A fatalidade positivista na atividade jurisdicional brasileira e a atualidade do debate Dworkin-Hart, integridade-discricionariedade

Resumo: Até a implementação do Estado Moderno a discricionariedade nas decisões públicas era o atributo da personificação do poder. A partir daí a dominação passa a ser legal-racional, resultando na tripartição do poder, separando-se política e jurisdição. Com o do Estado Democrático de Direito, no Brasil através da Constituição de 1.988, o Poder Judiciário é instado a decidir em novas arenas: públicas, coletivas, sociais e políticas. A análise de votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº 126.292, que passou a admitir a prisão do condenado após a decisão em segundo grau, independentemente do seu trânsito em julgado, revela-se a crise do Direito e o ocultamente da produção de sentido normativo do texto jurídico. Se do positivismo jurídico, de Kelsen e Hart, decorre o monopólio do decisor na atribuição de sentidos aos textos legais (discricionariedade), o direito como integridade de Dworkin é a pretensão de legitimação democrática da decisão jurídica, pela coerência interpretativa entre os argumentos jurídicos e os princípios da moralidade pública, como corolário do direito constitucional à fundamentação das decisões jurídicas e do próprio Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Direito. Positivismo. Discricionariedade. Estado Democrático de Direito. Integridade.

Abstract: Until Old State the discretion in decisions was the trait of particular power. In modern state the domination turn up as legal-rational, the result of tripartite division of powers,dividing politic and jurisdiction. With the Democratic Law State, in Brazil with the 1.988 Constitution, Judiciary starts deciding about new subjetics: politics, publics, collective, social and political conflicts. Taking as paradigm the analysis of the ministerial decisions of brazilian Supreme Court in habeas corpus 126.292, that decided about criminal arrestement after decision on second jurisdictional degree without res judicata effect, shows its concealment on normative sense production. If from the legal positivism, from Kelsen to Hart, it goes the monopoly of the juridical decision about the meaning of the legal text the Dworkin integrity intends to legitimate and democratize the jurisdiction, with consistency between juridical arguments and public morality, as compromise with the constitutional law and the legitimation of the judicial decisions and the Democratic Law State.

Keywords: Law. Legal Positivism. Discretion. Democratic State of Law. Integrity.

Sumário: Introdução. 1. O conceito de direito de Hart – direito como regras/textos e o poder discricionário dos juízes. 2. A principal crítica de Dworkin a Hart – princípios e direito como integridade. 3. O pós-escrito de Hart versus a defesa de Dworkin da importância da construção de uma interpretação jurídica integra para o Estado Democrático de Direito. 4. A fatalidade positivista na atividade jurisdicional brasileira – análise do habeas corpus 126.292 do STF. Considerações finais. 5. Referências.

INTRODUÇÃO

No meio acadêmico diversos temas jurídicos se entrelaçam em forma de reflexão, especialmente aquele sobre a interpretação da norma jurídica e a elaboração da decisão judicial como resultado da aplicação da lei e do Direito. A análise passa pela atividade judicial em frente ao constitucionalismo, este como o desenho político regulador de um estado e sociedade democráticos.

Tomando-se como paradigma a análise do conteúdo dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº 126.292 , julgado em fevereiro de 2016, segundo os quais o próprio texto da Constituição (art. 5º, LVII) admite a prisão do condenado após a decisão em segundo grau, independentemente do seu trânsito em julgado, resta revelado a crise do Direito pelo dissenso dos fundamentos e justificativas dos Ministros e o modo antidemocrático da produção de sentido normativo do texto jurídico pelos juízes.

A partir daí causa estranheza perceber a teoria do direito se adaptando constantemente às novas exigências externas e sociais de legitimidade da atividade jurisdicional, perdendo sua autonomia. Mas afinal o direito é aquilo declarado pelos juristas ou algo a ser democraticamente (re)construído?

Este trabalho centra-se, portanto, no debate Dworkin versus Hart, especificamente nas obras “O império do direito”, “Levando os direitos a sério” e o “O conceito de direito” e seu pós-escrito, visto que também interessa à filosofia jurídica definir o sentido da lei e do direito, sentido apto a legitimar e dar racionalidade às decisões jurídicas estatais coercitivas.

A preocupação central é saber se o juiz tem poder discricionário em sentido forte , escolhendo o sentido da norma de forma solipsista conforme crenças, valores, preocupações pessoais e institucionais ou objetivos políticos (positivismo jurídico, convencionalismo ou pragmatismo) ou se deve se submeter a um ideal (princípio) independente e superior e de cunho democrático, social e constitucional na definição deste sentido conforme sua melhor luz, a qual, por questão de princípio e integridade, mostraria a única decisão jurídica correta possível em cada caso.

Para Dworkin isso só é possível a partir de uma leitura moral da constituição, diante da cooriginariedade entre direito e moral, no qual o direito é íntegro porque se desenvolve em etapas coerentes, como um romance em cadeia.

Atacando o positivismo jurídico e a discricionariedade, Dworkin defende que decisões jurídicas (coercitivas) devem ser compatíveis com as legítimas expectativas de seus destinatários (comunidade de princípios ou personificada), outrora remetentes de poder na atividade legislativa, o que conecta a atividade jurisdicional ao estado democrático de direito, permitindo a coexistência entre coerção, aceitação racional e segurança jurídica.

