Ações afirmativas e as cotas para negros nas universidades

Resumo: Se analisássemos a democracia em seus objetos mais primitivos, não necessariamente os mais antigos, porém aqueles que apresentam suas genuínas raízes, encontraríamos a liberdade e a igualdade. A vida do povo negro brasileiro é peculiar nesse sentido, sendo por um lado juridicamente livre e igual, e por outro ainda querer reivindicar uma sonhada igualdade material não existente. Por isso, o presente trabalho, toma por ponto de partida o debate jurídico das cotas destinadas a negros nas universidades, para que possamos, assim, indagar a legalidade constitucional das ações afirmativas de cunho racial, entendendo antes de tudo os diversos conceitos-chaves da democracia contemporânea.


Palavras-chave: Ações afirmativas; Constitucionalidade; Cotas Raciais; Princípio da igualdade.


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Abstract: If we analyzed the democracy in its more primitive objects, not necessarily oldest, however those that present its genuine roots, we would find the freedom and the equality. The life of the Brazilian black people is peculiar in this direction, being on the other hand legally free and equal, and for another one still to want to demand one dreamed not existing material equality. Therefore, the present work, takes for starting point the legal debate of the destined quotas the blacks in the universities, so that let us can, thus, to inquire the constitutional legality of the affirmative actions of racial matrix, understanding before everything the diverse concept-keys of the democracy contemporary.


keyswords: Affirmative actions; Constitutionality; Racial quotas; Principle of the equality.


1 INTRODUÇÃO


Em 2001, o Estado do Rio de Janeiro, de maneira aclamada na Câmara dos Deputados, aprovou a lei estadual nº. 3.708 que institui o sistema de cotas destinadas a negros nas universidades estaduais daquele estado. A medida, por si, já provocou polêmica, visto que se somavam duas leis, ambas estaduais, que reservavam a esmagadora maioria das vagas universitárias a pobres e negros.


Tempos depois, com inúmeras alterações em seu texto, a decisão fluminense alcançou repercussão nacional, vindo a ser instituída como projeto de lei federal. [1]


Essa proposta, que garante a reserva de cotas (vagas) nas universidades públicas destinadas a negros e pardos, precisa, sem precipitações, ser discutida e amplamente analisada, para só então cogitar-se em tornar lei de cunho nacional.


Visto serem os princípios constitucionais uma área nunca unânime ou totalmente consensual, pretende-se neste trabalho levantar argumentos que evidenciem ser o sistema de cotas um projeto desproporcional e, portanto, inconstitucional, realçando sua incoerência com o princípio da igualdade e outras normas que proíbem a discriminação racial.


O Brasil possui uma quantidade enorme de leis, que nem sempre ao serem aprovadas contemplam os requisitos básicos de discussão e debate. No período vigente, por exemplo, analisa-se a aprovação e promulgação de uma lei que estabeleça a reserva de cotas a negros, contudo, antes de qualquer precipitação, pretende-se ressaltar a importância de um debate de idéias.


Certamente não há como saber o futuro, mas é possível evitar que muitas conseqüências desagradáveis surjam devido a ações praticadas hoje. Isso é o que pretende este projeto de pesquisa, ou seja, debater e discutir hoje para que amanhã não se sofra os resultados da possível violação de princípios constitucionais.


A igualdade está garantida na Constituição brasileira, consagrada e entendida por fundamental na construção de qualquer sociedade que pretenda ser harmônica. Quando desrespeitada leva longo tempo para se restabelecer, tendo como exemplo a escravidão no Brasil, que até hoje surte efeitos dolorosos e desagradáveis.


Deve-se abrir os canais de comunicação para aqueles que estudam a sociedade, juntar os argumentos plausíveis sobre o assunto e não deixar jamais que interesses particulares frustrem os coletivos. É necessário entender conceitos como o racismo e a discriminação, aceitando-os como existentes para, sem pressa, tecer soluções a esses problemas tão graves.


Portanto, grande importância adquire este trabalho ao chamar o debate do projeto de lei que regulamenta a instituição de cotas para negros nas universidades públicas, evidenciando a necessidade de medidas, sem deixar esquecer da abertura democrática que deve ser dada aos meios difusores de argumentação. Enfim, pretende-se alertar para a possibilidade de se prejudicar um princípio constitucional.


A discussão em torno desse assunto é polêmica em todas as partes do mundo, não somente no Brasil. Talvez seja essa a afirmação mais consensual que lhe diz respeito. 

2 DESENVOLVIMENTO


A área constitucional é uma parte do Direito muito relativa. A Constituição como texto supremo e dotado de força normativa, capaz de vincular todo um Estado à sua obediência, é de difícil interpretação na maioria dos casos. Por isso é necessário que todos os operadores de Direito compreendam a natureza das normas constitucionais e suas diferentes formas de interpretação.


2.1 A interpretação das normas constitucionais


Teoricamente, entende-se ser a Constituição composta de normas que se subdividem em regras e princípios. As regras possuem maior especificidade, cabendo a sua interpretação aos métodos clássicos, como o gramatical, histórico, teleológico e o lógico-sistemático.


Diversa é, porém, a realidade dos princípios. Estes, por sua vez, precisam passar por métodos tipicamente constitucionais. Passa-se a perceber, nesse caso, que não basta dizer o que está escrito ou exposto, mas é necessário revelar a noção abstrata do princípio, aplicando-o ao caso concreto. Eles são diferentes das regras, não sendo fáceis de interpretar, constituindo verdadeiro exercício aos seus aplicadores.


“Princípio é, por definição, um mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de crédito para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. […] Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais…”[2]


Assim, não se deve agir precipitadamente na análise da maioria das questões constitucionais, pois se assim fizer, haverá desastres cada vez maiores para toda a sociedade, na qual os princípios, de natureza evidentemente abstrata, acabarão encerrados a soluções pragmáticas e utilitaristas.


A virtude de um intérprete se encontra em sua racionalidade. Entende-se que a partir dela é possível chegar a resultados seguros e confiantes, e através dela, a confrontação de normas carregadas de carga axiológica acabam por se aplicar ao caso concreto. Se houver análise racional, todos os princípios constitucionais, sejam eles o direito à vida, à igualdade, à privacidade e à dignidade, acabarão por surtir efeitos compatíveis a todo o ordenamento jurídico.


Desta forma pretende-se abrir discussão ponderada e refletida, baseada nos métodos especificamente constitucionais, deixando claro que os princípios, possuindo enorme importância, abrem as portas para inúmeros debates ideológicos que nunca serão reduzidos ao consenso pleno.


2.2 O princípio da igualdade


Dentro do tema deste projeto de pesquisa, a igualdade apresenta principal relevância. Deverão ser levantados, portanto, os fatores que influenciaram sua existência no plano constitucional brasileiro, o porquê de ser tão importante e protegido e o modo adequado de realizar sua ponderação no caso das cotas raciais  das universidades públicas.


É preciso entender, antes de tudo, que a igualdade constitui elemento imprescindível para a democracia. Possui força constituinte de todo Estado democrático de Direito. Seu próprio conceito visa guiar o Estado na execução de ações que tenham por visão de interesse público, até mesmo para reduzir as diferenças sociais.


Todavia, não há uma acepção totalmente aceitável do que seria essa “igualdade” tão falada e cogitada no mundo inteiro. Existe, sim, um número elevadíssimo de explicações conceituais, muito semelhantes, mas nunca idênticas.


2.2.1 Origem histórica


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O tema da igualdade remonta tempos antigos, como a Grécia, onde Aristóteles já definia e distinguia o princípio. Vejamos o comentário que deixou sobre a importância da igualdade na essência democrática:


“A primeira espécie de democracia é aquela que tem a igualdade por fundamento. Nos termos da lei que regula essa democracia, a igualdade significa que os ricos e os pobres não têm privilégios políticos, que tanto uns como outros não são soberanos de um modo exclusivo, e sim que todos o são exatamente na mesma proporção. Se é verdade, como muitos imaginam, que a liberdade e a igualdade constituem essencialmente a democracia, elas, no entanto, só podem aí encontrar-se em toda a sua pureza, enquanto gozarem os cidadãos da mais perfeita igualdade política”.[3]


