões temáticas, Comissão de Sistematização e Plenário. Uma questão que suscitou discussão entre os constituintes nesse momento referiu-se à participação direta da sociedade no processo de elaboração do texto constitucional. Diversas propostas e emendas foram apresentadas, assim como resistências e objeções (COELHO, 1988, p. 43). Alguns constituintes se opunham à participação ativa de cidadãos não-constituintes sob o argumento de que, caso fosse admitida, anularia o princípio representativo. Já outros, defendiam a intervenção da sociedade por entenderem que a medida, em vez de tornar inócua a representação, a fortalecia (COELHO, 1988, p. 43).

3) Os instrumentos de participação social no processo constituinte de 1987/1988

As discussões resultaram na previsão, no Regimento Interno, de instrumentos significativos de participação social: sugestões de entidades representativas da sociedade, bem como de Assembléias Legislativas, Câmaras de Vereadores e Tribunais; audiências públicas, nas subcomissões, com representantes de associações; emendas subscritas por, no mínimo, 30 mil cidadãos, em lista organizada por, ao menos, 3 entidades associativas; defesa das propostas populares perante a Comissão de Sistematização por um de seus signatários[5].

Conforme a proposta que norteou a elaboração do Regimento Interno, às subcomissões caberia, após o recebimento das sugestões populares, a realização de audiências públicas[6] e discussões internas, apresentar os primeiros esboços do Projeto de Constituição. Descartada a idéia de um projeto prévio, a futura Constituição deveria ser elaborada a partir do diálogo permanente da ANC com a sociedade, sendo a etapa das subcomissões aquela em que se discutiu com maior profundidade as tensões, problemas e reivindicações sociais. Nesse sentido, observa COELHO (1988, p. 45): “É provável que nenhum outro fórum oficial tenha sido tão profundo e tão diversificado no reconhecimento da realidade brasileira”.

Instrumentos de grande importância na democratização do processo constituinte foram as audiências públicas, realizadas perante as subcomissões. Nessa fase, criou-se um espaço específico para que a sociedade dialogasse com os constituintes, apresentando e defendendo, de forma dinâmica, suas propostas para a elaboração do texto constitucional[7]. Nas palavras de Florestan Fernandes (apud MICHILES, 1989, p. 64), as audiências públicas foram “uma espécie de audiência do Brasil real”, descrevendo, em seguida, a presença da sociedade nesse momento da Constituinte:

“Gente de diversas categorias sociais, profissionais, étnicas e raciais surge no centro do palco e assume o papel de agente, de senhor da fala. Um indígena, um negro, um professor modesto saem da obscuridade e se ombreiam com os notáveis, que são convidados por seu saber a lá comparecem para advogar as causas de entidades mais ou menos empenhadas na autêntica revolução democrática. O lobismo encontra, assim, um antídoto e os constituintes são devolvidos ao diálogo com o povo, agora não mais à cata de voto e em busca de eleição”

Em seguida às votações, passou-se a trabalhar sobre o texto aprovado a Comissão de Redação, criada em virtude da alteração do Regimento Interno. A redação final foi submetida a votação e aprovada em 22 de setembro de 1988. Em 5 de outubro, estava promulgada a sétima Constituição brasileira (COELHO, 1988, pp. 56/57).

Conclusão

Os registros constantes do Diário da Assembléia Nacional Constituinte revelam o quão intensa foi a participação da sociedade no processo de elaboração do texto da nova Constituição e o quanto essa participação interferiu na configuração de sua versão final.

O estudo do processo constituinte de 1987/1988 sob a perspectiva de resgate histórico, portanto, é fundamental para a compreensão do texto constitucional promulgado, sobretudo no que tange às conquistas de direitos fundamentais consolidadas na Constituição Federal de 1988.

Apesar de promulgada há quase 25 anos, a Constituição Federal de 1988 permanece em plena construção, pela qual são responsáveis todos os seus destinatários, ao interpretá-la e aplicá-la diariamente no exercício da cidadania.

