A Tolerância Religiosa à Luz da Crítica Histórico-Construtivista e o Acesso aos Espaços Constitucionais no Brasil

Brenner Toledo Rocha

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

 

SUMÁRIO: Introdução. 1. Cristianismo e o Desenvolvimento do Ideal de Tolerância. 2. Pluralismo e multidiversidade na perspectiva laica de Estado para acesso aos espaços constitucionais no Brasil. Conclusão. Referências.

RESUMO: O artigo volta-se a analisar a questão da tolerância religiosa sob uma perspectiva de crítica histórica construtivista, partindo-se das teorias da libertação e da teoria comunicativa em Habermas. Serão observadas as discrepâncias entre o discurso universalista das liberdades religiosas na formação da transição para a Idade Moderna e para a Idade Contemporânea em autores como John Locke e Montesquieu, e a práxis histórica. Dessa experiência na construção do ideal de liberdade e tolerância, será observada a diversidade religiosa e seu afastamento dos espaços públicos, e na importância de restabelecê-las no locus discursivo, no incentivo à tolerância. Por fim, mostrar-se-á a tentativa de organizar um comitê para incentivar a diversidade no Brasil, a crítica quanto às aspirações de alguns coletivos e porque é necessário retomar os canais de diálogo.

Palavras-chave: Tolerância religiosa. Liberdade. Teoria Crítica Construtivista. Direitos Humanos.

 

ABSTRACT: This paper will analyze the problem of religious tolerance using a perspective of constructivist historical critique, beginning from the theories of liberation and from the communicative theory in Habermas. The abysm between the universalist discourse of religious freedom in the transition to the Modern Age and the Contemporary Age spread from authors such as John Locke and Montesquieu, and historical praxis will be observed. Assuming this experience in the construction of the ideal of freedom and tolerance, we will observe religious diversity and its distance from public spaces, resuming the importance of restoring them in the discursive locus, as way to encourage tolerance. Finally, an attempt will be made to organize a committee to encourage diversity in Brazil, the criticize of desires of some collectives and why is necessary to rebuild the ways of dialogue.

Key words: Religious tolerance. Freedom. Constructivist Critical Theory. Human rights.

 

INTRODUÇÃO

Os espaços constitucionais, âmbito de exercício dos direitos e garantias previstos na Constituição, estão ainda submersos em uma cultura hegemônica ocidental judaico-cristã, em que os conceitos construídos em defesa das liberdades religiosas, ainda que abstratamente separam Estado e religião, não conseguem eliminar as assimetrias e os status privilegiados de determinados seguimentos na sociedade brasileira. A tradição cristã influencia no calendário, no ritmo de vida, e na estruturação de pensamento ocidental brasileiro, exercendo verdadeira hegemonia, amparadas por toda proteção jurídica, reconhecida na qualidade cultural e religiosa do povo; ao passo que aos seguimentos minoritários cabe a luta pelo reconhecimento.

Será observado a historicidade da liberdade religiosa, pensada a partir da transição para o Estado moderno liberal, o destinatário das liberdades defendidas pelo liberalismo em John Locke. O caminho de análise do pensamento jurídico será conforme as teorias filosóficas de libertação latino-americanas, desembarcando na filosofia comunicativa em Jürgen Habermas.

A primeira parte deste trabalho empenha-se na formação teórica inicial da tolerância religiosa europeia durante a transição para a Idade Moderna, momento de consolidação dos ideais burgueses, com a análise de dois autores clássicos que influenciaram as revoluções francesa e americana: John Locke e Montesquieu. Será observado o efeito da secularização após as revoluções burguesas em contraposição ao quadro de diversidade religiosa no mundo.

A segunda seção resgatará as críticas da teoria de libertação, metodologia de reflexão entre o problema hodierno entre discurso e prática dos Direitos Humanos. A questão da tolerância no Brasil será abordada, bem como a tentativa de reconstrução dos canais para acesso ao espaço público, importante via de manutenção à diversidade e ao respeito que ainda não é aproveitada no país.

