Resumo: Este artigo inicialmente destaca a importância dos direitos fundamentais sociais, os quais exigem uma atuação intensa do Estado, através de prestações positivas. O Estado deve proporcionar aos indivíduos, pelo menos, o mínimo necessário à uma existência digna (mínimo existencial), sendo este um limite ao argumento da reserva do possível. Ressalta-se, também, que em caso de omissão do Estado, o Judiciário poderá interferir no processo de implementação de políticas públicas, obrigando o Estado a prestações de fazer. O artigo também discorre acerca da judicialização da política e da politização da justiça.
Palavras-chaves: Direitos fundamentais sociais. Mínimo existencial. Omissão do Estado. Políticas públicas. Interferência do Judiciário.
Abstract: This article intially highlights the importance of the fundamental social rights, those which require an intense State action through positive provisions. The State should provide to individuals, at least, the minimum necessary to a dignified existence (existential minimum), being that this is a limit to the argument of the possible reservation. It is stressed, also, that in case of State omission, the Judiciary could interfere in the implementation of the public politics, obligating the State to make provisions. The article also explains about the judicialization of politics and the politization of justice.
Keywords: Fundamental Social Rights. Existential minimum. State omission. Public Politics. Judiciary interference.
Sumário: 1. Introdução; 2. Aplicabilidade dos direitos sociais; 3. O ativismo judicial na implementação de políticas públicas em face das omissões do Estado; 4. Mínimo existencial e reserva do possível; 5. Judicialização da política e politização da justiça; 6. Considerações finais; 7. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Os direitos individuais, compreendidos na perspectiva da liberdade e da igualdade formal, apresentaram-se, por ocasião do liberalismo burguês, como uma proteção em relação ao Estado; este deveria ser mínimo, apenas mantendo a ordem externa e interna de maneira que cada qual pudesse exercer os seus direitos. Por outro lado, não havia preocupação com a efetiva possibilidade material de exercer os direitos; no liberalismo apenas havia preocupação com a possibilidade formal do exercício.
Entretanto, é com o liberalismo que se garante um núcleo básico de liberdade atinente à essência de cada qual, de maneira que os seus princípios permaneceram como cláusulas pétreas nas Constituições democráticas ocidentais: liberdade de expressão, religiosa, política, ideológica, liberdade de profissão e de associação, propriedade, etc. Sem os direitos individuais, não há liberdade, não se podendo falar de democracia. Constituem-se, portanto, em direitos de defesa ou oposição diante do Estado, surgindo assim a concepção de direitos-negativos ou liberdades constitucionais.
Ocorre que as liberdades individuais apenas gratificam o homem e permitem que ele se desenvolva na sua essência se há a garantia de condições materiais básicas. Pouco importa, por exemplo, assegurar-se a liberdade de expressão se não é garantida a educação e o aperfeiçoamento intelectual. E estas constatações levaram a uma eclosão de protestos do proletariado, que na segunda metade do século XIX passou a exigir a criação de direitos trabalhistas e previdenciários; inicia-se a época dos direitos sociais, o que traz como consequência, um Estado atuante, que interfere nas relações privadas e organiza uma estrutura assistencial, com o objetivo de garantir a dignidade material caso o indivíduo não possua meios para manter-se a si e aos seus dependentes[1].
A importância do Estado Social está exatamente na sua atuação interventiva em prol da extensão e expansão do bem-estar social, objetivando atingir um grau ideal de igualdade material, não malferindo com tal intervenção o direito de liberdade, mas sim garantindo o exercício muitas vezes dessa liberdade[2], como afirma com bastante coerência o politicólogo-jurista francês Maurice Duverger (2008, p. 194-195, grifos originais):
“Hoy no se considera y ala acción de los gobernantes como siempre nociva para la libertad; por el contrario, em ciertas circunstancias se piensa que la intervención del Estado asegura el ejercicio de libertades, que serían aniquiladas sin ella. Las libertades cesan, por lo tanto, de ser concebidas como médios de resistência al poder y la limitación de los gobernantes cesa de ser considerada como ideal”.
