A Emenda Constitucional n. 45 e a súmula vinculante: Independência judicial, segurança jurídica e garantia de igual julgamento

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A legitimidade do Poder Judiciário não repousa, como a dos Poderes Legislativo e Executivo, sobre sua origem popular e representativa, já que o recrutamento dos Juízes se dá através da presunção do conhecimento jurídico, aferido em concursos públicos ou no “notório saber” dos membros dos Tribunais superiores. Por esse motivo, é necessário esclarecer os princípios e valores que tornam legítima a intervenção dos Juízes na solução dos conflitos públicos e privados.

A atuação do Judiciário justifica-se porque ela “reside na exclusiva sujeição dos Juízes às leis emanadas da vontade popular, e se expressa nas decisões judiciais, enquanto elas sirvam de suporte às aspirações da comunidade que são refletidas pelo ordenamento constitucional e legal”.[1] Daí porque o poder e o limite do Judiciário estão no respeito às garantias processuais e formais de sua atuação.

Nesse sentido, uma decisão judicial tomada sem respeito à lei e ao processo (no sentido de “devido processo legal”) é uma decisão ilegítima, tanto quanto uma decisão que fira os dispositivos da Constituição. Diferentemente do que ocorre com os Deputados e Senadores, cuja atuação não está presa a exigências formais, nem à obediência a qualquer ritual litúrgico, e que são legitimados para atuar durante o período de seu mandato, exclusivamente com as limitações constantes do texto constitucional, os Juízes se legitimam a cada processo, a cada decisão que proferem, na medida em que esse processo foi corretamente instruído e essa decisão foi legalmente prolatada.

A função jurídico-política da jurisdição é, portanto, a de satisfazer, de modo definitivo e irrevogável, os interesses jurídicos socialmente relevantes, através da aplicação da lei e do processo, julgando e executando as suas próprias decisões. No quadro dessa definição, parece claro que a jurisdição há de assegurar, como seu fundamento essencial, a imparcialidade e a objetividade das decisões, o que só pode ser obtido através de um processo que isole e impeça a consideração de qualquer influência ou estímulo externo, além da norma jurídica.

É através do processo que a jurisdição assegura que o Juiz se insira na realidade jurídico-material como Poder, no âmbito do caso concreto, em condição análoga àquela em que atua o legislador no nível geral. A Constituição atual passou a inscrever, no capítulo reservado aos direitos fundamentais, através de vários dispositivos, o postulado inarredável de que o processo é uma garantia do jurisdicionado, e de que a jurisdição, mais do que o monopólio da administração da justiça pelo Estado, passou a ser um direito público subjetivo dos jurisdicionados.

A independência dos órgãos do Poder Judiciário se manifesta, primeiramente, na própria separação dos poderes, e se desenha, externamente, pela inexistência de subordinação ao Poder Executivo, por um lado, e por outro, pela impossibilidade de subtraírem-se à apreciação do Judiciário, os atos do Legislativo e do Executivo, salvo quando assim determinado pela própria independência dos Poderes.

Nesse sentido, a idéia da independência dos Juízes e Tribunais aparece indissoluvelmente ligada à própria noção de Estado constitucional. Possui duas vertentes: a externa, que pode ser traduzida como a liberdade do Juiz de ter respeitadas e poder conferir eficácia às suas decisões; e a interna, perante a própria máquina judiciária, que deve, em qualquer caso, se abster de ingerências nas funções jurisdicionais dos Juízes, exceto em caso de recurso, e nas hipóteses agora introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, dentre as quais, está a de vinculação de suas decisões à Súmula do Supremo Tribunal Federal.

A referida Emenda introduziu importantes modificações na estrutura do Poder Judiciário, apresentando pontos sobre os quais foram travadas numerosas polêmicas públicas. Dentre eles, está a instituição da Súmula vinculante.

Neste contexto, passo, com todo respeito às numerosas opiniões contrárias, a tecer algumas considerações acerca dos aspectos positivos da instituição da Súmula viculante, através da análise conjunta de suas principais premissas: a manutenção e ampliação da independência dos Juízes e da autonomia do Poder Judiciário; a ampliação da segurança jurídica e do prestígio das decisões judiciais e a preservação do sistema judiciário federativo e sua adequação ao caráter nacional do Poder Judiciário brasileiro.

O caráter nacional da justiça e a segurança jurídica

A Constituição atual, seguindo a regra já consagrada nos textos anteriores, estabelece o caráter nacional da Justiça, ao enumerar os órgãos judiciários sem distinção entre os federais e estaduais, entre os de jurisdição ordinária e de jurisdição especial (Constituição, art. 92). Estipula, a Carta Magna, apenas, que o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores têm jurisdição em todo o território nacional, o que deixa subentendido que os demais Juízes e Tribunais possuem âmbito territorial mais reduzido de jurisdição.

