Acesso aos dados bancários e o princípio da privacidade na visão do STF

Resumo: O presente trabalho tem como finalidade a análise dos fundamentos fáticos e jurídicos abordados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº. 2390/DF,  ocasião na qual foi proferida decisão que afirmou a constitucionalidade do artigo 6º da LC nº. 105/2002, segundo a qual as autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios podem requisitar diretamente das instituições financeiras informações sobre as movimentações bancárias dos contribuintes. Para tanto, parte-se do breve  relato da Ação Direta de Constitucionalidade. Adiante, discutem-se as teorias que embasaram os votos tanto pela constitucionalidade, como pela inconstitucionalidade do mencionado dispositivo legal.  Ao final, busca-se avaliar as conclusões que afastaram a aplicação do principio da privacidade no presente caso.

Palavras-Chave: Fisco; dados bancários; STF; princípio da privacidade.

Abstract: This study aims to analyze the factual and legal grounds addressed by the Supreme Court in the judgment of  ADI nº. 2390 / DF, at which time a decision was issued which to affirm the constitutionality of Article 6 of LC n . 105/2002 , according to which the authorities and the tax agents of Federal, State, Federal District and Municipalities may request information directly from financial institutions on banking transactions of taxpayers. Therefore, part is the brief account of the Direct Action of Constitutionality . Forward , discusses the theories that supported the votes by both the constitutionality and the unconstitutionality of the said legal provision. At the end, we seek to evaluate the conclusions that ruled out the application of the principle of privacy in this case.

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Key Words: Fisco; data bank; STF; principle of privacy.

Sumário: 1. Introdução.  2.  Relatório da ADI 2390/DF. 3. Votos. 3.1 Dos argumentos levantados pela constitucionalidade do artigo 6º da LC nº. 105/2002.  3.2 Dos argumentos levantados pela inconstitucionalidade do artigo 6º da LC nº. 105/2005. 4. Do Conflito Entre O Princípio Da Privacidade e à   Intervenção Estatal. 5. Conclusões. 6 . Referências.

1. INTRODUÇÃO

Após votação, no julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade nº. 2390/DF, o Supremo Tribunal Federal, por maioria (9 x 2), declarou a constitucionalidade da Lei Complementar nº. 105/2002, que permite  aos órgãos da administração tributária quebrar o sigilo fiscal de contribuintes sem autorização judiciária. Restou sedimentado, portanto, o entendimento de que a norma não configura quebra de sigilo bancário, mas sim transferência de informações entre bancos e o Fisco, ambos protegidos contra o acesso de terceiros. Nessa esteira, o acesso aos referidos dados pelos agentes tributários sem a intervenção do judiciário não significaria ofensa ao princípio da privacidade.

Nesse contexto, a análise do julgado proferido na referida ação permite verificar que, na análise do caso concreto, deve existir uma ponderação entre os princípios aplicáveis, eis que os mesmos não podem ser tidos como absolutos quando em aparente conflito entre uns e outros.

Assim, o presente trabalho visa, em apartada síntese, analisar os fundamentos fáticos e jurídicos que levaram ao Supremo Tribunal Federal a concluir pela ausência de violação ao  princípio da privacidade em nome do interesse público consistente no aprimoramento da atividade fiscalizatória do Estado.

2. RELATÓRIO DA ADI 2390/DF

A ADI nº. 2390/DF, juntamente com outras três ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI 2859/DF), foi ajuizada pelo Partido Social Liberal, pela Confederação Nacional da Indústria e pela Confederação Nacional do Comércio com o intuito de impugnar normas relativas ao fornecimento, pelas instituições financeiras, de informações bancárias de contribuintes à administração tributária sem a intermediação do Poder Judiciário (art. 3º, § 3º; art. 5º; art. 6º e art. 1º, § 3º, inciso VI, na parte em que remete aos arts. 5º e 6º, todos da Lei Complementar nº 105/2001, e aos Decretos nº 3.724/2001, nº 4.489/2002 e nº 4.545/2002).