Discordo de doutrinadores que defendem um Estado limitado e minimalista, que tem a tarefa exclusiva de salvaguardar a liberdade e a propriedade[3]. Nozick (2006, p. 581), por exemplo, entende que:
“[…] toda outra intervenção do Estado – por exemplo, para o melhoramento do nível de bem-estar social ou de uma repartição mais justa dos bens – é injustificada, pois a justa repartição dos bens não pode se dar senão no mercado livre. O Estado deve, pois, deixar a cada indivíduo a busca da felicidade e do bem-estar e não tem o direito de intervir em sua liberdade”.
Ora, após a conquista dos direitos fundamentais de primeira dimensão[4], que limitou de certa forma o poder estatal, proporcionando uma proteção aos indivíduos, passou-se a perceber que estes direitos não seriam suficientes para garantir uma vida digna, com educação, trabalho, moradia, saúde, etc.
Daí a importância dos direitos fundamentais de segunda dimensão (sociais, econômicos e culturais) que exigem do Estado uma atuação firme no sentido de proporcionar aos indivíduos meios suficientes para viver com dignidade, garantindo pelo menos condições materiais básicas.
Segundo Celso Lafer (1988, p. 127 e 130-131, grifos nossos) os direitos fundamentais sociais seriam direitos de crédito, pertencentes aos indivíduos diante o Estado:
“É por essa razão que os assim chamados direitos de segunda geração, previstos pelo “welfare state”, são direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade. Tais direitos – como o direito ao trabalho, à saúde, à educação – têm como sujeito passivo o Estado porque, na interação entre governantes e governados, foi a coletividade que assumiu a responsabilidade de atendê-los. O titular desse direito, no entanto, continua sendo, como nos direitos de primeira geração, o homem na sua individualidade. Daí a complementaridade, na perspectiva “ex parte populi”, entre os direitos de primeira e de segunda geração, pois estes últimos buscam assegurar as condições para o pleno exercício dos primeiros, eliminando ou atenuando os impedimentos ao pleno uso das capacidades humanas. Por isso, os direitos de crédito, denominados direitos econômicos-sociais e culturais, podem ser encarados como direitos que tornam reais direitos formais: procuraram garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho num sentido amplo […]”.
Neste mesmo sentido, escreve Dirley da Cunha Júnior (2004, p. 206, grifos nossos) que:
“[…] diversamente dos direitos de primeira dimensão, para cuja tutela necessita-se apenas que o Estado não permita sua violação, os direitos sociais não podem ser tão-somente ‘atribuídos’ ao indivíduo, pois exigem permanente ação do Estado na realização dos programas sociais. Por isso, são direitos denominados positivos, que expressam poderes de exigir ou de crédito. […] São direitos de crédito porque, por meio deles, o ser humano passa a ser credor das prestações socais estatais, assumindo o Estado, nessa relação, a posição de devedor. Estes direitos fundamentais sociais não estão destinados a garantir a liberdade frente ao Estado e a proteção contra o Estado, mas são pretensões do indivíduo ou do grupo ante o Estado”.
Então, os direitos sociais clamados pela sociedade exigem uma atuação intensa por parte do Estado, através de prestações positivas, de implantação sempre onerosa. Diante a necessidade e o volume dessas prestações crescentes a cada dia, visando o bem-estar social, surge o problema inescapável da escassez de recursos.
A concretização dos direitos sociais está intimamente relacionada com a disponibilidade de recursos, ficando dependente de certa forma da conjuntura econômica, tendo a distribuição dos recursos existentes e a criação de bens materiais relevância econômica que não pode deixar de ser destacada. Surge com isso a problemática da reserva do possível, que para alguns doutrinadores legitimaria a omissão do Estado em determinados casos envolvendo direitos sociais, em face da limitação fático-orçamentária.
Contudo, embora a carência de recursos seja inevitável, a aceitação irrestrita da reserva do possível pode transformar os direitos sociais em simples esperanças insatisfeitas[5], impedindo o crescimento (e em alguns casos contribuindo inclusive para a diminuição) dos investimentos em políticas públicas, possibilitando uma discricionariedade desregrada (neste caso, poderia usar o termo arbitrariedade)[6] por parte dos governantes na priorização dos gastos públicos.
Entendo que os direitos sociais possuem eficácia imediata, atribuindo poderes[7] aos indivíduos de legitimamente exigir do Estado prestações efetivas e concretas, ensejando assim, direitos subjetivos a prestações, cabendo ao Estado intervir no sentido de preservar a dignidade da pessoa humana, proporcionando pelo menos o mínimo necessário à uma existência digna (mínimo existencial), sendo este um limite ao argumento da incapacidade econômico-financeira.
Caso o Estado seja omisso ou falho na prestação dos direitos sociais, não garantindo o mínimo existencial, o Poder Judiciário deverá intervir diretamente quando provocado, determinando a implementação e execução do direito pleiteado, ainda que para isso resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária, realizando assim um controle efetivo das políticas públicas, visando sempre atribuir efetividade às normas constitucionais.
A implementação de políticas públicas por parte do Poder Judiciário em caso de omissão estatal, especialmente quando visa atender às condições materiais mínimas de existência do cidadão, encontra respaldo na aplicabilidade dos direitos sociais e no princípio da dignidade da pessoa humana.
Esta interferência do Poder Judiciário em questões de políticas públicas acarreta a judicialização da política[8], tornando o papel do Judiciário notadamente de caráter político, incumbindo-o inclusive de responsabilidades no processo de transformação social, deixando de ser um Poder meramente neutro – resolvendo apenas conflitos entre particulares com aplicação da lei – para interferir ativamente no âmbito político, visando a efetivação dos direitos fundamentais, especialmente os direitos sociais.
Campilongo (1994, p. 49, grifos nossos) enfatiza que:
“[…] além de suas funções usuais, cabe ao Judiciário controlar a constitucionalidade e o caráter democrático das regulações sociais. Mais ainda: o juiz passa a integrar o circuito de negociação política. Garantir as políticas públicas, impedir o desvirtuamento privatista das ações estatais, enfrentar o processo de desinstitucionalização dos conflitos – apenas para arrolar algumas hipóteses de trabalho – significa atribuir ao magistrado uma função ativa no processo de afirmação da cidadania e da justiça substantiva. Aplicar o direito tende a configurar-se, assim, apenas num resíduo de atividade judiciária, agora também combinada com a escolha de valores e aplicação de modelos de justiça. Assim, o juiz não aparece mais como o responsável pela tutela dos direitos e das situações subjetivas, mas também como um dos titulares da distribuição de recursos e da construção de equilíbrio entre interesses supra-individuais.”
Ocorre que a judicialização da política ocasiona inexoravelmente a politização da justiça, como afirma Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2003, p. 189, 207, 211 e 214), podendo os conflitos políticos influenciar fortemente às decisões judiciais, comprometendo a independência e imparcialidade do Poder Judiciário.
2. Aplicabilidade dos direitos sociais
Há enorme discussão acerca da aplicabilidade dos direitos sociais, especialmente em face destes direitos serem compostos por termos vagos, imprecisos, que dependeriam de uma atuação legislativa e de prestações por parte do Estado ao longo do tempo, com aplicação de recursos disponíveis. Bockenforde (2004, p. 289-290)
“[…] sustenta que as prestações sociais reclamadas pelos direitos fundamentais sociais são tão genéricas que esses direitos não podem fundamentar diretamente pretensões exigíveis judicialmente, não se apresentando, portanto, como direitos imediatamente desfrutáveis pelo cidadão, quando ainda estão no nível da Constituição, antes, pois, de sua conformação legislativa”.
O entendimento reducionista da aplicabilidade dos direitos sociais sustentado por doutrinadores como Bockenforde, transforma os direitos sociais em meramente programáticos, com eficácia limitada, afastando a ideia de que sejam direitos subjetivos a prestações, não podendo ser imediatamente exigíveis.
O fato dos direitos sociais conterem mandamentos dirigentes e genéricos não implica necessariamente que tais direitos sejam destituídos de plena aplicabilidade, principalmente no Brasil onde a Constituição Federal de 1988 prevê expressamente no artigo 5º, § 1º, que os direitos fundamentais têm aplicação imediata, sendo válidas as observações de Andreas Joachim Krell (2002, p. 37-38, grifos nossos):
“Conforme disposto no § 1º do artigo 5º da Constituição Federal, as normas sobre Direitos Fundamentais são de aplicação imediata. […] Esse dispositivo serve para salientar o caráter preceptivo e não programático dessas normas, deixando claro que os Direitos Fundamentais podem ser imediatamente invocados, ainda que haja falta ou insuficiência da lei. O seu conteúdo não precisa ser necessariamente concretizado por uma lei; eles possuem um conteúdo que pode ser definido na própria tradição da civilização ocidental-cristã, da qual o Brasil faz parte.
A sua regulamentação legislativa, quando houver, nada acrescentará de essencial: apenas pode ser útil (ou, porventura, necessária) pela certeza e segurança que criar quanto às condições de exercício dos direitos ou quanto à delimitação frente a outros direitos”.
Sendo assim, os direitos sociais conferem aos cidadãos verdadeiros direitos subjetivos a prestações, fundados na própria Constituição, afirmando Canotilho (1983, p. 370-371) que tais direitos mesmo quando não concretizados, existem para além da lei por virtude da Constituição, podendo ser invocados contra as omissões inconstitucionais do legislador.
Vale ressaltar que, o custo dos direitos sociais é um argumento também suscitado quando se trata acerca da aplicabilidade dos direitos fundamentais sociais, haja vista que estes direitos exigem prestações onerosas por parte do Estado[9], sendo que este não disponibilizaria de recursos econômicos suficientes para atender a todos os direitos prestacionais, limitando-se a efetivação nos termos da reserva do possível.
Contudo, a reserva do possível não pode converter os direitos sociais em promessa constitucional inconsequente[10], não podendo ser invocada pelo Estado com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade[11].
A limitação econômico-financeira do Estado não é intransponível, devendo este priorizar a distribuição dos recursos (evitando inclusive gastos desnecessários) visando garantir efetividade aos direitos fundamentais, notadamente aos direitos sociais, proporcionando pelo menos condições materiais mínimas de existência, sob pena de legitimar a atuação interventiva do Poder Judiciário em prol da dignidade da pessoa humana, possibilitando a interferência de tal Poder na implementação de políticas públicas, controlando as omissões estatais.
3. O ativismo judicial na implementação de políticas públicas em face das omissões do Estado
A concretização dos direitos sociais através de implementação de políticas públicas é uma exigência constitucional dirigida a priori para os Poderes Legislativo e Executivo, cabendo ao primeiro decidir acerca da destinação e aplicação dos recursos orçamentários, enquanto incumbe ao segundo a tarefa de executar e implementar – com os recursos públicos existentes – os diversos projetos sociais necessários à sociedade.
A implementação de políticas públicas implica inevitavelmente em tomada de opções políticas, cuja legitimidade caberia – segundo alguns doutrinadores – ao Executivo/Legislativo em face da vontade da maioria, ou seja, faltaria legitimidade democrática ao Poder Judiciário, pois seus membros não são eleitos, ingressando por concurso público ou através de escolha por autoridade política.
No entanto, corroboro com Cláudio Pereira de Souza Neto (2003, p. 58) quando atesta que na perspectiva democrático-deliberativa (onde os direitos sociais seriam requisitos e condições da democracia, só existindo esta em um contexto de igualdade material razoável) o Judiciário teria legitimidade para concretizar os direitos sociais básicos, independentemente de decisões majoritárias. O renomado doutrinador faz uma observação bastante interessante no sentido de que se o Judiciário tem legitimidade para invalidar leis que repute inconstitucionais – atos positivos do Legislativo, para os quais contribui o Executivo pela sanção -, não haveria problema em se reconhecer legitimidade ao mesmo para intervir diante a inércia dos demais poderes:
“[…] se o Poder Judiciário tem legitimidade para invalidar normas produzidas pelo Poder Legislativo, mais facilmente pode se afirmar que é igualmente legítimo para agir diante da inércia dos demais poderes, quando essa inércia implicar um óbice ao funcionamento regular da vida democrática. Vale dizer: a concretização judicial de direitos sociais fundamentais, independentemente de mediação legislativa, é um minus em relação ao controle de constitucionalidade” (SOUZA NETO, 2003, p. 45, grifos nossos).
Sendo assim, em caso de omissão do Estado na missão constitucional de efetivação dos direitos sociais, impossibilitando a fruição de um mínimo necessário à existência digna, cabe ao Poder Judiciário – excepcionalmente – intervir no sentido de garantir a aplicabilidade do direito necessitado, podendo inclusive interferir no processo de implementação de políticas públicas, obrigando ao Estado a prestações de fazer (por exemplo, matrículas em escolas de ensino particular, em caso de inexistência de vagas em escolas públicas de ensino fundamental; internação em hospitais particulares, quando não houver vagas em hospitais públicos), preservando assim a dignidade da pessoa humana.
Considero imprescindível o ativismo judicial para que os direitos sociais sejam realmente respeitados pelo Estado, não devendo o juiz ser um mero espectador do processo de transformação social, mas sim corresponsável na realização de políticas públicas[12] quando haja omissão estatal. Segundo Dirley da Cunha Júnior (2004, p. 352-353, grifos nossos):
“[…] O Juiz, no Estado Social da sociedade de massas, deve assumir novas responsabilidades e aceitar a nova missão de interventor e criador das soluções reclamadas pelas novas demandas sociais, tornando-se co-responsável pela promoção de interesses finalizados por objetivos socioeconômicos. Do contrário, mostrando-se incapaz de garantir a efetividade dos direitos fundamentais, máxime dos direitos sociais, na prática caba sendo conivente com sua sistemática violação.
[…] Noutras palavras, quando os órgãos de direção política (Legislativo e Executivo) falham ou se omitem na implementação de políticas públicas destinadas à efetivação dos direitos sociais, cumpre ao Poder Judiciário – co-responsável no processo de construção da sociedade do bem-estar – adotar uma posição ativa e dinâmica na realização das finalidades do Estado Social, desenvolvendo e efetivando diretamente os preceitos constitucionais definidores desses direitos sociais”.
Vale ressaltar que, há doutrinadores brasileiros que combatem um maior controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário, baseando-se especialmente em posicionamentos majoritários dos doutrinadores alemães, os quais defendem que os direitos sociais não ensejariam direitos subjetivos a prestações, estando limitados à reserva do possível.
No entanto, é importante transcrever as ponderações do alemão Andreas Joachim Krell (2002, p. 108-109, grifos nossos) – que vive no Brasil desde 1993 – sobre a problemática da incorporação no direito brasileiro de institutos e posicionamentos jurídicos construídos no direito comparado, muitas vezes distantes da realidade brasileira:
“Devemos nos lembrar também que os integrantes do sistema jurídico alemão não desenvolveram seus posicionamentos para com os direitos sociais num Estado de permanente crise social e milhões de cidadãos socialmente excluídos. Na Alemanha – como nos outros países centrais – não há um grande contingente de pessoas que não acham uma vaga nos hospitais mal equipados da rede pública; não há a necessidade de organizar a produção e distribuição da alimentação básica a milhões de indivíduos para evitar sua subnutrição ou morte; não há altos números de crianças e jovens fora da escola; não há pessoas que não conseguem sobreviver fisicamente com o montante pecuniário de “assistência social” que recebem, etc. Temos certeza de que quase todos os doutrinadores do Direito Constitucional alemão, se fossem inseridos na mesma situação sócio-econômica de exclusão social com a falta das condições mínimas de uma existência digna para uma boa parte do povo, passariam a exigir com veemência a interferência do Poder Judiciário, visto que este é obrigado de agir onde os outros Poderes não cumprem as exigências básicas da constituição (direito à vida, dignidade humana, Estado Social)”.
É válido também observar que a interferência do Poder Judiciário em questões de políticas públicas, controlando a omissão estatal em prol da efetividade dos direitos sociais, não viola o princípio da separação dos poderes[13].
A separação dos poderes, que inicialmente foi concebida com a finalidade de assegurar os direitos fundamentais individuais, não pode representar limite à proteção dos direitos sociais, igualmente fundamentais. É certo que o Legislativo e o Executivo detêm a função ordinária de formular e de implementar políticas públicas que satisfaçam os direitos fundamentais sociais, contudo, quando esses poderes políticos se omitem ou são deficientes na consecução dessas políticas públicas, não há que se impedir uma intervenção legítima do Poder Judiciário.
Vale ressaltar que, na ADPF nº 45[14] o Ministro Celso de Mello destacou que o Judiciário poderá intervir em políticas públicas:
“Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo.
É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado”.
O papel do Judiciário no controle das omissões dos demais poderes tem se intensificado bastante, exigindo-se deste, inclusive, uma atuação ativa em busca de suprir tais omissões, principalmente quando se está diante de direitos fundamentais sociais. Tal função controladora do Judiciário já foi há muito tempo pensada por Loewenstein (2004, p. 354), que defendia uma nova visão tripartita da separação de poderes: “a definição da política (policy determination), a execução da política (policy execution) e o controle da política (policy control)”.
Portanto, caberá ao Judiciário intervir em caso de omissão injustificada do poder público, ainda que para isso tenha que viabilizar políticas públicas. Este ativismo judicial[15], na busca da concretização dos direitos fundamentais sociais, aumenta consideravelmente sua responsabilidade perante à sociedade, que diante de uma omissão por parte do Estado muitas vezes encontra naquele Poder o único meio de obter a prestação material que pode, inclusive, ser imprescindível para a própria sobrevivência.
4. Mínimo existencial e reserva do possível
A reserva do possível tem sido suscitada para justificar a omissão estatal na prestação de direitos sociais, haja vista que a disponibilidade dos recursos econômicos é escassa, não tendo como se atender a todas as pretensões clamadas pela sociedade, porém, a admissão irrestrita do argumento da incapacidade econômico-financeira pode tornar a efetividade dos direitos sociais em simples utopia, admitindo-se que o Estado distribua e aplique indiscriminadamente os recursos existentes sem se preocupar com a priorização dos gastos públicos no atendimento aos diversos direitos sociais[16].
Entendo que o Estado deverá utilizar os recursos disponíveis com absoluta prioridade, buscando satisfazer o mínimo vital em relação aos direitos sociais estabelecidos pela Constituição Federal, garantindo a todos o acesso às condições materiais mínimas de existência, sendo válido observar que tal incumbência não significa alcançar o ápice desejado pelo Estado do bem-estar social, mas apenas o início, o ponto de partida, que deve servir de norte a todo Estado que respeita o princípio da dignidade da pessoa humana[17]. Ana Paula de Barcellos (2001, p. 245-246, grifos nossos) pondera que:
“Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível”.
O princípio da dignidade da pessoa humana impede que o Estado utilize o argumento da reserva do possível para se eximir da responsabilidade de propiciar ao indivíduo a garantia de sua existência material mínima, asseverando Daniel Sarmento (2000, p. 71, grifos nossos) que:
“O Estado tem não apenas o dever de se abster de praticar atos que atentem contra a dignidade humana, como também o de promover esta dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. O homem tem a sua dignidade aviltada não apenas quando se vê privado de alguma das suas liberdades fundamentais, como também quando não tem acesso à alimentação, educação básica, saúde, moradia, etc”.
A eminente Ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmem Lúcia Antunes Rocha, também entende que há uma íntima relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial, na medida em que este seria:
“o conjunto das condições primárias sócio-políticas, materiais e psicológicas sem as quais não se dotam de conteúdo próprio os direitos assegurados constitucionalmente, em especial aqueles que se referem aos fundamentais individuais e sociais […] que garantem que o princípio da dignidade humana dota-se de conteúdo determinável (conquanto não determinado abstratamente na norma constitucional que o expressa), de vinculabilidade em relação aos poderes públicos, que não podem atuar no sentido de lhe negar a existência ou de não lhe assegurar a efetivação, de densidade que lhe concede conteúdo específico sem o qual não se pode afastar o Estado”[18].
Desse modo, o Estado está obrigado a garantir o direito às condições mínimas de existência humana digna, sendo este direito inviolável inclusive perante à reserva do possível[19], ocorre que tal concepção ocasiona uma série de questionamentos dentre os quais se enquadra a própria definição das prestações que são indispensáveis para a manutenção de uma vida digna.
Não obstante haja dificuldade em se fixar de forma prévia as prestações que caracterizam o mínimo existencial, é possível delimitar – com base nos ensinamentos de diversos doutrinadores (Ana Paula de Barcellos, Dirley da Cunha Júnior, Ingo Sarlet, etc.) – alguns direitos fundamentais sociais que não oferecem dúvidas quanto à relação intrínseca com o mínimo imprescindível para uma existência digna. Os direitos aqui referidos são: moradia, educação e saúde[20].
Vale destacar que Ingo Sarlet (2005, p. 312-345 e 353) entende que a existência digna estaria ligada à prestação de recursos materiais essenciais, devendo ser analisada a problemática do salário mínimo, da assistência social, do direito à previdência social, educação, saúde e à moradia, porém afirma que não está plenamente convencido “da elaboração de um elenco previamente definido de prestações (e direitos subjetivos correspondentes) que integram o mínimo existencial […] já que seguimos convictos de que todas as prestações indispensáveis à promoção, proteção e fruição de uma vida digna (que podem variar de acordo com as circunstâncias) necessariamente compõe o mínimo existencial”.
O ilustre doutrinador, baseado nas lições de Robert Alexy, considera essencial que haja uma ponderação de princípios, uma ponderação dos bens jurídicos em colisão, na avaliação dos direitos a prestações materiais, não podendo a garantia do mínimo existencial afetar outros princípios constitucionais relevantes (SARLET, 2005, p, 349-350 e 353-354), ou seja, utiliza-se a proporcionalidade em cada caso para justificar o direito ou não à uma prestação social, o que restringe o alcance do mínimo existencial, já que este poderá ceder diante à reserva do possível, dependendo dos direitos em colisão.
Independentemente do posicionamento que se adote acerca da extensão do mínimo existencial e da reserva do possível, o importante é deixar assente que o Poder Judiciário deve ter responsabilidade e cautela ao conceder ou não um determinado direito subjetivo a prestação social.
5. Judicialização da política e politização da justiça
A judicialização da política consiste na ampliação do papel do Poder Judiciário no sistema de poder, fazendo com que o Judiciário, por exemplo, interfira decisivamente em questões de políticas públicas, que antes eram de atribuição exclusiva dos Poderes Legislativo e Executivo. O constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2003, p. 215), porém, considera que a ampliação da esfera de intervenção do Judiciário não lhe resultou aumento de prestígio, ao contrário:
“[…] seu poder de interferência na órbita político-administrativa o tornou co-responsável dos insucessos ou frustações que para a opinião pública decorrem da má atuação do Poder. Mais, veio ele a ser visto como um colaborador do Governo.
Ou, quando decide contra as medidas deste, é por ele apontado como responsável – a serviço da oposição – por decisões contrárias ao interesse popular […].
Em ambos os casos assume uma feição de órgão político, no pior sentido do termo”.
Essa crescente judicialização demonstra uma nítida descrença nos políticos por parte da sociedade[21], que diante da ineficiência do Legislativo ou Executivo passa a crer que o Judiciário – composto em tese por elite instruída e não corrompida – seja o “salvador” do processo de transformação social, cabendo assim atuar em decisões políticas. A idealização de que o Judiciário seja o depositário das esperanças das concretizações sociais está relacionado, na verdade, com a desilusão da democracia, na medida em que a sociedade passa a deixar de acreditar nos representantes eleitos e no próprio poder de reação popular.
