A Dimensão da Dignidade da Pessoa Humana Aplicada Aos Povos Indígenas

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Patrícia Pasqualini Philippi[1]

Caroline Testoni Wehmuth [2]

 

RESUMO

O presente artigo tem como objeto a dimensão da dignidade da pessoa humana aplicada aos povos indígenas. A inserção da dignidade da pessoa humana como fundamento da Constituição da República Federativa do Brasil, teve por escopo a garantia de que a dignidade, característica intrínseca a todo ser humano, fosse o princípio absoluto de todo o ordenamento jurídico, visando fundar as bases de uma República Federativa pautada nos Direitos Humanos e na busca do bem-social. Do mesmo modo, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi pioneira ao tratar do direito dos indígenas e ao reconhecer a cidadania e o respeito à cultura dos povos originários. Nesse contexto, faz-se necessário abordar o tema da dignidade enquanto índio, para que sejam respeitadas as crenças e tradições desses povos. O método utilizado na elaboração deste artigo foi o indutivo e o método de procedimento o monográfico. A área abordada é o ramo do Direito Constitucional O levantamento de dados ocorreu através da técnica da pesquisa bibliográfica.

Palavras- chave: Constituição; Dignidade da pessoa humana; povos indígenas.

 

ABSTRACT

This scientific article is about the dimension of the dignity of the human person applied to indigenous people. The insertion of the dignity of the human person as the foundation of the Constitution of the Federative Republic of Brazil was aimed at guaranteeing that dignity, a characteristic intrinsic to every human being, was the absolute principle of the entire legal system. Federal Republic based on Human Rights and the search for social welfare. Similarly, the 1988 Constitution was a pioneer in dealing with indigenous rights and in recognizing citizenship and respect for the culture of indigenous peoples. In this context, it is necessary to address the issue of dignity as an Indian, so that the beliefs and traditions of these peoples are respected. The method used in preparing this course of study was the inductive method and the procedure was the monographic. Data collection was through the technical literature.

Palavras- chave: Constitution; dignity of the human person; indigenous people.

 

SUMÁRIO: 1. A dignidade da pessoa humana; 1.1. história e evolução do conceito; 1.2. A dignidade da pessoa humana como fundamento da constituição brasileira; 2. O direito dos povos indígenas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; 3. A dignidade da pessoa humana aplicada ao indígena.

 

INTRODUÇÃO

A dignidade da pessoa humana assume papel importante no contexto do Estado Democrático de Direito, ganhando mais força após os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. A dignidade da pessoa humana foi empregada em diversos tratados e documentos internacionais como forma de preservar os cidadãos dos terrores que assolaram o mundo naquela época.

De tal sorte, não se pode olvidar que o princípio da dignidade da pessoa humana está intimamente ligado aos direitos fundamentais, haja vista que no contexto nacional, encontra-se inserido no rol de fundamentos da República Federativa do Brasil, através do qual classifica-se como espinha dorsal de todo o ordenamento jurídico pátrio.

Do mesmo modo, a Constituição da República Federativa do Brasil, foi pioneira ao resguardar o direito dos povos indígenas, salvaguardando suas terras, línguas, culturas, tradições e crenças. Mas, acima de tudo, colocou os indígenas dentro do cenário jurídico nacional, representando grande vitória para essa população.

A partir de então, tomando por base que o fundamento da dignidade da pessoa humana deve reger todo o sistema jurídico-político nacional, vê-se a aplicação desse princípio em relação aos povos indígenas. Contudo, não obstante fazerem parte da cultura brasileira, os indígenas guardam suas peculiaridades e especificidades no que tange às crenças, tradições e costumes.

Há um consenso teórico acerca da ideia de dignidade da pessoa humana que reúne pensadores das mais diversas áreas do conhecimento. Todavia, a natureza polissêmica do conceito permite uma relação particular e subjetiva quanto às diversas culturas morais e sociais, no que tange a sua aplicação prática, legitimando, nesse sentido, comportamentos pontuais considerados reprováveis e indignos por outros contextos sociais.

O presente artigo abordará os âmbitos da dignidade da pessoa humana quando aplicada aos povos indígenas. Buscando estabelecer uma interpretação correta e sintonizada com o Estado Democrático de Direito, em observação à relevância desse instituto.

