Resumo: o presente trabalho realiza uma análise da evolução histórica da ideia de separação dos poderes – desde a sua concepção liberalista até o seu redimensionamento no Estado contemporâneo -, demonstrando as conjecturas políticas e sociais que conformaram o diálogo constitucional entre os Poderes Legislativo e Executivo. Para esse fim, a referida pesquisa enquadra-se, enquanto pesquisa teórica de cunho bibliográfico e de caráter explicativo, através de revisão literária. Ao final, conclui que a visão estanque liberal não mais prevalece nos Estados contemporâneos, tendo em vista a necessidade de ambos os Poderes dividirem a arena política, em especial a partir da assunção da função legislativa.
Palavras-chave: Constitucionalismo. Separação dos poderes. Poder Legislativo. Poder Executivo.
Abstract: this paper makes an analysis of the historical evolution of the idea of separation of powers – from its liberal conception to resize in the contemporary state – demonstrating the political and social assumptions that formed the constitutional dialogue between the Legislative and Executive branches. The research is basic a theoretical and literature explanatory review. In the end, its concluded that the liberal vision tight no longer prevails in contemporary states, in view of the need for both powers divide the political arena , especially from the assumption of legislative function.
Keywords: Constitutionalism. Separation of powers. Legislative power. Executive power.
Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução histórica da ideia de separação dos poderes. 2.1. Releitura contemporânea do conceito e a atividade legislativa do Executivo. 3. Conclusão.
Introdução
É consenso comum entre os tratadistas a constatação de que o Poder Executivo tem ocupado lugar de primazia no cenário de elaboração normativa em detrimento do tradicional monopólio titularizado pelo Poder Legislativo, conforme noticia Carlos Roberto Siqueira de Castro:
“O Estado do século XX, sobretudo a partir da terceira década, exibe um fenômeno político-institucional que é perfeitamente caracterizado como de mutação dos papéis orgânicos dos departamentos da soberania, e que atinge, com maior ênfase, os poderes legislativo e executivo. Há, em verdade, uma reviravolta na relação de proeminência que prevalecera entre órgãos estatais do século XIX, passando o Executivo a protagonizar as ações de Governo, enquanto coube ao Parlamento posição mais secundária ou, pelo menos, de complementação das atividades de primeira grandeza levadas a efeito pela administração pública.” (SIQUEIRA CASTRO, 1986, p. 7)
Com efeito, é facilmente constatável o destaque assumido pela atividade legislativa do Executivo – decretos-leis, medidas provisórias, ordonnances, etc. – nos diversos ordenamentos jurídicos nacionais, tendo, inclusive, Oswaldo Trigueiro (1954) afirmado que na ausência dos decretos-leis os governos democráticos europeus, na primeira metade do século XX, seriam inviáveis.
Assim, demonstrar-se-á a seguir o panorama histórico-político que levou à proeminência da atividade legislativa primária do Executivo, particularmente em face das profundas transformações pelas quais passou o Estado do século XVIII, de um constitucionalismo liberal universalizado até o redimensionamento da teoria da separação dos poderes nos textos constitucionais contemporâneos, engendrando uma nova estrutura estatal surgida a partir do início do século XX.
1. Evolução histórica da ideia de separação dos poderes
Conforme ressalta Pedro Abramovay (2010, p. 13), em que pese serem conceitos que surgiram em momentos históricos e com significados bastante distintos, é comum que o conceito de separação dos poderes seja tratado como sinônimo da ideia de freios e contrapesos (checks and balances), muitas vezes sendo percebido como um processo de evolução histórica contínua que desconsidera o sentido transformador dado à separação dos poderes na contemporaneidade.
A fim de compreender a evolução e o sentido dado à separação dos poderes hoje em dia e a forma como se deu a incorporação deste conceito nos diversos desenhos institucionais ao longo do tempo, é preciso ater-se à formação histórica do conceito, interpretando-o de forma vinculada à realidade social de cada época.
