Antecipação da tutela contra a Fazenda Pública à luz da Constituição Federal de 1988

Resumo: A antecipação de tutela contra a Fazenda Pública encontra algumas limitações dispostas na legislação infraconstitucional, as quais têm sido contestadas por parcela ponderável da doutrina e jurisprudência. Almeja-se, neste estudo, examinar as diversas correntes doutrinárias existentes acerca do tema proposto, as quais, em síntese, dividem-se em três posições: a) a que sustenta a inconstitucionalidade dessas limitações infraconstitucionais; b) aqueles que argumentam pela irrestrita constitucionalidade; c) e, por fim, os juristas que buscam uma “harmonização” dos direitos fundamentais em aparente conflito. O egrégio Supremo Tribunal Federal já examinou o assunto em pauta por meio do controle concentrado de constitucionalidade (em duas oportunidades) e pelo julgamento de diversas “Reclamações”. É por meio destas “Reclamações” que o Supremo Tribunal Federal tem realizado o devido “ajuste” da extensão das decisões lançadas outrora em sede de controle concentrado, e por isso é imperiosa a sua exata compreensão pelo leitor. Ao final, busca-se apresentar uma solução que harmonize os direitos fundamentais em aparente conflito.


Palavras-chave: Antecipação. Tutela. Limitações. Constitucionalidade. Posições.


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Abstract: The early relief against the Treasury find some limitations placed on the infra-constitutional legislation, which are being contested by considerable portion of the doctrine and jurisprudence. Aims to, in this study, to examine the various doctrinal trends existing on the subject proposal, which, in summary, are divided into three positions: a) that sustains the constitutionality of these restrictions under the Constitution, b) those who argue for the constitutionality unrestricted c) and, finally, the lawyers who seek a “harmonization” of fundamental rights in apparent conflict. The eminent Supreme Court has already examined the issue at hand through the concentrated control of constitutionality (on two occasions) and the trial of several “complaints.” It is through these “complaints” that the Supreme Court has made the proper “fit” the range of decisions formerly launched in place of concentrated control, and therefore it is imperative to its correct understanding by the reader. In the end, we seek to provide a solution to harmonize the apparent conflict of fundamental rights.


Keywords: Anticipation. Guardianship. Limitations. Constitutionality. Positions.


Sumário: 1 Introdução; 2 Das Leis Restritivas da Tutela de Urgência em Favor da Fazenda Pública; 3 Da (In)constitucionalidade das leis restritivas à concessão da tutela de urgência contra a Fazenda Pública; 3.1 As posições doutrinárias; 3.2 A posição do Supremo Tribunal Federal; 3.3 A Fazenda Pública e o regime da tutela de urgência na Constituição Federal de 1988; 4 Conclusões; Referências.


1 INTRODUÇÃO


A proposta do presente trabalho é examinar a constitucionalidade, ou não, da legislação infraconstitucional que restringe, em algumas situações, a concessão da tutela de urgência em desfavor da Fazenda Pública.


Para tanto, apresentaremos as posições da doutrina e do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto em apreço, assim como de que forma essa egrégia Corte Suprema tem solucionado os conflitos levados à sua apreciação.


Será também objeto de análise deste artigo revelar quais os direitos fundamentais que estão sendo postos em consideração quando se está diante do enfrentamento do tema.  


Não nos furtaremos de apresentar, ao fim deste estudo, uma posição que busque conciliar da forma mais adequada os direitos[1] fundamentais em jogo.


2 – DAS LEIS RESTRITIVAS DA TUTELA DE URGÊNCIA EM FAVOR DA FAZENDA PÚBLICA


A primeira lei a suprimir liminares em desfavor da Fazenda Pública foi a Lei 2.770/56, a qual diz respeito à liberação de bens, mercadorias e coisas de procedência estrangeira. Em relação a essa legislação, o Supremo Tribunal Federal editou, na década de 60, a Súmula 262[2].  


Após, foi publicada a Lei 4.348/64, cujo objetivo era[3]:


Art. 5º Não será concedida a medida liminar de mandados de segurança impetrados visando à reclassificação ou equiparação de servidores públicos, ou à concessão de aumento ou extensão de vantagens.


Parágrafo único. Os mandados de segurança a que se refere este artigo serão executados depois de transitada em julgado a respectiva sentença.”


No mesmo rumo foi a Lei 5.021/66:


Art. 1º O pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias asseguradas, em sentença concessiva de mandado de segurança, a servidor público federal, da administração direta ou autárquica, e a servidor público estadual e municipal, sòmente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial. […]


§ 4º Não se concederá medida liminar para efeito de pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias.”


A referida lei foi editada no claro propósito de esvaziar, à época, o debate sobre a reforma administrativa então existente.


Durante o governo do Presidente da República Fernando Collor de Mello, foi publicada a Lei 8.076/90, a qual proibiu liminares contra a maioria das leis que constituíram o chamado “Plano Collor I (março de 1990)”, o qual visava a impedir o crescimento da inflação. Nesse cenário é editada também a Lei 8.437/92, cujos principais dispositivos, para os fins deste estudo, são:


Art. 1° Não será cabível medida liminar contra atos do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal.


§ 1° Não será cabível, no juízo de primeiro grau, medida cautelar inominada ou a sua liminar, quando impugnado ato de autoridade sujeita, na via de mandado de segurança, à competência originária de tribunal.


§ 2° O disposto no parágrafo anterior não se aplica aos processos de ação popular e de ação civil pública.


§ 3° Não será cabível medida liminar que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação.”


Já mais recentemente entrou em vigor a Lei 9.494/97, no intuito de regulamentar a antecipação de tutela contra a Fazenda Pública. O seu art. 1º tem o seguinte teor:


“Art. 1º Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei nº 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992”.


Vê-se, pois, que o intuito do legislador, nessa última legislação, foi estender à antecipação de tutela (introduzida no sistema processual geral pela Lei 8.952/94) as mesmas restrições já existentes da tutela de urgência em mandado de segurança e ação cautelar.


É preciso ser destacado que durante esse período era elevado o número de ações judiciais propostas contra a União, por meio das quais os servidores públicos, mediante pedido de antecipação de tutela, buscavam – e invariavelmente obtinham – o reajuste de 28,86%[4] inicialmente destinados à determinada parcela dos servidores. Logo, a Lei 9.494/97 tinha por escopo frear essas liminares, as quais estavam trazendo enorme desequilíbrio orçamentário.


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Na Exposição de Motivos da Medida Provisória n. 1570/97 (posteriormente convertida na referida Lei 9.494/97), o Exmo. Sr. Ministro de Estado da Justiça deixou consignadas as razões que levaram à edição do referido ato normativo:


É lícito admitir que, pelas peculiaridades que marcam o modelo da execução contra a Fazenda Pública, tais medidas – sobretudo aquelas referentes ao pagamento de vantagens pecuniárias – não poderiam jamais ser deferidas contra as Pessoas Jurídicas de Direito Público. A falta de previsão orçamentária, o risco de concessão de vantagens indevidas e a dificuldade de ressarcimento dos cofres públicos em caso de pagamentos indevidos constituiriam razões suficientes para recomendar a não aplicação do instituto contra o Poder Público.


Não há dúvida, outrossim, de que o deferimento generalizado dessas medidas antecipatórias pode causar sérios danos às Finanças Públicas, com repercussões graves sobre todo o quadro econômico e social. Isso se torna mais gravoso se a tutela antecipada for deferida em processos ou ações de caráter coletivo, dificultando não só a execução como o eventual controle dos pagamentos. Não é preciso dizer que as decisões tomadas, em sede de juízo liminar ou antecipatório, sem os procedimentos inerentes ao contraditório e à ampla defesa, podem ocasionar monumentais erros judiciários, com sérias conseqüências para o patrimônio público e para o prestígio da própria Justiça.


Nos últimos tempos, vem-se generalizando a utilização da tutela antecipada contra as pessoas jurídicas de Direito Público, verificando-se – para usar a expressão cunhada pelo eminente Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal – uma nova onda de abuso, desta feita com a utilização do novo instituto, exatamente porque em relação a este não vigoram – pelo menos expressamente – as limitações existentes para o mandado de segurança e para a ação cautelar inominada.


É mister, pois, que se proceda a uma imediata revisão ou atualização do ‘modelo de contracautela’ existente, de modo a explicitar que também a chamada ‘tutela antecipada’, dado ao seu caráter marcadamente cautelar, está submetida às limitações gerais existentes para as medidas liminares ou cautelares.”


São essas, portanto, as mais relevantes legislações infraconstitucionais que restringem à concessão da tutela de urgência em desfavor da Fazenda Pública.


A questão que se coloca, a partir de agora, é posicionar essas limitações em face do princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, o qual contém a base normativa do direito de ação e que está presente em todos os documentos constitucionais promulgados no Brasil após 1946, e que hoje está inserido no art. 5º, XXXV, da CF/88[5], entre direitos e garantias fundamentais.


3 – DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS RESTRITIVAS À CONCESSÃO DA TUTELA DE URGÊNCIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA


3.1 – AS POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS


A doutrina não possui uma posição uniforme sobre a constitucionalidade, ou não, das leis que outorgam privilégios à Fazenda Pública no tema concernente à tutela de urgência.


Em um primeiro momento, a doutrina questionava se a antecipação da tutela não encontrava óbice na própria necessidade de submissão das sentenças ao reexame necessário.


O jurista Leonardo José Carneiro da Cunha[6] bem aponta essa discussão inicial:


“Questiona-se se esses provimentos de urgência podem ser concedidos contra o Poder Público. Muito se discutiu sobre a admissibilidade da antecipação de tutela em ações propostas contra a Fazenda Pública, havendo quem se posicionasse contrário ao seu cabimento, sustentando não ser compatível a antecipação da tutela com a regra do reexame necessário (CPC, art. 475), nem com a sistemática do precatório (CF, art. 100). É que, se a sentença não produz efeitos enquanto não confirmada pelo tribunal, a tutela antecipada, a fortiori, não poderia ser concedida, senão depois de reexaminada pela instância superior. Ademais, as ordens de pagamento devem submeter-se, forçosamente, à disciplina dos precatórios, sendo questionável se a parte autora deva efetivamente obter, de logo, o valor respectivo. Após acirradas discussões, chegou-se a um consenso: não se sujeitam ao reexame necessário as decisões interlocutórias proferidas contra a Fazenda Pública. Como bem lembrado por Renato Luís Benucci, no processo de mandado de segurança há reexame necessário e, nem por isso, está vedada a concessão da liminar. De igual modo, a simples existência do reexame necessário não é fator necessário e suficiente para impedir a concessão de provimentos antecipatórios contra a Fazenda Pública.”


Percebe-se, portanto, que a necessidade de reexame necessário é tão-somente da “sentença”, a qual não se confunde com o ato judicial que analisa o pedido de tutela antecipada (“decisão interlocutória”, na forma do art. 162, § 2º, do CPC).


Depois, a controvérsia da doutrina se focou na própria extensão constitucional da previsão legal do instituto da antecipação de tutela. Vale dizer: a antecipação de tutela, prevista, por exemplo, no art. 273 do CPC está contida, ou não, no princípio da inafastabilidade do controle judicial (art. 5º, XXXV, CF/88)? É possível que legislação posterior, sem ferir a Constituição Federal, restrinja ou, até mesmo, elimine tal possibilidade no âmbito do processo civil?


Um dos nossos grandes processualistas entende que sim. Trata-se da posição defendida por J.J. Calmon de Passos[7]:


Sempre sustentei que a garantia constitucional disciplinada no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito) diz respeito, apenas, à tutela definitiva, aquela que se institui com a decisão transitada em julgado, sendo a execução provisória e a antecipação da tutela problemas de política processual, que o legislador pode conceder ou negar, sem que isso incida em inconstitucionalidade. Vetar liminares neste ou naquele processo jamais pode importar inconstitucionalidade, pois configura interferência no patrimônio ou na liberdade dos indivíduos, com preterição, mesmo que em parte, das garantias do devido processo legal, de base também constitucional. Daí sempre ter sustentado que a liminar, na cautelar, ou antecipação liminar da tutela em qualquer processo, não é direito das partes constitucionalmente assegurado. […]


Assim, nada impedirá, amanhã, que disposições especiais de lei eliminem ou restrinjam a antecipação da tutela em algum tipo de procedimento ou quando em jogo certos interesses.”


Para o renomado jurista, portanto, o art. 5º, XXXV, da CF/88 é dirigido apenas à proteção da “tutela definitiva”. Já no que toca à execução provisória e a antecipação da tutela, elas são questões, diz o citado jurista, de “política processual”.


J. J. Calmon de Passos não está sozinho. Em voto na ADIN-MC n. 223[8], o Min. Moreira Alves deixou assentado:


“O proibir-se, em certos casos, por interesse público, a antecipação provisória da satisfação do direito material lesado ou ameaçado não exclui, evidentemente, da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça ao direito, pois ela se obtém normalmente na satisfação definitiva que é proporcionada pela ação principal, que, esta sim, não pode ser vedada para privar-se o lesado ou ameaçado de socorrer-se do Poder Judiciário.”


Soma-se a esse entendimento doutrinário, capitaneado por J. J. Calmon de Passos, a posição do saudoso Min. Menezes Direito quando do julgamento definitivo da ADC 4[9]:


“[…] O Min. Menezes Direito, acompanhando o relator, acrescentou aos seus fundamentos que a tutela antecipada é criação legal, que poderia ter vindo ao mundo jurídico com mais exigências do que veio, ou até mesmo poderia ser revogada pelo legislador ordinário. Asseverou que seria uma contradição afirmar que o instituto criado pela lei oriunda do poder legislativo competente não pudesse ser revogada, substituída ou modificada, haja vista que isto estaria na raiz das sociedades democráticas, não sendo admissível trocar as competências distribuídas pela CF. Considerou que o Supremo tem o dever maior de interpretar a Constituição, cabendo-lhe dizer se uma lei votada pelo Parlamento está ou não em conformidade com o texto magno, sendo imperativo que, para isso, encontre a viabilidade constitucional de assim proceder. Concluiu que, no caso, o fato de o Congresso Nacional votar lei, impondo condições para o deferimento da tutela antecipada, instituto processual nascido do processo legislativo, não cria qualquer limitação ao direito do magistrado enquanto manifestação do poder do Estado, presente que as limitações guardam consonância com o sistema positivo. Frisou que os limites para concessão de antecipação da tutela criados pela lei sob exame não discrepam da disciplina positiva que impõe o duplo grau obrigatório de jurisdição nas sentenças contra a União, os Estados e os Municípios, bem assim as respectivas autarquias e fundações de direito público, alcançando até mesmo os embargos do devedor julgados procedentes, no todo ou em parte, contra a Fazenda Pública, não se podendo dizer que tal regra seja inconstitucional. Os Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Gilmar Mendes incorporaram aos seus votos os adendos do Min. Menezes Direito”.


Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero[10] têm posição diversa. Para eles, são inconstitucionais tais restrições legais:


20. Tutela Antecipatória contra a Fazenda Pública. Existem restrições, no plano infraconstitucional, à concessão da tutela antecipatória contra a Fazenda Pública […]. Essas restrições, contudo, não tem o condão de excluir o cabimento de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública. São inconstitucionais. Frise-se que o direito de ação, compreendido como o direito à técnica processual adequada, não depende do reconhecimento do direito material. O direito de ação exige técnica antecipatória para a viabilidade do reconhecimento da verossimilhança do direito e do fundado receio de dano, sentença idônea para a hipótese de sentença de procedência e meio executivo adequado a ambas as hipóteses. Se o direito não for reconhecido como suficiente para a concessão da antecipação da tutela ou da tutela final, não há sequer como pensar em tais técnicas processuais. A norma do art. 5º, XXXV, CRFB, ao contrário das normas constitucionais anteriores que garantiam o direito de ação, afirmou que a lei, além de não poder excluir lesão, será proibida de excluir “ameaça de lesão” da apreciação jurisdicional. O objetivo do art. 5º, XXXV, CRFB, neste particular, foi deixar expresso que o direito de ação deve poder propiciar a tutela inibitória e ter a sua disposição técnicas processuais capazes de permitir a antecipação da tutela. […]


Uma lei que proíbe a aferição dos pressupostos necessários à concessão de liminar obviamente nega ao juiz a possibilidade de utilizar instrumentos imprescindíveis ao adequado exercício do seu poder. E, ao mesmo tempo, viola o direito fundamental à viabilidade da obtenção da efetiva tutela do direito material.”


Teori Albino Zavascki[11], em obra de referência obrigatória sobre a questão, tem uma posição mais “conciliadora”.


“A questão da constitucionalidade ou não das normas de legislação ordinária que impõem restrições ao poder do juiz de deferir provimentos liminares é, no fundo e essencialmente, a mesma que diz com os parâmetros de legitimidade da concessão de medidas de tutela provisória. Com efeito, assim como se pode perguntar (a) em que limites é possível ao legislador ordinário restringir o poder do juiz de deferir medidas liminares, pode-se também fazer a pergunta no sentido inverso, ou seja, (b) como justificar, constitucionalmente, a legitimidade de norma que possibilita a concessão de tutela provisória, inclusive liminar, à base de cognição sumária, sem esgotar o direito ao contraditório ou à ampla defesa? É que na raiz dessas indagações está o mesmo problema: o do controle da razoabilidade das normas restritivas dos direitos fundamentais constitucionais.”


O referido jurista, após alinhar os direitos e deveres dos litigantes[12], aponta que eles não são direitos absolutos, pois em:


“determinadas circunstâncias e sob certas condições, podem vir a sofrer restrição, seja pelo juiz que os aplica, seja pelo legislador que regulamente o seu exercício. A relatividade desses direitos decorre, basicamente, da necessidade de propiciar, no campo prático, a convivência harmônica e simultânea de todos eles.”


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E conclui:


“Com efeito, a harmonia e compatibilidade que, no plano puramente normativo, se verificam em relação aos direitos e deveres reciprocamente atribuídos aos litigantes pela Constituição, nem sempre são reproduzidos em situações concretas. Nem sempre os direitos à utilidade da jurisdição, do demandante, e à segurança jurídica, do demandado, podem conviver harmônica e simultaneamente. Há situações de fato, determinadas sobretudo pelo tempo despendido com o desenrolar do processo, em que a garantia plena do direito à segurança jurídica importaria comprometimento do direito à efetividade da jurisdição e vice-versa. Isso se verifica quando, por exemplo, a fruição do direito afirmado pelo autor se mostra de tal modo urgente que o simples aguardo da futura sentença significará seu irremediável comprometimento. Quando isso ocorre, ou seja, quando se apresentar situação de conflito entre direitos fundamentais, haverá necessidade de formular regra para obter, na prática, uma solução que assegure a sobrevivência de ambos. E não existirá solução possível, nesses casos, senão aquela que, de alguma forma ou em alguma medida, opere restrição a um ou outro ou a ambos os direitos colidentes. Daí afirmar-se que os direitos fundamentais não são absolutos, mas relativos, e uma das razões que podem determinar sua relativização é justamente esta: a de propiciar a convivência prática com os demais direitos fundamentais de mesma estrutura constitucional”.


Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, em obra coletiva, posicionam-se pela validade da tutela de urgência contra a Fazenda Pública, mas desde que não estejam em jogo questões pecuniárias dos servidores públicos expressamente vedadas pela legislação infraconstitucional:[13]


Parece não haver mais discussão sobre a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela em face do Poder Público, até mesmo porque existe uma lei que a disciplina (Lei Federal n. 9.494/97).


Em princípio, como corolário do direito fundamental do acesso à justiça, a antecipação da tutela haveria de ser disciplinada pelas leis infraconstitucionais. E o foi. A Lei Federal n. 9.494/97 regulou a antecipação da tutela contra a Fazenda Pública, proibindo-a em certos casos. Se uma lei veio regulá-la é porque a antecipação é possível; e só não o será nas hipóteses por ela previstas.”


Por fim:


“Não é demais relembrar que essa restrição à tutela antecipada cinge-se, tão-somente, às pretensões pecuniárias de servidores públicos. Todas as outras pretensões não abrangidas pela vedação da Lei n. 9.494/97, podem ser seus efeitos antecipados.”


Não há, pois, uma posição uniforme na doutrina, visto que o tema desperta diversas linhas interpretativas.  


3.2 – A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL


Em duas oportunidades (mediante uso do controle concentrado de constitucionalidade) o Supremo Tribunal Federal analisou a possibilidade das leis restringirem a concessão da tutela de urgência em desfavor da Fazenda Pública.


A primeira vez foi na ADI-MC n. 223[14], proposta em 28/03/90, e que foi extinta, após o exame da liminar, por perda de objeto. O entendimento que prevaleceu, quando do julgamento da liminar, foi o do Min. Sepúlveda Pertence. Para esse ilustre Ministro, é o princípio da “razoabilidade” que deve nortear o enfrentamento do ponto, a ser aplicado no exame do caso concreto levado à apreciação do julgador e mediante o controle difuso. Não é possível, portanto, uma solução por meio de uma regra geral, sem análise das particularidades do caso em apreço.


Mais tarde ocorreu o julgamento da ADC n. 4[15] pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse julgamento, tanto no exame liminar quanto final, a solução apontada pela Corte Suprema foi pela constitucionalidade do art. 1º da Lei 9.494/97.  


Assim, não é cabível ao juiz declarar, mediante controle difuso, a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei 9.494/97. Se assim proceder, será cabível o uso da Reclamação[16] perante o Supremo Tribunal Federal para cassar a decisão judicial reclamada.


E diversas vezes isso tem se verificado na prática forense, o que tem propiciado o manejo da Reclamação por parte da Fazenda Pública. Relevante destacar, contudo, que essas Reclamações propostas perante a Corte Suprema têm servido para se ter a exata compreensão do alcance do julgamento da ADC n. 4.


E já se pode adiantar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem dado uma interpretação bastante restritiva das hipóteses de não-cabimento da tutela de urgência contra a Fazenda Pública.


É o que se extrai deste julgado:


“AGRAVO REGIMENTAL. RECLAMAÇÃO. AFRONTA AO DECIDIDO NA ADC 4/DF, REL. MIN. SYDNEY SANCHES. AUSÊNCIA DE IDENTIDADE MATERIAL. AGRAVO DESPROVIDO. I – Cinco são as hipóteses para o indeferimento da antecipação de tutela no caso em comento: (a) reclassificação ou equiparação de servidores públicos; (b) concessão de aumento ou extensão de vantagens pecuniárias; (c) outorga ou acréscimo de vencimentos; (d) pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias a servidor público ou (e) esgotamento, total ou parcial, do objeto da ação, desde que refira-se, exclusivamente, a qualquer das matérias acima referidas II – O caso concreto não guarda pertinência com qualquer das hipóteses aventadas, razão pela qual nego provimento ao agravo regimental. III – Agravo desprovido” (Rcl 6093 AgR, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/06/2008, DJe-152 DIVULG 14-08-2008) [grifo à parte].


Não se aplica, portanto, para a nomeação e posse em cargo público, pois ausente previsão legal expressa em sentido contrário. A propósito:


“RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL. DEFERIMENTO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA PARA NOMEAÇÃO E POSSE EM CARGO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE DESRESPEITO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADC 4. 1. Ao conceder a medida cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 4, esta nossa Corte vedou apenas a concessão de tutela antecipada que contrarie o disposto no art. 1º da Lei 9.494/97. 2. A reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou extensão de vantagens (art. 5º da Lei 4.348/64) cuidam da específica situação em que um servidor público postula tais direitos em Juízo. O mesmo vale para o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias de que trata o § 4º do art. 1º da Lei 5.021/66. 3. A determinação para que candidatos sejam nomeados e empossados em cargo público não ofende a decisão do STF na ADC 4. A postulação para ingresso nos quadros funcionais do Estado diz respeito ao direito de acesso aos cargos, empregos e funções de natureza pública. Direito expressamente assegurado pelo inciso II do art. 37 da Constituição Federal e consistente na instauração de vínculo jurídico até então inexistente. Direito, portanto, à formação de um liame jurídico a que o Poder Público, no caso, resiste. Já os demais direitos subjetivos, versados na ADC 4, esses dizem respeito à continuidade de uma relação jurídica preexistente ou, se se prefere, dizem respeito a institutos jurídicos que têm por pressuposto de incidência uma anterior relação jurídica entre o servidor público e a pessoa do Estado. Relação jurídica em nenhum momento posta em causa quanto à juridicidade de sua formação ou continuidade. 4. Reclamação que se julga improcedente” (Rcl 7212, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 02/06/2010, DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010).


“SERVIDOR PÚBLICO. Cargo. Concurso público. Candidato aprovado. Nomeação e posse. Antecipação de tutela contra a Fazenda Pública para estes fins. Admissibilidade. Pagamento consequente de vencimentos. Irrelevância. Efeito secundário da decisão. Inaplicabilidade do acórdão da ADC nº 4. Reclamação indeferida liminarmente. Agravo improvido. Precedentes. Não ofende a autoridade do acórdão proferido na ADC nº 4, a decisão que, a título de antecipação de tutela, assegura a candidato aprovado em concurso a nomeação e posse em cargo público” (Rcl 5983 AgR, Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009).


Não se incluiu também nos casos de reintegração ao cargo antes ocupado pelo servidor


“SERVIDOR PÚBLICO. Policial Militar. Reintegração no posto. Restabelecimento de condição funcional. Retorno ao statu quo. Antecipação de tutela contra a Fazenda Pública. Admissibilidade. Pagamento conseqüente de vencimentos futuros. Irrelevância. Efeito secundário da decisão. Inaplicabilidade do acórdão da ADC nº 4. Reclamação julgada improcedente. Agravo improvido. Não ofende a autoridade do acórdão proferido na ADC nº 4, decisão que, a título de antecipação de tutela, se limita a determinar reintegração de servidor no cargo ou posto, até julgamento da demanda, sem concessão de efeito financeiro pretérito” (Rcl 6468 AgR, Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009).


Por meio de uma interpretação literal, o Supremo Tribunal Federal também não aplica o entendimento da ADC n. 4 nas hipóteses em que o agente público busca, por meio de ação judicial, a manutenção do status quo ante remuneratório. Confira-se:


“SERVIDOR PÚBLICO. Procuradores da Fazenda Nacional. Vencimentos e proventos. Vantagem pessoal nominalmente identificada – VPNI. Restabelecimento. Antecipação de tutela contra a Fazenda Pública. Admissibilidade. Inaplicabilidade da decisão da ADC nº 4. Nova orientação assentada pelo Plenário. Reclamação julgada improcedente. Agravo improvido. Não ofende a autoridade do acórdão proferido na ADC nº 4, decisão que, a título de antecipação de tutela, não traduz aumento pecuniário, mas representa mero óbice judicial à redução de verba salarial”  (Rcl 3483 AgR, Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2006, DJ 28-04-2006).


Além disso, o Supremo Tribunal Federal tem exarado decisões no sentido de que, mesmo quando a causa versar sobre as hipóteses proibitivas do art. 1º da Lei 9.494/97, não haverá desrespeito ao julgamento da ADC n. 4 quando a decisão de origem reclamada estiver em sintonia com a jurisprudência da Suprema Corte. Nesse sentido:


“ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. Concessão contra a Fazenda Pública. Servidor público. Vencimentos. Conversão monetária de cruzeiro real em URV. Diferença. Incorporação determinada. Direito reconhecido. Jurisprudência do Supremo. Ofensa à autoridade da liminar concedida na ADC n° 4. Não ocorrência. Reclamação inviável. Segmento negado. Agravo improvido. Não se admite reclamação contra decisão que está em consonância com assentada jurisprudência da Corte” (Rcl 5163 AgR, Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 27/11/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009) [grifo à parte].


O Supremo Tribunal Federal tem ainda Súmula não vinculante[17] expressamente afastando a aplicação do julgamento da ADC n. 4 para as causas de natureza previdenciária.


À vista do exposto, fácil concluir que a Suprema Corte reconhece a constitucionalidade das leis que restringem a concessão da tutela de urgência em desfavor da Fazenda Pública, mas desde que esteja incluída expressamente entre as hipóteses taxativas previstas nessas leis, cuja interpretação do seu alcance deve ser a mais restritiva possível e, ainda, desde que não esteja em desacordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.


3.3. – A FAZENDA PÚBLICA E O REGIME DA TUTELA DE URGÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988


De início, adota-se neste estudo a posição prevalecente na doutrina de que o Estado é, sim, titular de direitos fundamentais (embora não na mesma amplitude que a pessoa natural), mormente quando está ele na posição de “sujeição”. Foge ao desiderato deste artigo o aprofundamento desse assunto, mas cita-se, em apoio ao entendimento aqui defendido, a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mandado de Injunção n. 725, Relator  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2007.


 Não obstante vozes em sentido contrário, entendemos que o instituto da antecipação da tutela está intimamente relacionado com o princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional previsto no art. 5º, XXXV, da CF/88.


As leis, e principalmente o Texto Maior, não contêm palavras inúteis. Por isso, quando a Carta Magna prevê no citado dispositivo que a “lei não excluirá a apreciação do Poder Judiciário” não só a “lesão”, mas igualmente a “ameaça a direito”, não está ela a pretender dar simples reforço teórico. Está protegendo, juntamente com a tutela definitiva, a tutela de urgência (mais precisamente quando menciona “ameaça a direito”).


Por sua vez, a Fazenda Pública, igualmente por expressa previsão constitucional, tem assegurada a previsão de pagar os seus débitos por meio de precatórios (art. 100, CF/88). Além disso, é preciso ter sempre presente a existência de princípios do direito financeiro[18], merecendo destaque, aqui, os princípios da “programação” (o orçamento moderno consubstancia um plano de ação governamental, e não mais um mero instrumento contábil), do “equilíbrio orçamentário”, da “unidade” e da “legalidade”. Soma-se a eles o direito fundamental, extensível igualmente ao Estado, da ampla defesa e ao contraditório, bem como do devido processo legal.


Diante da aparente colisão de princípios constitucionais, e sabendo-se que não há hierarquia entre as normas constitucionais, deve o intérprete recorrer aos princípios da interpretação constitucional.  E ao assim proceder, para a solução do presente caso, despontam os princípios da “unidade da Constituição”, da “concordância prática”, da “eficácia integradora” e da “razoabilidade” (este último não ligado exclusivamente à exegese constitucional).


Em apertada síntese, e segundo os ensinamentos de J. J. Gomes Canotilho[19], esses três primeiros princípios consistem em:


– princípio da “unidade da Constituição”, em realizar uma interpretação constitucional de forma a evitar contradições entre suas normas;


– princípio da “concordância prática”, ligado ao anterior, consiste numa recomendação para que o aplicador das normas adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum; e


– princípio da “eficácia integradora”, para o qual, na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deverá ser dada maior primazia aos critérios favorecedores da integração política e social, bem como ao reforço da unidade política.


Já o princípio da “razoabilidade” é, na lição de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco[20]:


“[…] uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das idéias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; procede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico.”


Compreendidos esses princípios, entende-se a razão da doutrina rejeitar a ideia de direitos fundamentais absolutos.


Pois bem. Impõe-se observar que a legislação infraconstitucional, se bem entendida, não veda toda e qualquer concessão de tutela de urgência contra a Fazenda Pública. As situações em que o legislador restringiu são pontuais e sem caráter arbitrário ou desarrazoado.


De acordo com o teor das legislações restritivas já citadas neste artigo, percebe-se que elas estão direcionadas essencialmente às demandas condenatórias a uma prestação de pagar quantia certa (a única exceção é a que trata da liberação bens, mercadorias e coisas de procedência estrangeira, prevista na Lei 2.770/56).  Todas as demais demandas propostas em desfavor da Fazenda Pública (fazer, não-fazer e entregar coisa) não sofrem qualquer tipo de limitação, e o universo delas é bastante amplo.


A própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem, inclusive, reconhecido a possibilidade de imposição de astreintes em desfavor do ente público (desde que não extensível ao agente público), a saber:


PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE FAZER. DESCUMPRIMENTO. ASTREINTES. APLICAÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. CABIMENTO. EXTENSÃO DA MULTA DIÁRIA AOS REPRESENTANTES DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE. 1. Conforme jurisprudência firmada no âmbito desta Corte, a previsão de multa cominatória ao devedor na execução imediata destina-se, de igual modo, à Fazenda Pública. Precedentes. 2. A extensão ao agente político de sanção coercitiva aplicada à Fazenda Pública, ainda que revestida do motivado escopo de dar efetivo cumprimento à ordem mandamental, está despida de juridicidade. 3. As autoridades coatoras que atuaram no mandado de segurança como substitutos processuais não são parte na execução, a qual dirige-se à pessoa jurídica de direito publico interno. 4. A norma que prevê a adoção da multa como medida necessária à efetividade do título judicial restringe-se ao réu, como se observa do § 4º do art. 461 do Códex Instrumental. 5. Recurso especial provido.” (REsp 747.371/DF, Rel. Ministro  JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 06/04/2010, DJe 26/04/2010)


O campo de incidência em que as leis limitadoras da tutela antecipada atuam é, pois, bastante diminuto.


E não é só. Além disso, a jurisprudência da Suprema Corte, o que faz com inteiro acerto, tem aplicado uma interpretação restritiva das hipóteses em que o legislador infraconstitucional afasta a possibilidade de tutela de urgência contra a Fazenda Pública. Nesse cenário atual, observa-se a plena aplicação dos princípios da interpretação constitucional, em especial da “unidade da constituição” e da “concordância prática”.  


No que se refere em particular à vedação contida no art. 1º, § 3º, da Lei 8.437/92[21], ela não merece as críticas recebidas com tanta ênfase por parte da doutrina. É que tal restrição também está contida, embora com outras vestes, no art. 273, § 2º, do CPC[22].  A solução para ambos os casos é exatamente a mesma: aplicação do princípio da “razoabilidade”, o que deve ser feito diante do exame do caso concreto pelo magistrado.


Afastadas as causas de natureza previdenciária (súmula 729 do STF) e aquelas cuja natureza da demanda resulta em obrigação de fazer, não-fazer ou entregar causa (salvo a exceção já referida), tem-se que o não-cabimento da antecipação de tutela contra a Fazenda Pública restringe-se: (I) reclassificação ou equiparação de servidores públicos; (II) concessão de aumento ou extensão de vantagens pecuniárias; (III) outorga ou acréscimo de vencimentos; (IV) pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias a servidor público ou (V) esgotamento, total ou parcial, do objeto da ação, desde que refira-se, exclusivamente, a qualquer das matérias acima referidas.                          


São situações essas, de fato, que dificilmente a vedação legal ao deferimento da tutela de urgência ao servidor público possa gerar a negação completa ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF/88).


É que ao servidor público somente é negado, por meio da tutela de urgência, o aumento do padrão remuneratório. Mantido fica, pois, o seu status quo ante.  


Oportuna é a lição do jurista Daniel Sarmento[23] acerca da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, em especial na perspectiva de que muitas vezes ela serve para motivar algumas limitações em benefício de todos:


Assim, cumpre destacar, na esteira da lição de Robert Alexy[24], que o reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais não significa desprezo à sua dimensão subjetiva, mas reforço a ela. A dimensão objetiva complementa a subjetiva e agrega-lhe uma ‘mais valia’[25], conferindo proteção reforçada a tais direitos, por meio de esquemas que transcendem a estrutura relacional típica dos direitos subjetivos.


Por outro lado, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais presta-se muitas vezes para justificar certas limitações que lhes são impostas, em prol de interesses da coletividade. A dimensão objetiva se liga, nesse sentido, à idéia de que os direitos fundamentais devem ser exercidos no âmbito da vida societária e que a liberdade a que eles aspiram não é anárquica, mas social. Assim, necessidades coletivas são relevantes para a conformação do âmbito de validade dos direitos fundamentais e podem justificar restrições, respeitados o núcleo essencial e o princípio da proporcionalidade.


Isso não autoriza, no entanto, a funcionalização dos direitos fundamentais em prol de interesses da coletividade,  numa postura organicista e antiliberal. O referencial subjetivo dos direitos – a “medida de todas as coisas” (Protágoras) – é ainda o homem, e não o grupo social, muito embora já não se trate aqui do indivíduo isolado – “mônada ensimesmada” nas irônicas palavras de Marx –, mas de um ser enraizado e situado.”


Tem-se, pois, que a declaração de inconstitucionalidade das restrições legais à tutela de urgência contra a Fazenda Pública esvazia, por inteiro, os princípios do direito financeiro já apontados neste estudo, desconsidera as peculiaridades que marcam o modelo da execução contra o ente público (precatório), da garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório, além do devido processo legal. E mais: a concessão, mediante tutela de urgência, de novo padrão remuneratório ao servidor público traz prejuízo ao patrimônio público, na medida em que haverá dificuldades[26] depois na restituição dos valores pagos indevidamente no curso da lide.       


4 – CONCLUSÕES


Do exame dos tópicos precedentes, extrai-se que o Supremo Tribunal Federal, mediante o julgamento da ADI-MC n. 223 e da ADC n. 4, além de diversas Reclamações, tem dado a correta interpretação das leis infraconstitucionais que limitam a tutela de urgência contra a Fazenda Pública, apesar da veemente crítica de parcela ponderável da doutrina.


Isso porque a Suprema Corte, apesar de declarar a constitucionalidade dessas citadas leis, o faz nos seus devidos termos: interpretando de forma restritiva as hipóteses nelas contempladas.


Posições extremadas (tanto pela completa inconstitucionalidade quanto pela constitucionalidade sem reservas) acabam por desconsiderar por completo os direitos constitucionais de algum dos litigantes, a depender da posição adotada.


Entretanto, a posição da Suprema Corte, já exposta nas linhas passadas, preserva o núcleo essencial dos direitos fundamentais em aparente colisão, assim como dá correta aplicação aos princípios da interpretação constitucional (no caso deste estudo, o da “unidade da Constituição”, da “concordância prática”, da “eficácia integradora” e da “razoabilidade”). E a decorrência disso é de que não há direitos fundamentais absolutos[27] [28], na medida em que eles encontram limites nos demais direitos igualmente consagrados pelo texto constitucional. O princípio da inafastabilidade do controle judicial deve conviver harmonicamente com os direitos fundamentais da outra parte (no caso, a Fazenda Pública).  


 Tem-se, pois, que, em regra, as limitações constantes nas leis infraconstitucionais acerca da tutela de urgência contra a Fazenda Pública devem ser prestigiadas pelo julgador de origem, pois declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal de Federal mediante controle concentrado (com eficácia contra todos e dotadas de efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal).


Não obstante, as restrições dispostas nessas leis devem ser lidas pelo intérprete de forma literal (sem ampliação), uma vez que elas já limitam em si um direito fundamental do demandante (art. 5º, XXXV, da CF/88).


Além disso, duas outras situações podem ser adotadas pelo julgador para, mesmo quando a causa em julgamento liminar estiver contida nessas restrições legais, conceder a tutela de urgência ao autor da ação: a) estando o pleito em completa sintonia com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal[29]; b) pela aplicação do princípio da razoabilidade[30] diante do caso concreto em julgamento, embora tal princípio seja de difícil aplicação nos casos de novo padrão remuneratório ao servidor público, sendo mais fácil antevê-lo quando envolver restrição à liberação de bens, mercadorias e coisas de procedência estrangeira (Lei n. 2.770/56).      


 


Referências

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Galzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.

CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 6ª ed. São Paulo: Dialética, 2008.

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil, 4ª ed., Salvador: Editora JusPODIM, 2009.

HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 9.ed. São Paulo: Atlas, 2002.

MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado Artigo por Artigo, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª. São Paulo: Saraiva, 2008.

PASSOS, J.J. Calmon. Da Antecipação da Tutela, Reforma do Código de Processo Civil, 3ª edição, São Paulo: Saraiva, 1996.

SARMENTO, Daniel. A Dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In Sampaio, José Adércio Leite (coord.) Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte, Ed.Del Rey, Ano 2003.

ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da Tutela, 6ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008.

 

Notas:

[1] Direitos esses tanto do demandante quanto da pessoa jurídica de direito público demandada.

[2] Não cabe medida possessória liminar para liberação alfandegária de automóvel. 

[3] Revogada pela atual Lei 12.016/09 (disciplina o mandado de segurança).

[4] Decorrentes das Leis nºs 8.622/93 e 8.627/93.

[5] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[…]

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

[6] CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 6ª ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 235-236.

[7] PASSOS, J.J. Calmon. Da Antecipação da Tutela, Reforma do Código de Processo Civil, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.  p. 188-189.

[8] STF, ADI-MC n. 223, Relator(a):  Min. PAULO BROSSARD, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 05/04/1990, DJ 29-06-1990.

[9] Pendente de publicação, mas disponível no Informativo n. 522 do STF (29 de setembro a 3 de outubro de 2008).

[10] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado Artigo por Artigo, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 276-278.

[11] ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da Tutela, 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 203.

[12] Direitos do litigante demandante: a) fazer atuar a função jurisdicional; b) obter uma decisão útil e eficaz. Por sua vez, os deveres são: a) submeter-se à jurisdição, sem recurso à autotutela; b) submeter-se ao cumprimento das cláusulas do devido processo legal.

Direitos do litigante demandado: a) manter os seus bens e direitos, sem restrições, mesmo quando contestados por outrem, enquanto não advier sentença final, produzida em processo regular, à base de contraditório e defesa ampla, que declara que ditos bens ou direitos não lhe pertencem. É a segurança jurídica; b) utilizar todos os meios de contraditório e de defesa, inclusive o de produzir provas e interpor recursos, previstos como inerentes ao devido processo legal. Entretanto, os seus deveres são: submeter-se à jurisdição; b) submeter-se às cláusulas do devido processo legal e à sentença nele produzida.    

[13] DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil, 4ª ed. Salvador: Editora JusPODIM, 2009. p.536.

[14] STF, Min. PAULO BROSSARD, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 05/04/1990, DJ 29-06-1990.

[15] STF, ADC-MC 4, Relator(a):  Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 11/02/1998, DJ 21-05-1999.

[16] Art. 102, I, letra “l”, da CF/88.

[17] 729. A decisão na ação direta de constitucionalidade 4 não se aplica à antecipação de tutela em causa de natureza previdenciária.

[18] Para aprofundamento do tema ler: HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 9.ed. São Paulo: Atlas, 2002.

[19] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.

[20] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 142/143.

[21] Não será cabível medida liminar que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação.

[22] Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.

[23] SARMENTO, Daniel. A Dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In Sampaio, José Adércio Leite (coord.) Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Ed.Del Rey, 2003. págs. 251/314.

[24] ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Galzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.  p. 508.

[25] A expressão é de José Carlos Vieira Andrade (Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998, p. 165).

[26] É bem verdade que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, hoje, considera não-restituível apenas os valores pagos por força de antecipação da tutela nas ações decorrentes de benefícios previdenciárias (Lei n. 8.2113/91). Nas causas de servidores públicos, esse Tribunal Superior entende possível a restituição. A propósito: STJ, AgRg no REsp 913.005/RN, Rel. Ministra  LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 28/08/2008, DJe 29/09/2008; STJ, EDcl no REsp 996.850/RS, Rel. Ministro  ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 04/11/2008, DJe 24/11/2008. 

[27] Nesse sentido:[…] Na contemporaneidade, não se reconhece a presença de direitos absolutos, mesmo de estatura de direitos fundamentais previstos no art. 5º, da Constituição Federal, e em textos de Tratados e Convenções Internacionais em matéria de direitos humanos. Os critérios e métodos da razoabilidade e da proporcionalidade se afiguram fundamentais neste contexto, de modo a não permitir que haja prevalência de determinado direito ou interesse sobre outro de igual ou maior estatura jurídico-valorativa
(STF, HC 93250, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 10/06/2008, DJe-117 DIVULG 26-06-2008 PUBLIC 27-06-2008).[…] Inexistem garantias e direitos absolutos. As razões de relevante interesse público ou as exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades permitem, ainda que excepcionalmente, a restrição de prerrogativas individuais ou coletivas. Não há, portanto, violação do princípio da supremacia do interesse público (STF, RE 455283 AgR, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 28/03/2006, DJ 05-05-2006).

[28] Parcela da doutrina, contudo, aponta que as únicas hipóteses de direito fundamental absoluto são: a proibição da tortura e da sujeição ao tratamento desumano e degradante.  

[29] Considerando, para tanto, que ao Supremo Tribunal Federal compete preservar a sua autoridade de guardião da Constituição, de órgão com legitimidade constitucional para dar a palavra definitiva em temas relacionados com a interpretação e a aplicação da Constituição Federal. Por essa mesma razão, aliás, tem-se atualmente a redação dos arts. 475, § 3º, e art. 741, parágrafo único, ambos do CPC, só para citar duas hipóteses.

[30] Na mesma linha do resultado do julgamento da ADI-MC 223 pelo STF.


Informações Sobre o Autor

Juliano de Angelis

Procurador Federal e Chefe da Seção de Cobrança e Recuperação de Créditos da Procuradoria Seccional Federal de Canoas/RS. Pós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp/REDE LFG.


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