 

  • 1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
  • 1 HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DO CONCEITO

Muito se fala acerca da dignidade da pessoa humana e sobre sua fundamentação como princípio basilar do Estado Democrático de Direito, contudo, antes de analisar-se o conceito, insta esclarecer seu conteúdo histórico como forma de elucidar as diferentes visões filosóficas e doutrinárias desta questão.

Na antiguidade clássica verifica-se uma relação contundente entre a dignidade da pessoa humana e a posição social ocupada pelo indivíduo, tal qual seu grau de reconhecimento pela sociedade, como forma de classificar as pessoas mais dignas e menos dignas. Entretanto, o pensamento Estóico entendia a dignidade como qualidade inerente do ser humano, característica essa que os distinguia das demais criaturas[3].

Com efeito, Tomás de Aquino afirmava a noção de dignidade na circunstância de que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, mas também estabelecida na capacidade de autodeterminação própria da natureza humana, de forma que por força de sua dignidade o ser humano é livre por natureza[4].

Posteriormente Immanuel Kant tomando por base a natureza racional do homem, que lhe assegura a autonomia da vontade, ou seja, a faculdade de escolher seus atos e de reger a si próprio, consagra a dignidade da pessoa humana sustentando que

Todo homem tem uma legítima pretensão ao respeito de seus semelhantes e, reciprocamente, ele também está obrigado a este respeito em relação a todos os outros. A humanidade é ela própria uma dignidade, pois o homem não pode ser usado por nenhum homem apenas como meio, mas tem sempre de ser ao mesmo tempo usado como fim, e nisto (a personalidade) consiste propriamente sua dignidade, por meio da qual ele se eleva sobre todos os outros seres do mundo que não são homens e que podem certamente ser usados; e eleva-se, portanto, sobre todas as coisas[5].

Ainda, prossegue Kant em seu ensinamento, “o homem não é uma coisa, não é, por consequência, um objeto que possa ser tratado simplesmente como meio, mas deve em todas as suas ações ser sempre considerado com um fim sem si”[6].

Desta forma, observa-se que o princípio da dignidade da pessoa humana, moldou-se ao longo da história conforme a própria noção de humanidade se transformou, logo, a construção do conceito de dignidade é uma concepção formada por várias nuances sociais e éticas.

Consoante ensina o Ministro Luis Roberto Barroso, a dignidade da pessoa humana tem origem religiosa fundada na percepção do homem feito à imagem e semelhança de Deus. Porém, o Iluminismo ao promover a centralização do homem visa o conceito da dignidade da pessoa Humana com fundamento na razão e na capacidade de valoração moral, resultante da autodeterminação do indivíduo. Por conseguinte, após a 2ª Guerra Mundial a ideia de Dignidade da Pessoa Humana migra para o mundo jurídico, em razão do movimento que aproximou o Direito da filosofia moral e da filosofia política, bem como da relevância na inclusão da Dignidade da Pessoa humana em diferentes documentos internacionais e constituições de Estados Democráticos[7].

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Diante de tantas mudanças e adaptações na história, o ensinamento de Ingo Wolfgang Sarlet, se mostra extremamente atual e adequado, ao mencionar que a Dignidade da Pessoa Humana

[…] é qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co – responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.[8]

Vê-se, portanto, que a dignidade da pessoa humana é atributo da essência da pessoa humana, sendo o único ser que compreende os valores internos superiores a qualquer preço, e não admite uma substituição equivalente, logo, a característica “dignidade” é diferente e se confunde com a própria natureza do ser humano.[9]

1.2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

Especialmente no pós-guerra o princípio da Dignidade da Pessoa Humana tornou-se ainda mais relevante, tendo em vista que vários tratados internacionais e Constituições voltaram suas atenções para a proteção à vida e à liberdade, como forma de resguardar os cidadãos dos atos desumanos e terríveis que ocorreram naquele período.