Nesse sentido, em que pese a afirmação de que a separação dos poderes como princípio tenha sido obra do racionalismo iluminista, em um contexto de “aparecimento do Estado nacional moderno unificado e centralizado, territorialmente e funcionalmente” (NASCIMENTO, 2004, p. 41), não se trata de criação original, mas sim de imposição “do racionalismo a um conjunto de linhas de experiências e de doutrina que vinham desde épocas bastantes anteriores” (SALDANHA, 1987, p. 86).
Com efeito, a questão da divisão do poder tem raízes na Antiguidade Clássica, particularmente em A Política de Aristóteles, cuja atenção concentra-se na classificação de regimes e a sua natural degeneração[1], propondo o filósofo um governo com elementos mistos no qual fossem atribuídas funções distintas a diferentes atores do processo político, tendo os controles – diante da natural tendência de abuso do poder -, o objetivo de manter um regime virtuoso[2] (ABRAMOVAY, 2010, p. 14).
Importante ressaltar que “a noção de equilíbrio vinda do governo misto está, portanto, muito vinculada à ideia de manutenção de um regime, de evitar a sua degeneração.” (ABRAMOVAY, 2010, p. 14).
“A constituição mista representava a resposta dos antigos à previsão, por eles profundamente temida, de crise, de dissolução da comunidade política. Por esse motivo, uma de suas principais características era a do equilíbrio, pertencendo a um campo no qual não se realizavam as pretensões de somente uma força, de um fator constitucional singular.” (FIOVARANTI, 1999 apud SAMPAIO, 2007, p. 25).
A construção teórica em torno do governo misto continuou a se desenvolver na Idade Média, especialmente no debate sobre o poder eclesiástico. Discutindo a submissão do poder dos Papas aos concílios da Igreja, o objetivo do movimento conciliarista era a de “evitar que um Papa com poder demais pudesse justamente atentar contra o status quo do clero.” (ABRAMOVAY, 2010, p. 15). A divisão do poder estaria, portanto, associada a uma ideia de preservação do status quo, impedindo maiores transformações.
Avançando no tempo, já no contexto da Revolução Gloriosa na Inglaterra do século XVII, nos anos de 1688 e 1689, a ideia de equilíbrio do poder por distribuição social das funções públicas tem nas primícias do liberalismo de John Locke o seu maior expoente.
Conforme ensina Sampaio, Locke concebe os poderes do Estado como decorrentes do contrato social que o funda, fazendo-se, assim, supremo o Poder Legislativo “já que tem a função de declarar as leis que são pré-existentes à vida em sociedade, determinando as funções dos outros corpos do Estado, bem como fazendo as regras da vida comum.” (SAMPAIO, 2007, p. 26). Nesse sentido, afirma que:
“Duas características importantes da teoria do Locke já podem ser constatadas: a primeira diz respeito à origem limitada do poder, mesmo o legislativo, primeiro de todos na vida em sociedade. Nasce ele limitado pelo contrato social, que visava à garantia dos direitos naturais de vida, liberdade e propriedade. E, além disso, frise-se que a separação dos poderes de Locke se baseia no primado do legislativo, que leva ao primado da lei. E a lei, dentro do Estado fundado para manutenção de vida, liberdade e propriedade, é dotada, apenas, de função estabilizadora e garantística, com essência certa e previsível. O cenário é, pois, estático” (SAMPAIO, 2007, p. 27).
Com efeito, a teoria de Locke se afasta do ideal abstrato de constituição mista, propondo uma divisão orgânico-pessoal de poderes, a partir de um Legislativo supremo[3], baseado no primado da lei que, declarada de acordo com o direito natural, era estável, o que possibilitaria constante manutenção de situação de equilíbrio na sociedade. (SAMPAIO, 2007, p. 28).
Mais adiante, a partir da observância da Constituição Inglesa é que se insere a famosa obra do Barão de Montesquieu, cuja projeção deu as bases teóricas ao modelo clássico de tripartição do poder. Inserido no contexto revolucionário do século XVIII, Montesquieu concebeu um mecanismo de segurança ao regime que estava se estruturando com o propósito de arquitetar uma organização governamental que inibisse o abuso do poder. (FERREIRA FILHO, 2012, 132).
Para tanto, em trecho frequentemente difundido[4], Montesquieu propôs a sistemática dos três poderes, os quais, dentro de um Estado, constituiriam “procedimentos internos de balança obtidos pela combinação e pelo temperamento das potências ao mesmo tempo que pela distribuição das tarefas, pela regulação das competências e pela compensação das funções” (GOYARD-FABRE, 1999, p. 239).
Argumentava Montesquieu que o poder estatal deveria ser dividido e distribuído de forma que “a independência recíproca e especialização numa das funções básicas dos que contam com frações da soberania, impeça que qualquer um possa oprimir a quem quer que seja” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 131). Implícita à ideia de separação dos poderes, inserida no plano político, Montesquieu concebe a distribuição dos poderes às forças sociais da realidade de seu tempo[5] “em cuja conciliação, em cujo equilíbrio estava a fórmula infalível da liberdade de todos e de cada um” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 131).
De fato, para o pensador francês, “a separação dos poderes é um princípio de equilíbrio, o qual regendo a relação dos governos com as leis e a constituição, permite a ‘moderação’ necessária para assegurar a liberdade política” (NASCIMENTO, 2004, p. 40-41).
“A receita da liberdade política, que, recorde-se, é para ele ‘aquela tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem de sua segurança, sugerida pela Constituição inglesa, é partilhar a soberania das forças sociais, munindo-as de instrumentos e garantias para que, sem temerem umas às outras, possam realizar o ideal, o governo moderado” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 131).
Baseado nas construções político-jurídico de Locke e Montesquieu, no contexto das revoluções liberais reativas às monarquias, erige-se “um aparato estatal concebido para ser inerte, o Estado Liberal, cujo poder somente surtiria efeito se fosse alcançado acordo entre os poderes que o compõem.” (AMARAL JÚNIOR, 2012, p. 32).
Nesta forma de Estado, conforme ensina José Afonso da Silva, três principais características se destacam: a submissão ao império da lei, como limite à atuação estatal, em clara reação aos abusos perpetrados pelo Executivo absolutista, sendo o direito concebido somente como o conjunto de normas estabelecidas formalmente pelo Legislativo; a divisão dos poderes de forma independente como técnica que impeça o arbítrio nas relações entre os mesmos; e, como limite externo à ação do Estado, o dever de respeito às garantias e direitos individuais dos cidadãos. (2010, p. 112-113).
Assim, resultado embora mais da interpretação do que da intenção do seu inspirador inglês ou de seu pai francês, a separação dos poderes praticada acabou por ensejar a supremacia do Parlamento, tendo essa supremacia se acentuado durante todo o século XIX para atingir o ápice por volta da segunda década do século XX, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. (FERREIRA FILHO, 2012).
Ocorre que “o sistema calcado no domínio do Parlamento sobre o Governo e a administração, cenáculo da Lei – encarnação da razão universal -, vai perdendo, lenta, porém inexoravelmente, sentido.” (DAMOUS; DINO, 2005, p.3).
Como marco inicial desta linha evolutiva, apontam-se as intensas transformações econômico-sociais advindas da Revolução Industrial, consolidando-se com a eclosão de duas Grandes Guerras, momento no qual a intervenção do Estado fez-se imperativa não somente ao esforço bélico, mas, terminados os conflitos, à reconstrução nacional. Além disso, a eclosão da crise econômica de 1929, bem como a presença crescente da classe operária no cenário político, tornou a presença do Estado no âmbito da economia paulatinamente mais necessária. (DAMOUS; DINO, 2005, p. 4).
Ademais, ao longo do século XIX, com a crescente situação de pobreza do proletariado, ganharam força movimentos de oposição de índole associativista e sindicalista ao modelo liberal. Afinal, a visão negativa e formal de liberdade, tão consagrada no Estado liberal, se mostrou incapaz de gerar uma sociedade na qual o progresso individual fosse compatível com a distribuição de renda e justiça social.
“A liberdade de ação em geral e de aquisição de bens sobre a base da igualdade jurídica não atenua a desigualdade natural e econômica dos homens; ao contrário, permite que as diferenças se aprofundem. Da atuação da liberdade jurídica geral e igual para todos resulta assim necessariamente a desigualdade social, a qual se consolida através da garantia da propriedade e se converte em uma não liberdade social ao longo de gerações”. (NASCIMENTO, 2004, p. 47).
Tais setores, impossibilitados de debater dentro das instituições, em razão do voto censitário[6], encontraram na perspectiva revolucionária uma possibilidade de ruptura. A fim de preservar as instituições presentes, o voto foi universalizado, “como concessão de setores burgueses mais avançados, conscientes de que – para sobreviver politicamente – deveriam ceder, em alguma medida, aos anseios dos excluídos do jogo político.” (AMARAL JÚNIOR, 2012, p. 34).
Alçadas à condição de força política, as massas conduziram os conflitos para o interior das instituições estatais, especialmente para o seio do Parlamento, abalando o funcionamento das assembleias com a “entrada em seu círculo de deputados descrentes do trabalho parlamentar e inimigos da concepção de vida e do mundo inspiradora da organização vigente de Estado.” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 143).
“Os Parlamentos e seus métodos de trabalho não estavam, em realidade, em condições de dar conta desse acréscimo de funções e desse novo mister completamente diferente daquele para o qual foram imaginados o controle político e, posteriormente, a elaboração legislativa. Organizado como centro de discussão, destinado a conciliar opiniões, a oposição radical de concepções políticas levava ao alongamento infrutífero do debate entre correntes inconciliáveis. Ora, esse alongamento, que não podia ser abreviado sem violência à liberdade de palavra dos parlamentares, já servia de arma para as minorias evitarem decisões que lhe parecessem inaceitáveis. A obstrução torna-se tática parlamentar frequente” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 144).
Por sua vez, conforme o Estado se imiscuía no âmbito econômico, “os Parlamentos se viram cada vez mais impossibilitados de desempenhar as tarefas que dele eram esperadas” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 143). As questões econômicas não se ajustavam ao processo de debate público, ínsito aos Parlamentos. Isto porque o debate parlamentar não possibilita que certas decisões sejam tomadas com a rapidez exigida pelas situações e relações complexas de cunho econômico, as quais ensejam do legislador capacidade técnica especializada, bem como presteza para “impedir prejuízos irreparáveis, decorrentes não só de eventos imprevisíveis como também de decisões de poderes políticos estrangeiros” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 144).
O Estado, gradualmente, adquiria novo perfil, atuando no meio socioeconômico para garantir a expansão econômica da nação, bem como para buscar a redução das desigualdades sociais, cedendo espaço, consequentemente, a democracia liberal à democracia social, que, por sua vez, deu ensejo a um novo arranjo institucional. (AMARAL JÚNIOR, 2012, p. 35).
Constituído, pois, como órgão da soberania estatal adequado, inclusive do ponto de vista técnico, para cumprir com as exigências advindas do Estado provedor, acabou o Poder Executivo por substituir parcialmente, porém de forma substancial, o Poder Legislativo na atribuição que o constitucionalismo clássico lhe houvera atribuído. (DAMOUS; DINO, 2005, p. 7-8).
Nesse sentido, “com a nova dimensão assumida pelo Estado Social e suas políticas distributivas e interventoras, foi abandonada a noção clássica de lei, e a ideia de primazia do Poder Legislativo sobre os demais Poderes constituídos perdeu espaço” (NASCIMENTO, 2004, p. 48).
2. Releitura contemporânea do conceito e a atividade legislativa do Executivo
Com efeito, das considerações assinaladas anteriormente, alguns pontos merecem destaque. Primeiramente quanto à interpretação e incorporação da teoria de tripartição dos poderes proposta por Montesquieu nos modelos constitucionais. Da interpretação de suas ideias principais restou o que Louis Althusser denominou mito da separação dos poderes[7], resultante de uma interpretação jurídica isolada da teoria de Montesquieu, formulando-se o modelo doutrinário no qual “existiriam três poderes com exatas esferas de competência, não se vendo como possível qualquer intromissão de um deles no que originariamente se reserva a outro” (SAMPAIO, 2007, p. 28).