Todas essas ações diretas de inconstitucionalidade, em apertada síntese, versam ora com maior, ora com menor amplitude, acerca de duas questões: 1) a possibilidade de a Receita Federal obter diretamente das instituições bancárias informações sobre a movimentação de seus clientes sob investigação, a fim de identificar a origem e o destino dos recursos que passam pelas contas bancárias; 2) a possibilidade de a Receita Federal "cruzar" informações contidas nas declarações de renda com dados da movimentação financeira, obtidos por meio do recolhimento da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) para combate à sonegação fiscal. As normas constitucionais apontadas pelos requerentes, que servem como padrão de confronto à análise dessas ações diretas, são aquelas insertas nos incisos :X, XII, XL e LIV do artigo 5º  da Lei Maior.

Inicialmente distribuídas aleatoriamente, os feitos foram todos encaminhados aO Excelentíssimo Ministro Dias Tofolli, relator da ADI n. 2.390/DF, consoante o entendimento esposado por esse Excelso Pretório quando do julgamento da questão de ordem na AOI n. 2.110, por se tratar da ação direta com o objeto mais amplo.

Prestadas informações pela Advocacia Geral da União e, encaminhados os autos à Procuradoria Geral da República, esta se manifestou pela constitucionalidade dos dispositivos legais impugnados, que entendeu que a afronta à garantia do sigilo bancário, compreendido no âmbito de proteção do inciso X do artigo 5.° da Carta da República, não ocorre com o simples acesso aos dados bancário, mas verdadeiramente com a circulação desses dados.

Ao final, o Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou improcedente o pedido formulado na ação direta, vencidos os Excelentíssimos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello.

3. VOTOS

Votaram pela constitucionalidade do art. 6º: Ministros Edson Fachin, Dias Toffoli, Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Gilmar Mendes, e Ricardo Lewandowski.

Votaram pela inconstitucionalidade do art. 6º: Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello.

3.1  DOS ARGUMENTOS LEVANTADOS PELA CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 6º DA LC Nº. 105/2002

Anteriormente, prevalecia no STF o entendimento de que o acesso pelo Fisco dos dados bancários do contribuinte constituía matéria sujeita à reserva de jurisdição (RE nº. 389808).

Entretanto, o julgado ora sob análise representa mudança de entendimento do STF, o qual passou a se alinhar ao posicionamento já adotado, em parte pelo Superior Tribunal de Justiça, que possui, inclusive, um Recurso Repetitivo sobre o tema, qual seja, o REsp nº. 1.134.665/SP.

Verifica-se, portanto, que na visão do STF, o artigo 6º da LC nº. 105/2002 é constitucional por não realizar a chamada “quebra de sigilo bancário”, mas sim apenas a “transferência” do sigilo dos bancos para o Fisco.

Nessa esteira, somente o vazamento de tais dados a pessoas estranhas a administração fazendária configuraria violação ao princípio da privacidade.

Assim, pela constitucionalidade da medida descrita, levantaram-se os seguintes argumentos:

a) o sigilo bancário não é absoluto e deve ceder espaço ao princípio da moralidade nas hipóteses em que transações bancárias indiquem ilicitudes;

b) a LC 100/2001 é um instrumento para fiscalizar o dever fundamental do contribuinte de pagar tributos. O dever fundamental de pagar tributos está alicerçado na ideia de solidariedade social. Assim, dado que o pagamento de tributos, no Brasil, seria um dever fundamental — por representar o contributo de cada cidadão para a manutenção e o desenvolvimento de um Estado que promove direitos fundamentais —, é preciso que sejam adotados mecanismos efetivos de combate à sonegação fiscal.

d) a prática prevista na LC 105/2001 é comum em vários países desenvolvidos e a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo questionado seria um retrocesso diante dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil para combater ilícitos como a lavagem de dinheiro e evasão de divisas e para coibir práticas de organizações criminosas;

e) a identificação de patrimônio, rendimentos e atividades econômicas do contribuinte pela administração tributária dá efetividade ao princípio da capacidade contributiva, que, por sua vez, sofre riscos quando se restringem as hipóteses que autorizam seu acesso às transações bancárias dos contribuintes.