No direito internacional, as referências à dignidade humana encontram-se em diferentes documentos, entre eles, a Carta das Nações Unidas de 1945, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, textos que invocam esse valor para apontar uma nova prospectiva de futuro, compatível com a dignidade humana, visando deixar para trás os horrores da Segunda Guerra Mundial.[10]

Seguindo tal premissa, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[11], amealhou como fundamento à República Federativa do Brasil a Dignidade da Pessoa Humana, conforme expressa em seu artigo 1º, inciso III,

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] III – a dignidade da pessoa humana;

Em relação ao texto constitucional assevera José Afonso da Silva,

A dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência humana. A Constituição, reconhecendo sua existência e sua eminência transformou-a num valor supremoda ordem jurídica, quando a declara como um dos fundamentos da República Federatica do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito. [12]

Desse modo, o constituinte brasileiro optou por considerar a dignidade da pessoa humana, expressamente, como um dos princípios fundamentais da República Federativa. É necessário esclarecer que essa condição de princípio fundamental não corresponde à mera declaração de conteúdo ético e moral, mas sim à norma jurídico-positiva, dotada de status constitucional formal e material e, dessa forma, carregada de eficácia.[13]

Tal decisão política foi fundamental para colocar a serviço da dignidade humana todos os poderes constituídos, a organização estatal, seus órgãos e servidores, a divisão e distribuição de funções, e garantias contra violações de direitos, demonstrando que o Estado só existe em função da pessoa humana, e não o contrário.[14]

Nesse ínterim, vê-se que a inserção da dignidade da pessoa humana no rol de fundamentos da República Federativa do Brasil aclarou o papel da Constituição como guardiã do bem-estar social, ficando conhecida, inclusive, por Constituição Cidadã. Consoante a este entendimento disserta Elpídio Donizetti

A dignidade da pessoa humana consiste em um valor constante, que deve acompanhar a consciência e o sentimento de bem-estar de todos, cabendo ao Estado garantir aos seus administrados direitos que lhe sejam necessários para viver com dignidade (direito à honra, a vida, à liberdade, à saúde, à moradia, à igualdade, à segurança, à propriedade, entre outros). [15]

Dessa maneira, em conformidade com Ingo Sarlet, o princípio da dignidade da pessoa humana é o elemento fundante e informador dos direitos e garantias fundamentais previstas na Carta Magna, servindo de parâmetro para aplicação, interpretação e integração, não apenas de tais pretensões constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico. Verifica-se ser inseparável a relação entre a dignidade da pessoa e as pretensões constitucionais, mesmo em ordens normativas nas quais a dignidade ainda não mereceu referência expressa, haja vista que os direitos fundamentais são inerentes à pessoa humana[16].

Contudo, não basta o reconhecimento formal da dignidade da pessoa humana, ela pressupõe condições mínimas de existência conforme os ditames da justiça social, senão, veja-se o ensinamento de José Afonso da Silva,

[…] É de lembrar que constitui um desrespeito à dignidade da pessoa humana um sistema de profundas desigualdades, uma ordem econômica em que inumeráveis homens e mulheres são torturados pela fome, inúmeras crianças vivem na inanição, a ponto de milhares delas morrerem em tenra idade. Não é concebível uma vida com dignidade entre a fome, a miséria e a incultura, a liberdade humana com frequência se debilita quando o homem cai na extrema necessidade, pois a igualdade e dignidade da pessoa exigem que se chegue a uma situação social mais humana e justa. Resulta escandaloso o fato das excessivas desigualdades econômicas e sociais que se dão entre os membros ou os povos de uma mesma família humana. São contrárias à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e à paz social e internacional.[17]

Nesse sentido, o que a experiência tem evidenciado é a extrema dificuldade em concretizar as vertentes do fundamento da dignidade, seja por questões de ordem cultural que debilitam a sua pretensão de universalidade, seja pela carência de recursos que impedem a efetivação dos serviços ou prestações de direitos fundamentais. E é por isso, que no âmbito judicial o princípio da dignidade da pessoa humana tem merecido tanta reflexão e desenvolvimento, inclusive manejando os repertórios de jurisprudenciais das mais importantes cortes constitucionais. [18]

 

2               O DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

O tratamento jurídico brasileiro conferido aos povos indígenas desde o período colonial restou atrelado à concepção de que estes constituíam entrave ao desenvolvimento nacional em razão de não se rederem aos objetivos políticos e econômicos predominantes, ou seja, conforme o período histórico brasileiro observa-se que a legislação indígena em vez de promover a tutela dos interesses das sociedades indígenas, se fundamentou basicamente na estigmatização desses povos, tratando-os de forma preconceituosa sem se importar efetivamente em atender suas necessidades. Tal peculiaridade esteve presente em todo o processo legislativo indigenista até o século XX, ocasião em que a Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 rompeu com a concepção até então adota.[19]

