Aspectos destacados acerca da comprovação de três anos de atividade jurídica como requisito para o ingresso na magistratura

I – INTRODUÇÃO

1. A Emenda Constitucional nº 45 atribuiu nova redação ao inciso I do artigo 93 da Constituição, exigindo para o ingresso na magistratura que o bacharel em Direito comprove no mínimo três anos de atividade jurídica. O novo enunciado do referido dispositivo constitucional vem provocando aguda polêmica e desencontros pontuais, tanto na doutrina, quanto no âmbito dos tribunais pátrios, que precisam instaurar novos concursos, a fim de dar provimento aos cargos vagos. O propósito deste artigo é trazer a lume argumentos que possam ajudar os intérpretes a apreender os efeitos do novo inciso I do artigo 93 da Constituição Federal.

2. Registre-se que a Emenda Constitucional nº 45 também atribuiu nova redação ao § 3º do artigo 129 da Constituição Federal, exigindo também para o ingresso no Ministério Público que o bacharel em Direito comprove no mínimo três anos de atividade jurídica, de modo análogo ao inciso I do artigo 93 da Constituição Federal. Assim o sendo, grande parte das considerações tecidas ao longo do presente texto serve ao ingresso na carreira do Ministério Público.

II – DA NÃO AUTO-APLICABILIDADE DO INCISO I DO ARTIGO 93 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL COM A REDAÇÃO DADA PELA EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 45

A Teoria Constitucional é pródiga em classificar as normas constitucionais levando em consideração a aplicabilidade das mesmas, isto é, a possibilidade delas produzirem efeitos práticos.

Sobre o assunto, REGINA MARIA MACEDO NERY FERRARI, com poder de síntese, observa que “sob o ponto de vista de sua aplicabilidade, pode-se identificar as que exprimem, diretamente, uma regra obrigatória, suficiente por si mesma e, por isso, consideradas como autoaplicáveis e as que por não serem bastantes em si mesmas ficam na dependência de outras e são chamadas não auto-aplicáveis.” (Normas Constitucionais Programáticas. São Paulo: RT, 2001. p. 100)

A classificação entre normas autoaplicáveis e normas não auto-aplicáveis remonta ao liminar do constitucionalismo, tanto na doutrina estrangeira, quanto na nacional. A título ilustrativo, THOMAS M. COOLEY já apartava as normas constitucionais self-executing provisions das not self-executing provisions. (A treatise on the constitutional limitations wich rest upon the legislative power os the States of American Union. Boston: Little Brow, 1890. p. 98 -101).

No Brasil, a classificação proposta por JOSÉ AFONSO DA SILVA costuma ser citada à exaustão, dentro da qual destacam-se (a) as normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata; (b) as normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição; (c) e as normas constitucionais de eficácia limitada. Estas últimas, de acordo com o referido constitucionalista, “são de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, porque somente incidem totalmente sobre esses interesses após uma normatividade ulterior que lhes desenvolva a eficácia, conquanto tenham uma incidência reduzida e surtam outros efeitos não-essenciais (…)” (Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1988. p. 82 -83).

Enfim, há normas constitucionais que bastam em si, são auto-aplicáveis, porquanto o enunciado delas não demanda nenhuma espécie de integração legislativa. Noutra banda, há normas constitucionais que não bastam em si, cujo enunciado franqueia espaços em aberto que reclamam integração legislativa, essencial para determinar-lhes o sentido e o alcance.

4. Essa classificação, entre normas auto-aplicáveis e normas não auto-aplicáveis, foi recebida de forma abrangente pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, onde se pode colher uma plêiade de julgados sobre assuntos de extrema relevância, todos no mesmo sentido, por efeito do que se reconhece jurisprudência que se espraia pelos demais tribunais pátrios. Dentre centenas de julgados, leia-se elucidativa passagem da lavra do MINISTRO CELSO DE MELO, cujo teor é o seguinte:

“A superioridade normativa da Constituição traz, ínsita em sua noção conceitual, a idéia de um estatuto fundamental, cujo incontrastável valor jurídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem positiva instituída pelo Estado. Nela, acha-se consubstanciada uma ordem normativa cujo grau de eficácia e aplicabilidade revela-se, no entanto, essencialmente desigual (…)

É, precisamente, o que ocorre com o preceito inscrito no § 3º do art. 192 da Constituição Federal, que configura, na clássica acepção das regras constitucionais de eficácia limitada, uma estrutura jurídica sem suficiente densidade normativa. Sem a legislação integrativa da vontade do constituinte, normas constitucionais – como a de que ora se trata – ‘não produzirão efeitos positivos’ e nem mostrar-se-ão aplicáveis em plenitude, pois ‘não receberam (…) do constituinte normatividade suficiente para a sua aplicação imediata” (Maria Helena Diniz, op. cit., p. 101). Reclamam, em caráter necessário, atos de mediação legislativa, que lhes complemetem o próprio conteúdo normativo.” (grifo acrescido. ADIN nº 4/DF, Voto do Ministro Celso de Melo)

Registre-se que o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL sempre seguiu a mesma exegese, prolatando vários julgados em que reconhece a não autoaplicabilidade de diversos dispositivos constitucionais. Entre outros, confiram-se os seguintes: RE 282954 AgR/SP, AI 279377 AgR-ED/RJ, AI 187925 AgR/MG, RE 227402/ ES, RE 163587 embargos/ RS, RE 216508 / SP, RE 200173/ CE, RE 205556/ RS, ADI 267 MC / DF, AI 352960 AgR/ PR, AI 302935 AgR / PR, RE 241757 AgR/ MA, RE 222698/ RS, ADI 2075 MC/ RJ, RE 194207/ SC

5. Bem se vê que, tanto para a mais abalizada doutrina, quanto para a jurisprudência remansosa do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, existem normas constitucionais auto-aplicáveis, cuja aplicabilidade é imediata e integral, não dependendo de qualquer complementação, e normas constitucionais não auto-aplicáveis, cuja aplicabilidade depende de complementação legislativa, quer porque o constituinte assim o determinou expressamente, quer porque o enunciado dela não é bastante em si mesmo, não agrega densidade normativa suficiente para que ela seja aplicada de forma imediata e integral.

6. Sob esse contexto, salta aos olhos que a norma preceituada no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, de acordo com a redação que lhe foi atribuída por meio da Emenda à Constituição nº 45, não é auto-aplicável. Por oportuno, transcreva-se o inteiro teor do dispositivo em apreço:

“Artigo 93 – Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observando os seguintes princípios:

……….

I – ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação.” (grifo acrescido)

7. Em primeiro lugar, não se pode esquecer, por obediência à interpretação sistêmica, que o supracitado inciso I do artigo 93 da Constituição Federal deve ser interpretado com os olhos no seu caput. Como sabido, os incisos prestam-se a complementar o teor do caput, eles dependem do caput. Por tudo e em tudo, não se pode isolar o inciso do caput.

O ponto nodal é que o caput versa sobre o Estatuto da Magistratura, que é uma Lei Complementar, dispondo sobre as normas e os pressupostos que devem ser observados por ele. Logo, todas as considerações encartadas nos incisos que seguem ao caput do artigo 93 revelam preceitos dirigidos ao legislador, que deverá elaborar novo Estatuto da Magistratura ou adequar o já existente. É de evidência solar que as prescrições dos incisos do artigo 93 da Constituição Federal não visam à aplicação imediata, mas à integração legislativa, devem ser respeitados e previstos pelo legislador. É o legislador quem deve discipliná-los, explicitando o teor deles a fim de dar a eles praticidade e, por via de conseqüência, aplicabilidade.

Trata-se de interpretar de modo literal e sistêmico o que está escrito no caput do artigo 93 e no seu inciso I. É extremamente claro que o enunciado no inciso I do artigo 93 não se reveste de autonomia, depende do caput, da Lei Complementar sobre a Magistratura. O que foi prescrito no inciso I é para ser disciplinado pela Lei Complementar prevista no caput; isto está escrito com todas as letras, de forma indubitável. Daí que, enquanto não sobrevier a referida Lei Complementar, o texto do inciso I do artigo 93 não deve ser aplicado, não lhe é dado produzir efeitos práticos.

8. Em segundo lugar, ainda que os preceitos encartados nos incisos do artigo 93 da Constituição Federal não fossem expressamente dirigidos ao legislador, que deve tratar dos mesmos em Lei Complementar, conforme se depreende de singela leitura, é de concluir que o enunciado do inciso I do artigo em comento não reúne densidade normativa suficiente para que seja aplicado de modo imediato.

Noutras palavras, mesmo que se buscasse equivocadamente apreender o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal de modo isolado, apartando-o artificiosamente do seu caput, cumpre ponderar que o enunciado dele não é o bastante em si mesmo, requer que seja integrado, complementado, para que se lhe possa esclarecer o sentido e o alcance.

9. Em análise ligeira, pode-se dizer que há pelo menos duas questões fundamentais a serem esclarecidas pelo Legislativo em relação ao inciso I do artigo 93 da Constituição Federal. Por ordem:

(A) O dispositivo em apreço condiciona o ingresso na magistratura a três anos de atividade jurídica. No entanto, falta dizer o que é atividade jurídica, que tipo de empreendimento técnico e científico se insere nesta categoria.

Por exemplo, o acadêmico de Direito, desde o momento que ingressa na faculdade, dedica-se, rigorosamente, a uma atividade jurídica, já que o mesmo estuda a ordem jurídica. Mas, será que o termo atividade jurídica, tal qual empregado no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, é tão abrangente? Se não o for, é inevitável reconhecer que o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, no que tange a esse aspecto, demanda integração, ele por si só não é o suficiente, ele não é autoaplicável.

(B) No mesmo passo, infere-se que o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal exige do bacharel em direito três anos de atividade jurídica. Sem embargo, pode haver dúvida se a atividade jurídica exigida do bacharel deve ser posterior ao recebimento do título ou se é permitido computar a atividade jurídica anterior ao recebimento do título, desenvolvidas durante a graduação. Portanto, em mais esse aspecto o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal precisa ser integrado e complementado, pelo que mais uma vez é forçoso reconhecer que o mesmo não é auto-aplicável.

10. Cumpre destacar a que doutrina vem qualificando o enunciado normativo estatuído no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal como não auto-aplicável.

