Breve reflexão sobre o conceito de direito adquirido

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Artigo atualizado em fevereiro/2014

Resumo: Analisa o conceito de direito adquirido, quer nos seus elementos legais, quer nos seus elementos doutrinários. Após a apresentação do conceito corrente, é realizada a distinção entre o direito adquirido e outros direitos, ou seja, tenta-se constatar o que de fato atribui a qualidade de “adquirido” a um direito. Analisado o conceito, é realizado teste casuístico, de modo a aferir se ele é adequado à solução de alguns problemas práticos rotineiros, permitindo assim uma conclusão sobre o resultado obtido.

Palavras-chave: Direito adquirido. Conceito. Lei. Doutrina. Casuística.

Abstract: This work aims to analyze the concept of right acquired either in their legal elements and in its doctrine. After the presentation of the current concept, it is analyzed the difference between the right acquired and the other rights, i.e, it is tried to get the element which assigns the quality of “acquired” to a right. After examined the concept, it is made a test in cases, which intends to check its capable to solve practical problems.

Keywords: Right acquired. Concept. Law. Doctrine. Cases.

Sumário: 1 O conceito vigente. 2 Reflexão: 2.1 Elementos da doutrina; 2.2 Elementos da lei. 3 Casuística: 3.1 Plano Collor; 3.2 Criação de contribuição previdenciária para servidores aposentados com base na Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003; 3.3 Isenção tributária incondicionada de Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana; 3.4 Alíquota de Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza inferior ao mínimo previsto na Emenda Constitucional nº 37, de 12 de junho de 2002; 3.5 Lei que proíbe operação de compra e venda e contrato já formado; 3.6 Extinção de benefício vitalício de complementação de aposentadoria; 3.7 Alteração dos requisitos para obtenção de aposentadoria; 3.8 Proibição criada por convenção condominial de manter animais domésticos no condomínio; 3.9 Promessa de benefício continuado sem prazo de extinção; 3.10 Extinção de benefício de entrega mensal de cesta básica. 4 Questões pendentes. 5 Conclusão.

1 O conceito vigente

O que é direito adquirido?

O Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942 (BRASIL, 1942), em seu art.6º, § 2º, dispõe:

“Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. […]

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.” (grifo nosso).

A redação legal teria sido influenciada por GABBA, que já era citado nas referências bibliográficas de CLÓVIS BEVILÁQUA (1940, p. 99).

A doutrina continua buscando em GABBA subsídio para conceituar direito adquirido. A propósito, ROQUE ANTONIO CARRAZZA (2005, p. 840):

“[…] que vem a ser direito adquirido?

A resposta a esta intrincada questão é-nos dada, com propriedade, pelo grande Gabba. Ouçamo-lo: “É adquirido cada direito que: a) é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude de a lei do tempo no qual o fato se consumou, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova em torno do mesmo; e que b) nos termos da lei sob cujo império ocorre o fato do qual se origina, passou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu”. (Teoria della Retroavità delle Leggi, Turim, Utet, 3ª ed., 1891, p.191)

No mesmo sentido, MARIA HELENA DINIZ (2001, p. 185) e NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY (2006, p. 259).

Como se vê, extrai-se dessa exposição que uma “lei nova” seria elemento do conceito de direito adquirido. Também entende dessa forma Rubens Limongi França, citado por Diniz (2001, p. 185): “a conseqüência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; conseqüência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto.” (grifo nosso).

Enfim, JOSÉ AFONSO DA SILVA (2006, p. 133) admite que o conceito ainda não é preciso e vem corroborar a adoção de GABBA na doutrina:

“A doutrina ainda não fixou com precisão o conceito de “direito adquirido”. É ainda a opinião de Gabba que orienta sua noção, destacando como seus elementos caracterizadores: (a) ter sido produzido por um fato idôneo para sua produção; (b) ter-se incorporado definitivamente ao patrimônio do titular.”

Ainda segundo a redação da parte final do § 2º do art. 6º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942), também seriam adquiridos aqueles direitos cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

Antes de ingressar na análise dos elementos do conceito de direito adquirido, deve-se ter em mente que os conceitos devem descrever o direito. Não é o direito que tem que se amoldar aos conceitos. Não é o objeto que tem que se adequar à ciência que o estuda (GORDILLO, 1977, p.13, apud SUNDFELD, 1996, p. 125).

Assim, pode-se sintetizar os seguintes elementos citados na doutrina:

a) produção por fato idôneo;

b) incorporação definitiva ao patrimônio de seu titular;

c) surgimento de lei nova.

No Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942), por sua vez, encontra-se o seguinte:

a) ser exercitável ou ter seu exercício dependente de termo ou condição pré-estabelecida inalterável ao arbítrio de outrem.

Necessário, então, analisar esses elementos para que se verifique seu alcance e sua relação com o conceito.

2 Reflexão

2.1 Elementos da doutrina

Os elementos que a doutrina menciona sem que estejam na expressão da lei devem ser tratados com cautela, para se verificar sua perfeita adequação ao ordenamento.

Sobre o primeiro elemento mencionado pela doutrina, ou seja, ser produzido por fato idôneo, salvo melhor juízo, diz respeito a qualquer direito, e não apenas ao direito adquirido.

Antes de ser produzido, direito não há. Se o fato produtor não é idôneo, direito também não nasce.

“Idôneo”, segundo o dicionário, é ‘adequado, próprio, que convém perfeitamente’ (HOUAISS, 2001, p.1.567).

Então, não se nega a necessidade de haver um fato idôneo a produzir o direito adquirido, pois todo direito pressupõe um fato gerador. Contudo, não se pode perder de vista que apenas esse fato idôneo não é suficiente para a caracterização do direito.

Como segundo elemento, cita-se a incorporação definitiva do direito ao patrimônio do sujeito.

Aqui, cabe ressaltar que há direitos cuja aquisição não se dá de forma instantânea, o que enseja aquilo que se chama de expectativa de direito. Nas palavras de ORLANDO GOMES (1988, p. 130),

“Mas, a aquisição de um direito nem sempre se dá em conseqüência de fato jurídico que a provoque instantaneamente. Há direitos que só se adquirem por formação progressiva, isto é, através da seqüência de elementos constitutivos, de sorte que sua aquisição faz-se gradativamente. Antes do concurso desses elementos, separados entre si por uma relação de tempo, o direito está em formação, podendo o processo constitutivo concluir-se, ou não. Forma-se quando o último elemento advém.

Se já ocorreram fatos idôneos a sua aquisição, que entretanto depende de outros que ainda não aconteceram, configura-se uma situação jurídica preliminar, um estado de pendência, que justifica, no interessado, a legítima expectativa de vir a adquirir o direito em formação. A essa situação denomina-se expectativa de direito, em razão do estado psicológico de quem nela se encontra”. (grifos do original)

Seja de forma instantânea, seja após superada uma expectativa, há um momento em que o direito ingressa no patrimônio.

Segundo CLÓVIS BEVILÁQUA (1940, p. 101), “acham-se no patrimônio os direitos que podem ser exercidos, como, ainda, os dependentes de prazo ou de condição preestabelecida, não alterável ao arbítrio de outrem.”

O que não ficou claro é quando essa incorporação é definitiva. Esse esclarecimento será buscado no próximo tópico.

Antes, será feita a análise do último elemento mencionado pela doutrina, ou seja, o surgimento de lei nova.

Esse elemento, com a devida vênia, não pode integrar o conceito de direito adquirido.

Aliás, a própria redação do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal parece demonstrar isso: “Art. 5º…[…] XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (BRASIL, 1988).

Ora, se a lei não pode prejudicar direito adquirido, significa que o direito adquirido já existe antes da lei, de modo que esta não é componente de seu conceito.

A lei nova apenas tende a trazer diversas questões envolvendo direitos adquiridos, mas isso não quer dizer que ela seja elemento desse conceito.

Aliás, pode ocorrer uma situação em que a questão da permanência do direito seja posta mesmo sem o advento de uma lei nova. Basta imaginar o exemplo de uma convenção de condomínio que permita aos condôminos terem animais domésticos. Passado um tempo, há uma assembléia em que se decide por proibir a presença de animais. Nessa hipótese, mesmo sem ter havido uma lei nova, surgiria controvérsia em torno da existência ou não de direito adquirido.

Outro elemento que convém mencionar é o enquadramento do direito adquirido como direito subjetivo, ou, nas palavras de JOSÉ AFONSO DA SILVA (2006, p. 133-134), seria a transmutação do direito subjetivo, que, quando não exercitado, permanece apesar do advento de lei nova:

“Para compreendermos um pouco melhor o que seja o direito adquirido, cumpre relembrar o que se disse acima sobre o direito subjetivo: é um direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente. Se tal direito é exercido, foi devidamente prestado, tornou-se situação jurídica consumada (direito consumado, direito satisfeito, extinguiu-se a relação jurídica que o fundamentava). Por exemplo, quem tinha o direito de se casar de acordo com as regras de uma lei, e casou-se, seu direito foi exercido, consumou-se. A lei nova não tem o poder de desfazer a situação jurídica consumada. A lei nova não pode descasar o casado porque tenha estabelecido regras diferentes para o casamento.

Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se ao seu patrimônio, para ser exercido quando lhe convier. […] Vale dizer – repetindo: o direito subjetivo vira direito adquirido quando lei nova vem alterar as bases normativas sob as quais foi constituído.” (grifos do original)

Então, o fato de poder ser exercido é essencial para a qualificação do direito como direito adquirido. Mas aqui já se ingressa nos elementos que a lei menciona.

2.2 Elementos da lei

Segundo o § 2º do art. 6º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942), direito adquirido é o direito exercitável. Esse exercício, ainda segundo referido dispositivo legal, pode ser imediato ou depender de termo prefixo ou condição preestabelecida inalterável a arbítrio de outrem.

Inicialmente, convém analisar o que é exercer o direito. Para tanto, convém distinguir entre direitos reais e pessoais, de modo a tornar a análise mais específica.

Sobre essa diferenciação, eis a doutrina de ORLANDO GOMES (1988, p. 122):

“Predomina a distinção baseada no modo de exercício do direito. O direito real se exerce numa coisa, sem intervenção de outra pessoa. O direito pessoal, por intermédio de outra pessoa, a quem incumbe satisfazer determinada prestação, positiva ou negativa; seu objeto é essa prestação, isto é, obrigação de alguém dar, fazer ou não fazer alguma coisa, como esclarece Henri de Page, observado que, mesmo nas obrigações de dar, o direito de crédito não recai na coisa, mas visa à sua obtenção. Um é jus in re, o outro jus ad rem.” (grifos do original)

Tomando-se como exemplo o direito real de propriedade, seu exercício consiste no uso de quaisquer das faculdades inerentes ao domínio, ou seja, uso, gozo, alienação do bem e seqüela, segundo o disposto no art. 1.228 do Código Civil: “Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” (BRASIL, 2002).

Já no caso dos direitos pessoais, diz-se que se possui direito em relação a uma pessoa, que, em contrapartida, deve uma prestação. Note-se aqui que a exigência do cumprimento da prestação, ou seja, o exercício da pretensão se enquadra como exercício do direito em si. Vale lembrar que pretensão “é o poder do titular do direito subjetivo de exigir uma ação ou uma omissão de quem deve praticá-la ou de quem deve abster-se” (GOMES, 1988, p. 113). Além disso, ainda que não se tenha recebido o objeto da prestação, conforme o caso, pode-se, por exemplo, ceder o crédito. Infere-se, pois, que o crédito já integra o patrimônio, uma vez que, nemo plus juris transferre potest, quam ipse habet [ninguém pode transferir mais direito do que tem] (tradução livre).

Nessa linha, fica evidenciado que o direito a uma prestação é apenas uma faceta do direito pessoal. A exigência da prestação está para o direito pessoal da mesma forma que o direito de seqüela está para o direito real.

GALVÃO TELLES (apud NERY JUNIOR; NERY, 2006, p. 259) menciona ainda o conceito de direito potestativo, categoria que se coloca ao lado dos direitos a uma prestação:

“Diz-se direito potestativo a faculdade que o sujeito tem de produzir efeitos jurídicos mediante declaração de vontade sua, em certos casos integrada por decisão judicial (v.g., divórcio litigioso). A essa faculdade corresponde, da parte daquele contra quem ela se exerce, um estado de sujeição, consistente em ficar submetido aos efeitos jurídicos produzidos, sem concorrer para eles e sem a eles poder opor-se”. (grifos do original)

Exercer o direito, diante do que foi dado, é concretizá-lo, é fazer uso das faculdades a ele inerentes.

Contudo, seja no direito pessoal ou no real, seja no direito a uma prestação ou no direito potestativo, é preciso questionar-se se o simples fato de um direito ser exercitável lhe confere a natureza de “direito adquirido”.

Tome-se, como exemplo, a possibilidade que existe de se adquirir determinado gênero alimentício. Não havendo lei que proíba essa aquisição, existe um direito exercitável, pois a Constituição (BRASIL, 1988), em seu art. 5º, II, dispõe:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”

Se um sujeito ingressa em um estabelecimento para adquirir uma mercadoria, o fornecedor não pode se negar a fornecê-la, ainda que o contrato de compra e venda seja um negócio jurídico bilateral, ou seja, exija vontade de ambas as partes para sua formação. É o que decorre do disposto no art. 7º, VI, da Lei nº 8.137, de 1990 (BRASIL, 1990):

“Art. 7º Constitui crime contra as relações de consumo: […]

VI – sonegar insumos ou bens, recusando-se a vendê-los a quem pretenda comprá-los nas condições publicamente ofertadas, ou retê-los para o fim de especulação;”

Todavia, nota-se que é possível uma lei vir a proibir a comercialização desse produto, por exemplo, com fundamento em que seria prejudicial à saúde. Logo, o fato de um direito ser exercitável, embora necessário, não é suficiente para torná-lo adquirido, ainda que se alegue que essa nova lei não possa vir a prejudicar as aquisições já consumadas.

Chega-se à conclusão de que a característica do conceito de direito adquirido que o diferencia dos demais direitos subjetivos, incorporados ao patrimônio do sujeito, exercitáveis, de imediato ou cujo começo do exercício dependa de termo prefixado ou condição preestabelecida inalterável ao arbítrio de outrem, é o fato mesmo de ser inalterável.

Aqui, cabe uma crítica ao conceito legal, pois o § 2º do art. 6º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942) diz que o “termo prefixo, ou condição preestabelecida” seja inalterável ao arbítrio de outrem. Mas não diz que o próprio direito seja inalterável e também não informa quando o termo ou a condição são inalteráveis. O que torna, pois, esse direito inalterável? O que o protege de eventuais prejuízos advindos de um ato jurídico posterior, ainda que emanado do Estado?

Assim, o que se tem por fundamental é perquirir o que torna o direito imutável. Da mesma forma, o que torna inalterável o termo ou a condição que subordina o exercício de um direito.

Aliás, o nome direito adquirido é inadequado. Quando se diz “direito adquirido”, a intenção é significar inalterabilidade do direito e não que o direito simplesmente tenha entrado no patrimônio do sujeito.

O fundamento do direito adquirido é dar sentido às legítimas expectativas surgidas das manifestações de vontade, bem como assegurar equilíbrio das relações jurídicas. Qualquer manifestação de vontade prometendo algo a outrem gera direito adquirido? Não. Pode gerar direito, mas não lhe dá necessariamente o atributo de “adquirido”.

O direito adquirido é aquele cujo exercício não pode ser obstado pela vontade de outrem, inclusive pela vontade da lei. Se tal direito pode ser extinto pela vontade alheia, não se trata de direito adquirido.

Então, numa tentativa de responder a questão acima, pode-se dizer que não se poderá extinguir o direito ou alterar o termo ou condição que subordina o início de seu exercício quando presentes dois elementos: a) houver expectativa legítima de sua permanência; e b) determinação temporal do direito.

O que é “legítimo” varia no tempo e no espaço, só se aferindo através de um juízo de valor, que pode ser obtido com base na boa-fé objetiva que rege os negócios jurídicos (REALE, 2006), nos termos do art. 113 do Código Civil: “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.” (BRASIL, 2002)

A boa-fé ainda é mencionada nos art. 187 do Código Civil, “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”, e 422, “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” (BRASIL, 2002) (grifos nossos).

Nas palavras de CARLOS ROBERTO GONÇALVES (2007, p. 35):

“Todavia, a boa-fé que constitui inovação do Código de 2002 e acarretou profunda alteração no direito obrigacional clássico é a objetiva, que se constitui em uma norma jurídica fundada em um princípio geral do direito, segundo o qual todos devem comportar-se de boa-fé nas suas relações recíprocas. Classifica-se, assim, como regra de conduta. Incluída no direito positivo de grande parte dos países ocidentais, deixa de ser princípio geral de direito para transformar-se em cláusula geral de boa-fé objetiva. É, portanto, fonte de direito e de obrigações”. (grifos do original)

Segundo a boa-fé objetiva, vige o princípio de que a lei não pode retroagir, mas tem eficácia imediata em relação a fatos futuros e pendentes. Nessa linha, NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY (2006, p. 28) trazem ensinamento esclarecedor, cuja transcrição, conquanto longa, é obrigatória:

“Não se pode confundir, portanto, a eficácia imediata que toda lei nova tem, atingindo os negócios jurídicos em curso a partir de sua entrada em vigor, com retroatividade da lei, proibida pelo sistema conforme disposto na CF 5º, XXXVI, e LICC 6º, caput. […] Quando entra em vigor nova lei revogando a anterior, o sistema retira do mundo jurídico a lei antiga e não mais permite que produza efeitos, salvo as exceções que expressamente constem da Constituição ou do novo sistema legal revogador. Para os contratos já executados, isto é, cujo objeto já se esgotou no tempo e no espaço, a nova lei não tem o quê atingir, pois o contrato já se encontra pronto, acabado e executado. Nesse caso, mudada a regra do negócio pela nova lei, não existe a possibilidade de, por exemplo, repetir-se aquilo que, segundo aquela, teria sido pago indevidamente no sistema da lei revogada (que permitia referido pagamento). […] É nisso que reside a proteção constitucional (CF 5º, XXXVI) e legal (LICC 6º, caput) do ato jurídico perfeito: impossibilidade de a lei nova atingir o que foi praticado no regime da lei revogada. Só isso e nada mais. Com outras palavras, podemos dizer que o sistema constitucional brasileiro não adotou a imunidade absoluta do negócio celebrado pela lei revogada”. (grifos do original)

Diante disso, fica claro no exemplo sobre o advento de lei que proíbe a comercialização de um determinado produto que não era legítimo esperar a permanência desse direito, pois a própria Constituição permite que uma lei crie uma proibição, mormente quando vise a proteger a saúde e a vida. O direito adquirido, destarte, decorre do pacta sunt servanda, da mesma forma que o ato jurídico perfeito, e busca equilibrar as relações sociais.

O outro elemento apontado, a determinação temporal do direito, também é indispensável. Sem ele, há indeterminação e, portanto, em princípio, não se pode dizer que vigorará a legítima expectativa de permanência.

Essa mesma noção e esse mesmo espírito estão presentes na formação dos contratos, mas principalmente nas promessas. Nessas, a fixação de prazo de validade têm importância fundamental, chegando o Código Civil (BRASIL, 2002), no art. 856, a afirmar que, se o promitente fixar prazo para o cumprimento de requisitos como condição a uma recompensa, “entender-se-á que renunciou ao arbítrio de retirar”, durante esse prazo, a oferta. Da mesma forma, no art. 859, há exigência de fixação de prazo de nos concursos com promessa pública para terem validade.

Partindo, assim, das premissas estabelecidas até aqui, é de rigor seu confronto com alguns casos práticos para verificar sua adequação.

3 Casuística

3.1 Plano Collor

Em 1990, foi lançado um plano econômico que, em suma, bloqueou parte das aplicações em poupança e alterou o índice de correção monetária utilizado na sua remuneração. Foi o chamado Plano Collor.

O Supremo Tribunal Federal (STF), no RE 206.048, por meio de seu Pleno, assim se pronunciou:

“EMENTA: Constitucional. Direito Econômico. Caderneta de poupança. Correção Monetária. Incidência de Plano Econômico (Plano Collor). Cisão da caderneta de poupança (MP 168/90). Parte do depósito foi mantido na conta de poupança junto à instituição financeira, disponível e atualizável pelo IPC. Outra parte – excedente de NCz$ 50.000,00 – constituiu-se em uma conta individualizada junto ao Bacen, com liberação a iniciar-se em 15 de agosto de 1991 e atualizável pelo BTN Fiscal. A MP 168/90 observou os princípios da isonomia e do direito adquirido. Recurso não conhecido.” (BRASIL, 2001).

Do voto vencedor do ministro Nelson Jobim, colhem-se as seguintes passagens:

“Observo que não houve modificação intercorrente de índice.

O BTN Fiscal passou a ser o índice de atualização somente quando o excedente a NCz$50.000,00 se encontrava, no Bacen, creditado na conta BANCO CENTRAL – RESERVAS COMPULSÓRIAS EM ESPÉCIE (CIRCULAR 1.602, 18/3/1990, art. 3º).

Isso somente ocorreu após a atualização pelo IPC, ao fim do trintídio.[…]

Não houve aplicação de “[…] lei nova, modificadora do índice de correção e dos juros da caderneta de poupança, no período em curso, aos depósitos existentes”, hipótese de jurisprudência referida no VOTO DO RELATOR (Voto, fls. 14).[…]

A MP 168/90 e sua LEI DE CONVERSÃO asseguram a correção monetária, ao término do período de trinta dias, de acordo com as regras vigentes no início do trintídio.[…]

No PLANO COLLOR, até a data do primeiro aniversário pós-PLANO, obedeceu-se a atualização das contas pelas regras vigentes no momento do início do trintídio.

O direito adquirido foi respeitado quando do crédito do primeiro rendimento pós-PLANO.[…]

Não se trata de aplicação de regra nova à depósito cujo ciclo de trinta dias tenha se iniciado antes de sua vigência.” (BRASIL, 2001)

A jurisprudência se consolidou no verbete 725 da súmula do Supremo:

“Súmula 725

É constitucional o § 2º do art. 6º da Lei 8024/1990, resultante da conversão da Medida Provisória 168/1990, que fixou o BTN Fiscal como índice de correção monetária aplicável aos depósitos bloqueados pelo Plano Collor I.” (BRASIL, 2003)

De fato, partindo-se da premissa de que a caracterização de direito adquirido necessita de o elemento “ser exercitável”, conclui-se que não haveria direito adquirido antes de haver o aniversário da caderneta de poupança, pois antes disso o depositário não tem direito ao crédito da remuneração.

Mas o Plano não poderia, segundo esse raciocínio, atingir os montantes de juros e correção já creditados aos depositantes.

3.2 Criação de contribuição previdenciária para servidores aposentados com base na Emenda Constitucional nº 41, de 19 de novembro de 2003

A Emenda Constitucional nº 41, de 2003 (BRASIL, 2003), criou o dever de os servidores aposentados contribuírem com seu regime de previdência. O STF entendeu que não havia direito adquirido à imunidade tributária sobre os proventos de aposentadoria (BRASIL, 2005):

“EMENTAS: 1. Inconstitucionalidade. Seguridade social. Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. Ofensa a direito adquirido no ato de aposentadoria. Não ocorrência. Contribuição social. Exigência patrimonial de natureza tributária. Inexistência de norma de imunidade tributária absoluta. Emenda Constitucional nº 41/2003 (art. 4º, caput). Regra não retroativa. Incidência sobre fatos geradores ocorridos depois do início de sua vigência. Precedentes da Corte. Inteligência dos arts. 5º, XXXVI, 146, III, 149, 150, I e III, 194, 195, caput, II e § 6º, da CF, e art. 4º, caput, da EC nº 41/2003. No ordenamento jurídico vigente, não há norma, expressa nem sistemática, que atribua à condição jurídico-subjetiva da aposentadoria de servidor público o efeito de lhe gerar direito subjetivo como poder de subtrair ad aeternum a percepção dos respectivos proventos e pensões à incidência de lei tributária que, anterior ou ulterior, os submeta à incidência de contribuição previdencial. Noutras palavras, não há, em nosso ordenamento, nenhuma norma jurídica válida que, como efeito específico do fato jurídico da aposentadoria, lhe imunize os proventos e as pensões, de modo absoluto, à tributação de ordem constitucional, qualquer que seja a modalidade do tributo eleito, donde não haver, a respeito, direito adquirido com o aposentamento. 2. Inconstitucionalidade. Ação direta. Seguridade social. Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária, por força de Emenda Constitucional. Ofensa a outros direitos e garantias individuais. Não ocorrência. Contribuição social. Exigência patrimonial de natureza tributária. Inexistência de norma de imunidade tributária absoluta. Regra não retroativa. Instrumento de atuação do Estado na área da previdência social. Obediência aos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, bem como aos objetivos constitucionais de universalidade, equidade na forma de participação no custeio e diversidade da base de financiamento. Ação julgada improcedente em relação ao art. 4º, caput, da EC nº 41/2003. Votos vencidos. Aplicação dos arts. 149, caput, 150, I e III, 194, 195, caput, II e § 6º, e 201, caput, da CF. Não é inconstitucional o art. 4º, caput, da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, que instituiu contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e as pensões dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações. […]” STF, Pleno, ADI 3105 / DF, Relator Min. ELLEN GRACIE, Relator p/ Acórdão Min. CEZAR PELUSO, j. 18/08/2004, m.v., DJ 18-02-2005 p. 4

Tendo em mente o conceito de direito adquirido elaborado, pode-se ver que o STF concluiu não ter havido sua violação, pois não foi prejudicado o direito de aposentadoria em si.

Adotou-se o entendimento de que o que houve foi o exercício do direito da União de instituir tributo, o que seria compatível com o direito adquirido à aposentadoria.

3.3 Isenção tributária incondicionada de Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana

Suponha-se que uma lei entre em vigor estabelecendo uma isenção incondicionada de Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), aplicando-se aos fatos geradores ocorridos a partir de janeiro de 2006. Se, em junho de 2006, houver revogação, como fica a situação no que diz respeito ao direito adquirido? Antes de qualquer coisa, convém mencionar que a doutrina costuma afirmar que nesse caso não há direito adquirido (CARRAZZA, 2005, p. 836).

Devem-se separar, em primeiro lugar, os fatos geradores ocorridos durante o vigor do benefício e aqueles ocorridos após os efeitos da revogação. Com relação aos fatos geradores futuros, o benefício ainda não pode ser exercitado, de modo que não se enquadraria no conceito de direito adquirido. No que diz respeito aos fatos geradores já ocorridos, os contribuintes não podem ser atingidos. Se for exigido o IPTU de 2006, poderá ser pleiteado administrativamente ou judicialmente a declaração de inexistência do débito.

Questiona-se, contudo, por que motivo nesse caso pode haver a supressão do benefício no que diz respeito aos fatos geradores futuros. Analisando-se o caso sob o prisma da legítima expectativa de acordo com os ditames da boa-fé objetiva, verifica-se que nesse caso não se pode pretender sua manutenção eterna, principalmente porque não houve fixação de prazo de vigência da isenção.

Sabe-se que o benefício só dura enquanto permanece a base legal que o garante, pois essa mesma lei não foi feita para valer para sempre, bem como não especificou o termo final do benefício. A única garantia é o princípio da anterioridade, de modo que, revogado o benefício, somente os fatos geradores do exercício seguinte à revogação é que gerarão obrigações tributárias exigíveis, conforme art. 104, III, do Código Tributário Nacional (CTN):

“Art. 104. Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda:[…]

III – que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178.” (BRASIL, 1966)

Até o fato de o CTN prever expressamente acerca da revogação da isenção demonstra a possibilidade de sua extinção, o que afasta a expectativa da permanência eterna do benefício.

3.4 Alíquota de Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza inferior ao mínimo previsto na Emenda Constitucional nº 37, de 12 de junho de 2002

No município de Barueri (SP), foi editada uma lei em 1997 que assegurou inalterabilidade da alíquota do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) para certas atividades, por um período de dez anos. A alíquota desse município era relativamente baixa se comparada com a de outros municípios da região. A Emenda Constitucional nº 37, de 2002 (BRASIL, 2002), determinou que a alíquota mínima desse imposto seria de 2%, alíquota essa maior do que as estabelecidas no município de Barueri. Em parecer colegiado da procuradoria do município, entendeu-se que havia direito adquirido à inalterabilidade de alíquota aos contribuintes já estabelecidos na cidade e regularmente inscritos na data da publicação da emenda.

Embora tenha sido duramente criticado tal parecer, sob alegação de não haver direito adquirido na área tributária, o município adotou o posicionamento da procuradoria. Mas por que nesse caso há direito adquirido? Houve expectativa legítima dos empresários do Município de que teriam uma situação mantida por dez anos. Em razão disso, foram feitos investimentos. Não parece legítima a mudança das regras do jogo antes do termo determinado.

Com efeito, só não seria legítima essa expectativa se a lei fosse inconstitucional, mas não se vislumbrou nenhum vício que a maculasse.

Com o advento da Emenda Constitucional nº 37, de 2002 (BRASIL, 2002), a lei municipal que garantia a inalterabilidade de alíquotas não foi recepcionada, porém foram resguardados os direitos adquiridos dos contribuintes já instalados regularmente no Município.

Como se vê, se analisada a questão sem o enfoque da legítima expectativa e da determinação do prazo, não se poderia discernir acerca da existência do direito adquirido.

3.5 Lei que proíbe operação de compra e venda e contrato já formado

Em um contrato de compra e venda, em que o comprador já efetuou o pagamento do preço, mas, antes de receber a mercadoria, surge uma lei proibindo esse negócio, pode-se dizer que há direito adquirido a recebê-la? Haverá direito adquirido do comprador, além de o negócio ser ato jurídico perfeito. A propósito, Maria Helena Diniz (2001, p. 187) traz exemplo semelhante, tratando dos requisitos do negócio:

“Exemplificativamente, se “A” vier a comprar um apartamento de conformidade com as condições e formalidades impostas pela lei “X”, a edição da norma “Y”, modificando aqueles requisitos, não terá eficácia sobre o direito adquirido anteriormente.”

Nesse caso, novamente, o comprador, além de ter direito exercitável, possui legítima expectativa quanto ao recebimento da contraprestação. E essa expectativa era legítima, pois não havia nenhum óbice no momento da contratação e houve um desequilíbrio na relação jurídica, na medida em que efetuou a prestação que lhe cabia sem receber a contraprestação.

3.6 Extinção de benefício vitalício de complementação de aposentadoria

Suponha-se que um determinado município estatua benefício de complemento de aposentadoria, por ser pago até a morte do servidor inativo. Se um servidor estiver recebendo o benefício, será atingido por uma lei posterior que revogue a complementação? Nesse caso, dir-se-á que existe direito adquirido, de modo que o referido servidor continuará a receber o benefício até sua morte.

Mas em relação às parcelas ainda não recebidas de complementação, elas podem ser consideradas como direito exercitável? Não é exercitável, pois depende do advento de cada termo mensal, a partir do qual passa a ser exigível a prestação mensal. Além disso, há um termo que extingue o direito, que é a morte do beneficiário. Nesse caso, cada parcela se enquadra na parte final do § 2º do art. 6º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942), ou seja, o termo é inalterável ao arbítrio do município.

A morte é termo do tipo incerto, ou seja, o evento é futuro e inexorável, porém não se pode precisar o momento em que ocorrerá (RODRIGUES, 1995, p. 256).

Esses termos são inalteráveis, uma vez que, no momento em o servidor começa a receber o benefício, surge expectativa legítima de recebê-lo em prestações mensais até sua morte, ou seja, o direito como um todo, incluindo seu prazo de duração, foi devidamente delimitado.

Contudo, sem utilizar o critério da legítima expectativa sob o enfoque da boa-fé objetiva e a delimitação temporal não se poderia dizer se os termos ou o direito eram ou não inalteráveis.

3.7 Alteração dos requisitos para obtenção de aposentadoria

Suponha-se que um indivíduo esteja próximo de sua aposentadoria, quando, em razão de lei nova, são alteradas as regras para obtenção do benefício. Como o indivíduo não havia completado os requisitos para se aposentar, não estaria configurado direito exercitável. Com isso, afasta-se a caracterização do direito adquirido. É o entendimento da jurisprudência do STF, no sentido de que “não há direito adquirido a regime jurídico”.

O seguinte julgado do STF também demonstra a sedimentação desse entendimento (BRASIL, 2008):

“EMENTA: INSS. APOSENTADORIA. CONTAGEM DE TEMPO. DIREITO ADQUIRIDO. ART. 3º DA EC 20/98. CONTAGEM DE TEMPO DE SERVIÇO POSTERIOR A 16/12/1998. POSSIBILIDADE. BENEFÍCIO CALCULADO EM CONFORMIDADE COM NORMAS VIGENTES ANTES DO ADVENTO DA REFERIDA EMENDA. INADMISSIBILIDADE. RE IMPROVIDO. I – Embora tenha o recorrente direito adquirido à aposentadoria, nos termos do art. 3º da EC 20/98, não pode computar tempo de serviço posterior a ela, valendo-se das regras vigentes antes de sua edição. II – Inexiste direito adquirido a determinado regime jurídico, razão pela qual não é lícito ao segurado conjugar as vantagens do novo sistema com aquelas aplicáveis ao anterior. III – A superposição de vantagens caracteriza sistema híbrido, incompatível com a sistemática de cálculo dos benefícios previdenciários. IV – Recurso extraordinário improvido.”

O problema que fica pendente é a alteração das regras do jogo durante a formação do direito, problema esse que será comentado ao final.

3.8 Proibição criada por convenção condominial de manter animais domésticos no condomínio

Esse caso, já citado anteriormente, demonstra que pode haver controvérsia sobre a existência de direito adquirido mesmo sem o advento de uma lei nova.

Sobre esse caso, os condôminos que já possuíam animais quando do advento da proibição não poderão ser prejudicados, pois exerceram o direito de adquirir seus animais. Cuida-se, aliás, de direito consumado. Obrigar tais pessoas a destituírem-se de seus bichos seria violar seu direito de propriedade, protegido constitucionalmente:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]

XXII – é garantido o direito de propriedade;” (grifos nossos). (BRASIL, 1988)

Convém notar que, no momento em que adquirem seus animais, há uma expectativa legítima de poderem desfrutar deles, assim como desfrutam de seus outros bens. No ordenamento jurídico, somente há hipóteses excepcionais de perda da propriedade, como a desapropriação, o confisco e o perecimento.

Somente se cogitará da prevalência da convenção para determinado condômino se este houver a ela aderido, ou se o valor defendido por ela for hierarquicamente superior ao direito de propriedade.

De qualquer forma, a prevalecer a imposição de se desfazer do animal de estimação, não se vê outra saída que não uma indenização, na linha do que ocorre com a desapropriação de imóveis por utilidade pública.

Há, no caso, de haver uma ponderação entre os valores da propriedade, da segurança jurídica e da democracia no condomínio.

3.9 Promessa de benefício continuado sem prazo de extinção

Suponha-se que um indivíduo se comprometa, simplesmente e unilateralmente, a entregar prestações pecuniárias mensais a outrem, sem especificar um termo final ou condição resolutiva, e sem haver contraprestação da outra parte. Parece razoável que a obrigação perdurará até que o promitente revogue sua declaração. Feita a revogação, só se poderá falar em direito adquirido (e consumado) às parcelas percebidas e nunca àquelas vincendas.

Por ser ato de liberalidade, deve ser interpretado restritivamente e em benefício do devedor, nos termos do art. 114 do Código Civil: “Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.” (BRASIL, 2002). Além disso, há um limite em seu próprio patrimônio, além do qual não se pode legitimamente, esperar nada.

A propósito, o art. 548 do CC (BRASIL, 2002) proíbe a doação de todos os bens: “Art. 548. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte ou renda suficiente para a subsistência do doador.”

Um pouco diferente seria a situação se o beneficiário houvesse cumprido alguma contraprestação, em razão da qual teria direito às prestações. Nesse caso, o indivíduo em débito teria de cumprir as prestações correspondentes, caso contrário, deveria indenizar a outra parte pelos danos causados pela frustração da expectativa existente. Aqui, incide o pacta sunt servanda e o princípio da boa-fé objetiva. Mas o fato de não haver limitação temporal prejudica a definição do próprio direito, sendo indispensável, no caso, a busca da vontade das partes para verificar a intenção do promitente e para equilibrar a relação de ambos.

Também seria diferente se o primeiro houvesse prometido expressamente cumprir a obrigação até o término da vida do segundo. Nesse caso, em princípio, o pacto deveria ser cumprido, salvo se surgir um fato que faça prevalecer outro valor de maior envergadura do que o ato jurídico perfeito, o direito adquirido no caso e, enfim a segurança jurídica.

3.10 Extinção de benefício de entrega mensal de cesta básica

Suponha-se que um município possua uma lei que o autorize a entregar cesta básica à população carente residente na cidade todo mês entre os dias 10 e 12. No dia 12, comparece uma pessoa e fica sabendo que houve revogação da lei no dia 11. No dia 10, o direito já era exercitável. Poderia ser extinto? Parece que não haverá polêmica em relação aos que retiraram sua cesta até a revogação da lei. Porém, como fica aquele que não a retirou até a revogação?

Pode-se dizer que o ente público continuaria a entregar o benefício somente enquanto fosse possível e enquanto conviesse, mesmo porque não estipulou até quando vigeria a lei. É certo ainda que a lei só produz efeito enquanto vige, mormente quando editada sem prazo determinado.

Por fim, deve ser lembrado que nesse exemplo, o direito só era exercitável nos dias 10 e 12. Havendo a revogação no dia 11, o direito relativo ao dia 12 ainda não era exercitável.

4 Questões pendentes

Conquanto tenha havido soluções jurídicas para os casos citados, não se deve afastar o fato de que isso não significa necessariamente pacificação social. A título de ilustração, no caso das pessoas que estão prestes a se aposentar, pode-se simplesmente dizer que não há direito adquirido a regime jurídico?

De modo mais claro, a solução jurídica vigente diz, por exemplo, que aqueles que já houvessem cumprido os requisitos necessários à aposentadoria quando da publicação da nova norma que aumentou as exigências poderiam se aposentar segundo as regras até então vigentes. Mas aqueles para os quais faltasse apenas um dia para o cumprimento dos requisitos não poderiam, isto é, deveriam se submeter às novas regras.

Será que o discrímen tempo ou que a regra da eficácia imediata da lei aos direitos em formação resolve a questão de forma tranquila? Haverá paz numa sociedade em que duas pessoas recebem o mesmo benefício, embora tenham cumprido requisitos diferentes? E se o benefício daquele que cumpriu menos exigências ainda for melhor?

Daí o cabimento das regras de transição, que, todavia, devem cuidar adequadamente da situação de cada indivíduo para que haja justiça. Justiça, conforme abordado em outro artigo (SARAI, 2007), é algo que poderia em tese ser analisado sob o ponto de vista das ciências exatas, embora, em princípio, o homem ainda não tenha demonstrado de forma clara que é competente para transformar as relações sociais em fórmulas matemáticas, em funções, e, com base nisso, encontrar o correto ponto de equilíbrio.

Outro questionamento que surge quando se pensa sobre a edição de leis é a seguinte: Pode um ente público editar uma lei que o obrigue, por exemplo, a entregar mensalmente e eternamente determinado benefício pecuniário a uma pessoa jurídica? É possível criar uma obrigação perpétua? Como ficam as gerações futuras e os legisladores futuros? Não é demais lembrar que a lei é manifestação de vontade do ente que a edita. Essa questão também terá relação com as cláusulas pétreas previstas na Constituição.

Já no caso do condomínio que proíbe animais em suas dependências, fica o questionamento que virá daqueles que ainda não possuíam animais quando surgiu a proibição e que queiram adquirir um. Haverá um sentimento de ofensa à isonomia.

Da mesma forma, como ficam as leis que simplesmente reduzem multas e juros de inadimplentes? O cidadão pontual poderá ficar desmotivado de continuar pagando em dia.

Tais problemas sociais exigem maior reflexão acerca da adequação das atuais soluções jurídicas e das normas vigentes.

A meditação sobre esses assuntos, contudo, fica para outro artigo.

5 Conclusão

Para o presente, apenas é necessário acrescer os elementos que foram constatados como integrantes do conceito de direito adquirido, mas que não constam da redação do § 2º do art. 6º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 1942 (BRASIL, 1942).

Nessa esteira, conclui-se que o direito adquirido é o direito subjetivo exercitável, de imediato ou cujo início do exercício esteja subordinado a termo ou condição, sendo que tanto o direito em si quanto o termo ou condição de que depende seu exercício não podem ser alterados ao arbítrio de outrem, em razão da legítima expectativa de sua permanência, segundo a boa-fé objetiva, e da delimitação temporal desse direito.

Por fim, não se nega que o caso concreto demandará um julgamento subjetivo, cujo resultado poderá ser variável, mas cuja meta deverá ser a justiça aplicada de forma equitativa.

Ao formular uma teoria de justiça, ARISTÓTELES (2003, p.125) considera essencial a equidade, inclusive considerando-a superior à justiça aplicada a certos casos particulares:

“A razão disto é que toda lei é universal, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. Nos casos, portanto, em que é necessário falar de modo universal, mas não é possível fazê-lo corretamente, a lei leva em consideração o caso mais frequente, embora não ignore a possibilidade de erro em consequência dessa circunstância. E nem por isso esse procedimento deixa de ser correto, pois o erro não está na lei nem no legislador, e sim na natureza do caso particular, já que os assuntos práticos são, por natureza, dessa espécie.

Por conseguinte, quando a lei estabelece uma lei geral e surge um caso que não é abarcado por essa regra, então é correto (visto que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade), corrigir a omissão, dizendo o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse previsto o caso em pauta.

Por isso o equitativo é justo e superior a uma espécie de justiça, embora não seja superior à justiça absoluta, e sim ao erro decorrente do caráter absoluto da disposição legal.”

Parece, então, que esse é o limite a que se pode chegar no campo da hipótese.

 

Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. [Trad. Pietro Nassetti]. São Paulo: Martin Claret, 2003.
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______. Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942. Disponível em: <http:www.presidencia.gov.br>. Acesso em:08 jan.2009.
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SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Leandro Sarai

 

Advogado Público. Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

 


 

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