Com uma das mais primorosas obras jurídicas Hart entra no debate dando um melhor acabamento ao modelo interpretativo positivista Kelseniano , lançando a ideia de direito como normas primárias e secundárias, dentre estas as regras de reconhecimento e textura aberta do direito, motivo pelo qual diante desta abertura os juízes poderiam agir com discricionariedade na definição do sentido normativo, através de consenso sobre critérios da norma de reconhecimento que validas as demais e a decisão jurídica.

Pode-se perceber, desde já, a importância do debate para a efetivação de um modelo de Estado que seja constitucional e democrático, cujo Judiciário seja chamado à proteger direitos fundamentais, dentre estes que decisões jurídicas, na modernidade traçada pela complexidade social como resultado de um ideal democrático, sejam íntegras com o que a sociedade pretenda por direito, limitando ou extirpando o poder discricionário dos juízes, centralizando todos os sentidos normativos ao redor de práticas não transcendentais, mas argumentações coerentes com o histórico institucional das normas e princípios, isto é, quanto ao sentido dos próprios direitos e obrigações.

A metodologia analítica e descritiva do debate Hart-Dworkin possibilitará a tomada de rumo ao final deste trabalho para, analisando os autores em face da democracia constitucional, se descobrir que Hart não consegue legitimar suas teses, pois insuficientes em face das concepções de Dworkin.

1. O CONCEITO DE DIREITO DE HART – DIREITO COMO REGRAS/TEXTOS E O PODER DISCRICIONÁRIO DOS JUÍZES

A obra “O conceito de direito”, traz grande aprimoramento e (re)elaboração do positivismo jurídico pós-Kelsen, dada a consistente construção teórica e o trato quanto às normas e obrigações jurídicas primárias e secundária em uma sociedade complexa e o papel do Judiciário.

Hart introduz aquilo que chama de teoria descritiva do direito, partindo da análise da linguagem comum usada pelos textos legais e as interpretações possíveis, pretendendo descrever de forma geral e supostamente neutra, sem avaliação moral ou de correção, como as práticas sociais e dos tribunais se estabelecem neste contexto, como num ponto de vista meramente externo, objetivo, não participante.

Não obstante, os pontos de vista internos (subjetivismos) existem no momento em que o não participante decide participar, aceitando o direito como um dado válido apto a ser padrão de comportamento e de crítica.

O positivismo de Hart se revela desde já, na alegação de pretender teorizar somente descrevendo, sem necessariamente aceitar moralmente o direito como ele é praticado, incorrendo no famoso “aguilhão semântico”, como aquilo que marca a crença positivista de que no direito não se discute valores, mas somente fatos.

Hart critica a teoria da soberania austiniana e defende que a singela visão de direito como mera obediência a um conjunto de ordens coercitivas do soberano não é capaz de revelar todas as características dos sistemas jurídicos em geral, como os pontos de vistas internos.

A constatação surge diante da afirmação de existência de dois tipos de leis ou modalidades do direito, que ao invés de somente emanar ordens – normas primárias, estabelecem também regras e formas para exercício de poderes jurídicos, tais como legislar e decidir, o que denomina de normas secundárias.

Enquanto as normas primárias dizem respeito ao que a sociedade pode ou não fazer (direitos e obrigações), as secundárias se referem ao modo como as primárias podem surgir, ser alteradas, aplicadas e eliminadas pelo poder público. Logo o direito é a conexão entre normas primárias e normas secundárias.

A par disto, Hart apresenta um tipo específico de norma secundária, que chama de regra de reconhecimento, instrumento que especifica as características necessárias para que uma norma primária seja considerada norma do grupo – direito, com aplicação apta a ser exigida, apoiada e seguida pela sociedade e tribunais.

Tais normas de reconhecimento possuiriam elementos ou critérios capazes de avaliar se um e qual texto primário, conforme o texto secundário, costumes, constituição, estaria revestido da autoridade e legitimidade que o direito em si exige, bem como sua respectiva sociedade.

Aqui o embrião de sistema e validade jurídicos, afirmando Hart que seja qual for e onde quer que essa norma de reconhecimento seja aplicada, tanto os indivíduos quanto o poder público dispõe e compartilha de critérios válidos para identificação de uma norma primária, sua extensão, aplicação, transgressão, sanções, etc. Acrescenta que tais critérios da regra de reconhecimento podem possuir várias fontes, e serem emanadas de um texto autorizado por uma norma secundária, um ato legislativo, costume, declarações de autoridades específicas, declarações judiciais anteriores (precedentes), etc.

Não obstante Hart deixa claro que ao se buscar uma hierarquia entre tais critérios, ou seja, ao se definir qual seria a norma de reconhecimento em cada caso, há evidente primazia e subordinação do common law (decisões jurisdicionais) sobre o statue (lei escrita) e isso justificaria um soft positivism (positivismo supostamente brando sustentado no pós-escrito) .

Neste contexto, precisa-se indagar de Hart, como o poder judiciário encontra o “produto final” do sistema jurídico – aquilo que justifica e legitima a escolha de um sentido e não de outro sobre o conteúdo do texto (produção de sentido), bem como sobre os critérios de validade da uma determinada regra de reconhecimento, que atingirá o cidadão em sua condição de particular, do contrário o direito se resume a regras e textos indeterminados, ferramentas discricionárias do positivista.