f) a LC 105/2001 não viola a CF/88. Isso porque o legislador não estabeleceu requisitos objetivos para requisição de informações pela administração tributária às instituições financeiras e exigiu que, quando essas chegassem ao Fisco, ali mantivessem o dever de sigilo. Com efeito, o parágrafo único do art. 6º preconiza que o resultado dos exames, as informações e os documentos deverão ser conservados em sigilo, observada a legislação tributária. Assim, não há ofensa à intimidade ou qualquer outro direito fundamental, pois a LC 105/2001 não permite a "quebra de sigilo bancário", mas sim a transferência desse sigilo dos bancos ao Fisco.

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g) o art. 6º da LC 105/2001 é taxativo e razoável ao facultar o exame de documentos, livros e registros de instituições financeiras somente se houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

3.2  DOS ARGUMENTOS LEVANTADOS PELA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 6º DA LC Nº. 105/2002

Pela inconstitucionalidade da norma posicionaram-se apenas os Excelentíssimos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello.

Em suas razões, o primeiro, ao abrir a divergência, fez referência ao inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “é inviolável o sigilo de dados”, sendo aceita como exceção a tal dispositivo apenas situação em que houver ordem judicial.

Prosseguiu afirmando que “a regra é a privacidade”, pertencendo apenas ao Poder Judiciário a prerrogativa de quebre o sigilo bancário.

No mesmo sentido manifestou-se o decano do STF, Excelentíssimo Ministro Celso de Mello, o qual afirmou a indispensabilidade de ordem judicial para que o Fisco tenha acesso aos dados bancários dos contribuintes.  Afirma, ainda, o nobre Ministro que, embora o direito fundamental à intimidade e à privacidade não tenha caráter absoluto, isso não significa que possa ser desrespeitado por qualquer órgão do Estado. Nesse contexto, em sua opinião, o sigilo bancário não está sujeito a intervenções estatais e a intrusões do poder público destituídas de base jurídica idônea.

4.  DO CONFLITO ENTRE O PRINCÍPIO DA PRIVACIDADE E À INTERVENÇÃO ESTATAL

Em resumo, o caso em questão foi decidido à luz da ponderação entre o princípio da privacidade e o direito de o Estado intervir em determinados áreas consideradas de âmbito individual do contribuinte.

Celso Bastos conceitua privacidade como a “faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos em sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre a privacidade de cada um, e também impedir que sejam divulgadas informações sobre esta área da manifestação existencial do ser humano”. [1]

Nesse sentido, nota-se que a inviolabilidade do sigilo de dados, prevista no artigo 5º, XII da Constituição Federal, encontra-se diretamente relacionada ao direito fundamental à privacidade, previsto no inciso X do mencionado dispositivo legal, eis que visa proteger a individualidade dos cidadãos no que diz respeito a sua intimidade, vez que protege os dados financeiros das pessoas, bem como as relações deste com a sociedade, obrigação esta que fica a cargo das instituições financeiras.

Com efeito, para Juan Carlos Malagarriga, “o sigilo bancário é obrigação de não revelar a terceiros, sem causa justificada, os dados referentes a seus clientes que cheguem a seu conhecimento como consequência das relações jurídicas que os vinculam".[2]

Parte da doutrina entende, portanto, que por ser um direito erigido constitucionalmente, a quebra do sigilo bancário configura violação a uma garantia constitucional fundamentada em cláusula pétrea,  a qual não pode ser tolhida nem mesmo por meio de emenda à constituição.

Entretanto, mais adequado o posicionamento adotado por nossa jurisprudência no sentido de que as garantias fundamentais podem e devem, em determinados casos, serem relativizadas, em respeito a prevalência do interesse público.

Nesse contexto, verifica-se que o julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI nº. 2390/DF  perfilhou-se ao entendimento sopesado acima, ao decidir que o sigilo bancário não é absoluto e deve ceder espaço ao princípio da moralidade nas hipóteses em que transações bancárias indiquem ilicitudes.

5. CONCLUSÕES

Ao relatar a ADPF nº. 2390/DF, o Excelentíssimo Ministro Dias Toffoli afirmou, a propósito do argumento de que o acesso aos dados bancários configuraria quebra do sigilo garantido constitucionalmente, que “para se falar em “quebra” de sigilo bancário pelos dispositivos impugnados, necessário seria vislumbrar, em seus comandos, autorização para a exposição das informações bancárias ”.

Adotando essa linha de pensamento, conclui-se que o mero acesso aos dados bancários pelo Fisco não configura mitigação ao princípio da privacidade, uma vez que este, nas palavras de Ada Pellegrini Grinover, citada pelo nobre Ministro Relator, constitui proteção ao indivíduo contra a divulgação indevida de aspectos de sua vida privada.[3]

Com efeito, para que exista qualquer violação ao supracitado princípio, o acesso aos dados deve (a) ser seguido de divulgação e (b) fugir do domínio de quem legitimamente o detenha.

Ora, nos termos do §1º do artigo 145 da Constituição Federal,  cabe  à administração tributária, especialmente para conferir efetividade ao princípio da isonomia na aplicação dos tributos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.  Dessa forma, infere-se que a transferência de dados bancários ao Fisco não implica na quebra de sigilo, eis que este é constitucionalmente o  detetor legítimo de tais informações.

Verifica-se, portanto, que no julgado que o presente trabalho visa analisar, o Supremo Tribunal reformulou entendimento anteriormente adotado, afirmando a constitucionalidade do acesso aos dados bancários pelo Fisco, visto inexistir qualquer ofensa a direito fundamental previsto na Carta Magna Brasileira.

 

Referências
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. vol. 2, São Paulo: Saraiva, 1989.
CASSONE, Vittorio. Interpretação no Direito Tributário. São Paulo: Atlas, 2004, p. 68.
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Sigilo de Dados: o Direito à Privacidade e os Limites à Função Fiscalizadora do Estado. Obra coletiva intitulada “Sigilo Fiscal e Bancário”. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2005, p.17/40. Coordenação de Reinaldo Pizolio e Jayr Viégas Gavaldão Jr.
MALAGARRIGA, Juan Carlos. El Secreto Bancario, Abeledo, 1970.
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1990, 6º volume – tomo I, p.64-65.
PELLEGRINI, Ada. Liberdades Públicas e Processo Penal. São Paulo, 1976.
 ROQUE, Maria José Oliveira Lima. Sigilo Fiscal e Direito à Intimidade. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2003, p. 43.
 BRASIL: Supremo Tribunal Federal. ADI nº. 2390/DF (Rel. Ministro Dias Toffoli, Diário da Justiça Eletrônico, 19/02/2016).
 
Notas
[1]BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. vol. 2, São Paulo: Saraiva, 1989.

[2]    MALAGARRIGA, Juan Carlos. El Secreto Bancario, Abeledo, 1970.

[3]“[o] direito ao segredo ou o direito ao respeito da vida privada objetiva impedir que a ação de terceiro procure conhecer e descobrir aspectos da vida privada alheia; por outro lado, o direito à reserva ou direito à privacidade sucede o direito ao segredo, compreendendo a defesa da pessoa da divulgação de notícias particulares, embora legitimamente conhecidas pelo divulgador” (GRINOVER, apud ROQUE, Maria José Oliveira Lima. Sigilo Fiscal e Direito à Intimidade. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2003, p. 43. PELLEGRINI, Ada. Liberdades Públicas e Processo Penal. São Paulo, 1976).


Informações Sobre o Autor

Lourrayne Garcia

Pós- graduanda em Direito Público na UNICEUB. Graduada pela UFG/GO. Analista do MPU/Apoio Jurídico/Direito. Procuradoria Geral da República.


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