A partir deste marco, os direitos indígenas fundamentais inovaram não apenas na função de reconhecer a existência das comunidades nativas, mas, sobretudo, de assegurar o respeito ao seu modo de interação com o mundo, sua organização social, sua identidade cultural.[20] Sobre o tema preleciona Américo Luis Martins da Silva que esses grupos sociais reivindicam direitos de caráter coletivo, como a garantia do direito a terra, aos recursos naturais e principalmente à autodeterminação política e à cultura própria, dos quais o resguardo passa pela efetividade de seus direitos fundamentais.[21]

Sobre os direitos fundamentais dos povos indígenas a Constituição da República Federativa do Brasil[22] estabelece

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Em relação ao texto constitucional, José Afonso da Silva afirma que

A Constituição de 1988 revela um grande esforço da Constituinte no sentido de preordenar um sistema de normas que pudesse efetivamente proteger os direitos e interesses dos índios. E o conseguiu, em um limite bem razoável. Não alcançou, porém, um nível de proteção inteiramente satisfatório. […] É inegável, contudo, que ela deu um largo passo à frente na questão indígena, com vários dispositivos referentes aos índios, nos quais dispõe sobra a propriedade das terras ocupadas pelos índios, a competência da União para legislar sobre populações indígenas, autorização congressual para mineração em terras indígenas, relações das comunidades indígenas com suas línguas, usos, costumes e tradições.[23]

Não obstante a aplicação do princípio da organização social aos indígenas é de destacar que a maior preocupação do constituinte com esse segmento social concentrou-se na preservação das suas terras como habitat natural, ou seja, das terras tradicionalmente ocupadas, como condição necessária para o reconhecimento da sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.[24]

Pela primeira vez uma Constituição reconheceu a diversidade cultural e multietnicidade dos povos indígenas. Ressalte-se que essa valorização dos povos indígenas, somente foi possível mediante as pressões exercidas por diferentes comunidades junto ao Congresso Nacional, assim como a participação efetiva de diversas ONGS, associações científicas, antropólogos, juristas, religiosos etc.[25]  Sobre o tema Ana Valéria Araújo ensina,

Ao afirmar o direito dos índios à diferença, calcado na existência de diferenças culturais, o diploma constitucional quebrou o paradigma da integração e da assimilação que até então dominava o nosso ordenamento jurídico, determinando-lhe um novo rumo que garanta aos povos indígenas permanecerem como tal, se assim o desejarem, devendo o Estado assegurar-lhes as condições para que isso ocorra. A verdade é que, ao reconhecer aos povos indígenas direitos coletivos e permanentes, a Constituição abriu um novo horizonte para o país como um todo, criando as bases para o estabelecimento de direito de uma sociedade pluriétnica e multicultural, em que povos continuem a existir como povos que são, independente do grau de contato ou de interação que exer- çam com os demais setores da sociedade que os envolve.[26]

Assegurou-se ainda a educação indígena através da utilização das línguas nativas e dos seus próprios processos de aprendizagem. Com a nova disposição constitucional inverteu-se a postura da política indigenista até então praticada, pois agora não mais o “índio” necessita entender e incorporar-se à sociedade, mas a população brasileira que deve buscar os valores e concepções étnicas de cada grupo pertencente ao Estado brasileiro. Por essa razão, para Marcos Lorencette Monte o Estado deve oferecer condições para que a sociedade obtenha mecanismos de compreensão no relacionamento com os povos indígenas.[27]

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Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 representa uma conquista para os povos indígenas, diante do reconhecimento de sua cidadania e autonomia. Conforme aponta a Fundação Nacional do Índio – FUNAI,

Os indígenas são cidadãos, possuem todos os direitos do cidadão comum, além daqueles específicos garantidos pela Constituição. Tal previsão rompeu com a perspectiva integracionista e assimilacionista que caracterizavam o contexto jurídico-político do Estado até o fim da década de 80, dado que até então todas as políticas nacionais voltadas aos povos indígenas tinham o condão de “socializar” o índio, ou seja, tratavam a cultura indígena como se estivesse em extinção e, portanto, baseavam-se na integração deles à sociedade.[28]

A realização do principal marco jurídico brasileiro inaugurou uma nova fase do indigenismo e significou o rompimento, no campo do direito, com valores etnocêntricos que contribuíram historicamente para reforçar assimetrias nas relações entre o Estado e os povos indígenas. Contudo, cabe ressaltar, que apesar da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ter estabelecido um novo paradigma sobre os direitos dos povos originários do Brasil, rompendo com a perspectiva integracionista, a concretização dessa ruptura ainda é um processo em curso, como vê-se a seguir.[29]

 

3          A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA APLICADA AO INDÍGENA

No Brasil, os povos indígenas compõem 305 etnias, falam 274 línguas e totalizam aproximadamente 897 mil indivíduos.[30] Eles estão presentes em todas as Unidades Federativas do Brasil e cada povo possui uma cultura própria. Esta diversidade cultural consiste em uma das maiores riquezas do país, bem como também consiste um grande desafio para a elaboração e implementação de politicas públicas específicas e diferenciadas.

Há que se notar que os povos indígenas a partir da visão cidadã, conquistada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tiveram resgatada a sua cidadania subtraída  historicamente pela marginalização social, ou seja, atribuiu a cidadania indígena compreendendo os povos indígenas como sujeitos de direito. Todavia, essa cidadania não é comum, única e genérica, mas lastreada em direitos específicos, ou seja, uma cidadania diferenciada.[31] Nesse sentido, afirma Gersem dos Santos Luciano,

Direitos específicos e cidadania plural indicam teoricamente que os povos indígenas têm um tratamento jurídico diferenciado. Por exemplo, é concedido a eles o direito de terra coletiva suficiente para a sua reprodução física, cultural e espiritual, e de educação escolar diferenciada baseada nos seus próprios processos de ensino-aprendizagem e produção, reprodução e distribuição de conhecimentos. [32]

Partindo da ideia de que a legislação assegura tratamento jurídico diferenciado para os povos originários, como deve ser a aplicação do fundamento da Dignidade da Pessoa Humana no que concerne aos povos indígenas? Acredita-se que a Dignidade da Pessoa Humana deva ser reconhecida aos indígenas, por óbvio, sendo intrínseco à humanidade e à qualidade de cidadãos, contudo deve-se desconsiderar as definições fundadas na moralidade cristã ocidental, objetivando a dignidade pautada nas crenças morais e tradições subjetivas de cada sociedade indígena.[33]

Conforme disserta Paulo Rabelo,

Não é possível pensar em dignidade para os povos indígenas sem levar em consideração qual a compreensão que cada povo tem acerca do conceito, o qual, necessariamente, deve ser recepcionado pelo ordenamento jurídico que se pretende plural, como cláusula aberta, sem conteúdo pré-fixado, sob pena de se atingir objetivo diametralmente oposto ao pretendido, ou seja, materializar violência cultural que retira a possibilidade de autonomia, liberdade e autodeterminação dos povos – violentar e subtrair a própria dignidade. A dignidade indígena, portanto, deve ter suas bases em processo que parta da premissa de uma identificação profunda dos postulados culturais inscritos na personalidade e nas formas básicas de socialização. [34]

Cada povo indígena possui um modo próprio de organizar suas relações sociais, políticas e econômicas, seja as internas ao povo e aquelas com outros povos com os quais mantém contato. A organização política de um povo indígena geralmente está baseada na organização social feita através de grupos sociais hierárquicos. Acerca da diversidade cultural das tribos indígenas brasileiras, afirma Gersem dos Santos Luciano,

Essa diversidade cultural dos povos indígenas demonstra a multiplicidade de povos e das suas relações com o meio ambiente, com o meio mítico religioso e a variação de tipos de organizações sociais, políticas e econômicas, de produção de material e de hábitos cotidianos de vida. Pode-se afirmar que os modos de vida dos povos indígenas variam de povo para povo conforme o tipo de relações que é estabelecido com o meio natural e o sobrenatural.[35]

Conforme mencionado anteriormente, cada povo possui uma cultura revestida de especificidades e peculiaridades que a torna única. A percepção dos símbolos e significados somente será possível a partir de um mergulho profundo nesse universo com vistas a aprender o complexo simbolismo e de significados a partir da visão do outro. Entretanto, a capacidade de dialogar com outras culturas, encontra barreira na tendência não indígena de considerar as categorias, normas e valores da própria sociedade ou cultura como parâmetro aplicável às demais, o etnocentrismo.[36]

Tendo em vista que o Direito é uma forma de ver o mundo, semelhante à ciência, à religião, à ideologia ou à arte, esse processo de aprendizagem conceberá um sistema jurídico particular que atenda as peculiaridades e a realidade no conjunto de atitudes práticas sobre as diversas sociedades indígenas.

A dignidade aplicada aos povos indígenas, ressalvadas outras possibilidades para cada cultura, passa pela possibilidade de retomar o modo de vida de seus antepassados, poder caçar, pescar, circular livremente por sua terra, vivenciando dessa forma a compreensão indígena de território, e não mais de terra indígena formalmente demarcada, buscando nessa relação os frutos físicos e imateriais necessários à existência de uma dignidade indígena, possibilidade essa vedada a partir das múltiplas violências verificadas naquele espaço.[37]

Assim, o Estado em busca da igualdade material, haja vista a ultrapassada igualdade meramente formal, deve garantir a aplicação da Dignidade da pessoa humana aos povos indígenas tomando por base cada caso concreto e cada peculiaridade, visto que para esses povos as crenças e culturas se destoam, e muito, daquelas adotadas pela tradição cristã, e portanto, deve-se estabelecer uma aplicação diferenciada do regime jurídico forma de respeito, visando sempre preservar suas culturas que, afinal, são patrimônios do Brasil.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente estudo, verificou-se inicialmente a história e evolução do conceito e da aplicação da Dignidade da pessoa humana, a qual com o passar dos anos moldou-se aos diferentes estágios evolutivos da humanidade, vindo atualmente a ser caracterizada como qualidade intrínseca do ser humano, qualidade esta que o diferencia dos demais animais e que está intimamente ligada à capacidade de raciocínio desenvolvida pelos seres humanos.

Logo, conforme visto anteriormente, a Dignidade da pessoa humana trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro uma nova seara de princípios, que são fundamentais para colocar a serviço da dignidade humana todos os poderes constituídos, a organização estatal, seus órgãos e servidores, a divisão e distribuição de funções, e garantias contra violações de direitos, demonstrando que o Estado só existe em função da pessoa humana, e não o contrário.

Em seguida, tratou-se do direito dos povos indígenas à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, especialmente em relação ao artigo 231 do referido diploma. Viu-se que a Carta Magna inovou ao reconhecer aos índios o direito à preservação de sua cultura, língua, religião e tradições, representando grande avanço no que tange aos direitos dos povos de origem.

Por fim, buscou-se traçar um paralelo entre a aplicação do fundamento da Dignidade da pessoa humana e o direito conferido aos indígenas pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, haja vista que sendo cidadãos, a eles devem ser aplicados os princípios e fundamentos nela inseridos, como forma de embasar o ordenamento jurídico e as políticas sociais a que eles se referem.

Nesse diapasão, observou-se que a Constituição estabeleceu inovadoras diretrizes no que diz respeito ao direito dos indígenas, não dispondo mais a necessidade de assimilação das culturas, ou seja, não prevê mais a socialização do indígena. Já não era sem tempo, visto que tal pensamento remontava à época colonial.

De outro tanto, viu-se que diante das diferentes culturas indígenas existentes no Brasil, a Dignidade da pessoa humana deve ser aplicada fitando o respeito às diferentes tradições de cada comunidade. Isto porque, como afirmado no presente artigo, não se pode mais conceber o conceito de Dignidade como aquele pregado pelo cristianismo, os povos indígenas possuem diversas religiões e cada uma delas tem uma maneira diferente de tratar a Dignidade do indivíduo.

 

REFERÊNCIAS

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[1]     Advogada.  Especialista em Direito Constitucional; Especialista em Direito Penal e Processual Penal; Professora Mestre e Doutoranda pela Univali –Itajaí (SC). Professora de Introdução ao Estudo de Direito; Direito Penal; Direito Processual Penal e Prática Jurídica da Unidavi – Rio do Sul (SC). Coordenadora do Projeto de Pesquisa Direito Penal Crítico (2017) pela Unidavi de Rio do Sul, SC.