Conforme asseveram Damous e Dino, “referida doutrina não deve ser concebida como verdade científica e norma a priori de um imaginado direito natural” (2005, p. 40). Tal visão se, incorporada, como cânone incontestável do constitucionalismo contemporâneo, revela-se equivocada uma vez que “que faz patente o anacronismo que é essência de seu transporte direto da época da Revolução Francesa para a do Estado contemporâneo, que se pretende garantidor, inclusive, de direitos sociais” (SAMPAIO, 2007, p. 34).
“A própria teoria da separação dos poderes foi construída a partir da ideia de limitação e eficiência do poder político, não podendo ser compreendida senão dentro de um cenário possível das relações políticas. E por isso mesmo, modificadas a época e forma das relações políticas, modifica-se a forma de interpretação do que era a sua tradução jurídica. A ligação entre a realidade do jogo político e a sua forma possível ante os ditames constitucionais deve ser trazida à tona para que o discurso jurídico seja mais concreto e menos isolado da realidade atual.” (SAMPAIO, 2007, p. 20).
Em segundo lugar, é necessário considerar o caráter transformador experimentado pelo princípio da separação dos poderes na conjuntura político-social contemporânea. Muito embora as teorias desenvolvidas até o século XVIII tenham a preocupação comum de que deve haver controle do poder na correlação de forças presentes dentro de uma sociedade, esta estava associada à busca pelo equilíbrio e contenção de mudanças[8], noção incompatível com a conformação que tomou o Estado a partir do declínio do Estado Liberal com o surgimento do Estado Social.
De fato, um novo olhar deve ser dirigido à teoria da separação dos poderes a partir do século XVIII, não podendo mais ser vista “como um sistema que funcione apenas para frear a tirania, mas é preciso considerar, como um elemento tão importante quanto o combate ao arbítrio, a necessidade de que este freio não gere imobilismo e possibilite o avanço da sociedade.” (ABRAMOVAY, 2010, p. 20).
A partir do contexto das revoluções do proletariado, com o redimensionamento do engendramento estatal, no início do século XX, concebe-se “mecanismos institucionais que pudessem limitar o poder, […] ao mesmo tempo em que propiciasse a abertura para o futuro de que fala Luhmann[9], ou a própria ideia de mudança social.” (ABRAMOVAY, 2010, p. 23).
É neste quadro, portanto, que deve ser lida a separação de poderes no Estado contemporâneo. Não mais na postura reverencial do século XVIII, na qual a distribuição de poderes a diferentes estamentos da sociedade da época possibilitaria a estabilidade política do Estado, mas sim deve ser concebida “como técnica e princípio de organização dos poderes do Estado”[10] (DAMOUS; DINO, 2005, p.45), que, “definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre estes mesmo órgãos” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 136), propicie a abertura para transformações sociais. Isto porque a sociedade atual politicamente ativa é bem mais complexa do que à época de Montesquieu, reclamando pronta ação do Estado na efetivação de direitos e negação do status quo (SAMPAIO, 2007, p. 35).
Nessa leitura atualizada da separação dos poderes como técnica de organização do Estado, a relação entre os Poderes se dá de forma cooperativa, não podendo ser vista como fruto de uma dinâmica estática, com atribuições expressas, pré-definidas e impermeáveis (ABRAMOVAY, 2010, p. 36).
Em que pese a cada Poder ser dado um núcleo essencial de atuação “a independência recíproca dos poderes […] não significa a inexistência de pontos de contato entre eles, no desempenho de suas funções” não excluindo “que os poderes, no desempenho harmônico de suas funções específicas, colaborem entre si relativamente ao exercício de uma delas […] assim como “não impede que eles secundariamente, pratiquem certos atos que em teoria não pertenceriam à sua esfera de competência.” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 137).
Em terceiro lugar, cumpre destacar que a necessidade do Legislativo e Executivo em exercer a função legislativa conjuntamente é “pois, um imperativo de nossa época, desde que o façam em conformidade com o balizamento constitucional estabelecido.” (DAMOUS; DINO, 2005, p. 9).