 

1. CRISTIANISMO E O DESENVOLVIMENTO DO IDEAL DE TOLERÂNCIA

O complexo significado da tolerância religiosa em um Estado Laico e das liberdades religiosas, explicita e implicitamente amparados pelos movimentos constitucionais modernos ocidentais, é resultado das discussões cristãs sobre tolerância, como a ser abordado mais adiante. Esse regresso às origens objetiva compreender como a dinâmica hermenêutica praticada atualmente nos Direitos Humanos, processo pelo qual Alejandro Rosillo Martínez (2008, passim), ao reinterpretar as filosofias da libertação, descreve como um dinamismo de atualização de possibilidades, dado a existência de uma estrutura aberta própria da existência histórica humana. Os movimentos históricos em Direitos Humanos não assumem caráter progressista, evolucionista, mas um processo de libertação dos condicionamentos materiais, políticos e sociais. Reconstruir a realidade história é um retorno da práxis histórica, “es el objeto último de la filosofia entendida como metafísica intramundana, no sólo por su carácter englobante y totalizador, sino em cuanto manifestacíon suprema de realidade” (MARTINEZ, 2008, p. 20). A filosofia crítica assume a responsabilidade de desvendar o falso, o injusto e o desigual em uma ideologia hegemônica em um sistema social, e não de um esforço de meramente observar pelo decurso do tempo a construção de um conceito

frente a la abstracción que realiza la ideologización, el método de la historización de los conceptos busca la verificación histórica para mostrar si es verdad y em qué sentido lo es cualquier principio, formulación o discurso abstracto, pues la puesta en práctica de cualquiera de ellos muestra lo que esconde o descubre, o las insuficiencias de los métodos utilizados para lograr sus contenidos. (MARTINEZ, 2008, p. 33)

A idealização sobre a liberdade religiosa remonta ao período histórico da Modernidade, compreendido entre a queda de Constantinopla em 1453 e a Revolução Francesa iniciada em 1789, caracterizando-se como um movimento de formação dos Estados nacionais, uma transição gradual do domínio da Igreja Católica na Europa durante a Idade Média feudalista para a sedimentação de um sistema capitalista que exige a secularização dos espaços públicos no Estado contemporâneo. A criação dos Estados nacionais é estigmatizada pelos ideais iluministas como antigo regime, pela sua estrutura eclesiástica e que privilegiava a aristocracia da nobreza, em detrimento da ascendente burguesia pós-mercantilista e recém-industrializada. Com a revolução industrial, a burguesia se consolida economicamente, aproveitando-se do mercantilismo oriundo da colonização. O movimento iluminista surge como estandarte ideológico de liberdades aspiradas por essa classe insurgente: igualdade e liberdade universais, porém atendem prioritariamente aos interesses burgueses para alterarem o paradigma anterior de privilégios.

O historiador Marcos Lopes (2007, p. 155-156) aponta que desde o final da Idade Média sempre houve defensores da tolerância religiosa, porém em muito ultrapassados pelos que defendiam a repressão às opiniões divergentes, como forma de não contaminar o rebanho[1].  A mudança do domínio da Igreja Católica para o laicismo estatal representa, na prática, a aceitação dos demais seguimentos cristãos nascidos pela reforma protestante. “Em troca de lealdade, príncipes e reis concederam certas garantias às minorias religiosas. O Edito de Nantes, de 1598, é o melhor testemunho dessas tréguas forçadas” (LOPES, 2007, p. 156). A Paz de Vestefália, tratado assinado em 1648, demarca, para o Direito internacional, o reconhecimento da soberania dos Estados nações, estabelecendo a não intromissão da Igreja Católica na escolha religiosa do Estado-nação. Foi tratado assinado por cristãos: o Imperador do Sacro-Império Romano, o Rei da França e de seus aliados, como forma de reconhecerem as religiões protestantes, como se depreende do seu Art. XVIII. Encerra finalmente um período de guerras religiosas protestantes e católicas na Europa continental.

Já na Europa insular, o liberal inglês John Locke, em 1667, escreve a Carta acerca da Tolerância para tratar da distinção entre a sociedade civil e as sociedades religiosas, amparado no contexto de disputas entre as Igrejas cristãs. Tal como o Édito de Nantes, é uma carta de um cristão para os demais cristãos, construindo conceito de tolerância entre as diversas denominações cristãs e abordagem inicial do laicismo, a importância do governo civil não coagir a nenhuma religião. Argumenta que “cada igreja é ortodoxa para consigo mesma e errônea e herege para as outras”, e seguindo os valores pregados por Cristo, é dever o respeito mútuo entre os indivíduos na seara religiosa:

Segundo, nenhum indivíduo deve atacar ou prejudicar de qualquer maneira a outrem nos seus bens civis porque professa outra religião ou forma de culto. […] Estas não são as funções da religião. Deve-se evitar toda violência e injúria, seja ele cristão ou pagão. Além disso, não devemos nos contentar com os simples critérios da justiça, é preciso juntar-lhes a benevolência e a caridade. Isso prescreve o Evangelho, ordena a razão, e exige de nós a natural amizade e o senso geral de humanidade. (LOCKE, 1667, p. 3)

O laicismo e a tolerância são soluções para as disputas internas de poder e influência política nas comunidades cristãs. A liberdade religiosa interessa como forma de proteger aos demais direitos fundamentais por Locke pregados: a vida e os bens civis. Enquanto não houver perturbação da paz pública, defende, não haveria porque o Estado interferir.

Já Montesquieu analisa as relações entre religião e sistema de governo, bem como com as leis, nos livros vigésimo quarto e quinto do Espírito das Leis, obra publicada em 1748. Desde o princípio da quinta parte da obra ele observará sempre da ótica judaico-cristã, assumindo Montesquieu (1996, p. 495) sua orientação religiosa como a Judaica – posta por ele como religiões verdadeiras em função de seus valores morais – em oposição às demais, às falsas religiões e ao ateísmo[2]. Opõe o cristianismo ao islamismo: a primeira religião prega o amor e a monogamia, razão pela qual se distancia do despotismo; a segunda dá-se mais com o “espírito destruidor” (MONTESQUIEU, 1996, passim). Ainda, defende o cristianismo, os valores e a moral cristã como a aceitável às boas leis, devendo as demais religiões observá-las como garantia de um bom governo: “Num país onde se tem a infelicidade de ter uma religião que Deus não deu, é sempre necessário que ela esteja de acordo com a moral; porque a religião, mesmo falsa, é a melhor garantia que os homens possam ter da probidade dos homens” (MONTESQUIEU, 1996, p. 471).

A questão da tolerância em Montesquieu é contraditória: ao passo que defende que o Estado deva tolerar várias religiões e fazê-las tolerarem-se mutuamente, também defende que “porque uma religião que pode tolerar as outras não pensa em sua propagação, será uma lei civil muito boa a que determine que, quando o Estado estiver satisfeito com a religião já estabelecida, não tolere o estabelecimento de outra”(MONTESQUIEU, 1996, p. 493). Conclui que um Estado pode ou não admitir o estabelecimento de uma religião, mas que ao aceita-la, deve tolerá-la.

Essa concepção levou-lhe muitas críticas à época, razão pela qual foi necessário publicar uma Defesa do Espírito das Leis. Ao eleger certos valores que são apregoados pela cristandade, como o amor ao próximo, aceita-a como de valor moral elevado; porém, para responder aos críticos, distingue a Religião dos Céus e a da Terra, de forma a desmistificar a posição que os idólatras constroem de Jesus Cristo como um príncipe-imperador, que deve conquistar aos demais Estados. Portanto, se apenas os valores cristões forem postos, o seu triunfo é consequente. Termina assim questionando: “Façamos justiça a nós mesmos: a maneira como nos conduzimos nas questões humanas é bastante pura para que possamos pensar em usá-las para a conversão dos povos?” (MONTESQUIEU, 1996, p. 736). Na segunda parte, ao tratar da tolerância, excetua a religião cristã do poder do Estado em não tolerar seu estabelecimento: “se a religião cristã é o primeiro bem e as leis políticas e civis o segundo, não existem leis políticas e civis num Estado que possam ou devam impedir a entrada da religião cristã” (MONTESQUIEU, 1996, p. 735).

A obra política de Montesquieu influenciou as revoluções ocorridas no final da Idade Moderna, sedimentando os ideais iluministas: a guerra de independência estadunidense e a Revolução Francesa em 1789, esta última encerrando o período histórico e introduzindo o mundo na Idade Contemporânea. As duas revoluções, no aspecto político ocidental, na visão de Fábio Konder Comparato, representaram a reinvenção da democracia, “fórmula encontrada pela burguesia para extinguir os antigos privilégios dos dois principais estamentos do ancien régime – o clero e a nobreza – e tornar o governo responsável perante a classe burguesa” (COMPARATO, 2010, p. 63).

A Declaração de Independência norte-americana, assinada em 04 de julho de 1776, é a partir de Deus que os homens têm seus direitos naturais, e roga a ele sua proteção. A Constituição estadunidense, promulgada em 17 de setembro de 1787, em sua redação original, não trazia muitos direitos fundamentais, entre eles não estava expressa a liberdade religiosa. A inclusão ocorre poucos anos depois, com as reformas da The Bills of Rights dos Estados Unidos, em vigor desde 15 de dezembro de 179, que introduziram, pela Primeira Emenda, as liberdades religiosas[3], a de expressão e a de reunião.

Já a Revolução Francesa é um movimento de alta complexidade, violência e ruptura. É considerado o marco de uma nova era, que o historiador Eric J. Hobsbawn, no ensaio Ecos da Marselhesa, a define como um conjunto de acontecimentos extraordinários que fundamentaram o século XIX. “O século XIX estudou, copiou, comparou-se com a Revolução Francesa; ou tentou evitá-la, ignorá-la, repeti-la ou ultrapassá-la” (HOBSBAWN, 1996A, p. 11). É considerada uma das precursoras das revoluções liberais burguesas, porém adverte o historiador que seria simplificar demais o conflito: não nasce como um projeto de aspiração política burguesa, em que pese o sedimenta.

O processo revolucionário pretendia alterar de forma tão profunda que instituíram inclusive um calendário novo, o Calendário Revolucionário na Convenção de 1792, perdurando até 1805, com o regresso do calendário gregoriano por Napoleão Bonaparte. O Calendário Revolucionário seria ainda adotado durante a Comuna de Paris de 1871.

Na seara religiosa, antes do século das revoluções, o historiador relembra a existência de uma tendência dos senhores de classes mais abastadas da indiferença religiosa, senão o ateísmo não declarado, sendo raro o cristianismo franco. Cumpriam os ritos como forma de demonstrar incentivo aos populares, como expectativa de comportamento padrão a ser seguido. “If there was a flourishing religion among the late eighteenth century elite, it was rationalist, illuminist and anti-clerical Freemasonry” (HOBSBAWN, 1996B, p. 218). Entretanto, a grande massa das cidades, pobres e desinstruídos, ainda permaneciam devotos à cristandade.

Tanto a revolução americana quanto a revolução francesa formam precedentes para secularização, necessários para as classes médias que impunham suas necessidades aos movimentos de massa:

With the American and French Revolutions major political and social transformations were secularized. The issues of the Dutch and English Revolutions of the sixteenth and seventeenth centuries had still been discussed and fought out in the traditional language of Christianity, orthodox, schismatic or heretical. In the ideologies of the American and French, for the first time in European history, Christianity is irrelevant. The language, the symbolism, the costume of 1789 are purely non-Christian, if we leave aside a few popular-archaic efforts to create cults of saints and martyrs, analogous to the old ones, out of dead Sansculotte heroes. […] Bourgeois triumph thus imbued the French Revolution with the agnostic or secular-moral ideology of the eighteenth century enlightenment, and since the idiom of that revolution became the general language of all subsequent social revolutionary movements, it transmitted this secularism to them also. (HOBSBAWN, 1996B, p. 200)

A tendência era de secularização das estruturas, de afastamento das questões religiosas do espaço público: as duas revoluções serviram de moldes para as demais seguintes, e afastar a discussão pública das religiões era instrumento de garantia de sucesso das demandas, para penetrar a vontade das massas. Salvo pequenas exceções, o laicismo das revoluções a partir do século XVIII contrasta com as demandas populares dos séculos anteriores, em que o posicionamento religioso estava ao centro do palco das disputas.

Essa secularização dos espaços públicos, porém, não impediu a decadência e expansão das religiões pelo mundo. Nesse sentido, destaque para a expansão silenciosa do islamismo. Enquanto na Europa crescia a indiferença religiosa, nos Estados Unidos da Américas expandem-se diversas denominações protestantes, para o despertar religioso. Por seu turno, o islamismo cresceu tanto pelo Oriente quanto para algumas partes do Ocidente, do Sudão ao Senegal, resultado de sua reforma e renovação ante a crise de sociedades maometanas tradicionais (especialmente o Império Turco e a Pérsia). A notória expansão islã no período de 1789 a 1848 representou um renascimento mundial do islamismo, nas palavras do historiador Eric Hobsbawn (1996B, p. 225).

Atualmente, segundo os relatórios da agência de inteligência estadunidense, publicação eletrônica do The Worldbook, aproximadamente um terço da população mundial é cristã, ao passo de que pouco mais de um quarto professa a religião de Maomé. Hinduístas somam 15% e Budistas 7.1%, enquanto apenas 0.2% das pessoas no mundo são judias.

Já no Brasil, o processo de aceitação de outras denominações religiosas pelo Estado no Brasil é relativamente recente, com a transição da monarquia para a república pela Constituição de 1891. Até então, pela égide da Constituição de 1824 – expressamente no seu Art. 5º, apenas a “Religião Catholica Apostolica Romana” era aceita pelo Império, na esfera pública; tolerava-se o culto doméstico, desde que não se expressasse na forma de templo ou manifestar-se publicamente.

Os apontamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística demonstram que no início da República 98,9% da população se declarava como católica, restando 1% como evangélica e 0,1% como não religiosos. Em cem anos de república, os dados de 1991 demonstram uma expressiva mudança: 84,1% declaram-se católicos, 9% evangélicos, 1,5% espíritas e 5,1% como não religiosos. Já no Censo de 2010, além da redução proporcional em relação ao total da população ao longo dos cem anos, houve uma novidade – a redução em termos absolutos da quantidade de católicos no país em relação ao censo anterior, uma queda quase 1,7 milhão de pessoas. Nesse último censo, 64,6% consideraram-se católicos, 22,2% evangélicos, 2% espíritas, 0,3% umbandistas e candomblé, e 8% de não religiosos.

 

2. PLURALISMO E MULTIDIVERSIDADE NA PERSPECTIVA LAICA DE ESTADO PARA ACESSO AOS ESPAÇOS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL

Se a tolerância religiosa, como ficou demonstrada anteriormente, foi historicamente uma aspiração entre as denominações protestantes frente ao Catolicismo, o pensamento laico das proteções às suas liberdades imbricadas pode levar ao não reconhecimento das crenças minoritárias, como as matrizes africanas. Esse pensamento, que no pós-revolução afastou dos espaços públicos a discussão religiosa, implica também no distanciamento das origens do laicismo, na aceitação de um establishment que segrega as demais crenças.

Observa Rubio (2015, passim), ao abordar a teoria crítica construtivista dos Direitos Humanos, que o discurso universalista dos Direitos Humanos, aliados ao contexto de globalização, conseguiu um status político e moral inquestionáveis, enquanto linguagem hegemônica sobre a dignidade da pessoa humana. Entretanto, esses mesmos valores universalizados são incorporados de forma assimétrica entre os países centrais, desenvolvidos, e os países periféricos, subdesenvolvidos. Essa disparidade decorre tanto no âmbito internacional, da dificuldade de reconhecer e aceitar o estrangeiro em face do nacionalismo e da identidade geográfica, bem como internamente, por razões de exclusões sociais como classe, renda, religião, cor. Assume que a defesa pelos Direitos Humanos possui um caráter ambivalente: ao mesmo tempo em que foi palco para emancipações, o sistema ao qual está inserido limita-o e impede “un horizonte de universalidad conflictivo, más diverso, más abierto y plural” (RUBIO, 2015, p. 186). Conclui que a versão liberal e burguesa de direitos humanos se consolidou sobre um pretenso universalismo: se ao tempo do antigo regime serviu de ferramenta para libertar-se de grupos oligárquicos, depois serviu como instrumento de dominação controle.

A exclusão do debate público das religiões demonstra, tal como ocorre nas formulações de Montesquieu, que a definição de valores constitucionais do que é bom e justo encontra-se lastrada em um pensamento implícito de uma moral dominante. A total secularização no plano público serve de máscara para as relações de poder que a hegemonia moral, religiosa ou não, imporá sobre as minoritárias, podendo prejudica-las em seus cultos e ritos e sem que se deem espaço para se manifestarem, para denunciarem potenciais abusos e exclusões.

A questão sobre o debate público é relembrado por Thiago Gomes Viana, em que, no Brasil, tradicionalmente trata-se o laicismo estatal como a exclusão das religiões nas discussões públicas. Revolve o problema da Ação Civil Pública em que o Ministério Público Federal ingresso para retirada da expressão “Deus seja louvado” das cédulas. Critica a decisão judicial denegatória, que se fundamenta em argumento de terror, na qual a pretensão equivaleria a medidas como abolição dos feriados ou destruição do Cristo Redentor. De modo semelhante, relembra que a problemática dos crucifixos em órgãos públicos foi tratada pelo Poder Judiciário como questão cultural, voltando-se a falar que o Estado laico também não proibiria gastos na manutenção de igrejas barrocas em Ouro Preto e cidades históricas. Conclui o autor:

Se no nível do debate jurídico a situação está nesse patamar, no debate público em geral está pior. A mais comezinha iniciativa em defesa da laicidade estatal recebe, de plano, o anátema de “laicismo”, de “cristofobia” (preconceito contra cristãos), de ataque à tradição cristã do povo brasileiro, quando, em verdade, certas práticas estão de uma tal maneira enraizadas culturalmente que assumem um caráter de “naturalidade”, especialmente porque a maioria cristã do país não se percebe enquanto detentora de privilégios em relação às religiões minoritárias e ateus, agnósticos, céticos. (VIANA, 2014, p. 356):

A construção de uma sociedade plúrima que aceite as diferenças religiosas deve partir de um pressuposto comunicativo, de abertura do espaço público para que amplamente todas as crenças possam dialogar e renunciar posições de privilégios que afetem exclusivamente as minorias, em verdadeiro exercício da razão comunicativa em Habermas:

Entre outras coisas, ele tem que tomar como ponto de partida que os participantes perseguem sem reservas seus fins ilocucionários, ligam seu consenso ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis, revelando a disposição de aceitar obrigatoriedades relevantes para as consequências da interação e que resultam em consenso. (HABERMAS, 1997, p. 20)

A razão comunicativa é orientadora nas pretensões de validades, reconstruindo um exercício para julgar a realidade constitucional: conhecer as intenções do autor do discurso e participar da construção do discurso. Parte-se da força social que cria os processos racionais do consenso. “Qualquer idealização gera conceitos sobre a adaptação mimética a uma realidade dada e carente de um esclarecimento” (HABERMAS, 1997, p. 27). A exclusão da religião espaço público implica em afastá-la também do locus discursivo, âmbito de formulação de conceitos universais, porém com intenções concretas excludentes.

As ações públicas em torno de concretizar a diversidade religiosa no locus ainda são tímidas. Em 2014, foi criado pela então Ministra Maria do Rosário Nunes, no governo da Presidente Dilma Rousseff, o Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa, no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, com intuito de promover a diversidade religiosa, a proteção de suas liberdades, inclusive de não ter religião, bem como o combate à intolerância. Desde sua criação, o Comitê elaborou seis notas públicas que manifestam o seu posicionamento sobre questões políticas hodiernas. A quinta nota, por exemplo, manifesta-se contrariamente ao movimento de redução da maioridade penal, uma resposta ao Projeto de Emenda Constitucional nº 171/1993.

Outro posicionamento de destaque[4] – e que coaduna com o presente artigo – refere-se à Nota Pública nº 6 de 07 de junho de 2017, que reforça a importância da manutenção do Ensino Religioso na Base Curricular Comum Nacional, de forma a incentivar o respeito e a compreensão da diversidade, sem constituir em proselitismo[5]:

Entendemos que as escolas – confessionais ou laicas – têm importância capital na promoção de sociabilidades que compreendam, valorizem e respeitem as diferenças, dentre elas as religiosas. Daí decorre sua função de contribuir na construção de uma cidadania que habilite as pessoas a conviverem com distintas convicções de mundo e a adotarem como legítimos alguns princípios básicos para a vida coletiva.

Por sua vez, o antropólogo Nilton Rodrigues Júnior observa criticamente os movimentos estatais contra a intolerância religiosa. Segundo o autor, está ocorrendo um processo de construção de projeção de identidades particulares, como a identidade afro-brasileira, que não necessariamente defendem apenas a liberdade religiosa, mas usam-na como combate ao racismo e à exclusão social. Esses movimentos sociais encontraram na luta pela liberdade religiosa uma aceitação maior, um lugar público em que não se contesta as políticas públicas voltadas contra a intolerância religiosa, contrastando com as demandas pelas cotas de outros processos de inclusão afirmativa cuja maioria da sociedade se mostra desfavorável. Conclui ainda que:

De todos os atores sociais envolvidos no combate à intolerância religiosa, o Estado é o que mais efetua um movimento pendular entre o universalismo e o particularismo, entre a defesa do bem público coletivo e o reconhecimento das diferenças, entre a laicidade e a religiocização das relações sociais. As ações do Estado faz-nos ver que, em tal paradoxo, há uma estrutura social que continua acreditando que há liberdade religiosa – para baixar um ebó, reunir-se em praça pública ou celebrar uma missa campal- mas que, ao mesmo tempo, organiza e acredita em um movimento social tal como a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. (RODRIGUES JÚNIOR, 2014, p. 31)

Entretanto, não significa que exista a tolerância religiosa no país, ainda mais em face das religiões afro-brasileiras. Ao contrário, os dados das denúncias contra crimes cibernéticos rompem com o imaginário de tolerância no país. A Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, de 2006 a 2016, por meio da ONG Safernet, recebeu 266.528 de denúncias anônimas por conteúdo de intolerância religiosa, logrando remover 2.880 páginas com conteúdo ofensivo. Segundo a Comissão de Combate à Intolerância, cerca de 70% dos casos de abuso e atos violentos no Estado do Rio de Janeiro entre 2012 e 2015 foram praticados em face das religiões de matrizes africanas.

Ainda que, como apontado por Nilton Rodrigues Júnior, os movimentos contra a intolerância subvencionem a formação de identidades próprias, a abertura do locus para a diversidade religiosa, em que pese insuficientes, demonstra uma tentativa de refrear o crescente pensamento de coalizão, segregação e estigmatização que estão marcando os volumosos movimentos sociais recentes.

CONCLUSÃO

A tolerância religiosa, abstratamente universalizada no princípio constitucional de um Estado proposto como laico, se não debruçada nos problemas enfrentados pela prática e exposta por sua história, mas esconde uma face que distancia a teoria constitucional da prática. Dessa maneira a garantia constitucional pode enfrentar uma crise de efetividade normativa. Ela surgiu em um contexto de confronto entre católicos e protestantes, e quase todo o sistema jurídico é pensado para a maioria cristã.

No Brasil, ainda que observada uma queda nos praticantes católicos, a maioria ainda pertence ao cristianismo, razão pela qual a maioria dos conflitos ocorrerem em face das religiões de outras raízes, como as de matrizes africanas. A carência nos espaços públicos para as minorias pleitearem em face da maioria constrói um cenário de conflitos e frustações, como a experiência da Comissão de Combate à Intolerância.

O aumento na intolerância religiosa no país parece refletir diretamente da ausência de políticas públicas eficazes em integrar as vozes das minorias religiosas, e incentivar a convivência pacífica entre os grupos antagônicos que ocupam o poder. E, se nessa esteira permanecer, existe o perigo da submissão da minoria ao desejo político das maiorias cristãs no país, apagando-se o diálogo com o sufocamento dos espaços públicos à diversidade religiosa.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Lopes (2007, p. 158) defende que Antônio Vieira foi um dos precursores, a seu modo, da tolerância: “Nos círculos eclesiásticos da Europa Moderna o padre Antônio Vieira se destaca como precursor da tolerância religiosa, e muitas décadas antes de John Locke ter escrito a sua conhecida Epístola. Nos primeiros tempos da restauração da monarquia lusitana, nos idos dos anos 1640, Vieira combateu os métodos utilizados pela inquisição portuguesa, além de escrever uma série de corajosas defesas dos judeus”.

[2]“A questão não é saber se seria melhor que um certo homem ou um certo povo não tivesse religião do que abusasse daquela que tem, e sim saber qual é o mal menor, que se abuse algumas vezes da religião ou que ela não exista entre os homens. Para diminuir o horror do ateísmo, ataca-se demais a idolatria”. (MONTESQUIEU, 1996, p. 466-467). Mais adiante: “O homem piedoso e o ateu sempre falam de religião; um fala do que ama, e o outro do que teme” (MONTESQUIEU, 1996, p. 485).

[3] Estados Unidos Da América, 1791: “Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof”.

[4] SAUCEDO, 2014, p. 287: “Para se chegar, portanto, à escolarização do Ensino Religioso laico e plural, fez-se necessária a construção de parâmetros específicos para superação de obstáculos político-pedagógicos e epistemológicos presentes na  disciplina.  A  tarefa  de  elaborar  um  documento  nacional  para  a  atual legislação ficou sob a responsabilidade do Fórum Nacional Permanente do  Ensino  Religioso  (FONAPER).  O  documento,  intitulado Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso (PCNER), foi divulgado em 1997,  um  ano  após  a  elaboração  dos  Parâmetros  Curriculares  Nacionais (PCN’s) pelo Ministério da Educação e da Cultura (MEC)”

[5] BRASIL, 2017, p. 2.

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