Entendo que o grande problema da judicialização da política é o fato dela contribuir para a proliferação da politização da justiça, o que possibilita – ou pelo menos torna mais propícia – a influência negativa de questões e conflitos políticos nas decisões judiciais.
Esta politização da justiça é bastante perceptível, como afirma Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2003, p. 215-216), na medida em que decisões judiciais são proferidas com base na opinião pública, crescendo o interesse dos meios de comunicação pelos trabalhos do Judiciário. A prolação de decisões cujo objetivo seja evitar desagradar à opinião pública, aniquila a própria finalidade do Judiciário numa sociedade democrática, afetando a independência e credibilidade deste Poder já que sempre ficará refém do clamor público.
Na visão de Dirley da Cunha Júnior (2004, p. 338), a politização da justiça não seria prejudicial ao juiz, já que este não cede às pressões nem mesmo de grupos e partidos políticos:
“Essa politização do juiz é o resultado de sua alta independência e criatividade. Juiz politizado, porém, não significa juiz parcial, apartado da lei e substituto da política. O juiz-político continua imparcial e não cede às pressões de grupos e partidos; continua limitado e vinculado à Constituição, de modo que sua politização é tão-somente expressão, numa sociedade complexa, de um aumento das possibilidades de escolha e decisão, e não de um processo de negação ou recusa da legalidade constitucional; continua, enfim, a cumprir a sua precisa função constitucional”.
Infelizmente não posso concordar com o citado doutrinador, pois na prática cada vez mais se observa o aumento da pressão política exercida sob o Judiciário, principalmente no âmbito dos Tribunais, onde seus membros são indicados por autoridades políticas – Presidente da República ou Governador – dentre uma listagem estabelecida, como ocorre nos Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Superior Tribunal de Justiça. Vale lembrar que, os membros do Supremo Tribunal Federal são escolhidos livremente pelo Presidente da República, desde que observados os requisitos do artigo 101 da Constituição Federal, mas sem se submeter nem mesmo a qualquer listagem prévia.
Diante de tamanha pressão política, que é inerente ao circuito de negociação política, o juiz nem sempre acabará desempenhando sua função constitucional com imparcialidade, já que suas decisões não observarão apenas a legalidade, mas, sobretudo, o impacto que poderá ocasionar na seara política.
6. Considerações finais
O Estado deve estender suas atividades sociais não apenas para garantir o mínimo vital, velando pela máxima concretização dos direitos sociais, sendo estes verdadeiros direitos subjetivos a prestações.
Em caso de omissão estatal na preservação dos direitos sociais, especialmente quando seja negado acesso às condições materiais mínimas de existência, cumpre ao Poder Judiciário intervir com vigor ao ser provocado, determinando, inclusive, se for necessário, a implementação de políticas públicas, obrigando ao Estado a prestações de fazer, visando sempre proteger a dignidade da pessoa humana.
Vale registrar que, o doutrinador Paulo Lopo Saraiva (1983) há bastante tempo já defendia a judicialização dos direitos sociais, propondo a instituição do “mandado de garantia social”, que teria a finalidade de “fazer consagrar, respeitar, manter ou restaurar, preventiva ou repressivamente, os direitos sociais previstos explícita ou implicitamente na constituição federal, contra atitudes ativas ou omissivas do Poder Público ou de particulares, para os quais não exista remédio próprio”.
Embora a interferência do Poder Judiciário em questões de políticas públicas seja válida, especialmente quando objetiva favorecer a efetivação dos direitos sociais, há de se temer a ampliação da politização da justiça, o que faz com que a Constituição acabe sendo, “na prática, a vontade do governo, porquanto um Judiciário politizado não desempenha com rigor, independência e imparcialidade, o controle jurisdicional dos atos normativos, designadamente quando o poder de quem governa extravasa, sem freio, os limites de sua competência e autoridade” (BONAVIDES, 2007, p. 345).
Informações Sobre o Autor
Eduardo Braga Rocha
Procurador da Fazenda Nacional. Mestre em Direito (área de concentração: Direito do Estado) pela Universidade da Amazônia. Especialista em Direito e Processo Tributários pela Universidade de Fortaleza. Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza. Membro Associado do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública