A judicialização do direito à saúde e o princípio da reversa do possível: necessidade de uma interpretação sistemática da Constituição

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Resumo: O presente artigo objetiva analisar a interferência do Poder Judiciário na efetivação do direito social à saúde, considerando a harmonia e independência entre os órgão de poder do Estado e a interdisciplinaridade do tema (âmbito jurídico, político e econômico). A pesquisa valeu-se do método dedutivo, partindo da identificação e interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais e legais aplicáveis à matéria até a análise de casos concretos, por meio da pesquisa jurisprudencial. Pretende-se contribuir para a discussão sobre a judicialização da saúde, apontando critérios racionais para a atuação do Poder Judiciário, pois não se pode negar a existência de políticas públicas estabelecidas e a escassez de recursos públicos para o atendimento pleno de todas as demandas nessa área.


Palavras-chave: saúde, Poder Judiciário, finanças públicas, racionalidade.


Sumário: 1. Introdução. 2. Sistematização dos dispositivos constitucionais e legais aplicados à matéria. 3 Participação popular na formulação, aplicação e controle das políticas públicas de saúde. 4 Equilíbrio financeiro e políticas públicas. 5 Prioridade de atendimento aos hipossuficientes economicamente. 6. Conclusão.


1 Introdução


A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, estabelece que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Segundo Fábio Konder Comparato,


“essa convicção de que todos os seres humanos têm direito a serem igualmente respeitados, pelo simples fato de sua humanidade, nasce vinculada a uma instituição social de capital importância: a lei escrita, como regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que vivem numa sociedade organizada”.1


Para a doutrina positivista, só há direito, de fato, se houver a possibilidade de exigir o seu cumprimento por meio do poder coercitivo do Estado.


Os direitos fundamentais, direitos humanos estabelecidos na ordem jurídica estatal, como se sabe, podem ser entendidos em três grandes dimensões: os direitos individuais, que, na sua grande maioria, buscam a proteção do indivíduo contra os demais membros do corpo social ou contra os arbítrios do Estado, nessa esfera se enquadrando os direitos de liberdade e de personalidade; os direitos sociais, que buscam no Estado a garantia de execução de políticas sociais, econômicas e culturais; e os direitos de fraternidade, que são aqueles ligados ao gênero humano, dentre eles o meio ambiente e a paz.


Sob essa perspectiva, cumpre ao Estado estabelecer mecanismos de concretização e proteção aos direitos fundamentais por meio de políticas públicas. Segundo Maria Paula Dallari Bucci, as políticas públicas podem ser definidas “como programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do estado e as atividades privadas para a realização dos objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”.2 Nesse sentido, as políticas públicas conjugam as políticas de Estado, estabelecidas na Constituição e na legislação em geral, com as políticas de governo orientadas pelas diretrizes político-partidárias.


É por meio da formulação e execução de políticas públicas que o Estado, notadamente os Poderes Legislativo e Executivo, cujos representantes foram democraticamente eleitos, concretizam os direitos fundamentais sociais previstos na Constituição da República de 1988 (CR/88). Contudo, quando há omissão do Estado em cumprir com os direitos sociais, econômicos e culturais garantidos pela Constituição, o Poder Judiciário vem sendo acionado para compeli-lo, principalmente no que se refere ao direito à saúde. Cada vez mais o fenômeno da “Judicialização da Política” ou “Politização do Judiciário” vem sendo discutido no país, transferindo-se o foco da discussão sobre a implementação de políticas públicas da instância político-administrativa para a judicial, e da instância coletiva para a individual, por meio da análise judicial de casos concretos.


Diante disso, questiona-se em até que ponto o Poder Judiciário está legitimado a intervir nos limites orçamentários do Estado, na medida em que determina a realização de despesas para efetivação de direitos sociais.


Dentre os direitos sociais, pretende-se discutir a implementação jurisdicional do direito à saúde, quer seja porque é o mais recorrente no Judiciário, quer seja por ser decorrente do direito fundamental à vida, quer seja por entedê-lo como pressuposto para o desenvolvimento pleno dos demais direitos sociais.


A implementação judicial do direito social à saúde tem despertado grande discussão dentre os operadores do Direito. Diante de inúmeros pedidos de suspensão de segurança, de liminares e de antecipação de tutela por parte do Poder Executivo, o Supremo Tribunal Federal realizou audiência pública para discutir o tema, nos dias 27, 28 e 29 de abril e 4, 6 e 7 de maio de 2009, tendo em vista os recorrentes argumentos de que a atuação judicial provoca lesão à ordem econômica, financeira e até mesmo à própria saúde pública.


A Constituição da República de 1988 incluiu um conjunto de direitos sociais prestacionais, conforme disposto em seu art. 6º, no rol dos direitos e garantias fundamentais. Segundo José Afonso da Silva,


“os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade.”3


A implementação dos direitos sociais por parte do Estado busca garantir a isonomia material dos cidadãos e atende aos ditames da equidade. No que tange à implementação do direito à saúde, alguns dispositivos constitucionais são constantemente citados em defesa da sua universalidade e aplicabilidade imediata diante de casos concretos, tais como o § 1º do art. 5ºe o art. 196.


Contudo, há algumas barreiras para que essa implementação seja integral e universal, como determina o texto constitucional. Dentre elas pretende-se tratar da limitação financeira do Estado, pois não se pode esquecer que os recursos financeiros são finitos e devem ser distribuídos de acordo com as diversas necessidades públicas, a exemplo a implementação dos direitos sociais descritos no já citado art. 6º da Constituição da República.


Não se pretende com esse argumento enfraquecer a eficácia dos direitos sociais ao status de meras normas programáticas, mas, sim, refletir sobre as dificuldades de concretização imediata e universal de todas as demandas na área da saúde, considerando as limitações financeiras do Estado.


2 Sistematização dos dispositivos constitucionais e legais aplicados à matéria


Com o fim de se propor alguns parâmetros racionais para a implementação do direito à saúde por meio de decisão judicial, é necessário identificar os principais dispositivos constitucionais e legais que se relacionam com a matéria.


O art. 6º da Constituição da República de 1988 estabelece o rol de direitos sociais: saúde, educação, moradia, lazer, trabalho, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.


Já de acordo com o art. 193, a ordem social, na qual a saúde esta inserida, tem como objetivos o bem-estar e a justiça sociais.


Especificamente sobre a saúde, o art. 196 estabelece que ela é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.


Segundo o disposto no art. 197 da Constituição da República de 1988:


“São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público, dispor, nos termos da lei, sobre a sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”. (sem negrito no original)


Sobre o financiamento dos serviços públicos de saúde, a Emenda Constitucional nº 20, de 13 de setembro de 2000, acrescentou, ao art. 198, os parágrafos 2º e 3º que prevêem a edição de lei complementar para estabelecer os percentuais mínimos de aplicação de recursos por cada ente da Federação. Como a referida lei complementar ainda não foi editada, deve-se recorrer ao art. 77 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias:


Até o exercício financeiro de 2004, os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de saúde serão equivalentes:


I – no caso da União:


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a) no ano 2000, o montante empenhado em ações e serviços públicos de saúde no exercício financeiro de 1999 acrescido de, no mínimo, cinco por cento;


b) do ano 2001 ao ano 2004, o valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB;


II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, doze por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; e


III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, quinze por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.


§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que apliquem percentuais inferiores aos fixados nos incisos II e III deverão elevá-los gradualmente, até o exercício financeiro de 2004, reduzida a diferença à razão de, pelo menos, um quinto por ano, sendo que, a partir de 2000, a aplicação será de pelo menos sete por cento.


§ 2º Dos recursos da União apurados nos termos deste artigo, quinze por cento, no mínimo, serão aplicados nos Municípios, segundo o critério populacional, em ações e serviços básicos de saúde, na forma da lei.


§ 3º Os recursos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios destinados às ações e serviços públicos de saúde e os transferidos pela União para a mesma finalidade serão aplicados por meio de Fundo de Saúde que será acompanhado e fiscalizado por Conselho de Saúde, sem prejuízo do disposto no art. 74 da Constituição Federal.


§ 4º Na ausência da lei complementar a que se refere o art. 198, § 3º, a partir do exercício financeiro de 2005, aplicar-se-á à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o disposto neste artigo.” (sem negrito no original)


É por meio dos instrumentos de planejamento público, Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual que os entes federativos criam seus programas e ações, estabelecem suas prioridades e fixam as suas receitas e as suas despesas. Portanto, a execução da política de saúde está intimamente ligada às finanças do Estado. Sendo o orçamento público a peça político-jurídica que indica qual a capacidade financeira estatal em cada ação ou programa.


O art. 70 da Constituição trata do controle das finanças públicas, impondo ao Poder Legislativo e ao sistema de controle interno de cada Poder a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, e patrimonial da Uniãoi e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receita.


O controle da legitimidade “engloba os princípios constitucionais orçamentários e financeiros, derivados da ideia de segurança jurídica ou de justiça, que simultaneamente são princípios informativo dos controle.”4


Deve-se destacar que, nos termos do art. 3º do art. 77 dos ADCT supracitado, no caso da gestão de saúde nos Estados-membros e municípios, além do controle institucional das contas públicas, há o controle social exercido por meio dos conselhos de saúde.


Nos municípios, ainda há mais um fator de participação popular. O art. 44 do Estatuto das Cidades, Lei 10.257/2001, estabelece como condição obrigatória para a aprovação pelas Câmaras Municipais a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual.


A Lei 8.080/90, também conhecida como “Lei do SUS”, tratou do financiamento dos serviços de saúde nos seguintes termos:


Art. 36. O processo de planejamento e orçamento do Sistema Único de Saúde (SUS) será ascendente, do nível local até o federal, ouvidos seus órgãos deliberativos, compatibilizando-se as necessidades da política de saúde com a disponibilidade de recursos em planos de saúde dos Municípios, dos Estados, do Distrito Federal e da União.


§ 1º Os planos de saúde serão a base das atividades e programações de cada nível de direção do Sistema Único de Saúde (SUS), e seu financiamento será previsto na respectiva proposta orçamentária.


§ 2º É vedada a transferência de recursos para o financiamento de ações não previstas nos planos de saúde, exceto em situações emergenciais ou de calamidade pública, na área de saúde.” (sem negrito no original).


Frise-se que, ao mesmo tempo em que a Constituição Federal estabelece o atendimento universal e integral à saúde, ela não se esquece de tratar do financiamento desse serviço público, por meio do investimento gradativo, como previu o art. 77 dos ADCT.       


Não se pode esquecer que a Constituição é dotada de imenso caráter interdisciplinar, abarcando não só o conteúdo jurídico, como também político, social, econômico e cultural de um Estado. Nesse sentido, o que à primeira vista pode parecer um tanto quanto antagônico deve ser harmonizado. De acordo com os ensinamentos do Prof. Celso Ribeiro Bastos, a hermenêutica constitucional tem, dentre outros postulados, a unidade e harmonização do texto constitucional.


O postulado da unidade cria “a obrigatoriedade de se ter sempre em conta a interdependência de todas as normas de natureza constitucional”.5 O postulado da harmonização estabelece que “a uma regra constitucional se deve atribuir um conteúdo de tal forma que esta resulte o mais coerente possível com as demais regras pertencentes ao sistema constitucional.”6


Portanto, utilizando-se dos postulados de hermenêutica constitucional e considerando o sistema legal com um todo, pode-se identificar alguns critérios para a concretização do direito à saúde, os quais serão tratados nos próximos tópicos deste trabalho.


3 Participação popular na formulação, aplicação e controle das políticas públicas de saúde


A legitimidade democrática na formulação, aplicação e controle das políticas públicas de saúde aumenta na medida em que o controle social é exercido por meio da participação do cidadão na discussão, implementação e avaliação das ações governamentais. A obrigatoriedade da constituição de fundos estaduais e municipais de saúde e de sua gestão por meio de conselhos que garantam a paridade entre governo e sociedade significa que a gestão da saúde é compartilhada e que a sociedade, por meio dos representantes nos conselhos, pode identificar a prioridade de investimento nessa função de governo.


Além dos conselhos, no caso dos munícipes, é possível controlar os gastos na saúde por meio da participação no processo de elaboração das leis municipais de planejamento público. Cabe ao Legislativo Municipal verificar se houve participação popular nesse processo, como condição legal para a sua aprovação.


“Fruto do debate democrático entre várias possibilidades em jogo, as leis, as leis orçamentárias, os programas de governo, as campanhas e as linhas de ação setoriais, os atos normativos e os regulamentos, etc., representam o arcabouço jurídico e financeiro colocado em ação para o funcionamento desse sistema.”7


Dessa forma, a elaboração dos programas e ações governamentais, bem como a eleição das metas e prioridades da Administração Pública e, por fim, o montante que irá ser investido, além de ser elaborado pelo Executivo e aprovado pelo Legislativo, representantes eleitos, deve ser submetido ao controle social. Esse sistema permite verificar se as opções feitas pelo agente político estão em consonância com as políticas de Estado estabelecidas na Constituição da República e nas leis, ou seja, se elas contemplam, prioritariamente, a concretização dos direitos sociais.