[2] Advogada.  Aluna pesquisadora do projeto de Pesquisa Direito Penal Crítico (2017) pela Unidavi de Rio do Sul, SC.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 30.

[4] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 31.

[5] KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Tradução Clélia parecida Martins. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 104.

[6] KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Tradução Clélia parecida Martins. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 106.

[7]BARROSO, Luis Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/themes/LRB/pdf/a_dignidade_da_pessoa_humana_no_direito_constitucional.pdf> Acesso em: 13 dez. 2016.

[8] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 73.

[9] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 37.

[10] HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, in SARLET, Ingo. As dimensões da Dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 45

[11]BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em>: 13 dez. 2016

[12] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 38.

[13] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 89.

[14] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 89.

[15] DONIZETTI, Elpídio. Princípio da dignidade da pessoa humana (art. 6º do projeto do novo CPC). Disponível´em: <http://elpidiodonizetti.jusbrasil.com.br/artigos/121940203/principio-da-dignidade-da-pessoa-humana-art-6-do-projeto-do-novo-cpc> Acesso em: 14 dez. 2016.

[16] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 94.

[17] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 39

[18]BRANCO, Paulo G. Gonet; COELHO, Inocêncio Mértires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 177.

[19] BARBOSA, Erivaldo Moreira; SOUZA, Manoel Nascimento de. Direitos Indígenas fundamentais e sua tutela na ordem jurídica brasileira.  Disponível em: <https://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8978&revista_caderno=9> Acesso em 14 dez. 2016.

[20] BARBOSA, Erivaldo Moreira; SOUZA, Manoel Nascimento de. Direitos Indígenas fundamentais e sua tutela na ordem jurídica brasileira.  Disponível em: <https://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8978&revista_caderno=9> Acesso em 14 dez. 2016.

[21] SILVA, Américo Luís Martins da. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pg. 49.

[22]BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em>: 14 dez. 2016

[23] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituiçã. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 867.

[24]BRANCO, Paulo G. Gonet; COELHO, Inocêncio Mértires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1427.

[25]MONTE, Marcos Lorencette. O pluralismo jurídico e os povos indígenas. 1999. Dissertação (Mestrado em Direito) – Coordenação de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999.

[26]ARAÚJO, Ana Valéria. Povos indígenas e a “Lei dos brancos”: o direito à diferença. Brasília: MEC/ Secad; Laced/Museu Nacional, 2006. Disponível em: <http://trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm.>  Acesso em: 15 dez. 2016, p. 45.

[27]MONTE, Marcos Lorencette. O pluralismo jurídico e os povos indígenas. 1999. Dissertação (Mestrado em Direito) – Coordenação de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999.

[28]BRASIL. Fundação Nacional do Índio. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/saude?limitstart=0#> Acesso em: 15 dez. 2016.

[29]BRASIL. Fundação Nacional do Índio. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/saude?limitstart=0#> Acesso em: 15 dez. 2016.

[30]BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <http://indigenas.ibge.gov.br/graficos-e-tabelas-2.html> Acesso em: 15 dez. 2016

[31]LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/ Secad; Laced/Museu Nacional, 2006. Disponível em: <http://trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm.>  Acesso em: 15 dez. 2016, p. 36.

[32]LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/ Secad; Laced/Museu Nacional, 2006. Disponível em: <http://trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm.>  Acesso em: 15 dez. 2016, p. 36.

[33]RABELO, Paulo. A Dignidade da pessoa humana pelo olhar indígena e a consolidação da igualdade material. Brasília: Revista científica ESMPU, 2012, p. 237.

[34]RABELO, Paulo. A Dignidade da pessoa humana pelo olhar indígena e a consolidação da igualdade material. Brasília: Revista científica ESMPU, 2012, p. 237.

[35] LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/ Secad; Laced/Museu Nacional, 2006. Disponível em: <http://trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm.>  Acesso em: 15 dez. 2016, p. 42.

[36] RABELO, Paulo. A Dignidade da pessoa humana pelo olhar indígena e a consolidação da igualdade material. Brasília: Revista científica ESMPU, 2012, p. 240.

[37] RABELO, Paulo. A Dignidade da pessoa humana pelo olhar indígena e a consolidação da igualdade material. Brasília: Revista científica ESMPU, 2012,  p. 239.

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