 

Referências
1. Pesquisa documental
DIÁRIO DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE. Anais do Senado Federal e Publicações Oficiais da Câmara dos Deputados. Disponível na Internet via www.senado.gov.br e www.camara.gov.br. Acessos: agosto a novembro de 2006.
O PROCESSO HISTÓRICO DE ELABORAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL. Trabalho elaborado pela Seção de Documentos Legislativos da Coordenação de Arquivo da Câmara dos Deputados. Brasília, 1993.
CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS DE 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 E 1988. Brasil, Presidência da República. Disponível na Internet via www.presidencia.gov.br. Acessos em novembro de 2006.
2. Pesquisa bibliográfica
FERNANDES, Florestan. Nova República? Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
MICHILES, Carlos … [et al.]. Cidadão Constituinte: a saga das emendas populares.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
 
Notas:
[1] Sobre o ineditismo da mobilização popular ocorrida em 1984, observa Michiles: “Na década de 70, o simples mencionar da palavra “Constituinte” implicava uma certa dose de inconseqüência política. Ou seja, havia inoportunidade conjuntural, imposta pelo controle das classes dominantes, que não toleravam nenhuma alteração das regras do jogo político de então. Nessa época, nenhum analista político, por mais ousado que fosse, poderia prever que, em 1984, a população em geral, em multidões, lotaria as ruas e praças reivindicando eleições diretas para presidente da República” (1989, p. 19).

[2] Como observou o Constituinte Juarez Antunes (PT –RJ) (Diário da Assembléia Nacional Constituinte, 15 de Maio de 1987, p. 1968): “O projeto de transição em curso estava previsto pelos militares. Uma transição lenta e gradual, limitada aos estratos dominantes, sendo altamente controlada. O objetivo era transferir o poder aos civis, sem ruptura, mantendo o modelo político-econômico. No entanto, a crise do capitalismo mundial, aliada ao avanço do movimento popular, foi mais forte do que os militares e a burguesia esperavam”.

[3] Inúmeras foram as críticas ao modelo adotado para o funcionamento da Constituinte: “Alguns vícios da tradição autoritária brasileira já cercavam e minavam a perspectiva de uma Assembléia Nacional Constituinte livre, pois sobre essa Assembléia, eleita em 15 de novembro de 1986, pesavam inquestionáveis restrições: à sua idoneidade (Congresso Constituinte e não Assembléia exclusiva), à sua representatividade (eleita com base em critérios espúrios de proporcionalidade), à sua independência (marcada pela forte presença do poder de grupos econômicos), enfim, questões que sinalizavam para a advertência quanto à legitimidade e soberania da Constituinte” (MICHILES, 1989, p. 20).

[4] A título de exemplo, pode ser mencionada a criação do Movimento Nacional pela Constituinte e do Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte. Esses movimentos tinham por escopo o resgate da cidadania por meio do aprofundamento da participação social na Constituinte. Para a consecução desse objetivo, organizou-se, além da elaboração de boletins informativos distribuídos por todo o Brasil, a realização de “estruturas constituintes paralelas” no âmbito dos municípios e dos estados, propiciando o acompanhamento e a fiscalização permanentes das atividades da Constituinte pelo povo (MICHILES, 1989, p. 41).

[5] Coelho (1988, p. 44) observa que “a reunião de tais possibilidades é pelo, menos, incomum, na maioria dos processos constituintes de países populosos,e representa uma dimensão rica da Constituinte brasileira, embora, no campo puramente técnico e formal, aumente as dificuldades de calendário e de decisões”.

[6] O Regimento Interno previa a realização de 5 a 8 audiências públicas em cada Subcomissão, além do recebimento, durante o prazo destinado aos seus trabalhos, das sugestões encaminhadas à Mesa ou à Comissão. “No plano formal, o Relator das Subcomissões recolhia as sugestões e os depoimentos, elaborava um estudo preliminar e o submetia aos demais membros, abrindo-se a possibilidade de emendas. Estudadas estas, dava um novo parecer com substitutivo. Ao todo, foram apresentadas 6. 360 emendas nesta fase e realizadas 467 reuniões numa medida de quase 20 por Subcomissão” (COELHO, 1988, p. 45).

[7] “As audiências públicas constituíram um momento privilegiado no processo pedagógico de propiciar um amplo debate das grandes questões da ordem política, social, ecônomica e cultural contemporânea da sociedade brasileira. Surgiram em decorrência do fato de que uma Constituinte, para ser soberana, representando realmente as vontades da maioria e minorias, deveria começar seus trabalhos evitando soluções de cima para baixo, ou, como se dizia, a partir da formação de uma comissão de ‘notáveis’ encarregada de elaborar um anteprojeto de Constituição a ser posteriormente debatido pelos constituintes. Estabeleceu-se, então, como prioridade, a necessidade de colocar no lugar de ‘anteprojetos’ a vitalidade de todos os setores da sociedade a fim de que dela derivassem diferentes projetos e sugestões que, estes sim, deveriam orientar as discussões da Constituinte” (MICHILES, 1989, p. 65).


Informações Sobre o Autor

Mariana Lucena Nascimento

Defensora Pública Federal


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