4 Equilíbrio financeiro e políticas públicas


O Estado, diante dos recursos arrecadados e das inúmeras demandas sociais, ao fixar suas despesas na área da saúde, o faz de acordo com técnicas de planejamento, tais como percentual da receita a ser aplicada, demanda, prioridade do programa ou ação. Não se nega a necessidade de intervenção do Poder Judiciário para garantir o mínimo existencial ao indivíduo, contudo, essa prática, se não for dotada de critérios racionais, pode ensejar um grande prejuízo para a própria saúde pública, pois recursos destinados à realização de outras despesas terão de ser remanejados para o cumprimento de ordem judicial de caráter individual.


“Ainda que o princípio da separação dos poderes não possa implicar a ausência de interferência do Judiciário na esfera dos direitos sociais, não pode ser ignorado que deve haver sempre respeito pelo papel dos demais poderes, cabendo às cortes serem “extremamente cuidadosas para não extrapolarem suas funções institucionais”, pelo que “os juízes devem interferir somente quando o núcleo do direito à saúde estiver em risco ou quando o Executivo e o Legislativo não souberem utilizar o poder discricionário dado a eles e passarem a atuar de forma abusiva”.”8 (grifo no original)


Tanto a Constituição da República, como a legislação infraconstitucional, não ignoram a questão orçamentária e financeira do Estado na implementação das políticas de saúde. Como se verificou dos dispositivos acima, a própria Constituição traz as referências ao investimento gradativo em saúde, conforme art. 77 dos ADCT, de modo a atingir percentuais mínimos da receita destinados a essa função governamental.


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A crise que se instala é a interferência do Judiciário nas finanças do Poder Executivo, determinando a realização de despesas não previstas no orçamento público. Além da possibilidade de responsabilização civil e criminal do gestor público pelo descumprimento de ordem judicial.ii


Na grande maioria das ações, os magistrados deferem a tutela antecipada sem a oitiva do ente público, em afronta ao princípio do contraditório. Como tais medidas são satisfativas, os cofres públicos são onerados mesmo que se comprove, posteriormente, a impossibilidade de recursos ou a ineficiência do tratamento/medicamento.


Um bom exemplo é o caso de R.B.S., paciente portador de retinose pigmentária, enfermidade conhecida como cegueira noturna. Ele teve seu tratamento de saúde realizado em Cuba custeado pelo SUS (Sistema Único de Saúde), por força de decisão liminar em mandado de segurança emitida pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região. Ocorre que, ao julgar o mérito, o referido Tribunal cassou a liminar denegando a segurança, pois não havia ficado comprovada a inexistência de tratamento no Brasil tão eficaz como o realizado em Cuba. Como consequência da cassação da liminar e da denegação da segurança, a União ingressou com ação monitória visando ao recebimento dos recursos financeiros despendidos com o tratamento do impetrante, nos termos da súmula 405 do STF. Os embargos à monitória foram julgados improcedentes, sendo constituído título executivo em favor na União no valor de R$ 21.520, 76.9


O tratamento era recorrentemente concedido, até que o Superior Tribunal de Justiça emitiu o seguinte julgado:


“ADMINISTRATIVO – SERVIÇO DE SAÚDE – TRATAMENTO NO EXTERIOR – RETINOSE PIGMENTAR. 1. Parecer técnico do Conselho Brasileiro de Oftalmologia desaconselha o tratamento da “retinose pigmentar” no Centro Internacional de Retinoses Pigmentária em Cuba, o que levou o Ministro da Saúde a baixar a Portaria 763, proibindo o financiamento do tratamento no exterior pelo SUS. 2. Legalidade da proibição, pautada em critérios técnicos e científicos. 3. A Medicina social não pode desperdiçar recursos com tratamentos alternativos, sem constatação quanto ao sucesso nos resultados. 4. Mandado de segurança denegado.”10


Reconhece-se que o argumento da insuficiência de recursos financeiros e a utilização do princípio da “reserva do possível” são recorrentes, contudo há a necessidade de sua comprovação pelo Poder Público, considerando os princípios da eficiência e economicidade, de forma a garantir o direito à boa administração pública.


De acordo com Canotilho, as demandas não podem ser solucionadas conforme a dimensão absoluta do “tudo ou nada”, dependendo de exame do caso concreto.11 Assim, o Estado deve comprovar a existência de políticas públicas de saúde e a impossibilidade de realização do tratamento sem prejuízo de sacrifício a outra demanda também constitucionalmente protegida. Transferir essa ponderação ao Poder Judiciário é o mesmo que transferir as escolhas políticas que o gestor deve fazer diante de tantas demandas a serem executadas. Por isso a necessidade de se respeitar as políticas estabelecidas por meio da legislação específica, pois a falta de um parâmetro normativo muitas vezes contribui para decisões judiciais sem a aplicação de um critério racional dos recursos públicos.


“Por outras palavras: nenhuma das normas constitucionais garantidoras de direitos sociais fundamentais poderia ser estruturalmente entendida como norma vinculante, garantidora, em termos definidos, de direitos subjectivos. Os direitos sociais dotados de conteúdo concreto serão os consagrados em normas das regulações legais. Não haverá um direito fundamental à saúde, mas um conjunto de direitos fundados nas leis reguladoras dos serviços de saúde.”12


Como bem ressaltou a Desembargadora Maria Izabel de Azevedo Souza,


“O direito social à saúde, a exemplo de todos os direitos (de liberdade ou não) não é absoluto, estando o seu conteúdo vinculado ao bem de todos os membros da comunidade e não apenas ao indivíduo isoladamente. Trata-se de direito limitado à regulamentação legal e administrativa diante da escassez de recursos, cuja alocação exige escolhas trágicas pela impossibilidade de atendimento integral a todos, ao mesmo tempo, no mais elevado standard permitido pela ciência e tecnologia médicas. Cabe à lei e à direção do SUS definir seu conteúdo em obediência aos princípios constitucionais.”13


Nesse sentido, entende-se que é plenamente exigível, por meio de ação judicial, o fornecimento de remédios incluídos nas listas editadas por meio de portarias do SUS, observadas a competência de cada ente federativo. Como exemplos podem ser citadas a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), que norteia a oferta de medicamentos para o tratamento dos principais problemas de saúde da população; e a relação do Programa de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional, em que constam os medicamentos para tratamento das doenças mais raras. Nesse caso, o Poder Público estabeleceu uma política pública e deve cumpri-la, destinando os recursos necessários para tanto, pois deixar de fornecer tais medicamentos seria um retrocesso a um direito fundamental reconhecido pelo Estado e deve ser compelido pelo Judiciário.


5 Prioridade de atendimento aos hipossuficientes economicamente


Ao tratar da assistência aos desamparados como direito fundamental social, a Constituição Federal prioriza o atendimento aos mais necessitados. A própria ordem social, na qual o serviço público de saúde está inserido, tem como objetivo a realização da justiça social. Nesse sentido, aplica-se o conceito de igualdade material, segundo a qual o Estado deve tratar de forma igual os iguais e de forma desigual os desiguais, no limite de suas desigualdades. Assim, quando o Estado prioriza o atendimento aos mais necessitados, o que ele busca é reduzir a desigualdade existente entre eles e a parcela mais abastada da população.


O próprio professor Ingo Sarlet, em referência à jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pondera que


“a reclamação deve responder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir do sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o estado dos recursos e tendo o poder de disposição não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para o seu sustento. O que, contudo, corresponde ao razoável, também depende – de acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã – da ponderação por porte do legislador.” (sem negrito no original).15


Nesse sentido, o Chefe do Poder Executivo do Município de Alfenas-MG editou o Decreto n. 48, de 30 de agosto de 2006, que estabeleceu critérios para o fornecimento de medicamentos especiais, ou seja, aqueles que não constam das listas de medicamentos básicos que devem ser fornecidos pelos Municípios, priorizando o atendimento aos hipossuficientes economicamente, verificada esta condição por meio de laudo de Assistente Social do Município.


6 Conclusão


Este artigo iniciou relembrando o direito à igualdade preconizada pela Declaração Universal de Direitos Humanos e o grau de efetividade dos direitos mediante a possibilidade de se exigi-los perante o Poder Judiciário, para concluir que é possível ao Judiciário a concretização do direito à saúde, contudo há a necessidade do estabelecimento de critérios racionais para a sua atuação.


Primeiramente, o Judiciário deveria verificar a existência de política pública em relação ao tratamento pretendido e quais os critérios exigidos pelo Estado para a sua concessão. Ora, se o próprio ente público edita uma norma comprometendo-se à realização de determinada ação, se o requerente preenche os requisitos necessários para obter o tratamento, o Judiciário pode compelir aquele ao cumprimento daquilo que já foi estabelecido por meio de lei ou ato administrativo, sob pena de retrocesso social, o que não deve ser permitido no âmbito dos direitos fundamentais.


Se não há uma política pública previamente estabelecida, o Judiciário deverá agir com mais cautela, verificando se as escolhas e prioridades estabelecidas pelo Estado estão atendendo aos investimentos mínimos referidos pela Constituição da República, se as políticas estabelecidas passam por controle social, de modo a propiciar à população a participação na tomada de decisões, se o tratamento indicado é o único capaz de produzir os resultados pretendidos, se o requerente ou sua família não possuem condições financeiras de arcar com os custos do tratamento e, por fim, se há recursos financeiros disponíveis.


Nesse ponto, o Juiz deve ter em mente que alocar recursos financeiros para determinada demanda de saúde, na esfera judicial, significa desalocar recursos destinados democraticamente, por meio da proposição e aprovação dos orçamentos públicos, de outras demandas também garantidas pela Constituição.


Contudo, tudo isso só poderá ser argumentado se se der a oportunidade ao Estado de exercer o seu também constitucional direito ao contraditório e à ampla defesa, de modo que a concessão de liminares de caráter satisfativo sem a oitiva do ente público deve ser combatida, uma vez que representa ato antidemocrático e violador da tripartição à harmonia entre os Poderes Públicos.


Portanto, defende-se a utilização de critérios racionais para o deferimento de medidas judiciais em relação à concretização do direito à saúde, de modo a possibilitar ao Poder Executivo a demonstração das políticas públicas existentes e a possibilidade financeira do Estado para a realização do tratamento pretendido, não se esquecendo de que a Constituição da República é um documento único, o qual também preconiza, além do direito universal à saúde, a manutenção da ordem financeira e tributária.


 


Referências

ALFENAS-MG. Decreto Municipal n. 48, de 30 de agosto de 2006. Disponível na Procuradoria-Geral do Municipio de Alfenas. Acesso em: 07/04/2010

BRASIL. Constituição da República de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br Acesso em:07/04/2010

BRASIL. Lei n. 8.080/90. Disponível em: www.planalto.gov.br Acesso em:

07/04/2010.

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TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 15.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

 

Notas:

i  Por observância do princípio da simetria com o centro, esse dispositivo aplica-se aos Estados-membros e aos Municípios e seus respectivos poderes legislativos e órgãos de controle interno.

i i  No âmbito civil, além da responsabilidade por dano material e moral por omissão, há ainda a possibilidade de se ajuizar ação de improbidade administrativa por ato que atente contra os princípios da administração pública. No âmbito criminal, há a possibilidade de ser condenado por crime de desobediência.

1 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 59.

2 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002.

3 SILVA, José A. da. Curso de Direito Constitucional positivo. 32.ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 286-287.

4 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 15.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 123.

5 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3.ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 173

6 Ibid. p. 178.

7 FARIA, Júlio Herman. Políticas públicas: o diálogo entre o jurídico e o político. A&C. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, v. 9, n. 35, p. 157-169, jan/mar. 2009.

8 ROCHA, Rosalia Carolina Kappel. A eficácia dos direitos sociais e a reserva do possível. Disponível em: http://www.escola.agu.gov.br/revista/AnoV novembro 2005/ rosalia-eficacia.pdf. Acesso em: 22 jul. 2009, p. 17.

9 STJ, REsp 902160, Min. Rel. Carlos Meira, julgado em 20/09/2007.

1 0 MS 8.895/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, 1ª Seção, julgado em 07/06/2004.

1 1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 431.

1 2 Ibid. p. 482.

1 3 TJRS. AI nº 70019001916. Julgado em 26/04/2007, Relatora Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza.

1 5 SARLET, Ingo apud PADARATZ, Cláudia. Políticas públicas e judicialização da saúde: atuação em matéria municipal em matéria de saúde. Da efetivação da assistência farmacêutica. In: DAIBERT, Arlindo et. al. (Org.). Direito Municipal em debate. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 261.


Informações Sobre os Autores

Tatiana Cardoso Teixeira Viana

Doutoranda e Mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP. Especialista em Direito Público pela FDSM. Professora Adjunta da Universidade Federal de Alfenas. Bolsista da CAPES

Pablo Viana Pacheco

Graduado em Direito pela UNIFENAS. Especialista e mestre em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Coimbra. Doutorando em Direito Constitucional pela PUC-SP. Professor das Faculdades de Direito da UNIFENAS e FUMESC. Bolsista da CAPES. Advogado


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