Faz parte do modelo estrutural do Poder Judiciário brasileiro, em decorrência da sua concepção como corpo nacional indivisível, a garantia do reexame do mérito da causa, como reflexo dos princípios do “devido processo legal” e do “contraditório e ampla defesa”. Do ponto de vista do jurisdicionado, é um direito e, do ponto de vista da estrutura judiciária, é um pressuposto inarredável. Significa isso afirmar que o Poder Judiciário se estrutura de modo a garantir duas instâncias de exame das questões que lhe são submetidas: é o sistema da garantia do recurso ordinário, com reapreciação do processo e do julgamento por um órgão, em geral colegiado, de grau superior.

O sistema de dupla instância ordinária não é adotado em muitos ordenamentos constitucionais e, no Brasil, existe como imperativo de equilíbrio e garantia de justiça, em virtude da adoção de outro princípio do Poder Judiciário: o do “livre convencimento judicial” que, embora não esteja registrado expressamente no texto constitucional, deflui da própria organização do sistema.

Por força do “livre convencimento”, o Juiz decide com base em sua própria consciência e segundo o convencimento que, livremente, obtém do exame da causa, sem estar vinculado a qualquer decisão anterior, de qualquer Juízo ou Tribunal do País, exceto, agora, após a EC 45/04, no caso da Súmula adotada pelo voto de, no mínimo, dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal, ou das decisões tomadas pelo mesmo Tribunal, nas ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de leis e atos normativos.

Há, no direito comparado, no que diz respeito à liberdade de julgamento pelos Juízes, dois sistemas constitucionais: o do “livre convencimento judicial”, adotado no Brasil, e relativizado com o advento da EC nº 45/04, e o do “stare decisis“, adotado nos Estados Unidos da América do Norte.

O sistema norte-americano deriva da 14ª Emenda à sua Constituição, que, na sua Primeira Seção, estabelece que: “no state shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any state deprive any person of life, liberty, or property without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws. O Juiz Van Devanter[2], aplicando, na prática, o dispositivo, afirma que: “deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws”, meaning, of course, the protection of laws applying equally to all in the same situation.

A 14ª Emenda, aprovada em junho de 1886, interpretada pela Suprema Corte dos Estados Unidos, resultou no princípio, hoje emblemático do sistema judiciário norte-americano, do “stare decisis”. Nenhum Juiz ou tribunal norte-americano pode decidir contrariamente ao entendimento já manifestado, em caso semelhante, pela Suprema Corte ou por qualquer Tribunal de grau superior ao seu e, quando se tratar de grau semelhante, ainda assim a questão terá de ser, necessariamente, submetida a superior instância para uniformização.

No Brasil, a Constituição de 1988 adotou apenas parcialmente o princípio da 14ª Emenda à Constituição norte-americana, ao consagrar, no inciso LIV, do Art. 5º, o “devido processo legal”, porém sem referência à “igual proteção das leis”.

A independência do Juiz e o direito das partes

A independência do Juiz, sendo, como é, corolário direto da independência do próprio Poder Judiciário, e conseqüência histórica natural do monopólio estatal da jurisdição, deve ser analisada não de forma desvinculada da finalidade democrática da instituição judiciária, mas sim como parte indissociável de um conjunto maior, contido no próprio formato contemporâneo do Estado democrático de direito: as garantias do cidadão jurisdicionado, dentre as quais estão a segurança jurídica, o devido processo legal e, em outra medida, também o direito à equal protection of the laws.

A questão fundamental da análise dessas garantias reside em não considerar como valores antitéticos a independência do Juiz e o direito ao julgamento igual.

A meu sentir, a adoção da súmula vinculante não deve ser vista como desestruturadora da independência jurisdicional. Ao contrário. Deve ser encarada sob o seu aspecto positivo, isto é, como elemento de consolidação e de ampliação do prestígio e da segurança das decisões judiciais e, portanto, da sua independência.

É bem verdade que a EC/45 talvez tivesse sido mais eficaz se tivesse, pura e simplesmente, acrescentado uma proposição a mais ao inciso LV do art. 5º da Constituição:

“LV- aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, e igualdade nas decisões“.

Opcionalmente, e com o mesmo efeito, poderia consagrar o princípio no inciso anterior:

“LIV- ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal e o direito a igual tratamento judicial“.