Conforme demonstrado, o Parlamento gradativamente mostrou-se incapaz de atender às necessidades legislativas do Estado contemporâneo, seja pela natural morosidade do processo legislativo parlamentar, seja pelo seu funcionamento descontínuo, seja pela irremissível e constante carência de meios técnicos em seus quadros, seja pela sua tendência a dedicar-se, predominantemente, ao controle do Poder Executivo. (AMARAL JÚNIOR, 2012, p. 35).
“[…] o reordenamento do Estado, a partir do século XIX, engendrou, do ponto de vista jurídico-institucional, a quebra do monopólio da função legislativa exercida pelo Parlamento e a consequente ascensão do Executivo ao comando governamental, detentor, inclusive, de poder normativo. A nova organização estatal punha em questão a própria lei, dotada de abstração e generalidade, voltada para o futuro, imprópria, por isso mesmo, a regular as relações sociojurídicas moldadas pela política econômica emergente, produtora de necessidades rotineiras e concretas, a exigir uma atividade legislativa ágil e flexível.” (DAMOUS; DINO, 2005, p. 5,).
Nesse contexto, a paralisia dos Parlamentos conduziu-os a abdicar de sua preeminência na produção da lei, concretizando-se mais nitidamente na delegação do poder de legislar em favor do Executivo. (FERREIRA FILHO, 2012, p. 145).
Surgem, assim, instrumentos legislativos próprios atribuídos diretamente ao Poder Executivo em face da projeção da condução dos negócios públicos, bem como da necessidade “do intervencionismo estatal e da conexa exigência de uma produção normativa sempre mais ampla, rápida e rica de conteúdos técnicos, deriva como é claro, a amplificação dos poderes normativos do governo no ‘estado social’” (AMARAL JÚNIOR, 2012, p. 37). O instituto da medida provisória em comento se trata, justamente, de uma modalidade desta legislação governamental.
Legislação esta que, nas feições contemporâneas, assume papel de instrumento de política de Estado. Conforme assevera Sampaio, além de afirmar que o Estado Social é causador de intervenção pública no campo econômico, deve-se aclarar a ideia de que a lei não decorre mais da clássica teoria do primado do Legislativo, decorrente do paradigma do direito natural. A lei, pois é, atualmente, instrumento indispensável à atuação estatal, perdendo o sentido de garantia do status quo. Se, por um lado, permanece o cânone garantidor da legalidade como modo de atuação estatal, de outro o conceito clássico de lei formal, editada apenas pelo Parlamento é enfraquecido. Lei é, portanto, o que a Constituição dita como vinculante, colocando instrumentos como a medida provisória em posição central na estratégia de atuação estatal, ao lado de outros meios que permanecem como manifestação coletiva da vontade do Legislativo. (SAMPAIO, 2007, p. 35).
Enfim, no mencionado exercício cooperativo das funções estatais, de grande valia é teoria da construção coordenada do Direito, formulada pelo norte-americano Louis Fisher[11] a partir de seus estudos sobre o sistema político norte-americano. Conforme destaca Sampaio, Louis Fisher dirige fortes críticas à visão ampla de que a verdade judicial seria incontestável, ressaltando a importância que se deve dar à construção prática do Direito Constitucional, ao passo que refuta o entendimento comum de que o Direito seja desvinculado da política. (SAMPAIO, 2007, p. 67).
“Nenhuma instituição única, incluindo o Judiciário, tem a palavra final sobre o significado da Constituição. Um complexo processo de barganha e o respeito mútuo entre os Poderes permite que o Tribunal não eleito funcione de forma segura e efetiva em uma sociedade democrática. Um processo aberto permite que as instituições políticas e os cidadãos exponham suas deficiências, contenham os excessos pelos mecanismos de controle e construam um senso comum que possa comandar o apoio público. Um processo aberto leva à participação do público e ao respeito à Constituição, dando-lhe uma legitimidade e vitalidade que não poderia ser alcançada sob um sistema de supremacia judicial”. (FISHER, 2008, p.5, tradução livre).[12]
Na concepção de Fisher, os Poderes estão inseridos em um cenário de permanente diálogo constitucional, no qual o Direito Constitucional “não é monopólio do Judiciário. É um processo no qual os três poderes convergem e interagem com suas interpretações separadas.” (SAMPAIO, 2007, p. 67).