Para ele, a igualdade se divide em alguns significados:


a) igualdade numérica ou absoluta: sendo a distribuição idêntica dos benefícios e ônus a todos, atribuindo-os equanimemente;


b) igualdade proporcional ou proporcional-quantitativa: é a concepção da distribuição de benefícios maiores aos mais necessitados e o ônus progressivo aos ricos, conforme suas riquezas, contribuindo, assim para atenuar as desigualdades sociais;


c) igualdade proporcional pelo mérito: variante da anterior, baseia-se no mérito pessoal como condição distributiva de benefícios; e


d) igualdade pelas partes iguais ou proporcional-qualitativo: consiste no tratamento igualitário aos iguais e desigual aos desiguais.


Estes quatro significados estão presentes até os dias atuais na concepção de idéias doutrinárias, guiando e servindo como base para muitas políticas governamentais e jurídicas.


Contudo, o principal problema enfrentado pela teoria aristotélica encontra-se no fator de distinção a ser alcançado. Observa-se o fato nas alíneas “b”, “c” e “d”, em que são adotados critérios que fazem a separação entre os que possuem mérito ou não, aqueles que possuem riquezas ou não e também a descrição de quais seriam “iguais”, e quais “desiguais”. Então, dessa forma, a dificuldade encontrada reside no elemento distintivo que, talvez, o Estado encarregado de usá-lo não saberia propriamente como encontrar.


Diz Mello em sua obra:


“[…] qual o critério legitimamente manipulável, sem agravos à isonomia, que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos? Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia?”[4]


Muito tempo após Aristóteles, a sociedade européia no período medieval passa a ser dividida em classes rígidas e deterministas, ou seja, cada pessoa se encontrava ligada a certo setor da sociedade, cada qual com seus direitos e deveres fixos, sem chances de mudá-los com o decorrer do tempo ou com a possível emancipação. Esse modelo arcaico e fechado foi ganhando opositores cada vez mais poderosos.


No período moderno foi considerado inaceitável o modelo antigo, sendo que sob o signo da igualdade e da necessária autonomia do indivíduo, as distinções que vinculavam pessoas a setores da sociedade passaram a ser repudiadas. A Revolução Francesa foi o principal acontecimento que rompeu com as estruturas anteriores, proclamando uma igualdade universal, deixando de considerar a condição externa das pessoas por critério distintivo da aplicação das leis. Ainda dentro da Idade Moderna, diversas correntes surgiram e desenvolveram suas idéias e teorias em um movimento filosófico denominado de Iluminismo.


Debaixo de influência iluminista, repercute hoje no Brasil um sistema político-ideológico liberalista positivista e democrático. Liberalista, deixando existir a luta de classes e as desigualdades sociais, separando os grupos em mais fracos e subjugados e fortes e dominadores. Positivista, refletindo no texto constitucional brasileiro a proteção da igualdade, porém só em seu contexto jurídico-formal, onde garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e ainda quando declara que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.[5] Democrático, fundado principalmente na igualdade e desenvolvimento do ser humano, possuindo ainda o seu aspecto de Bem-estar Social, que favorece a implantação de medidas que amenizem as diferenças entre igualdade material e formal.


2.2.2 A igualdade formal e a material


No Direito, o tão comentado princípio da igualdade deve ser entendido de duas formas: uma teórica amparada constitucionalmente, com a finalidade de evitar a distribuição de privilégios discriminados; e outra prática, ajudando a diminuir, no caso concreto, os efeitos decorrentes da desigualdade.


A visão teórica da igualdade, conhecida por formal, consiste em uma igualdade garantida através dos textos normativos. Possui dupla intenção, ao conceder a todas as pessoas igual distribuição de direitos e deveres, também garantindo que não haja qualquer forma de privilégio, por parte do Estado, a grupos ou pessoas. Nesse ponto de vista, o texto legal enxerga a todos numa só categorização, concedendo-lhes, não as mesmas condições financeiras, mas idêntica relação de direitos e deveres, sem nenhum tipo de discriminação.


Já o lado prático da análise da igualdade, também conhecido por material, dá ao intérprete a idéia de que todos, possuindo as mesmas oportunidades, são iguais, equânimes e semelhantes, de maneira tal que devem ser uniformizados com relação ao tratamento. Nessa acepção não deve haver qualquer diferenciação, possuindo a intenção de equiparar todos os seres humanos, combatendo as desigualdades existentes, para que assim, o plano jurídico tenha eficácia na atuação do princípio da isonomia.


Muito desejado por toda a legislação, o último conceito da igualdade é preconizado na Constituição, quando diz:


“Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: […]


III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;


IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.[6]


Mesmo garantidas constitucionalmente, essas normas que visam a diminuição das desigualdades sócio-econômicas são impunemente desrespeitadas, dando a impressão de que os conceitos que põem por prioridade a igualdade material sempre acabam ineficazes ou ineficientes.[7]


Por causa da existência de desigualdades marcantes nas estruturas sociais, o Estado deve tomar uma postura, juntamente com a sociedade, quer para evitar as discriminações, quer para dar maior eficácia ao princípio vigente. Aparecem, então, as ações afirmativas.


2.3 Políticas de ações afirmativas


A idéia de ações públicas afirmativas chegou ao Brasil carregada de sentidos diversos, que normalmente refletem a diversidade de debates e experiências históricas dos países que lhes deram origem. Mesmo se encontrando presente em todos os países democráticos modernos, sem exceção, pois todos praticam algum tipo de compensação ou de proteção às populações desfavorecidas, ainda pouco conhecida é sua definição.


2.3.1 Definição


Suas características surgem da ideologia do Estado de Bem-estar Social, onde a população reivindica ações públicas intervencionistas, que participem da realidade, através da concessão de direitos e distribuição igualitária dos mesmos.


Podemos definir políticas de ações afirmativas como definiu Bárbara Bergmann:


“Ação afirmativa é planejar e atuar no sentido de promover a representação de certos tipos de pessoas – aquelas pertencentes a grupos que têm sido subordinados ou excluídos – em determinados empregos ou escolas. […] Ações afirmativas podem ser um programa formal e escrito, um plano envolvendo múltiplas partes e com funcionários dele encarregados, ou pode ser a atividade de um empresário que consultou sua consciência e decidiu fazer as coisas de uma maneira diferente”.[8]


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Assim, as ações afirmativas possuem por função específica:


“[…] a promoção de oportunidades iguais para pessoas vitimadas por discriminação. Seu objetivo é, portanto, o de fazer com que beneficiados possam vir a competir efetivamente por serviços educacionais e por posições no mercado de trabalho”. [9]


Observa-se desta forma, que as ações afirmativas desenvolveram-se inicialmente em áreas de mercado de trabalho, defendendo a contratação de negros nos Estados Unidos, que por longo tempo foram discriminados social e legalmente.


Depois disso, passou a abranger diversos meios de inclusão social, a contribuir na compensação das desigualdades, oriundas dos mais diversos fatores, podendo ser de ordem econômica, racial ou moral.


Por fim, “com a expressão ‘ações afirmativas’ costuma-se designar as medidas compensatórias [transitórias] que visam, combatendo as desigualdades materiais, sejam elas econômicas ou de outra natureza, promover os direitos dos denominados grupos vulneráveis, freqüentemente chamados grupos desfavorecidos ou marginalizados.”[10]


Por mais que seja entendida a ação afirmativa, em seus múltiplos conceitos, ainda não muito bem consolidados, torna-se necessária a compreensão de como elas se desenvolveram ao decorrer do tempo, visto que não se originaram em nosso país para serem aqui aplicadas. Torna-se importantíssima a sua análise histórico-adaptativa, haja vista serem meios sociais muito diferentes.


2.3.2 Histórico


A expressão “ação afirmativa” (affirmative action) surgiu nos Estados Unidos na década de 60, período em que os norte-americanos viviam reivindicações democráticas internas, expressas principalmente na forma das manifestações pelos direitos civis, que reivindicavam a extensão da igualdade e oportunidade de participação social a todos. Nesse momento, as leis segregacionistas ainda vigentes no país passaram a ser eliminadas, surgindo o movimento negro como uma das principais forças atuantes no país, apoiado por liberais e progressistas, unidos na defesa dos direitos humanos.[11]


Mesmo após terem sido abolidas as leis segregacionistas, a população ainda continuava a protestar por uma ação estatal, capaz não só de derrubar os limites impostos aos negros, mas de atuar para a inclusão dos mesmos. Atuação essa, que foi chamada ação afirmativa, de cunho positivo, privilegiando a ação do Estado em favor das minorias excluídas.[12]


Na ocasião histórica estadunidense, houve a criação de cotas nas universidades, ou seja, reserva de vagas a negros, fato que gerou muita polêmica até 1978, quando a Suprema Corte norte-americana julgou inconstitucional a medida, por ferir o princípio da igualdade.[13]


Ao se propagar pelo mundo, as políticas afirmativas não ficaram restritas a defender os negros, mas se desdobraram na proteção cívica das mulheres e das minorias étnicas. As principais áreas contempladas foram e são: o mercado de trabalho, a inclusão educacional e a atuação política.


No Brasil, as ações de medida afirmativa vêm se aplicando historicamente na inclusão de pobres, em intervenções políticas de favorecimentos de classes mais afetadas pela miséria. Já com a recente democratização do país, alguns movimentos sociais passaram a surgir, exigindo postura mais ativa do Poder Público, que busque a resolução de problemas que envolvem a discriminação por raça, gênero ou etnia, e a adoção de medidas específicas para que isso aconteça.


2.4 As ações afirmativas e o princípio da igualdade


As ações afirmativas, entendidas por medidas discriminatórias positivas, por mais que pareçam ilegítimas e inconstitucionais na totalidade dos casos, constituem medidas louváveis e legítimas. O problema a ser analisado, como já citado na análise da teoria de Aristóteles, é o do critério de distinção social, o fator de discriminação, ou seja, a natureza do discrímen.


O presente projeto de pesquisa toma por base esse critério de discriminação para  que seja alegada a inconstitucionalidade das cotas raciais. A primeira questão que deve ser levada em consideração é essa natureza do discrímen, e a outra a proporcionalidade, razoabilidade e objetividade desse critério. Visto que:


“[…] isto apenas não basta, uma vez que a razão do discrímen pode ser legítima, mas a medida, em si mesma, desproporcional. Assim, a análise da legitimidade da discriminação passa, necessariamente, pela análise da proporcionalidade da medida adotada em relação à finalidade pretendida e aos demais valores sacrificados”.[14]


Torna-se necessário levar em conta que o critério discriminatório precisa ser acolhido pela norma constitucional vigente, gozar de legitimidade com o texto referido e, por se tratar de uma exceção à regra geral, ser cauteloso e preciso na consideração dos grupos beneficiados.


Outro aspecto, tomado entre os métodos de interpretação especificamente constitucional dos princípios, é o da proporcionalidade das medidas adotadas.


Segundo a doutrina alemã, a análise da proporcionalidade subdivide-se em três subprincípios: princípio da adequação, princípio da necessidade e, por fim, princípio da proporcionalidade em sentido estrito. O primeiro consiste na exigibilidade da devida adequação dos meios utilizados para se alcançar determinado fim, o segundo na indispensabilidade da ação que restrinja diretos de alguém e por último, a proporcionalidade em sentido estrito consiste no equilíbrio que deve ser dado entre os meios utilizados e os fins a serem alcançados. Se a natureza do discrímen contemplar esses requisitos básicos, que o tornem tutelado pelo sistema jurídico, não poderá ser considerado afronta ao princípio da igualdade. Caso contrário, afrontando o legislador o princípio da isonomia, acarretará a inconstitucionalidade da norma, já que discriminações abusivas são inconciliáveis com a Constituição Federal. Assim observa Moraes:


“A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, […] devendo estar presente uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado”.[15]


Em síntese, não há de se falar em constitucionalidade de ações que realizem diferenciações normativas sem justificativas razoáveis e objetivas, que não possuam juízos genericamente aceitos, sendo desproporcionais nos meios empregados para a finalidade perseguida e desconforme aos direitos e garantias constitucionalmente protegidos.


2.4.1 A interpretação das medidas raciais no sistema de cotas


A sociedade brasileira apresenta-se claramente desigual. Sabe-se a distância que os brasileiros estão de se alcançar uma sociedade igualitária materialmente. Por causa disso, o governo brasileiro busca não só a negação formal de qualquer forma de discriminação, mas também, por meio de algumas políticas de ações afirmativas, diminuir desigualdades evidentes, sobretudo no meio econômico.


Assim, tentando caminhar no mesmo sentido que outros países já o fizeram, a exemplo dos Estados Unidos, o Poder Público brasileiro criou um projeto de lei que solucione a desigualdade racial nas universidades, visto que é muito reduzido o número de negros no ensino superior deste país, em contradição ao percentual negro da população.


A questão principal surge na discordância doutrinária no dizer se a atitude governamental ao aprovar o projeto de lei será, ou não, inconstitucional por confrontar algum de seus princípios.


Ao se trabalhar com o princípio da igualdade, fica perceptível ser uma situação pouco clara em interpretação. Diz-se pertencer à esfera dos “casos difíceis”, não podendo ser interpretada precipitadamente. Torna-se necessário, então, fazer uma interpretação especificamente constitucional.


Isola-se o caso a ser analisado, que no presente trabalho são as cotas a negros nas universidades públicas do país. Coloca-se, então, alguns aspectos a serem analisados, dentre eles a supremacia constitucional, o princípio da interpretação conforme a Constituição, a unidade constitucional e o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade.


 Dentro do princípio da razoabilidade e proporcionalidade, entende-se necessária a investigação: da adequação dos meios utilizados, no caso a análise da cor dos candidatos; da necessidade da medida, se realmente não havia como diminuir a desigualdade de outra forma; e por último, a proporcionalidade em sentido estrito, ponderando o equilíbrio entre os prejuízos de excluir vagas a brancos, e os benefícios de haver negros aprovados.


Com relação aos meios utilizados, tem-se a seguir algumas análises feitas a cerca da raça, usada por critério de distinção na política do sistema de cotas:


“Os critérios raciais não são necessariamente os padrões corretos para decidir quais candidatos serão aceitos pelas faculdades de direito, mas o mesmo vale para os critérios intelectuais ou para qualquer outro conjunto de critérios. A eqüidade – e a constitucionalidade – de qualquer programa de admissões deve ser testada da mesma maneira. O programa estará justificado unicamente se servir a uma política adequada, que respeite o direito de todos os membros de serem tratados como iguais.[…]”


“Temos, todos nós, inteira razão ao desconfiarmos das classificações por raça. Elas têm sido usadas para negar, em vez de respeitar, o direito à igualdade, e todos nós estamos conscientes da injustiça que daí decorre.”[16]


Além disso, a raça comprovadamente científica não existe. Impossível dizer, portanto, ser realmente a etnia negra ou a africana as beneficiadas. Tanto mais difícil é fazer tal declaração no Brasil, país marcado pela miscigenação:


“Segundo a etnografia que se faz no Brasil, o conceito de raça continua a não ser nativo, ainda que comece a ser adotado por vários grupos sociais, não é um termo usual e de sentido inequívoco. A melhor maneira de se perguntar quando se quer classificar em termos raciais, portanto, continua a ser: “qual é a sua cor?” ou “como o sr(a). se classificaria em termos de cor?” ou variações em torno da pergunta sobre cor. O grande problema é que cada vez mais essa pergunta acaba dando resultados inesperados”.[17]


Deve ser feita, também, a análise da objetividade da justificativa utilizada ao implantar tal medida compensatória, para ser aceita por constitucional. Sendo assim, esclarece Dworkin:


“Os argumentos favoráveis a um programa de admissões que discrimine a favor dos negros são ao mesmo tempo utilitaristas e de ideal. Alguns dos argumentos utilitaristas baseiam-se, ao menos indiretamente, em preferências externas, como a preferência de certos negros por advogados de sua própria raça; mas os argumentos utilitaristas que não se baseiam em tais preferências são fortes e podem ser suficientes. Os argumentos de ideal não se baseiam em preferências, mas sim no argumento independente de que uma sociedade mais igualitária será uma sociedade melhor, mesmo se seus cidadãos preferirem a desigualdade. Este argumento não nega a ninguém o direito de ser tratado como igual”.[18]


Somente após serem feitas todas essas ponderações é que será possível concluir se há ou não compatibilidade das cotas raciais nas universidades com o princípio constitucional da igualdade.


3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Pretende-se afirmar, com este trabalho, que as cotas destinadas a negros nas universidades brasileiras são inconstitucionais, por não respeitarem o princípio da igualdade.


Sua existência não é, em si, causa da inconstitucionalidade, mas a utilização da cor dos candidatos à reserva de vagas a torna de tal modo relativa, pouco razoável e objetiva. O fator de discrímen, entendido como o critério de distinção daqueles que serão beneficiados, apresenta incompatibilidade com o princípio da igualdade, ao inserir de forma velada um potencial discriminatório na sociedade brasileira.


Não há adequação das medidas para os fins pretendidos, nem mesmo necessidade de tal distinção racial, configurando, portanto, a inconstitucionalidade.


 


Referências bibliográficas

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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

 

Notas:

[1] BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei 3627/2004, Brasília, DF, 28 abr. 2004.

[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1991.

[3] ARISTÓTELES, A Política, p. 236, apud GRAMSTRUP, Erik Frederico. O princípio da igualdade. São Paulo. Editora Madruvá.

[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. Malheiros. São Paulo. pág. 11, apud MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: História e debates no Brasil. Caderno de Pesquisa, São Paulo, n. 117, 2002.

[5] BRASIL. Constituição Federal, Brasília, DF, 05 out. 1988. Art. 5º, caput e inciso I.

[6] Ibid., Art. 3º.

[7] SILVA, Marcelo Amaral da. Digressões acerca do princípio constitucional da igualdade . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 66,  jun. 2003.

[8] BERGMANN, B. In defense of affirmative action. New York: BasicBooks, 1996, apud MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: História e debates no Brasil. Caderno de Pesquisa, São Paulo, n. 117, 2002.

[9] CONTINS, M.; SANT’ANA, L. C. O Movimento negro e a questão da ação afirmativa. Estudos Feministas. IFCS/UFRJ-PPCIS/Uerj, v. 4, n. 1, p. 210, apud MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: História e debates no Brasil. Caderno de Pesquisa, São Paulo, n. 117, 2002.

[10] ATCHABAHIAN, Serge. Princípio da Igualdade e Ações Afirmativas. São Paulo: RCS Editora, 2004, p. 150, apud JENSEN, Geziela; SGARBOSSA, Luís Fernando. Análise da constitucionalidade das ações afirmativas em face do princípio isonômico através do princípio da proporcionalidade . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1309, 31 jan. 2007.

[11] SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Princípio da igualdade. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, apud MERENDI, Tatiana Peghin. O princípio da igualdade do Estado democrático brasileiro: os deficientes físicos e a discriminação positiva. Marília, SP: [s.n.], 2007. p. 84.

[12] Ibid., p. 84.

[13] FERNANDES, Nelito. Começo errado. Época, São Paulo, n. 248, 17 fev. 2003. p. 34.

[14] JENSEN, Geziela; SGARBOSSA, Luís Fernando. Análise da constitucionalidade das ações afirmativas em face do princípio isonômico através do princípio da proporcionalidade . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1309, 31 jan. 2007.

[15] MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada: e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2003. p. 181, apud MERENDI, Tatiana Peghin. O princípio da igualdade do Estado democrático brasileiro: os deficientes físicos e a discriminação positiva. Marília, SP: [s.n.], 2007. p. 91.

[16] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 369.

[17] GUIMARÃES, A. S. A.. Como trabalhar com “raça” em sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, 2003. p. 105.

[18] DWORKIN, op. cit., p. 368.


Informações Sobre o Autor

Guilherme Santana Canhetti

Acadêmic Direito das faculdades UNICEN


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