Demonstrando certa preocupação com a jurisdição, ou seja, quanto ao relacionamento entre juízes e o direito (texto), Hart afirma que, in verbis:

“A palavra obedecer tampouco descreve bem o que os juízes fazem quando aplicam a norma de reconhecimento do sistema, reconhecem uma lei como válida e a usam para resolver uma controvérsia…um desses recursos – em se tratando, por exemplo, do uso que os juízes fazem de determinado critério geral de validade para reconhecer uma lei como tal – consiste em caracterizar esse uso como um caso de obediência a ordens dadas pelos “Fundadores da Constituição…como a obediência a um “comando despsicologizado”, isto é, um comando sem comandante…mas essa preocupação meramente pessoal com as normas, que é tudo que é necessário que os cidadãos comuns tenham quando obedecem àquelas, não pode caracterizar a atitude dos tribunais diante das normas mediante as quais operam como tribunais…isso é especialmente evidente no caso da norma última de reconhecimento, cujos termos permitem estimar a validade de outras normas…para existir, essa norma deve ser encarada segundo o ponto de vista interno, como um padrão público e comum para a decisão judicial correta, e não como algo a que cada juiz obedece em caráter meramente pessoal…embora possa desviar-se ocasionalmente dessas normas, cada tribunal do sistema deve encarar, em geral, esses desvios como lapsos críticos em relação aos padrões, que são essencialmente comuns ou públicos”.

Some-se a esse caráter transcendental (obscurantismo antidemocrático de construção da normatividade), aquilo que Hart chamou de “textura aberta” do direito, se rendendo à discricionariedade judicial ao afirmar que, sic:

“A essa altura, a linguagem geral em que a norma se expressa não pode fornecer senão uma orientação incerta…nesse ponto, cai por terra a sensação de que a linguagem da norma nos habilitará a simplesmente identificar exemplo facilmente reconhecíveis…a inclusão de um caso particular dentro de uma norma e a inferência de uma conclusão silogística já não caracterizam a essência do raciocínio envolvido em decidir qual é o procedimento correta…assim, a discricionariedade que a linguagem lhe confere desse modo pode ser muito ampla, de tal forma que, se a pessoa aplicar a norma, a conclusão, embora possa não ser arbitrária ou irracional, será de fato resultado de uma escolha…terão o que se tem chamado de textura aberta…a incerteza nas zonas limítrofes é o preço a pagar pelo uso de termos classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação referente a questões factuais…não devemos acalentar, nem mesmo como um ideal, a concepção de uma norma tão detalhada que a pergunta se ela se aplica ou não a um caso particular já tenha sempre sido respondida antecipadamente, sem nunca envolver, no momento de sua aplicação real, uma nova escolha entre alternativas abertas…em resumo, a necessidade dessa escolha nos é imposta porque somos homens, e não deuses…a textura aberta do direito significa que existem, de fato, áreas do comportamento nas quais muita coisa deve ser decidida pelas autoridades administrativas ou judiciais que busquem obter, em função das circunstância, um equilíbrio entre interesses conflitantes, cujo peso varia de caso para caso…na Inglaterra, esse fato é muitas vezes obscurecido pelo formalismo verbal, pois os tribunais frequentemente desmentem essa função criadora e insistem em que a função adequada da interpretação jurídica e do uso do precedente são, respectivamente, buscar a intenção do legislador e fazer referência a direito já existente…”.

Por não explicar como encontrar ou fundamentar critérios normativos e democráticos das regras de reconhecimento (revelando-se um ato de vontade) e por não trabalhar em sua obra expressamente com o conceito de princípios, como alternativa ou modalidade normativa, sem definir se seriam regras de algum tipo ou atribuições de poder jurisdicional ou de processo legislativo, não se pode inferir como exatamente se valeria Hart destes institutos para legitimar a definição semântica de um texto ou determinar o reconhecimento das normas primárias pelo julgador, isto é, como se daria a justificação da decisão judicial.

Tanto é verdade que, dando exclusividade à subsunção no tipo “regras” – aquilo que Dworkin chama de aplicação de “tudo ou nada”, Hart arremata consignando que todo sistema jurídico deixa em aberto um campo vasto e de grande importância para que os tribunais e outras autoridades possam usar sua discricionariedade no sentido de, suprindo lacunas, tornar mais precisos os padrões inicialmente vagos, dirimir incertezas contidas nas leis ou, ainda, ampliar ou restringir a aplicação de normas transmitidas de modo vago pelos precedentes autorizados, resolvendo, conforme a escolha do julgador (discricionariedade e arbitrariedade), o problema da ausência de decisão legal prévia ou indeterminação de sentido.

Decorrendo daí que o conceito de direito hartiano, como normas primárias reguladas por normas secundárias e reconhecidas por normas secundárias de reconhecimento, apesar de considerar as complexidades apresentadas pela modernidade (pontos de vistas internos sobre o direito), não foi capaz de enfrentar o problema da discricionariedade judicial, o que deixa patente se tratar de uma teoria jurídica positivista, antidemocrática e que causa desequilíbrio entre os poderes estatais, violando compromissos constitucionais ao deferir exclusividade ao poder judiciário para, monopolizando a definição do conteúdo do texto legal e constitucional (produção de sentido normativo), definir interpretativamente o que é o direito em cada caso concreto analisado, aplicando-o retroativamente aos fatos concretos já ocorridos e sob análise.

2. A PRINCIPAL CRÍTICA DE DWORKIN À HART – PRINCÍPIOS E DIREITO COMO INTEGRIDADE

Afirma-se que o pomo da discórdia teórica entre Dworkin e Hart é a noção de poder discricionário dos juízes na interpretação dos textos legais e a correta forma de aplicação da lei e do direito.

Dworkin afirma, em razão de sua concepção interpretativa – e não descritiva ou convencionalista, de direito, que este não é formado somente por regras, passíveis de subsunção entre fatos (descritos por palavras) e leis (descritas por palavras), logo incompleto, indeterminado ou lacunoso, nem permite que o julgador defina critérios e validade de normas de reconhecimento, mas defende a pré-existência de princípios jurídicos implícitos no sistema, os quais se ajustam aos padrões normativos explícitos de forma coerente, justificando-lhes moralmente – melhor luz.

O jurista assenta sua crítica na omissão de Hart quanto ao reconhecimento da existência no ordenamento jurídico e distinção entre regras (rules), princípios (principles) e políticas públicas (policies); na qual as primeiras seriam normas escritas/positivadas, explícitas no direito, que impõem direitos e obrigações, cuja análise implica em constatar seu cumprimento ou descumprimento; os segundos seriam padrões de moralidade implícitos (principles) e para além do direito escrito, decisões éticas tomadas pela legislatura e adjudicatura sobre casos concretos, onde as regras não sejam suficientes; as políticas públicas (policies) seriam, por fim, uma espécie de princípio, porém representativos de decisões políticas legislativa e executiva, como compromisso anunciados, programas de governo, políticas afirmativas, conforme conveniência do momento, etc.

Com tal distinção Dworkin denuncia o abuso da discricionariedade judicial, sustentando que de fato juízes criam direito se valendo, para além da seleção do sentido das regras (discricionariedade hartiana), também de princípios morais e de governo (principles e policies), inovando sobre casos concretos, legislando retroativamente, manipulando a linguagem ao argumentar que estariam apenas revelando uma metafísica e pré-existente intenção legislativa, restando patente tal conduta como antidemocrática (porque ao escolher um sentido nega efetividade a outro que também faz parte do acervo social) , violadora do sentido de justiça, devido processo legal e integridade, como virtudes soberanas de um Estado Democrático de Direito.

Assim, afastando a tese de discricionariedade judicial diante da textura aberta do direito, Dworkin afirma que os juristas só podem fazer escolhas morais, dentre princípios que concorrem para a melhor justificação da prática jurídica como um todo, onde a teoria do direito seria uma interpretação desta prática feita e fundamentada em afirmações morais e éticas, coerentes entre si (sem rupturas), gerando integração e continuidade entre texto, princípio e norma.

E isso é importante porque estamos sob a égide de um Estado Democrático de Direito, cujos objetivos morais da nação estão à cargo do povo e não somente de uma legislatura ou de uma adjudicatura (guardiã da moral; mas qual moral?), logo, a discussão sobre qual sentido dar ao texto legal, é uma discussão política, que demanda decidir qual o sentido filosófico do próprio direito desta nação , bem como qual o sentido de democracia, igualdade, liberdade, etc. dos próprios destinatários do sentido – normatividade.

Neste contexto identificar um direito em um texto legal, seu sentido, amplitude e aplicação, exige compreender o que realmente se pretende com este direito e identificar qual o seu valor, à luz dos princípios comunitários – integração jurisdicional, logo o direito é argumentativo.

O que Dworkin exige é que os juízes acatem os valores políticos da comunidade e construam interpretações sobre estes valores de modo a descobrir e reforçar outros (democracia em prol da igualdade, devido processo em prol da liberdade, integridade em prol da segurança, etc.), com o que se afirma que o direito é um conceito político-constitucional, apto a superar o positivismo jurídico corrigindo adequadamente o direito e rompendo com a indeterminabilidade dos textos legais.

Dworkin não aceita o(s) positivismo(s) jurídico(s), nem a concepção de Hart, que segundo preleciona Rafael Lazzarotto Simioni, levaria a uma armadilha semântica, in verbis:

“Para Dworkin, o problema de todas essas perspectivas teóricas está no fato delas serem todas prisioneiras da armadilha semântica, que é uma armadilha do positivismo jurídico baseado na análise da linguagem…todos pressupõem que o direito se encontra ou deveria se encontrar nas convenções linguísticas dotadas de força de lei…a pergunta positivista então fica reduzida à questão dos diversos significados possíveis de um texto jurídico, de um lado, e ao ajuste – subsunção – desse significado com os fatos empíricos. Ela não permite questionar a influência que as convicções morais do intérprete exerce sobre a sua prática de interpretação…”.

Sobre a intepretação dos direitos previstos em textos legais, bem como a necessidade de coerência normativa com os princípios e valores morais comunitários, Dworkin assevera que o conteúdo dos direitos não pode depender de convenções ou pragmatismos jurisdicionais, menos ainda de “cruzadas independentes, mas de interpretações mais refinadas e concretas da mesma prática jurídica que começou a interpretar”, por isso o“império do direito é definido pela atitude, não pelo território, pelo poder ou pelo processo” .

A crítica de Dworkin à Hart, através da teoria da integração é uma defesa do Estado Democrático de Direito, porque pretende retirar o monopólio interpretativo do poder judiciário sobre textos legais e práticas ativistas, criando um campo hermenêutico que admite e vincula a entrada de opiniões que levem em conta os princípios morais da comunidade que é a remetente e destinatária nas normas (democracia constitucional).

3. O PÓS-ESCRITO DE HART VERSUS A DEFESA DE DWORKIN DA IMPORTÂNCIA DA CONSTRUÇÃO DE UMA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA ÍNTEGRA PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Hart elaborou um posfácio, publicado postumamente, no qual pretendeu fazer a defesa de seu conceito de direito, que para fins deste tópico destaca-se apenas três pontos específicos empreendidos para se tentar refutar as críticas de Dworkin.

Ao contrário da acusação de Dworkin, Hart sustentou ter manifestado expressamente sua convicção acerca daquilo que denomina de “positivismo brando” , já que através de uma norma de reconhecimento, haveria incursão da argumentação por princípios morais ou valores substantivos na decisão jurídica .

Outrossim, Hart defendeu ter relatado a aceitação implícita em sua obra da existência de outros padrões normativos para além das regras (tais como princípios jurídicos, morais, critérios de norma de reconhecimento), como possibilidade de correção normativa, apesar de confessar não os teorizar com detalhamento.

Prosseguiu reafirmando uma inevitável, porém estreita ou residual, discricionariedade judicial na interpretação e definição do sentido do direito, insistindo que muitos casos difíceis nem sempre encontrariam respaldo em princípios morais vigentes ou socialmente estabelecidos, inexistindo um sempre prévio padrão de conduta passível de confirmação ou revogação pelos tribunais , que justificasse a defesa de suposta segurança jurídica ou atendimento de legítimas expectativas democráticas do sujeitos – como defendem existir as virtudes democráticas soberanas de Dworkin .

Ocorre, portanto e neste ponto, a reafirmação positivista e discricionária de Hart de que sempre haverá casos concretos não regulamentados juridicamente, impedindo uma fundamentação pré-ordenada por algum sentido normativo, social ou democrático, nos quais o direito certamente não contém respostas, pois incompleto ou indeterminado, casos tais em que o juiz terá de exercer sua discricionariedade e criar o direito referente ao caso.

Hart insiste que, sic:

“Assim, nesses casos não regulamentados juridicamente, o juiz ao mesmo tempo cria direito novo e aplica o direito estabelecido, o qual simultaneamente lhe outorga o poder de legislar e restringe esse poder…os poderes dos juízes estão sujeitos a muitas limitações que restringem sua escolha…não obstante, haverá aspectos sobre os quais o direito existente não aponta nenhuma decisão como correta; e para julgar essas causas, o juiz tem de exercer seu poder de criar o direito…decidindo de acordo com suas próprias convicções e valores…e podem diferir dos utilizados por outros juízes diante de casos difíceis semelhantes…”.

Vencer o positivismo jurídico (discricionariedade, arbitrariedade judicial) e implementar o Estado Constitucional Democrático, portanto, exige vencer as teses hartianas de que onde há texto, palavras, a interpretação sempre estará aberta, porosa e diluída entre múltiplas possibilidades normativas; é reconhecer anti-democrática a submissão do jurisdicionados a uma resposta jurídica coercitiva inédita, desconectada de um mínimo ético vigente e compartilhado pela comunidade de princípios.

4. A FATALIDADE POSITIVISTA NA ATIVIDADE JURISDICIONAL BRASILEIRA – ANÁLISE DO HABEAS CORPUS 126.292 DO STF

Neste contexto teórico, trazemos o debate para o Brasil e lançamos o habeas corpus nº 126.292 julgado pelo Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2016, cuja breve, porém atenta análise de trechos dos argumentos lançados nos votos de alguns Ministros do STF é suficiente para comprovar a crise de paradigma vivida pelo direito brasileiro , já que o tribunal, se valendo da discricionariedade forte na definição dos direitos, se mantêm refém daquilo que através de teorias discursivas considera pretender superar, o positivismo jurídico .

O texto constitucional diz expressamente no rol de direitos e garantias fundamentais que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” ; já o texto legal é expresso, que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Ora, dos textos, sem maiores digressões (não se trata de um “caso difícil” ), extrai-se que havendo recurso previsto na legislação processual e não tendo o mesmo sido julgado definitivamente (com trânsito, dispensando-se acrescer a palavra “efetivamente”), proibido está o Estado de privar o réu de sua liberdade sob o fundamento da culpa (condenação).

Ocorre que ao justificar seu voto pela mudança de entendimento do STF, ignora o que se pode extrair semanticamente da sintática do art. 5º, LVII da Constituição, dando novo e radical conteúdo normativo ao texto, o relator no processo, o Ministro Teori Zavaski, consigna, dentre outros argumentos, que:

“Realmente, antes de prolatada a sentença penal há de se manter reservas de dúvida acerca do comportamento contrário à ordem jurídica, o que leva a atribuir ao acusado, para todos os efeitos – mas, sobretudo, no que se refere ao ônus da prova da incriminação –, a presunção de inocência… Para o sentenciante de primeiro grau, fica superada a presunção de inocência por um juízo de culpa – pressuposto inafastável para condenação –, embora não definitivo, já que sujeito, se houver recurso, à revisão por Tribunal de hierarquia imediatamente superior… Nessas circunstâncias, tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado…O estabelecimento desses limites ao princípio da presunção de inocência tem merecido o respaldo de autorizados constitucionalista…Afinal, os julgamentos realizados pelos Tribunais Superiores não se vocacionam a permear a discussão acerca da culpa, e, por isso, apenas excepcionalmente teriam, sob o aspecto fático, aptidão para modificar a situação do sentenciado…E não se pode desconhecer que a jurisprudência que assegura, em grau absoluto, o princípio da presunção da inocência – a ponto de negar executividade a qualquer condenação enquanto não esgotado definitivamente o julgamento de todos os recursos, ordinários e extraordinários – tem permitido e incentivado, em boa medida, a indevida e sucessiva interposição de recursos das mais variadas espécies, com indisfarçados propósitos protelatórios visando, não raro, à configuração da prescrição da pretensão punitiva ou executória Nesse quadro, cumpre ao Poder Judiciário e, sobretudo, ao Supremo Tribunal Federal, garantir que o processo – único meio de efetivação do jus puniendi estatal -, resgate essa sua inafastável função institucional…”.

Induvidoso que o relator optou por limitar o conteúdo normativo (significado, conteúdo) do princípio constitucional (direito fundamental individual), escolhendo subjetivamente um sentido para o texto legal, com fundamento no argumento moral (principles) de que o condenado em segundo grau perderia a credibilidade perante as instâncias extraordinárias (STJ/STF, “mesmo podendo ser excepcionalmente absolvido diante de erros das instâncias de origem”) e no argumento político (policies) de que os recursos estariam fomentando a prescrição e impedindo o Estado de punir seus cidadãos.

Aqui não há dúvidas de que o julgador, apesar de tentar romper com positivismo (indeterminabilidade do texto) via principialismo (para supostamente adequar ou corrigir o texto), viola a tese da integridade defendida por Dworkin , acerca da vedação do uso de argumentos políticos pelo Judiciário e da necessidade de fundamentar argumentos morais no acervo existente na própria comunidade política (de princípios ou personificada) e não solipsisticamente.

O ministro Edson Fachin, por sua vez, se valendo de argumentos diferentes, asseverou em seu voto que:

“Quero, todavia, dizer que, dentro daquele espaço que a Constituição outorga ao intérprete uma margem de conformação que não extrapola os limites da moldura textual, as melhores alternativas hermenêuticas quiçá são, em princípio, as que conduzem a reservar a esta Suprema Corte primordialmente a tutela da ordem jurídica constitucional…Por essa razão, na linha do que muito bem sustentou o eminente Ministro Teori Zavascki, interpreto a regra do art. 5º, LVII, da Constituição da República, segundo a qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” sem o apego à literalidade com a qual se afeiçoam os que defendem ser impossível iniciar-se a execução penal antes que os Tribunais Superiores deem a última palavra sobre a culpabilidade do réu considero que não se pode dar a essa regra constitucional caráter absoluto, desconsiderando-se sua necessária conexão a outros princípios e regras constitucionais”.

O Ministro se vale das expressões “moldura textual”, “alternativas hermenêuticas” e “sem apego à literalidade”, para fundamentar sua escolha no novo sentido a ser dado ao texto constitucional, sob o argumento de que aos juízes (STF) é reservado espaço institucional para, dentro das múltiplas possibilidades cabíveis dentro da moldura, optar por aquela que entende ser a melhor para o réu e para a sociedade, mas assim fazendo ignora outras opções.

Resta cristalino o paradigma positivista sobre o qual raciocina e decide o julgador, que faz questão de registrar o uso de poder discricionário pelos juízes, como deixou claro Kelsen no famoso capítulo oitavo de “A Teoria Pura do Direito” e Hart em “O Conceito de Direito”.

Já o Ministro Luís Roberto Barroso vai ainda mais além, merecendo a transcrição, ao afirmar que:

“…Já agora encaminha-se para nova mudança, sob o impacto traumático da própria realidade que se criou após a primeira mudança de orientação…o novo entendimento (em 2009) contribuiu significativamente para agravar o descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade…produz-se deletéria sensação de impunidade, o que compromete, ainda, os objetivos da pena, de prevenção especial e geral…Ainda que o STF tenha se manifestado em sentido diverso no passado, e mesmo que não tenha havido alteração formal do texto da Constituição de 1988, o sentido que lhe deve ser atribuído inequivocamente se alterou…Já os princípios expressam valores a serem preservados ou fins públicos a serem realizados…Enquanto princípio, tal presunção pode ser restringida por outras normas de estatura constitucional (desde que não se atinja o seu núcleo essencial), sendo necessário ponderá-la com os outros objetivos e interesses em jogo…Nela (ponderação), não há dúvida de que o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade adquire peso gradativamente menor na medida em que o processo avança, em que as provas são produzidas e as condenações ocorrem…há sensível redução do peso do princípio da presunção de inocência e equivalente aumento do peso atribuído à exigência de efetividade do sistema penal…Em verdade, a execução da pena nesse caso justifica-se pela necessidade de promoção de outros relevantes bens jurídicos constitucionais…Parte III FUNDAMENTOS PRAGMÁTICOS PARA O NOVO ENTENDIMENTO. Os métodos de atuação e argumentação dos órgãos judiciais são essencialmente jurídicos, mas a natureza de sua função, notadamente quando envolva a jurisdição constitucional e os chamados casos difíceis, tem uma inegável dimensão política. Assim é devido ao fato de o intérprete desempenhar uma atuação criativa – pela atribuição de sentido a cláusulas abertas e pela realização de escolhas entre soluções alternativas possíveis –, e também em razão das consequências práticas de suas decisões…Como é corrente, desenvolveu-se nos últimos tempos a percepção de que a norma jurídica não é o relato abstrato contido no texto legal, mas o produto da integração entre texto e realidade. Em muitas situações, não será possível determinar a vontade constitucional sem verificar as possibilidades de sentido decorrentes dos fatos subjacentes…Dentro dos limites e possibilidades dos textos normativos e respeitados os valores e direitos fundamentais, cabe ao juiz produzir a decisão que traga as melhores consequências possíveis para a sociedade como um todo…Em primeiro lugar, com esta nova orientação, reduz-se o estímulo à infindável interposição de recursos inadmissíveis…Em segundo lugar, restabelece-se o prestígio e a autoridade das instâncias ordinárias, algo que há muito se perdeu noBrasil…Além disso, a execução provisória da pena permitirá reduzir o grau de seletividade do sistema punitivo brasileiro…Por fim, a mudança de entendimento também auxiliará na quebra do paradigma da impunidade…”

O ministro faz uma incompreensível mixagem de diversas teorias de direito , tentando legitimar sua solipsista opção (pessoal, subjetiva) pelo sentido do texto, passando das teorias juspositivistas e suas discricionariedades de Kelsen à Hart, pela distorção da teoria discursiva de Robert Alexy (e a máxima da ponderação de princípios, regra de colisão) e, por fim, ao consequencialismo de Richard Posner, em franco decisionismo ou pós-positivismo “à brasileira”.

Diante dos votos analisados e sobre a fatalidade positivista na Jurisdição brasileira, invoque-se, desde já, as magistrais lições de Lenio Streck, para o qual:

“Entender que a discricionariedade é algo inerente à aplicação do direito é, no fundo uma aposta no protagonismo judicial. E a discricionariedade não se relaciona bem com a democracia. Essa, aliás, foi a crítica mais veemente feita por Dworkin a Hart. E essa questão continua na ordem do dia, mormente em países como o Brasil. Com efeito, as teorias que pretendem resolver esse problema da (in)determinabilidade do direito, dos casos difíceis, das vaguesas e das ambiguidades próprias do ordenamento jurídico, ao apostarem nesse sub-jectum da interpretação jurídica, não conseguiram alcançar o patamar da revolução copernicana proporcionada pela invasão da filosofia da linguagem. Apostando na discricionariedade ou em discursos adjudicadores com pretensão de correção do direito, estaremos tão somente reforçando aquilo que pretendemos criticar. Tal circunstância pode ser detectada em setores importantes da dogmática jurídica praticada no Brasil, que vêm apostando fortemente na teoria da argumentação jurídica e, portanto, utilizando largamente a ponderação de princípios. Malgrado essa expansão da teoria alexiana, não escapa a um olhar mais crítico a circunstância de que poucos intérpretes de Alexy efetuam os procedimentos descritos na chama lei de colisão”.

Com razão Streck, visto restar evidente residir o problema na umbilical relação entre o uso da ponderação de princípios e pretensas teorias pós-positivistas e a discricionariedade judicial, que se prestam a álibis teóricos ou argumentativos, para tentar legitimar uma escolha ou arbitrária tomada de decisão normativa pelos Juízes, não havendo diferença alguma entre tais procedimentos principiológicos e aqueles já utilizados pelo positivismo jurídico.

Não obstante este grave cenário jurisdicional, parte do Judiciário parece admitir e se preocupar com a crise de paradigmas, tanto é verdade que no mesmo acórdão em apreço a Ministra Rosa Weber, divergindo do relator e concedendo a ordem no habeas corpus, votou asseverando que:

“Ocorre que tenho adotado, como critério de julgamento, a manutenção da jurisprudência da Casa. Penso que o princípio da segurança jurídica, sobretudo quando esta Suprema Corte enfrenta questões constitucionais, é muito caro à sociedade, e há de ser prestigiado…Nada impede que a jurisprudência seja revista, por óbvio. A vida é dinâmica, e a Constituição comporta leitura atualizada, à medida em que os fatos e a própria realidade evoluem…tenho alguma dificuldade na revisão da jurisprudência pela só alteração dos integrantes da Corte. Para a sociedade, existe o Poder Judiciário, a instituição, no caso o Supremo Tribunal Federal…Há questões pragmáticas envolvidas, não tenho a menor dúvida, mas penso que o melhor caminho para solucioná-las não passa pela alteração, por esta Corte, de sua compreensão sobre o texto constitucional no aspecto”.

Merece transcrição, outrossim, trecho do voto do Ministro Marco Aurélio, para o qual, também divergindo da alteração jurisprudencial pelo STF no habeas corpus em pauta, preleciona:

“Presidente, não vejo uma tarde feliz, em termos jurisdicionais, na vida deste Tribunal, na vida do Supremo…onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a norma jurídica, e, no caso, o preceito constitucional. Há de vingar o princípio da autocontenção. Já disse, nesta bancada, que, quando avançamos, extravasamos os limites que são próprios ao Judiciário, como que se lança um bumerangue e este pode retornar e vir à nossa testa…Peço vênia para me manter fiel a essa linha de pensar sobre o alcance da Carta de 1988 e emprestar algum significado ao princípio da não culpabilidade”.

Conclui-se, portanto, que o Judiciário brasileiro não guarda a prática democrática no momento decisório em sua atividade jurisdicional, aquela como fundamento primeiro da República Brasileira e consagrada pela Constituição, uma vez que os Juízes, ao interpretarem o direito, estão criando regras e escolhendo sentidos políticos e morais dos textos legais para regulamentar os casos a eles apresentados.

Tal ilegitimidade se aproxima do arbítrio do monarca do Estado pré-liberal, já que a discricionariedade judicial é a autorização institucional dada pelo positivismo para permitir, de forma velada, a arbitrariedade, não mais cometida somente pelo administrador, mas doravante pelo Judiciário.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As consequências da concentração de funções, de poder, foram sentidas pela sociedade e pelo direito, desde a vinculação entre norma e política, do absolutismo monárquico até, maiormente experimentadas, no século XIX, com globais e drásticas violações de direitos humanos validadas pelo direito positivo, supostamente legítimo.

A separação dos poderes, como corolário político-jurídico da Idade Moderna, resultante de um novo pacto social – o Estado Moderno, desde antes pretendia despolitizar a jurisdição, criando leis escritas (estatutos) que permitissem ao Judiciário a atividade interpretativa, desonerando-o da vinculação política estatal ou governamental, dando autonomia ao direito

Não obstante, ao lado deste contexto político-estatal, seguiu-se o positivismo jurídico de Kelsen a Hart, como técnica interpretativa e paradigma jurisdicional; todavia o texto legal, dada sua indeterminabilidade, coloca o teórico numa rua sem saída (“moldura”, “textura aberta”), rendendo-se à discricionariedade judicial, naquilo que os positivistas chamam de casos difíceis.

Na prática a discricionariedade é a marca maior do positivismo jurídico, quando texto se mostra incapaz de carregar em si a vontade normativa estatal prévia para todas as situações concretas em litígio; o Judiciário se vê diante de possíveis lacunas, omissões e conflitos interpretativos, tendo que escolher o sentido da norma ou até mesmo criar um direito ou obrigação, para que a resposta jurídica dê a solução pública esperada pelos particulares, mesmo que retroativamente.

Ronald Dworkin trava profícuo debate contra Hart na definição do direito e do papel do Judiciário num Estado Democrático de Direito, na submissão da política e do direito não somente à normas validamente democráticas, mas legitimamente constitucionais – democracia constitucional.

Para Dwokin a atividade jurisdicional deve ser fruto de um compromisso político guiado pela virtude da integridade na jurisdição, cujas decisões jurídicas sejam, outrossim, produzidas por princípios morais e não políticos ou de governo, mas argumentos coerentes com a tradição institucional de cada direito ou obrigação, independentemente do impacto desta decisão; o compromisso político da integridade jurisdicional se apoia no compromisso constitucional calcado na síntese passado-futuro (“romance em cadeia”, como projeto nacional da maioria, que respeita a minoria e cada indivíduo.

As constituições modernas implementaram, lado outro, uma mudança de paradigma da função do Judiciário, de “politização da jurisdição” para “judicialização da política”, colocando o Juiz como controlador do direito, da atividade estatal, governamental, através do monopólio da atividade interpretativa dos textos legais, gerando expansão desta atividade, acarretando ativismo(s) justificado(s) pela defesa dos compromissos constitucionais.

A prática judiciária brasileira, como aquela demonstrada pela análise do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do habeas corpus nº 126.292, de fevereiro de 2016, quando, ao largo do texto do art. 5º, LVII da Constituição segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, revela a crise do direito e a importância e atualidade do debate Dworkin-Hart para a contemporaneidade brasileira.

Decorrendo daí a importância de teoria da integridade do direito para realização do constitucionalismo democrático – especialmente em países periféricos como o Brasil, onde o Judiciário pretende implementar direitos individuais e sociais a qualquer custo, desrespeitando a autonomia do direito e o direito da sociedade de definir seu conteúdo, com rupturas drásticas com a tradição dos institutos jurídicos e violação das funções dos demais poderes.

Ao contrário, deve a jurisdição (brasileira), se balizar pela coerência e estabilidade, como se estivesse escrevendo mais um capítulo de uma história institucional e democrática, cumprindo seu papel guardião, mas harmonizando suas contribuições com todas as outras, ou seja, os juízes devem se ver como escritores que juntos escrevem um romance em cadeia no qual cada um escreve um capítulo que só terá sentido no contexto global da história do Estado e da sociedade como um todo; é neste sentido filosófico e prático que o direito garante sua autonomia e serve ao constitucionalismo democrático, como pacto político-jurídico de uma sociedade para si mesma.

Referências
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______. O que é isto – decido conforme minha consciência? 4ª ed. Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2013.
______. Verdade e consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias discursivas. 6ª ed. São Paulo, Editora Saraiva, 2017.

Informações Sobre o Autor

Lauro Sampaio Mesquita Jr.

Advogado, Mestrando em Direito Constitucional pela FDSM Faculdade de Direito do Sul de Minas Pouso Alegre-MG

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