Entre outros, LUIZ FLÁVIO GOMES e OLAVO A. VIANA ALVES FERREIRA observam:

“Atividade jurídica é um conceito que necessita ser delimitado, uma vez que é por demais vago e indeterminado, o que contribui para um estado de incerteza, que, ao nosso ver, deverá ser evitado, cabendo ao legislador defini-lo, aplicando-se o princípio da segurança jurídica.

Tal tese encontra respaldo, outrossim, no princípio da legalidade, segundo o qual somente a lei poderá restringir direitos, não decisão discricionária de comissão de concurso, que definirá o que entende por atividade jurídica. O emprego da expressão ‘no mínimo, três anos de atividade jurídica’ traduz a possibilidade de o legislador ampliar o prazo para interstício maior do que três anos. Mas trata-se de diretriz que só pode ser adotada pelo legislador.

Conclui-se que é imprescindível a edição de Lei complementar para que tal requisito seja exigido. Ademais, a tese ora defendida é compatível com os princípios de razoabilidade e proporcionalidade que decorrem do devido processo legal substancial, já que evitará adoção de interstícios diferentes entre as carreiras do ministério Público e Magistratura dos diversos Estados da Federação, evitando afronta ao princípio da igualdade. (A atividade jurídica como requisito para ingresso nas carreiras do Ministério Público e Magistratura – Eficácia e Aplicabilidade. In. www.proomnis.com.br)

Na mesma linha, HUGO NIGRO MAZZILLI pontifica:

“Está claro que a nova norma não dispensará a devida regulamentação que enfrentará o âmago da questão: com efeito, o que significa, exatamente, exercício de ‘atividade jurídica’?

A nosso ver, seria absurdo e iníquo entender assim. Deve-se esperar que a lei regulamente esta importante matéria, levando em conta situações de incompatibilidade de exercício da advocacia, prevendo, nesses casos, que cursos especiais ou profissionalizantes, possam conferir a experiência prática na atividade jurídica, como desejado pela Emenda Constitucional, sob pena de inadmissivelmente inviabilizar-se o ingresso na Magistratura de diversos candidatos que estejam legalmente impedidos de exercer a advocacia.

Todas essas são questões que supõe regulamentação em âmbito federal, para evitar discrepâncias regionais as quais fariam com que uma exigência nacional fosse interpretada de maneira diferente em cada Estado-Membro, quebrando-se inadimissivelmente a unidade do Direito Federal.” (A prática de “atividade jurídica” nos concursos. In. www.damasio.com.br)

E, para arrematar, o Juiz do Trabalho Substituto IZIDORO OLIVEIRA PANIAGO complementa:

“O caput do artigo já é bastante indicativo da necessidade de regulamentação infraconstitucional vindoura quanto ao requisito em apreço. Ainda que assim não fosse, qualquer tentativa de emprestar-lhe auto-aplicabilidade encontra notórias dificuldades quanto à definição do efetivo alcance da expressão ‘atividade jurídica’

Ante tais reflexões, robustece-se a corrente segundo a qual a exigência de ‘atividade jurídica’, semelhantemente a outros preceitos da EC 45/04, carece de regulamentação (EC, art 7º), observada evidentemente, a peculiaridade de que, no particular, há necessidade de Lei Complementar de iniciativa do STF (CF, art. 93, caput)” (Ingresso na magistratura – Exigência de três anos de “atividade jurídica” – Regulamentação no âmbito trabalhista pelo TST – Inconstitucionalidade. Jornal Síntese. Junho/2005. ano 9, nº 100. p. 10 -11)

11. É certo que o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi atribuída pela Emenda Constitucional nº 45, não é auto-aplicável, já que é destinado à integração legislativa, por meio de Lei Complementar, bem como por si só não agrega densidade normativa suficiente, não é bastante em si, pelo que requer seja complementado e esclarecido.

II – DA INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL DE ATOS ADMINISTRATIVOS QUE PRETENDEM REGULAMENTAR DE MODO AUTÔNOMO O INCISO I DO ARTIGO 93 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

12.  Partindo-se do pressuposto irrefutável de que o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal não é auto-aplicável, demandando complementação, resta afirmar, peremptoriamente, que os tribunais não reúnem competência para fazê-lo, para através de regulamento meramente administrativo, sem qualquer intermediação legislativa, integrar e complementar enunciado constitucional.

13. Essa afirmativa, de que os tribunais não agregam competência para disciplinar de modo autônomo o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, decorre, de maneira incisivamente evidente, do próprio texto do aludido dispositivo constitucional.

Repita-se que o artigo 93 dispõe sobre a Lei Complementar acerca da Magistratura, conhecida como Estatuto da Magistratura, impondo ao legislador o cumprimento de certos preceitos já determinados de antemão no altiplano constitucional, enumerados em seus incisos. Logo, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal dirige-se expressamente ao legislador, responsável pela confecção da Lei Complementar referida no seu caput. É o Congresso Nacional a entidade competente para disciplinar e complementar o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, através de Lei Complementar, não os tribunais, ainda que superiores, por meio de mero ato administrativo.

14. A ausência da Lei Complementar referida no caput do artigo 93 da Constituição Federal não legitima os tribunais a disporem sobre o assunto. A omissão legislativa deve ser corrigida através dos instrumentos constitucionais consagrados na Carta Magna, como, por exemplo, a declaração de inconstitucionalidade por omissão. Os tribunais não reúnem legitimidade para tomar para si, unilateralmente, competência atribuída no altiplano constitucional ao Legislativo.  

15. A propósito, em questão análoga, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL já decidiu o seguinte:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA LIMINAR. DECRETO 1.719/95. TELECOMUNICAÇÕES: CONCESSÃO OU PERMISSÃO PARA A EXPLORAÇÃO. DECRETO AUTÔNOMO: POSSIBILIDADE DE CONTROLE CONCENTRADO. OFENSA AO ARTIGO 84-IV DA CF/88. LIMINAR DEFERIDA. A ponderabilidade da tese do requerente é segura. Decretos existem para assegurar a fiel execução das leis (artigo 84-IV da CF/88). A Emenda Constitucional nº 8, de 1995 – que alterou o inciso XI e alínea a do inciso XII do artigo 21 da CF – é expressa ao dizer que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei. Não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição a exige. A Lei 9.295/96 não sana a deficiência do ato impugnado, já que ela é posterior ao decreto. Pela ótica da maioria, concorre, por igual, o requisito do perigo na demora. Medida liminar deferida. (grifo acrescido. STF, ADI nº 1435 MC/DF, Rel. Min. Francisco Rezek, 07.11.96)”

16. O acórdão supracitado é categórico ao pontificar que ato administrativo não se presta a substituir a lei, não se presta a regulamentar autônoma e diretamente a Constituição Federal. Quem deve disciplinar o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal é o Congresso Nacional, através de Lei Complementar, como demanda o caput do referido artigo. A falta da Lei Complementar não opera transferência de competência aos tribunais pátrios.

17. E tudo isso é mero consectário do fundamental princípio da legalidade, preceituado com força no inciso II do artigo 5º e no caput do artigo 37, ambos os dispositivos da Constituição Federal. Aliás, sobre o princípio da legalidade, leiam-se as autorizadas lições de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:

“Assim, o princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às Leis. Esta deve tão somente obedece-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspede, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito brasileiro (…)

Nos termos do art 5º, II, ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. Ai não sae diz ‘em virtude de’ decreto, regulamento, resolução, portaria ou quejandos. Diz-se ‘em virtude de lei’. Logo, a Administração não poderá proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou impor algo a quem quer que seja. Vale dizer, não lhe é possível expedir regulamento, instrução, resolução, portaria ou seja lá que ato for para coartar a liberdade dos administrados, salvo se em lei já existir delineada a contenção ou imposição que o ato administrativo venha a minudenciar (…)

Nos dois versículos mencionados estampa-se, pois, e com inobjetável clareza, que administração é atividade subalterna à lei; que se subjulga inteiramente a ela; que está completamente atrelada à lei; que sua função é tão só a de fazer cumprir a lei preexistente, e, pois, que regulamentos independentes, autônomos ou autorizados são visceralmente incompatíveis com o Direito brasileiro (…)

O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina. (grifo acrescido. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 85-87)

Seguindo a mesma linha de raciocínio, mais precisamente sobre a impossibilidade de regulamento administrativo disciplinar norma constitucional sem a intermediação de lei, o autor deste artigo já teceu as seguintes considerações:

“Esta distinção fundamenta-se no fato de a função administrativa ser intermediada pela legislação, enquanto a função legislativa decorre diretamente da constituição, sem qualquer esfera de intermediação. Neste contexto, o inciso IV do artigo 84 da Constituição Federal estabelece que compete privativamente ao presidente da República ‘sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução’. Constata-se que a competência regulamentar é sempre sublegal, pendente de lei. Através de comandos abstratos e genéricos, a Administração regulamenta apenas leis, jamais dispositivos constitucionais. A lei é que cria primariamente Direito, sujeitando os indivíduos ao cumprimento de obrigações. O regulamento administrativo serve somente para assegurar a fiel execução das leis, dispondo do modo pelo qual elas devem ser operacionalizadas.” (grifo acrescido. NIEBUHR, Joel de Menezes. O novo regime constitucional da medida provisória. São Paulo: Dialética, 2001. p. 57)

18. Outrossim, em relação aos concursos públicos, o constituinte houve por bem reforçar o conteúdo do princípio da legalidade, como se depreende dos incisos I e II do artigo 37 da Constituição Federal, cujos textos prescrevem:

“os cargos, empregos e funções púbicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;”

“a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação.” (grifo acrescido)

19. Os incisos I e II do artigo 37 da Constituição Federal não deixam margem a qualquer recalcitração ao preceituarem que as condicionantes a serem exigidas em concurso público devem encontrar respaldo em lei. Somente a lei pode fazer discriminações, criando critérios, condições e restrições para o acesso aos cargos públicos. Tais critérios, condições e restrições não podem ser definidos de modo autônomo, através de ato administrativo, de qualquer espécie, ainda que de caráter normativo. Trata-se do princípio da reserva legal, na medida em que esse assunto somente pode ser tratado através de lei em sentido formal, na qualidade de ato emanado pelo Poder Legislativo.

20. Nesse passo, FABRICÍO MOTTA, em texto publicado em obra coletiva em homenagem ao Professor Adilson Abreu Dallari, afirma o seguinte:

“No que diz respeito aos concursos públicos, contudo, é importante relembrar que a Constituição determina que os requisitos para o acesso aos cargos, empregos e funções públicas devem ser estabelecidos em lei. Não se admitem maiores ilações: documentos, inclusive habilitações específicas, testes físicos, exames psicotécnicos, tempo de experiência e idade mínima ou máxima, dentre tantos outros requisitos, somente podem ser exigidos por lei, à qual deve estritamente vincular-se o edital. A lei a que se refere é editada pelo ente político responsável pela criação do cargo, emprego ou função pública.

Em atenção ao princípio analisado, não se admite que qualquer ato normativo editado pela Administração para reger o concurso traga imposições ou estabeleça distinções onde a lei não os fez. Em resumo: o edital que trouxer exigências que não estejam consagradas na lei é ilegal. Obviamente, o conteúdo da lei está sujeito a controle mediante cotejo com os princípios constitucionalmente albergados, notadamente os que regem a atividade administrativa.” (grifo acrescido. Wagner Junior, Luiz Guilherme Costa (org.). Direito público: estudos em homenagem ao professor Adilson Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 321)

21.  Os tribunais também consagram a tese de que somente a lei pode estabelecer critérios, condicionantes e restrições ao acesso a cargo público. Leiam-se, a essa altura, as seguintes ementas:

“Ementa: Constitucional e Administrativo. Mandado de Segurança para assegurar posse em cargo de fiscal do trabalho, não obstante os impetrantes não portarem os graus acadêmicos exigidos em norma editalícia regente do concurso respectivo. Inoperância por inconstitucional, de referida imposição. Supremidade da carta magna.

1. Somente a lei em sentido estrito, ou seja, o ato normativo emanado do Poder Legislativo, tem a virtude de criar restrições de direito ou impor condições, tal como a especificidade da escolaridade de nível superior, para acesso aos cargos públicos, sendo as normas veiculadas através de provimentos subalternos desprovidas de tal potestade.

2. É incompatível com o art. 37, I, da Carta magna a disposição contida no item 3.6 do edital nº 1/94 do Ministério do Trabalho, regente do certame público para o preenchimento de cargos de fiscal do trabalho, que exige a graduação superior em Administração, Direito, Ciências Econômicas ou Ciências Contábeis e Atuariais como requisito ao exercício do referido cargo, eis que tal norma editalícia  não encontra suporte me lei e o Decreto nº 88.355/83 não lhe fornece supedâneo jurídico suficiente, por se tratar de norma meramente executiva.

3. Remessa improvida. Indexação de processo de citação” (grifo acrescido. TRF 5º R., Remessa Ex Officio nº 54687, Processo nº 96.05.12632-0, PB, 1ª T., Rel. Juiz Napoleão Maia Filho (substituto), Data da Decisão: 17.10.1996, Documento: trf500019782, DJ 13.12.1996, p. 96963, decisão unânime).

Ementa: Administrativo. Concurso Público. Não reconhecimento de faculdade.

I. São ilegais as exigências contidas no edital para prestação de concurso público, no que se refere ao não reconhecimento da escola de graduação que estão cursando os impetrantes. O edital faz lei entre as partes desde que haja lei formal que lhe de sustentação, não sendo, portanto, possível a restrição de direito, nem a criação de norma obrigatória que não esteja prescrita em lei; assim, os impetrantes possuem direito líquido e certo de participarem do concurso, sendo ilegais os cancelamentos de suas inscrições.

II. Remessa necessária e recurso improvidos, para manter a sentença. Indexação concurso público, edital, escolaridade” (grifo acrescido. TRF 2ª R., Apelação em Mandado de Segurança, Processo nº 90.02.00484-2, RJ, 1ª T., Rel. Juiz Chalu Barbosa, Data da decisão 21.03.1994, Documento: trf 200020590, DJ 17.05.1994, p. 23160, decisão unanimidade, desprovimento)

22. Aliás, o Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, anteriormente à Emenda Constitucional nº 45, já havia estabelecido por meio de Resolução restrições ao acesso de candidatos aos concursos para Juiz Substituto do Trabalho, que, no final das conas, deu azo à Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1188-0/DF, promovida pelo Ministério Público Federal.

O cerne da referida Ação Direta de Inconstitucionalidade reside na incompetência do Pleno do Tribunal Superior do Trabalho para criar restrições ao acesso a cargo público, dado que, como visto, elas somente poderiam ser criadas por lei.

 Registre-se que, por votação unânime, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL deferiu em parte o pedido formulado na referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, suspendendo as restrições criadas pelo Pleno do Tribunal Superior do Trabalho através de Resolução meramente administrativa. Por oportuno, leia-se excerto extraído do voto do MINISTRO MARCO AURÉLIO:

“Ao primeiro exame, exsurge a relevância da matéria. Realmente requisitos concernentes ao acesso a cargos públicos hão de estar definidos em lei formal. Inexiste diploma legal emanado do Poder Legislativo que imponha, quanto ao acesso à Magistratura do Trabalho, comprovação quer de determinado tempo de prática forense ou que a ela seja equivalente, quer de tempo de graduação no curso de Direito, ou ainda de aprovação em exame psicotécnico ou entrevista. É certo que o artigo 654, §3º, da Consolidação das Leis do Trabalho, ao dispor sobre os concursos públicos de provas e títulos destinados ao preenchimento do cargo de Juiz do Trabalho Substituto, prevê a organização ‘de acordo com as instruções expedidas pelo Tribunal Superior do Trabalho’. Todavia, a previsão legal deve ter alcance perquirido em face à ordem jurídica global. No caso vertente, tem-se que, à primeira vista, as instruções em comento não podem alcançar campo reservado à lei em sentido formal, ou seja, implicar exigências estranhas à própria ordem jurídica. O princípio da legalidade obstaculiza a abrangência emprestada à autorização do § 3º do artigo 654 referido. A assim não se entender, admitir-se-á verdadeira delegação normativa estranha aos contornos da carta política da República.”

23. Explicando melhor: o Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, antes mesmo da Emenda Constitucional nº 45, criou restrições ao acesso a cargo público através de resolução meramente administrativa. A questão foi levada ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, que, à unanimidade, declarou que resolução meramente administrativa, ainda que provenha do Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, não agrega força para criar restrições ao acesso a cargo público. Tais restrições – isso é dito de modo retumbante – somente podem ser criadas por lei em sentido formal, isto é, pelo Poder Legislativo.

24. Por tudo e em tudo, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal não é auto-aplicável e os tribunais não agregam competência para regulamentá-lo de forma autônoma, independente de lei. Quem deve disciplinar o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal é o Congresso Nacional, por meio da Lei Complementar referida no seu caput.

Se não fosse pela dicção transparente do caput do artigo 93 da Constituição Federal, o princípio da legalidade, estampado no inciso II do artigo 5º e no caput do artigo 37, ambos os dispositivos da Constituição Federal, já seria o bastante para objetar qualquer ato administrativo que se propusesse a tanto.

Demais disso, convém enfatizar que o princípio da legalidade, em relação aos concursos públicos, é ainda mais rigoroso, haja vista que os incisos I e II do artigo 37 da Constituição Federal prescrevem, com todas as letras, que somente lei em sentido formal, emanada do Poder Legislativo, pode autorizar critérios, condicionantes e restrições ao acesso a cargo público.

III – DA INTERPRETAÇÃO AMPLA QUE SE DEVE ATRIBUIR À EXPRESSÃO ATIVIDADE JURÍDICA PARA O EFEITO DE LEVAR EM CONSIDERAÇÃO EMPREENDIMENTOS REALIZADOS ANTERIORMENTE À OBTENÇÃO DO TÍTULO DE BACHAREL EM DIREITO

25. Como já afirmado, a Emenda Constitucional nº 45 atribuiu nova redação ao inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, condicionando o ingresso na magistratura a, no mínimo, três anos de atividade jurídica. Para não pairar dúvidas, transcreve-se novamente o inteiro teor do dispositivo:

“Artigo 93 – Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observando os seguintes princípios:

……….

I – ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação.” (grifo acrescido)

26. Como largamente demonstrado, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, não é auto-aplicável, quer por força do seu próprio caput, cujo teor exige expressamente Lei Complementar, quer porque o dispositivo não é bastante em si, não reúne densidade normativa suficiente para ser aplicado sem a complementação legislativa que lhe esclareça o sentido e o alcance. 

27. Outrossim, como também fora largamente demonstrado, os tribunais pátrios não são competentes para regulamentar, via ato administrativo, dispositivos constitucionais sem a imprescindível mediação legislativa. Quem agrega competência e legitimidade para disciplinar o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal é o Congresso Nacional, por meio da Lei Complementar referida no seu caput.

28. Ad argumentantum tantum, ainda que, em equívoco, se considere o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal auto-aplicável, salta aos olhos que aos interessados na carreira da magistratura é permitido computar para efeito de comprovação do interregno mínimo de atividade jurídica os empreendimentos e as realizações jurídicas desenvolvidas por eles antes da obtenção do bacharelado em Direito.

O inciso I do artigo 93 da Constituição Federal estabelece duas restrições aos interessados na magistratura: a primeira é que eles sejam bacharéis em Direito; a segunda é que eles comprovem, no mínimo, três anos de atividade jurídica. Uma condição não depende da outra. Não há nada no texto constitucional que autorize afirmar com objetividade que as atividades jurídicas devem ser desenvolvidas somente após a obtenção do título.   

O constitucionalista ANDRÉ RAMOS TAVARES já se pronunciou sobre esse tópico, tendo assinalado o seguinte:

“A redação do dispositivo pode, contudo, gerar controvérsias interpretativas. Exige-se ‘do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica’ (art. 93, I, da CB). Uma leitura menos atenta poderia levar à conclusão apressada de que se exige o mínimo três anos de atividade jurídica comprovada após o bacharelado para poder ingressar na carreira da magistratura.

Entretanto, atende-se à circunstância de que o dispositivo está a exigir dois requisitos distintos: (i) contar com três anos de atividade reconhecida como jurídica; e (ii) possuir diploma de bacharel. Ambos os requisitos são exigíveis no momento do ingresso da carreira concomitantemente. Mas não há nada que exija a precedência do item (ii) em relação ao (i), ou a concomitância destes no tempo, ou seja, não está dito que é necessário possuir o diploma de bacharel para que se inicie a contagem do prazo mínimo de três anos de experiência.

Como ficou dito, são requisitos concomitantes no ato que determine o ingresso na carreira, mas independentes entre si (qualquer deles pode realizar-se sem a realização do outro requisito, que se agregará supervenientemente).” (Reforma do Judiciário no Brasil Pós-88. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 68)

29. Em caso contrário, pelo prazer de argumentar, admitindo-se a tese de que a atividade jurídica deve ser computada somente após a obtenção do bacharelado, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, seria absolutamente desprovido de razoabilidade, importando em restrição aleatória e despropositada.

Acontece que, ao exigir atividade jurídica, o Congresso Nacional não criou discrimine baseado na idade dos interessados, o que seria algo aleatório. O discrimine estatuído no texto constitucional adotou como referência a experiência do interessado no universo jurídico, por efeito do que requer a comprovação de atividade jurídica. Quer-se, a todas as luzes, aferir a experiência, não meramente a idade.

E, há de se convir, a experiência no universo jurídico não se inicia com a obtenção do título de bacharel em Direito. Antes mesmo do título, o interessado na carreira da magistratura pode agregar experiências jurídicas, que, no final das contas, importam na atividade jurídica demandada no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal.

30. De todo modo, em decorrência do preceito isonômico e da norma estatuída no inciso I do artigo 37 da Constituição Federal, todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país tem o direito de acesso aos cargos públicos, tudo de acordo com os requisitos prescritos em lei. Portanto, há uma regra e uma exceção: a regra é que todos tenham acesso aos cargos públicos; a exceção diz respeito às restrições prescritas em lei.

Sob essa perspectiva, deve-se trazer à colação princípio de hermenêutica segundo o qual a regra deve ser interpretada de modo ampliativo; e a exceção deve ser interpretada como tal, isto é, de modo restritivo. Nos dizeres de CARLOS MAXIMILIANO, “quando as palavras forem suscetíveis de duas interpretações, uma estrita, outra ampla, adotar-se-á aquela que for mais consentânea com o fim transparente da norma positiva.” (Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 314)

Insista-se que a regra é que todos tenham amplo acesso aos cargos públicos, em obséquio ao preceito isonômico e ao inciso I do artigo 37 da Constituição Federal. Então, se determinado enunciado normativo admite duas interpretações, uma que restringe o acesso ao cargo, outra que não restringe, deve-se adotar a segunda interpretação, que é mais compatível com o princípio da isonomia, um dos baluartes da Carta Magna.

31. O inciso I do artigo 93 da Constituição Federal exige do bacharel em Direito que pretende ingressar na magistratura, no mínimo, três anos de atividade jurídica. Pode-se até admitir que há dúvida a respeito da possibilidade de computar a atividade jurídica anterior à obtenção do título de bacharel em Direito ou não.

Se assim for, pode-se reconhecer que existem duas possibilidades de interpretação. Uma que amplia o acesso dos interessados à magistratura, permitindo a eles computar as suas realizações jurídicas anteriores à obtenção do título de bacharel para o efeito de comprovação do tempo mínimo de atividade jurídica; outra que restringe o acesso dos interessados à magistratura, pois somente admite as atividades posteriores à obtenção do título de bacharel para o efeito de comprovação do tempo mínimo de atividade jurídica.

32. Partindo-se do postulado de hermenêutica de que a regra deve ser interpretada de modo amplo e do pressuposto de que a regra é o direito de todos à acessibilidade aos cargos públicos, é imperativo que se interprete o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal no sentido de que é permitido aos interessados na carreira da magistratura comprovarem o interregno mínimo exigido de atividade jurídica através de empreendimentos e realizações qualificadas como jurídicas que sejam anteriores à data da obtenção do título de bacharel em Direito.

Trata-se de levar a cabo raciocínio lógico-dedutivo, de fundo sistêmico e tópico, tomando os princípios da isonomia e o da ampla acessibilidade aos cargos públicos como referência para desnudar o sentido e o alcance da expressão atividade jurídica tal qual disposta no inciso I do artigo 93 da Constituição Federal. Tomando na devida conta os referidos princípios, conclui-se facilmente que se deve atribuir à expressão atividade jurídica percepção ampla, permitindo, insista-se à exaustão, comprová-la através de empreendimentos e realizações jurídicas anteriores à obtenção do título de bacharel em Direito.

33. A propósito, até o advento da Emenda Constitucional nº 45 os tribunais pátrios discutiram com profundidade conceito parecido, de prática forense. Ocorre que, até então, se costumava exigir dos candidatos certo período de prática forense e, por via de conseqüência, as discussões aforaram em relação ao alcance do termo, sobremodo se os interessados poderiam comprovar tempo de prática forense antes da obtenção do título de bacharel em Direito ou não.

Várias decisões foram prolatadas sobre a elasticidade do termo prática forense, especialmente no âmbito do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, que, com estribo no princípio da ampla acessibilidade aos cargos públicos, enfeixado no inciso I do artigo 37 da Constituição Federal, sempre admitiu a comprovação do tempo requerido através de atividades realizadas à época do curso de graduação.

Confira-se elucidativa ementa de acórdão relatado pelo MINISTRO HAMILTON BUENO DE CARVALHO:

“Mandado de segurança. Concurso Público. Advocacia-Geral da União. Prática Forense. LC 73/93. Não comprovação no momento da inscrição. Ordem denegada.

1. É legítima a exigência de prática forense para o ingresso nas carreiras da Advocacia-Geral da União, mas o seu conceito deve ser interpretado de forma ampla, de modo a compreender não apenas o exercício da advocacia e de cargo no Ministério Público, Magistratura ou outro qualquer privativo de bacharel de direito, como também as atividades desenvolvidas perante os Tribunais, os Juízos de primeira instância e até estágios nas faculdades de Direito, doadoras de experiência jurídica.” (grifo acrescido. STJ, MS nº 6742/DF)

Em complemento, leia-se trecho de voto prolatado pelo MINISTRO VICENTE LEAL:

Tenho que o edital em apreço adotou conceito restritivo que não se compadece com o princípio maior da acessibilidade aos cargos públicos (CF, art. 37, I), nem com o conteúdo literal da norma, pois prática forense não significa exercício profissional de advocacia, nem atuação funcional como membro do Ministério Público ou da Magistratura ou em cargo privativo de Bacharel em Direito.

O conceito de prática forense deve ser concebido de forma mais abrangente, compreendendo outras atividades vinculadas ao manuseio de processos no foro, seja como estudante de direito cumprido estágio regular supervisionado, seja como funcionário prestando serviço junto às Secretarias de Varas ou Turmas ou a gabinetes de magistrados.” (grifo acrescido. STJ. MS 6.200/DF)

34. O conceito de prática forense é muito próximo do de atividade jurídica. Ambos se relacionam com a experiência jurídica dos candidatos a concurso público. Semanticamente prática forense é até mais restritivo do que atividade jurídica. Desse modo, como a jurisprudência sempre conferiu elasticidade ao conceito de prática forense, não há motivos para não fazê-lo em relação à atividade jurídica, até porque, reafirma-se, por trás de ambas as expressões estão os mesmos princípios, da isonomia e da ampla acessibilidade aos cargos públicos. Se as expressões são análogas, se os princípios a serem levados em consideração são os mesmos, a interpretação não pode ser discrepante. Não há motivos para que, de cambulhada, se passe a adotar interpretação restritiva em torno do assunto. A mera transposição da expressão prática forense para atividade jurídica não legitima interpretação restritiva.

IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS

35. Por tudo e em tudo, colaciona-se, em síntese e de forma objetiva, as seguintes considerações finais:

Em primeiro lugar, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, não é autoaplicável. Como dito, o preceituado no referido inciso I do artigo 93 é dirigido ao Congresso Nacional, quem deve elaborar a Lei Complementar da Magistratura ou adequar a existente, disciplinando o assunto. Se não fosse por isso, o inciso I do artigo 93, mesmo que analisado isoladamente, não reúne densidade normativa suficiente, não é bastante em si mesmo, pelo que requer ser complementado pelo Legislativo, que deve esclarecer o seu sentido e alcance. Desse modo, como o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal não é autoaplicável e como até agora ele não foi regulamentado por lei, a exigência de 3 (três) anos de atividade jurídica erigida nele cai por terra.

Em segundo lugar, os tribunais não reúnem legitimidade para, através de mero ato administrativo, regulamentar de modo autônomo e direto, sem a imprescindível intermediação legislativa, o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal. Portanto, qualquer ato administrativo nesse sentido é inconstitucional, pois extravasa os lindes da competência regulamentar, em afronta aberta ao princípio da legalidade, estampado no inciso II do artigo 5º, no caput e nos incisos I e II do artigo 37, todos os dispositivos da Constituição Federal. 

Em terceiro lugar, admitindo-se a hipótese de prevalecer entendimento segundo o qual o inciso I do artigo 93 da Constituição Federal é autoaplicável, muito embora manifestamente equivocado, é imperativo que os tribunais levem em consideração as atividades jurídicas realizadas pelos candidatos antes da obtenção do bacharelado, o que encontra respaldo no texto do inciso I do artigo 93 da Constituição Federal e nos princípios tópicos que devem iluminar a sua interpretação, mormente o da isonomia (caput do artigo 5º da Constituição Federal) e o da ampla acessibilidade aos cargos públicos (inciso I do artigo 37 da Constituição Federal).

Florianópolis, 25 de agosto de 2005.


Informações Sobre o Autor

Joel de Menezes Niebuhr

Advogado. Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UFSC. Professor Convidado de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Professor Convidado de Direito Administrativo da Escola do Ministério Público de Santa Catarina. Professor Convidado de diversos cursos de especialização em Direito Administrativo. Autor dos livros “Princípio da Isonomia na Licitação Pública” (Florianópolis: Obra Jurídica, 2000); “O Novo Regime Constitucional da Medida Provisória” (São Paulo: Dialética, 2001); “Dispensa e Inexigibilidade de Licitação Pública” (São Paul: Dialética, 2003) e “Pregão Presencial e Eletrônico” (3. ed. Curitiba: Zênite, 2005), além de diversos artigos e ensaios publicados em revistas especializadas.


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