Esta fórmula teria a considerável vantagem de consagrar o princípio não apenas como uma questão de adoção da jurisprudência como verdadeira e própria fonte de direito, mas sim como um direito fundamental do cidadão jurisdicionado, em seu acesso pleno à Justiça.

O caminho escolhido, porém, foi outro: a Constituição, após a EC/45, passou a conferir vinculatoriedade plena e indiscutível à Súmula do Supremo Tribunal Federal e às decisões tomadas por esse mesmo Tribunal nas ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade. E, se aprovada pela Câmara dos Deputados a Emenda do Senado à PEC originária da mesma Câmara, será instituída uma outra espécie de vinculatoriedade, esta mais limitada, à Súmula do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Superior do Trabalho, que passarão a determinar a negativa de seguimento de qualquer recurso contrário a elas. A Reforma e o projeto em curso, porém, não instituíram um sistema de vinculatoriedade decorrente da consagração do direito fundamental do jurisdicionado ao tratamento igual perante o Judiciário, mas sim um sistema pelo qual algumas decisões, consagradas pela reiteração e pela maioria qualificada de sua votação, passam a determinar ora as decisões de Juízes e tribunais em todo o País, ora a inadmissibilidade de recursos com alto grau de inviabilidade.

A questão da força vinculante das deliberações genéricas tomadas pelos Tribunais Superiores, sobre as decisões de Juízes e tribunais cujos recursos lhes devam ser encaminhados é esclarecida com o didatismo que caracteriza as reflexões de J. J. Calmon de Passos: “O tribunal, ao fixar diretrizes para seus julgamentos, necessariamente os coloca, também, para os julgadores de instâncias inferiores. Aqui, a força vinculante dessa decisão é essencial e indescartável, sob pena de retirar-se dos tribunais superiores precisamente a função que os justifica. Pouco importa o nome de que ela se revista – súmula, súmula vinculante, jurisprudência predominante, uniformização de jurisprudência ou o que for, – obriga. Um pouco à semelhança da função legislativa, põe-se, com ela, uma norma de caráter geral, abstrata, só que de natureza interpretativa. Nem se sobrepõe à lei, nem restringe o poder de interpretar e de definir os fatos atribuídos aos magistrados inferiores, em cada caso concreto, apenas firma um entendimento da norma, enquanto regra abstrata, que obriga a todos, em favor da segurança jurídica que o ordenamento deve e precisa proporcionar aos que convivem no grupo social, como o fazem as normas de caráter geral positivadas pela função legislativa“.[3]

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O defeito, portanto, da EC/45, quanto ao caráter obrigatório da Súmula do Supremo Tribunal Federal, não estaria, a meu sentir, em tê-lo instituído, mas sim, em não ter convertido essa regra em um verdadeiro e próprio sistema de adequação das decisões judiciais ao direito fundamental dos jurisdicionados, de obter decisões iguais para casos análogos.

O princípio da independência dos Juízes foi construído em trajetória histórica árdua no alvorecer do Estado de Direito e deve, sim, ser preservado e fortemente defendido. Até porque, como já dito, a independência do Juiz é um direito fundamental do próprio cidadão, erigido à condição de garantia do exercício de suas próprias liberdades. Trata-se da proteção do indivíduo contra o Estado, que poderia tender a influenciar as decisões judiciais em favor de alguns, se não fosse respeitada a independência dos julgadores. Mas não se pode desprezar o fato de que a independência e o prestígio do Judiciário dependem, diretamente, da segurança jurídica que suas decisões sejam capazes de proporcionar.

O fundamento da adoção da Súmula como fonte de direito e como determinante de decisões judiciais de grau inferior não é, portanto, ao menos diretamente, a adoção de um direito fundamental à igualdade de tratamento perante a Jurisdição, mas sim a ampliação da segurança jurídica e do prestígio das decisões judiciais, de um lado, e, de outro lado, a preservação do sistema judiciário federativo e sua adequação ao caráter nacional do Judiciário. Mas também atende, em grande medida, à necessidade de agilização das decisões judiciais e, lateralmente, contribui para o respeito à autonomia do Poder Judiciário.

Notas
[1] José Manuel Bandrés, Poder judicial y constitución, Barcelona (Bosch), 1987, pág. 11.
[2] Kentucky Finance Corporation v. Paramount Auto Exchange Corporation-Supreme Court, 1923.
[3] J. J. Calmon de Passos. Súmula Vinculante, in Revista Diálogo Jurídico, nº 10, janeiro de 2002.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Lucia Cavalleiro de M. Wehling de Toledo

 

Juíza de Direito do Estado da Bahia. Especialista em Direito da Economia e da Empresa (Fundação Getúlio Vargas)

 


 

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