Resumo: O ativismo judicial é sem dúvida um tema bastante controvertido na seara constitucional, porém é também muito importante. A atuação proativa do Judiciário por vezes se faz necessária à efetivação das garantias e dos direitos constitucionais dos cidadãos. Um dos mecanismos por meio dos quais o Poder Judiciário atua é o sistema de controle de constitucionalidade, que, no Brasil, é híbrido ou eclético, abrangendo tanto a via difusa quanto a via concentrada. É nesse contexto que se evidencia a importância da jurisdição constitucional, que disponibiliza ao operador do Direito instrumentos adequados para que ele aja de maneira efetiva e justa, nos limites estabelecidos pela Constituição Federal. O presente trabalho tem como escopo abordar os principais pontos acerca da jurisdição constitucional, do ativismo judicial e do controle de constitucionalidade. Não se tem a pretensão, aqui, de esgotar os referidos temas, tendo em vista sua extensão e seu grau de aprofundamento, mas tão somente apontar algumas questões importantes que permeiam as discussões atuais.
Palavras-chave: Controle de constitucionalidade; ativismo judicial; sentenças intermedárias normativas; sentenças aditivas; sentenças substitutivas.
Abstract: Judicial activism is undoubtedly a very controversial issue in the constitutional harvest, but it is also very important. The proactive role of the judiciary sometimes is necessary to put into effect the guarantees and the constitutional rights of citizens. One of the mechanisms by which the Judiciary acts is the constitutionality control system, which in Brazil is hybrid or eclectic, covering both diffuse through as concentrated way. It is in this context that highlights the importance of constitutional jurisdiction, which provides the operator with the right tools appropriate for it to act effectively and fairly within the limits set by the Constitution. This work is scoped to address the main points about the constitutional jurisdiction, judicial activism and judicial review. There is no intent here to exhaust the themes, given its extent and degree of depth, but only to point out some important issues that permeate the current discussions.
Sumário: 1. Introdução. 2. A Jurisdição Constitucional. 2.1. O Controle Difuso de Constitucionalidade. 2.2. .Controle Concentrado de Constitucionalidade. 3. O ativismo judicial no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade: a questão das sentenças aditivas e substitutivas no Brasil. 4. Conclusão. Referências
1. Introdução
O ativismo judicial é sem dúvida um tema bastante atual, fonte de opiniões controvertidas e de discussões acaloradas, o que denota sua importância nas searas social e jurídica. É inegável que a atuação proativa do Judiciário por vezes se faz necessária diante da inércia dos Poderes Executivo e Legislativo, que obstaculiza o gozo de direitos fundamentais essenciais à efetivação da dignidade da pessoa humana. Tal atuação, no entanto, encontra limitações próprias do Estado Democrático de Direito, a exemplo do princípio federativo, mas que não estão clara e taxativamente definidas, tendo em vista a prematuridade da situação.
Essa atuação atípica desenvolvida pelo Judiciário tem ganhado espaço no âmago das decisões de controle concentrado de constitucionalidade, as quais, por serem dotadas de efeitos erga omnes e vinculante, possuem especial influência nos rumos a serem trilhados pela sociedade hodierna.
Tendo por base esse contexto social e jurídico, no qual o Poder Judiciário desempenha papel de extrema relevância na definição de questões cotidianas e corriqueiras e na determinação dos rumos tomados pela coletividade, adentrando na seara legislativa e editando normas pela via judicial, torna-se imperioso tratar do tema do ativismo judicial, em especial no tocante às decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, cuja eficácia é erga omnes e vinculante. É o que faremos a seguir.
2. A Jurisdição Constitucional
Com a instituição do movimento denominado neoconstitucionalismo, a Constituição dos Estados foi alçada a uma posição de centralidade nos ordenamentos jurídicos, passando a dispor de força normativa irradiante sobre as demais normas que compõem seus arcabouços normativos.
Diante dessa nova perspectiva, em que todas as normas informadoras da sociedade são interpretadas e aplicadas conforme os vetores apontados pela Carta Magna, realizando-se um verdadeiro filtro constitucional, o conceito de jurisdição vem sofrendo constantes modificações e hoje pauta-se nos princípios que fundamentam o Estado Constitucional Democrático, em que o foco volta-se para dignidade da pessoa humana e a justiça se torna a cada dia mais acessível aos cidadãos.
É nesse contexto de proteção dos direitos do homem que o Judiciário incrementa sua atuação normativa para suprir as lacunas deixadas pelo Legislador, as quais dificultam ou impedem a efetivação das demandas sociais e dos direitos fundamentais. Essa atuação proativa e inovadora, que é chamada pela melhor doutrina de ativismo judicial, tem a cada dia tutelado mais questões do cotidiano da sociedade[1], adentrando inclusive na antes intangível seara de questões políticas[2], eis que tais matérias estavam fora do âmbito de intervenção do Judiciário.
Nesse aspecto, o juiz deixa de ser um mero aplicador da vontade do legislador, dando lugar a um agente de transformação social cuja função primordial é viabilizar a efetivação no maior grau possível dos direitos fundamentais, com base no princípio da máxima efetividade, extraído do artigo 5º, §3º da Constituição Federal, bem como extrair a plenitude atingível das potencialidades do texto constitucional, devendo, no entanto, evitar adentrar o âmbito da livre criação do Direito.
É importante destacar que essa postura ativa, e, por vezes, inovadora avocada pelos membros do Poder Judiciário, muito presente no cotidiano das ações ordinárias, tem ganhado a cada dia mais espaço nas ações específicas do controle concentrado, assumindo, com isso, singular importância para a sociedade brasileira atual, a qual busca com maior frequência a solução de seus anseios e a efetivação de seus direitos por meio da atuação judicial, fenômeno conhecido como judicialização da vida privada.
Retornando ao conceito de jurisdição, tem-se, basicamente, que esta é uma função atribuída a terceiro dotado de imparcialidade para, por meio de um processo, solucionar conflitos que se apresentam em um dado caso concreto, por decisões insuscetíveis de controle externo e aptas a se tornarem indiscutíveis pela coisa julgada material.
No âmbito constitucional, a jurisdição é concretizada por meio de instrumentos de fiscalização da compatibilidade e da obediência das normas do ordenamento para com a Constituição Federal, bem como de efetivação do exercício dos direitos fundamentais previstos nesse documento.
José Afonso da Silva conceitua o processo constitucional como sendo um instrumento jurisdicional de solução de conflitos decorrentes da aplicação das normas constitucionais, cujo objetivo é fomentar o exercício da função da jurisdição constitucional em defesa dos princípios constitucionais, em especial daqueles que dispõem sobre direitos fundamentais[3].
Canotilho, por sua vez, afirma que o processo constitucional consiste no conjunto de regras constitutivas de um procedimento juridicamente ordenado através do qual se fiscaliza jurisdicionalmente a conformidade constitucional de actos normativos[4].
O processo constitucional, portanto, tem como principal objetivo verificar a compatibilidade das normas que compõem o ordenamento jurídico para com a Constituição Federal. Configura, assim, um mecanismo de defesa desse documento supremo, cujos instrumentos têm o condão de invalidar as normas que com ele sejam incompatíveis, que desafiem sua rigidez ou sua supremacia. Ademais disso, como já dito, esse processo se presta a assegurar e a efetivar os direitos materialmente constitucionais (direitos e garantias fundamentais, organização do Estado e separação dos Poderes).
Cumpre pontuar que a aplicação das normas jurídicas não depende de uma verificação prévia de sua constitucionalidade, uma vez que são dotadas de imperatividade e gozam da presunção de conformidade com o texto constitucional, razão pela qual sua aplicação não depende de verificação prévia por parte do Judiciário. Tal presunção, por sua vez, é relativa (juris tantum), sendo passível de invalidação caso reste comprovado que a norma desrespeita a Carta Magna.
Essa verificação de compatibilidade das normas perante a Constituição da República, no Brasil, pode ser realizada tanto pela via difusa quanto pela via concentrada, eis que o sistema brasileiro de controle, um dos mais abrangentes do mundo[5], é o sistema jurisdicional[6], híbrido ou eclético, admitindo ambas as possibilidades.
Em razão da relevância do tema, abriremos tópicos específicos a seguir.
2.1. O Controle Difuso de Constitucionalidade
O controle difuso recebe várias denominações, entre as quais, controle concreto; controle subjetivo; controle incidental (incidenter tantum); controle por exceção ou por defesa; modelo americano de controle (judicial review).
De matriz norte-americana, esse controle teve suas bases teóricas estabelecidas, em 1803, pelo juiz Marshall, com o julgamento do emblemático caso Marbury versus Madison, em que se firmou a supremacia formal da Constituição, ao admitir o afastamento de leis que a contrariassem.
No Brasil, o controle difuso teve início em 1890 com o Decreto nº 848, segundo o qual o juiz só poderia proferir parecer acerca da constitucionalidade de Lei caso fosse provocado. Em 1894, por sua vez, foi criada a justiça federal e previsto que os juízes e os tribunais poderiam apreciar a validade das leis e deixar de aplicá-las no caso concreto quando manifestamente inconstitucionais.
Hoje, no Brasil, o controle difuso pode ser realizado por todo e qualquer órgão do Poder Judiciário (Juiz, Tribunal de 2º Grau, Tribunal Superior e STF), sem a necessidade de serem provocados. Esse controle acontece como um incidente dentro de um processo cujo objeto principal é a tutela de um direito subjetivo pleiteado diante de um caso concreto. A análise da constitucionalidade não é o objeto principal do processo, é apenas a causa de pedir. No curso do processo, a parte solicita ao juiz que excepcione a aplicação da lei no caso, alegando sua inconstitucionalidade e tendo por base a proibição de se aplicar lei inconstitucional. Vale lembrar, ainda, que o juiz pode agir de ofício diante de uma manifesta inconstitucionalidade, não necessitando de provocação das partes.
No Brasil, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos da América, as decisões do controle difuso produzem efeito apenas entre as partes. Esse efeito, no entanto, pode ser estendido para abranger toda a coletividade (erga omnes) mediante atuação facultativa do Senado Federal, conforme atribuição do artigo 52, X, da CF/88[7]. Isso é possível por meio da suspensão, no todo ou em parte, da lei declarada inconstitucional na via difusa.
O Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105, de 16 de março de 2015), em seus artigos 948 a 950, dispõe acerca do procedimento da arguição de inconstitucionalidade no âmbito dos tribunais:
“Novo Código de Processo Civil
Art. 948. Arguida, em controle difuso, a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, o relator, após ouvir o Ministério Público e as partes, submeterá a questão à turma ou à câmara à qual competir o conhecimento do processo.”
Caso a arguição seja rejeitada, o recurso retoma seu curso de julgamento. Em contrapartida, se a Câmara entender pela procedência da alegação, a questão é remetida ao órgão competente para declarar a inconstitucionalidade incidenter tantum[8].
2.2. Controle Concentrado de Constitucionalidade
O controle concentrado é adotado na maior parte dos países europeus e, assim como o controle difuso, recebe várias denominações, entre as quais, controle abstrato; controle em tese; controle principal; controle por via de exceção; e modelo austríaco de controle.
Esse sistema de controle é uma criação de Hans Kelsen para a Constituição da Áustria, no ano de 1920. Nele, as funções de fiscalização e controle ficam concentradas em um único órgão, a Corte Constitucional, que, no caso do Brasil, é o Supremo Tribunal Federal. É um sistema de controle de índole objetiva, ou seja, tem a finalidade de assegurar a proteção da ordem constitucional objetiva e, assim, não conta com partes formais. É exercido por meio de ações específicas em que se argui a inconstitucionalidade de um dispositivo.
O ordenamento jurídico nacional prevê cinco dessas ações: Ação Direta de Inconstitucionalidade Genérica (ADI); Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO); Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva (ADI Interventiva); Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC); e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Todas as ações do controle concentrado têm como objeto a análise da constitucionalidade da norma em abstrato, visando à proteção objetiva da Constituição, e não tendo como intuito a tutela de direito subjetivo.
Por fim, cumpre destacar que a sentença proferida em sede de controle abstrato de constitucionalidade produz efeitos erga omnes, retroativos e vinculantes, de acordo com o artigo 102, §2º, da Constituição Federal.
“Constituição Federal
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
§2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.”
3. O ativismo judicial no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade: a questão das sentenças aditivas e substitutivas no Brasil.
Trataremos aqui das chamadas sentenças intermediárias normativas, termo esse que foi cunhado em 1987, no VII Congresso de Tribunais Constitucionais Europeus[9].
As sentenças intermediárias normativas nada mais são do que as decisões em que o Órgão do Poder Judiciário relativiza o tradicional binômio constitucionalidade/inconstitucionalidade. É dizer, o magistrado vai além da mera declaração de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade de um determinado ato normativo, realizando verdadeira atividade criativa e inovadora (cria norma jurídica geral e abstrata dotada de efeito erga omnes), levando em conta fatores políticos, econômicos, sociais e jurídicos[10]. Há um espectro de possibilidades para os juízes constitucionais.
Grandes exemplos de sentença intermediária normativa são a sentença aditiva e a sentença substitutiva. A primeira delas (sentença aditiva) é verifificada em decisões em que o Poder Judiciário entende que uma determinada norma é inconstitucional por insuficiência dela mesma, de seu conteúdo, mas opta por não declarar sua inconstitucionalidade. Ao invés, amplia seu conteúdo, incrementando-a, completando-a, de modo que a norma, antes inconstitucional por insuficiência, passa a ser constitucional[11].
A sentença aditiva busca abarcar situações olvidadas ou postas de lado pelo legislador ordinário, alargando as hipóteses de incidência da norma e indo além do que inicialmente estava previsto.
Não obstante a tradição brasileira de não haver inovação normativa realizada pelo Poder Judiciário, evidenciada, por exemplo, pelo teor da súmula nº 339 do Supremo Tribunal Federal, a qual preleciona que “não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar os vencimentos de servidores públicos sob o fundamento da isonomia”, há em nosso arcabouço jurisprudencial exemplos de sentenças de caráter aditivo, entre as quais podemos apontas o Habeas Corpus nº 79.812, em que o Supremo Tribunal Federal estendeu às testemunhas nas Comissões Parlamentares de Inquérito o direito de permanecerem caladas, prezando pelos princípios da não autoincriminação e pelo direito ao silêncio.
A segunda espécie de sentença intermediária normativa são as sentenças substitutivas, no bojo das quais o Judiciário invalida uma norma por considerá-la inconstitucional, mas imediatamente a substitui por outra que ele considera adequada.
Pois bem, tais sentenças intermediárias normativas são próprias das ações do controle concentrado de constitucionalidade, as quais desencadeiam decisões de mérito cujos efeitos são dotados de vinculação e possuem aplicabilidade erga omnes. Nesses casos, o Poder Judiciário atua verdadeiramente como órgão legiferante, criando normas jurídicas que se incorporarão o arcabouço legal social, chegando, inclusive, a se tornarem cogentes e obrigatórias em algumas situações.
Ora, diante disso, não há dúvidas de que o Judiciário, assim agindo, usurpa as funções atribuídas constitucionalmente ao Poder Legislativo, o qual é dotado de legitimidade democrática para a criação de normas que determinam o comportamento do grupo social, eis que seus membros são eleitos pela própria população.
Como já pontuamos anteriormente, dita usurpação muitas vezes se mostra imperiosa diante da inércia do Poder Legislativo em editar leis necessárias para o exercício e a efetivação de determinados direitos fundamentais. Entretanto, é imprescindível que sejam estabelecidos limites claros e objetivos para a mencionada atuação judicial, sob pena de sermos expectadores de um indesejado e indevido incremento de poder a quem não possui atribuição para tanto conforme as determinações constitucionais.
4. Conclusão
Em um contexto de constitucionalização dos institutos, efetivação dos direitos fundamentais e promoção da dignidade da pessoa humana, o Judiciário é impulsionado a atuar mais proativamente com vistas a concretizar os valores e fins constitucionais. Esse fomento é decorrente tanto da crise de representação que assola o Brasil nos dias de hoje, em que o Legislativo, por muitas vezes, deixa de atuar, prejudicando ou impedindo, dessa forma, o exercício de direitos individuais e sociais, bem como de uma onda crescente de participação popular nas decisões do Estado e no acesso à justiça.
Ao passo que a sociedade brasileira se socorre ao Judiciário para ver efetivados seus direitos fundamentais, o referido Poder é impulsionado a atuar cada vez mais em uma seara que não é tipicamente sua atribuição constitucional, qual seja, a legiferante. Embora nas circunstâncias atuais a mencionada atuação proativa e inovadora representa uma garantia à coletividade brasileira, ainda se pauta em limitações turvas, sendo imperiosa a definição de limites claros e objetivos para que os magistrados possam desempenhar sua função amparados pela legitimidade democrática e balizados pela razoabilidade.
Posto isso, tendo por base a efetivação dos direitos fundamentais do ser humano de um lado e a segurança jurídica e a separação dos Poderes de outro, encerra-se o presente trabalho com o seguinte pleito: trabalhemos para definir os limites da atuação ativista judicial, em prol da preservação da democracia e do federalismo em nosso país.
Informações Sobre o Autor
Marina Campos Maciel
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG; especialista em Ciências Penais e Criminologia pela Universidade Anhanguera / Uniderp; servidora do Ministério Público de Minas Gerais