“Na doutrina da ‘construção coordenada’, tanto o Presidente quanto os membros do Congresso têm autoridade e competência para se engajarem na interpretação constitucional, não somente antes da decisão das cortes, mas após elas também. Todos os três Poderes têm uma valorosa, ampla e contínua função de ajudar a formar o sentido da Constituição.” (SAMPAIO, 2007, p. 68).
Fisher chama atenção, por exemplo, para as decisões judiciais que reconhecem os efeitos jurídicos de construções teóricas resultantes da prática política, afirmando que “geralmente a Suprema Corte decide por ratificar costumes e acomodações introduzidos pelos outros dois Poderes. […] Nenhuma decisão da Suprema Corte é final, se a nação remanesce discorde e seriamente dividida sobre um tema constitucional.” (FISHER, 1988 apud SAMPAIO, 2007, p. 68).
Desse modo, além de teoria, a construção coordenada do conteúdo e sentido da Constituição é uma necessidade advinda das interações e acomodações políticas resultantes, na prática, “da intersecção dos Poderes ínsita à ideia dos checks and balances, inclusive para que o controle entre os Poderes seja efetivo.” (SAMPAIO, 2007, p. 68).
Em um cenário de diálogo constitucional – entendido como as constantes interações entre os Poderes dentro do cenário político, tendo como objeto a definição de suas prerrogativas e relações recíprocas -, possibilita-se um processo político de construção dinâmica do sentido da Constituição, inserido em uma experiência constitucional concreta, que traduz “sua vida a partir das forças exteriores ao Direito, a partir dos costumes, sociedade e de constante diálogo entre as instituições políticas.” (SAMPAIO, 2007, p. 105).
A partir de uma prática constitucional vivenciada, até porque as próprias instituições – neste caso, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – não são “definições acabadas e perfeitas, que dispensem qualquer evolução pela prática de vivência política.” (SAMPAIO, 2007, p. 69), ganha força a ideia de que o Direito Constitucional não é de propriedade exclusiva das Cortes ou mesmo “produto de interpretação apenas de texto que contém a constituição, não sendo tarefa de sua identificação, portanto, exercício que leva em conta o paradigma eminentemente positivista”[13] (SAMPAIO, 2007, p. 101). É sim interação entre os Poderes, na própria sistemática de separação mútua, para definição dos seus respectivos âmbitos de atuação e de suas competências.
Conclusão
Um dos significados possíveis atribuídos à separação dos poderes revisita a teoria da constituição mista, demonstrando que a preocupação em desconcentrar o poder é antiga, datada à época de Aristóteles. No entanto, foi a partir do assomo racionalista do século XVIII que a questão da partilha do poder foi elevada ao cânone de princípio.
Como visto, a partir da obra de Montesquieu erigiu-se a arquitetura moderna do Estado de Direito constitucionalista pela tripartição clássica do poder entre o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. No entanto, a partir do início do século XX, a lei se politizou, servindo de instrumento de governo, uma vez que o esforço na concretização de direitos sociais passou a exigir a negação do status quo.
Reclamou-se, assim, a releitura da doutrina instrumental de controle do poder. A necessidade de legislação rápida e eficaz tornou-se do próprio Estado, exigindo que a conformação da agenda política se faça a partir da atuação cooperativa entre o Executivo e o Legislativo, o que ensejou nova sistemática de divisão e redefinição de papéis no governo. Viu-se, portanto, gradativa situação de proeminência do Executivo no campo legislativo, assumindo a condução dos negócios governamentais.
Destarte, com esta exposição não se pretende aprofundar o estudo quanto às teorias contemporâneas acerca do sentido da separação dos poderes, mas sim chamar a atenção para a necessidade de se ter uma visão menos estanque deste conceito, livre de dogmas e elaborações normativas, refutando-se o “anacronismo e a visão divorciada da atual realidade do jogo político e social” (SAMPAIO, 2007, p. 38).
Informações Sobre o Autor
Rafael de Oliveira Taveira
advogado, formado na Universidade de Brasília (UnB), especializando-se no curso de Pós-Graduação “Ordem Jurídica e Ministério Público” da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT).