Nome do autor: Mateus Sá Gonçalves – Acadêmico de Direito na Universidade do Estado do Amazonas – e-mail: [email protected]
Nome da orientadora: Silvia Maria da Silveira Loureiro – Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília. Atua como professora de Direito Constitucional, Direito Internacional e Direito Indígena na Universidade do Estado do Amazonas – e-mail: [email protected]
Nome da co-orientadora: Jamilly Izabela Brito Silva – Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Atuou como professora de Direito Internacional e Direito Indígena na Universidade do Estado do Amazonas – e-mail: [email protected]
Resumo: O presente trabalho visou elucidar que os povos indígenas, judicialmente, não dependem necessariamente de um órgão que os representem, uma vez que a necessidade de representação implica em incapacidade postulatória, contrariando as normas constitucionais e internacionais, tal como consta no artigo 232 da Constituição Federal, além de ir na contramão da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, e também da Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas (2007) e da Declaração Americana sobre os Povos Indígenas (2016). Para isto, o trabalho se desenvolveu a partir da análise das Constituições brasileiras até o entendimento da atual Constituição sobre o tema da capacidade de ajuizar ação dos povos nativos, seguindo para a internacionalização deste direito e analisando o arcabouço normativo contidos em dispositivos de ordem internacional. A metodologia utilizada foi o método dedutivo com referência bibliográfica em artigos, livros e dissertações com matizes históricas, a fim de melhor refletir sobre como o Estado Brasileiro tem atuado no que diz respeito à capacidade postulatória dos povos nativos desde a origem do direito dos povos indígenas até os dias atuais, em que são reconhecidas suas legitimidades subjetivas.
Palavras-chave: Capacidade postulatória. Povos indígenas. Direito Constitucional. Direito Internacional dos Povos Indígenas. Convenção 169 da OIT.
Abstract: The present work aimed to elucidate that indigenous peoples, judicially, do not necessarily depend on a body that represents them, once the need for representation implies postulator incapacity, instead of jusinternationalist and Human Rights rules, as contained in ILO Convention no 169, as well as UN Declaration on the Rights of Indigenous Peoples (2007) and American Declaration on Indigenous Peoples (2016). For this, the article was developed from the analysis of the Brazilian Constitutions to the understanding of the current Constitution on the issue of the ability to judge the action of native peoples, moving towards the internationalization of this right and analyzing the normative framework contained in international provisions. The methodology used was the deductive method with bibliographic reference in articles, books and dissertations with historical nuances, in order to approach as well as possible the reflection about how Brazilian State has acted with regard to the postulator capacity of native peoples since from the origin of international law of indigenous peoples until nowadays, recognizing their subjective legitimacy.
Keywords: Postulatority Capacity. Indigenous Peoples. Constitutional Law. International Law. ILO Convention no 169.
Sumário: Introdução. 1 Histórico da proteção constitucional brasileira aos Povos Indígenas: da Constituição de 1824 à Constituição de 1988. 2 A Constituição de 1988 e a capacidade de postular em juízo assegurada aos povos indígenas. 3 A Internacionalização dos direitos dos povos indígenas: da Convenção 169 da OIT às Declarações da ONU e Americana sobre os direitos dos povos indígenas. Conclusão. Referências.
Introdução
Ainda que nas Constituições brasileiras anteriores, ao falar de direitos dos indígenas, a preocupação do texto se referisse basicamente à questão territorial (proteção das terras tradicionalmente ocupadas), sendo os povos indígenas considerados incapazes à luz do ordenamento jurídico brasileiro vigente à época, a Constituição de 1988, especificamente em seu art. 232, mudou esse paradigma, garantido a esses povos a legitimidade para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses.
O texto constitucional atual decorre diretamente do avanço da causa indigenista a partir dos anos 70, a qual, por sua vez, é baseada na concepção de autonomia defendida pelos próprios povos indígenas. Assim, a Constituição de 1988 reconhece os direitos dos povos indígenas como povos devidamente organizados, superando a concepção integracionista, além de garantir o reconhecimento de suas subjetividades no ordenamento jurídico brasileiro.
O mesmo caminho foi trilhado pelo direito internacional, com a adoção da Convenção 169 da OIT (1989) e, ainda, da Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas (2007) e da Declaração Americana sobre os Povos Indígenas (2016), as quais defendem a ideia de autodeterminação dos povos, o que implica no direito de autogoverno e de participação ativa e própria dos índios em questões que lhe dizem respeito.
Com essas considerações, este trabalho visa esclarecer sobre a capacidade de postular em juízo dos povos nativos, ou seja, dos povos indígenas. Para dilucidar, far-se-á um traçado histórico das Constituições já existentes no ordenamento jurídico brasileiro até a atual Carta Magna, além de uma abordagem sobre o tema no âmbito do direito internacional dos povos indígenas.
Para melhor compreensão, é importante frisar, desde logo, o significado de povos indígenas por uma visão técnico-jurídica, para isto segue a definição do termo, com fulcro no art. 1º, 1.b, da Convenção 169 da OIT: são considerados indígenas aqueles que descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
Foi utilizado o método dedutivo, bem como foi feita uma abordagem embasada em artigos, livros e dissertações, traçando matizes históricas, para que se possa esclarecer o surgimento dos direitos que envolvem povos indígenas e os avanços conquistados até os dias atuais.
1 Histórico da proteção constitucional brasileira aos Povos Indígenas: da Constituição de 1824 à Constituição de 1988
A Constituição Federal da República é a Carta Maior onde esperamos abranger os direitos e deveres de toda a sociedade, inclusive das minorias e dos povos indígenas. Diante desta premissa, vejamos a seguir o que todas as constituições que já existiram no ordenamento brasileiro abordaram sobre a proteção dos direitos dos povos indígenas, especialmente sobre sua legitimidade (capacidade postulatória) para defender seus interesses.
Desde o período colonial houve discriminação em relação aos povos nativos. Com a promulgação da Constituição do Império em 1824, os índios ficaram totalmente excluídos do ordenamento, tanto no que tange seus direitos territoriais como no que diz respeito à capacidade processual. Deduz-se que nem sequer passou pela “cabeça do legislador” atribuir capacidade de ajuizamento ou legitimidade processual aos índios, visto que a maior preocupação focava em matérias de territórios das comunidades indígenas, mesmo que nesta questão eles também foram oprimidos.
A proteção dos direitos dos povos indígenas desde sempre foi um problema no Brasil e para seus governantes, haja vista que, com a tomada das terras brasileiras pelos portugueses e o nascer de uma cultura eurocêntrica, os povos indígenas passaram a ser colonizados e tiveram oprimida sua cultura e suprimido o seu espaço territorial.
No período imperial (1822-1889), com o crescimento da economia brasileira, decorrente da produção de café e expansão de lavouras, temia-se que os índios fossem uma ameaça aos imigrantes que ali buscavam lucro com produção. Portanto, houve a necessidade de redução do espaço (território) indígena, além de forçá-los ao trabalho compulsório e deixá-los distantes de informações que lhe fizessem ter voz ativa.
Criou-se ainda dois rótulos distintos aos indígenas: aqueles que se tornavam súditos da Coroa eram chamados de “índios mansos”, já os que se rebelavam, eram chamados de “índios bravos” ou “selvagens”, sendo estes últimos considerados inimigos do Brasil, razão usada pelo legislador para suprimir os direitos dos povos indígenas. Para as autoridades do império, os nativos eram seres incapazes.
Acerca do aludido, “o estereótipo do europeu plantado nas mentes brasileiras e, consequentemente, a cultura europeizada tida como a certa, faz com que o não enquadramento nesses valores fosse visto como algo não correto, transgressor e corrupto” (DORNELLES et al, 2017, p. 22).
Já na primeira Constituição do período republicano, mais uma vez, a questão indígena foi omitida. Os ideais progressistas de um sistema republicano excluíam totalmente os índios, como se não fossem parte do Brasil ou como se eles, simplesmente, não existissem. A título de exemplo, José Ribamar Bessa Freire cita o posicionamento de André Gustavo Paulo Frontin (1860-1933) na abertura de cerimônia da Sessão Magna do Quarto Centenário do Brasil:
“O Brasil não é o índio; este, onde a civilização ainda não se extendeu perdura com os seus costumes primitivos, sem adeantamento nem progresso. Descoberto em 1500 pela frota portugueza ao mando de Pedro Alvares Cabral, o Brasil é a resultante directa da civilização occidental, trazida pela immigração, que lenta, mas continuadamente, foi povoando o solo. (…) Os selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas magestosas florestas e em nada differem dos seus antecedentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte integrante de nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não conseguindo, eliminá-los” (FRONTIN apud BESSA FREIRE, 2009, p. 187).
No ano de 1910, durante o mandato do presidente Hermes da Fonseca, criou-se o Serviço de Proteção ao Índio – SPI, comandado por Marechal Rondon, com a finalidade de praticar política indigenista no Brasil. Com a criação do SPI, a Igreja, que era a instituição responsável pela proteção aos indígenas, cede à incumbência ao Estado.
Somente com a Constituição de 1934 foi que os índios passaram a ter direitos garantidos constitucionalmente, sendo o direito à posse de suas terras assegurado no art. 129. Já no art. 5º, XIX, “m”, se estabeleceu a competência privativa à União para legislar sobre incorporação dos silvícolas à comunhão nacional. No entanto, o legislador esquivou-se de tratar sobre a capacidade processual do índio com os argumentos de que índios não possuíam alma, eram incapazes e, por isso não mereciam ter disposições ao seu favor no ordenamento.
Posteriormente, as Constituições de 1937 e 1946 não trouxeram nenhuma inovação quanto à questão indígena, somente reproduziram, em dispositivos diferentes, o texto da Carta Política anterior com algumas mudanças gramaticais, a fim de melhor esclarecer a temática. Permanecia o silencia absoluto à eventual capacidade postulatória.
A Constituição Federal de 1967, além dos direitos já existentes, evidenciou, de maneira taxativa, em seu artigo 186, as terras dos índios como bens da União, sendo garantido o usufruto exclusivo dos recursos naturais pelos povos nativos.
Já a Emenda Constitucional de 69 somente trouxe um complemento à ideia trazida na Constituição de 1967, no que tange aos efeitos jurídicos de domínio, posse e ocupação por terceiros, tornando-os nulos, sem que coubesse direito à indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
Em paralelo à Constituição Federal de 1967, no mesmo ano, fundou-se a FUNAI (Lei nº 5.371/1967), vinculada ao Ministério da Justiça. Com a FUNAI, os povos indígenas passaram ter um órgão representante de seus interesses, ainda que sua atuação, no decorrer dos anos, tema se mostrado deficitária.
No ano de 1973, a Lei 6.001 passou a dispor sobre o Estatuto do Índio, o qual prevê representação processual aos povos indígenas por meio do Ministério Público e do Órgão de proteção da União (a FUNAI).
Do que foi explicitado, tem-se que, historicamente, os índios foram rotulados como “selvagens”, por isso as autoridades evitaram reconhecer sua capacidade civil no ordenamento jurídico, em razão disto, o Código Civil de 1916, no artigo 6º, inciso IV, abordava a questão indígena mas ainda usava o termo “silvícolas”, e os tratava como relativamente incapazes a certos atos da vida civil. Além do parágrafo único do mesmo artigo prever que os silvícolas ficariam sujeitos a regime tutelar, estabelecidos em leis e regulamentos especiais, cessando à medida de sua adaptação. (BRASIL, 1916)
Posteriormente, o Código Civil de 2002 foi omisso e não citou os indígenas como capazes ou incapazes, apenas expressou, no parágrafo único do artigo 4º, que a capacidade dos indígenas seria regulada por legislação especial (BRASIL, 2002). Até o momento, a única legislação especial vigente é o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973)
Diante desta ótica, pode-se observar que o legislador, por muito tempo, adotou a visão discriminatória de que índios eram seres “sem alma”, incapazes para certos atos da vida civil. Por esta razão, como já dito, o Código Civil de 1916 previu a incapacidade dos povos indígenas e, o Código Civil de 2002 não resolveu esta questão.
Exposto o posicionamento das ultrapassadas constituições federais, constata-se o interesse material do Estado sobre as comunidades indígenas. Os textos constitucionais anteriores buscaram sempre tratar exclusivamente das terras, esquivando-se do direito processual legítimo do índio, deixando-o sob a tutela da FUNAI e do Ministério Público.
Ademais, dada abertura a diversos movimentos sociais democráticos para a criação da nova Carta Magna, dentre eles os movimentos indigenistas, houve um grande avanço nos direitos e garantias constitucionais dos povos indígenas, os quais ganharam, inclusive, um capítulo exclusivo (Capítulo VIII) na Ordem Social (Título VIII) da Constituição de 1988.
Com o advento da Constituição Federal atualmente em vigor, houve uma ruptura com o viés integracionista que vigia até então, e os índios conquistaram o direito coletivo de ser índio para todo sempre com respeito à tradição, costumes e formas de organização.
Para Bernardo Gonçalves Fernandes:
“[…]a Constituição passa a ser compreendida como o resultado tanto de operações quanto de escolhas de um passado constitucional, religados a um projeto de futuro; […], reafirma a noção de patriotismo constitucional – como pertencimento de todo cidadão a esse projeto constitucional maior buscando superar preconceitos e desigualdades sociais por meio da reafirmação de uma solidariedade que permita a coexistência do diferente na sociedade; e, por fim, por não afirmar uma substância axiológica (valores) determinados, o que abre o texto constitucional para coexistência de múltiplos projetos de vida boa”. (FERNANDES, 2017, p.101)
Portanto, verifica-se que a nova ordem constitucional traz uma visão inclusiva, o que garante aos índios o direito de igualdade e que supera o viés discriminatório que os acompanharam desde o período colonial.
Além disto, a Nova Carta Magna abandonou a expressão “silvícolas” e passou a usar o termo “índios”, além de reconhecer aos índios o direito originário sobre terras que tradicionalmente ocupam.
Estabelecida nova ordem social em prol dos povos indígenas, a relação do Estado com os índios passou exigir novas políticas públicas para demarcação de terras, a fim de que sejam demarcadas terras tradicionalmente ocupadas por índios em territórios que garantam a sobrevivência destes como povo. Tais direitos já expostos estão consagrados no art. 231 da Lei Maior.
Por conseguinte, o artigo 232 da Constituição Federal reconhece a legitimidade dos povos indígenas para ajuizar ação, ou seja, a capacidade ad processum, questão central deste artigo, como veremos a seguir.
2 A Constituição de 1988 e a capacidade de postular em juízo assegurada aos povos indígenas
O Estatuto do índio (Lei 6.001/1973), como visto, já previa o direito de ingressar em juízo para grupos e comunidades indígenas. Todavia, esse ingresso em juízo ocorria a partir da “representação” do Ministério Público ou do Órgão de Proteção ao Índio, a FUNAI. Já a Constituição Federal, no artigo 232, não menciona representação de qualquer órgão, apenas intervenção do Ministério Público, dando aos índios a autonomia e o direito à titularidade ativa e própria da ação pretendida. Tal mudança em direito material tem reflexos diretos no direito processual.
Salienta-se que a Constituição se sobrepõe aos dispositivos do Estatuto, assim como a Convenção 169 da OIT está em acordo com o que diz a Carta Magna de 1988. Desta maneira, se alvitra ao Congresso, atualizar a Lei 6001/73 para que possa ter harmonia com o ordenamento constitucional ou, até mesmo, editar um novo Estatuto do Índio.
O texto constitucional promulgado afirma que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. Vale ressaltar que este texto constitucional surgiu após luta de várias lideranças em defesa das comunidades indígenas, lutas que se deram por meio da atuação massiva dos povos indígenas durante a Assembleia Nacional Constituinte.
No que se refere ao art. 232 da Constituição Federal, os procedimentos que culminaram no texto promulgado tiveram como principal foco pôr fim à legitimidade exclusiva do Ministério Público, da FUNAI ou do Congresso Nacional para ajuizar ações em defesa dos direitos de interesses dos povos indígenas (SILVA, 2020, p. 94-104) .
Ainda na Comissão de Sistematização, dois projetos substitutivos apresentados pelo Constituinte Bernardo Cabral (relator da Comissão), além da apresentação de emendas parlamentares e populares, fizeram com que o dispositivo fosse ganhando a seguinte forma: “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa dos interesses e direitos indígenas” (SILVA, 2020, p. 94-95).
Outrossim, durante o 1º turno de votação no Plenário da Assembleia Nacional Constituinte, o legislador achou por bem inserir a necessidade de intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo. Após, o texto foi submetido ao 2º turno de votação em Plenário (julho a setembro de 1988) (SILVA, 2020, p. 94-95).
Já na fase final do processo constituinte, sem mais alterações, o texto foi enviado para a Redação Final, culminando no atual artigo 232 da Carta Maior.
Sabendo que o artigo 129, V, prevê de forma expressa que cabe ao Ministério Público defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas, torna-se obrigatória a intervenção do Parquet em processos que envolvam a questão indígena.
Nesse sentido, tem-se que “a proposta de texto que culminou com o art. 232 foi tão somente aperfeiçoada durante o processo constituinte, de modo que o referido dispositivo teve como ratio fundamental dar voz diretamente aos povos indígenas sem a necessidade de interlocutores” (SILVA, 2020, p. 95).
Para Amaral Santos “legitimados ao processo são os sujeitos da lide, isto é, os titulares dos interesses em conflito. A legitimação ativa caberá ao titular do interesse afirmado na pretensão, e a passiva ao titular do interesse que se opõe ou resiste à pretensão” (SANTOS, 1994, p. 167).
Diante disto, verifica-se que, em casos de interesse direto dos povos e comunidades indígenas, serão, ordinariamente, os próprios povos e comunidades, titulares legítimos, sem a necessidade de um órgão que os representem. No entanto, a fim de não menosprezar a competência da FUNAI e do Ministério Público, ambos possuem legitimidade de atuar como substitutos processuais, extraordinariamente. Portanto, segundo a norma constitucional vigente, a legitimidade extraordinária da FUNAI e do Ministério Público Federal não exclui a legitimidade ordinária dos índios.
O admirável direito do qual estamos tratando surge com a intenção de se justificar a histórica omissão dos órgãos federais ante a violação dos direitos dos povos indígenas. Segundo Dallari (1991, p. 317)
“na prática, a defesa pelos órgãos federais foi muito deficiente até 1988, quando pela nova Constituição brasileira foi reafirmada e ampliada a competência do Ministério Público Federal para a defesa dos direitos dos índios. Até então essa defesa havia ficado na dependência das iniciativas do órgão federal incumbido do exercício da tutela indígena, a FUNAI que, além de ter sido escandalosamente omissa, muitas vezes promoveu e apoiou ações públicas e privadas contrárias aos direitos dos índios.
Com base nos dispositivos do Estatuto do índio, várias comunidades indígenas assumiram sua própria defesa, inclusive judicialmente, suprindo em parte as deficiências e os desvios da FUNAI. E agora com o efetivo do MPF, os direitos indígenas passaram a ser defendidos com muito mais eficiência. Assinale-se, ainda, que a CF de 1988 deu competência à JF para o julgamento dos casos envolvendo direitos dos índios. Essa particularidade é mais do que um simples pormenor.
Nesse ponto, é importante frisar que é indubitável a desnecessidade de representação dos povos indígenas, seja de forma direta ou em papel secundário. Defende-se, assim, a atuação direta dos povos indígenas em suas próprias demandas, onde a única representação exigida seja aquela técnica-postulatória, através de advogado público ou privado que seja escolhido pelos próprios índios.
Sendo esta problemática recente, já que sempre se acomodou o direito dos nativos à órgãos representativos e à tutela, poucos precedentes reconhecem tal legitimidade constitucional. Para ilustração, segue decisão monocrática do Tribunal Regional Federal da 3ª Região:
Trata-se de apelação interposta pela parte autora em face da r. sentença monocrática proferida em demanda proposta em face do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, visando a obtenção do benefício de salário-maternidade previsto nos artigos 71 e 73, conjuntamente com os artigos 39, parágrafo único, e 11, VII, todos da Lei n° 8.213/91. A r. sentença recorrida indeferiu a inicial e julgou extinto o processo sem julgamento do mérito, com fulcro no artigo 267, IV, do Código de Processo Civil, em razão da autora, que é de origem indígena, não ter feito prova nos autos de ter atingido a condição de integrada, nem ter demonstrado estar assistida pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, a FUNAI. Não houve condenação da parte autora ao pagamento das custas processuais, em razão de ser a mesma beneficiária da Justiça gratuita, bem como ao pagamento de honorários advocatícios, em razão de não ter havido sequer a citação. Inconformada, a parte autora interpôs recurso de apelação, pleiteando a anulação da r. sentença para a instauração do devido processo legal, como medida de justiça, uma vez que não foi dada vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 35 do Estatuto do Índio, acarretando cerceamento ao direito da recorrente, nos termos do disposto nos artigos 35, 36 e 232 da Constituição Federal. Subiram os autos a esta Corte Regional. Opina o Ministério Público Federal pelo provimento da apelação, em parecer da Excelentíssima Procuradora da República Paula Bajer Fernandes Martins da Costa. É o relatório. Decido. Procede o apelo da parte autora. A petição inicial deve obedecer ao disposto no artigo 282 da legislação processual em vigor, ou seja, indicar o juiz ou tribunal a quem a petição é dirigida (inciso I), a qualificação do autor e do réu (inciso II), o fato e os fundamentos jurídicos do pedido (inciso III), o pedido com suas especificações (inciso IV), o valor da causa (inciso V), as provas as quais o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados (inciso VI) e o requerimento da citação do réu (inciso VII). Em princípio, todos os requisitos foram preenchidos. A r. sentença recorrida indeferiu a inicial em razão da autora, que é de origem indígena, não ter feito prova nos autos de ter atingido a condição de integrada, nem ter demonstrado estar assistida pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, a FUNAI. Entendeu o D. Juízo monocrático que a parte autora não teria capacidade processual para estar em juízo. Isso por si só não dá azo à extinção do processo; daria ensejo a sua nulidade, à luz do inciso I, do artigo 13 do Código de Processo Civil, caso não fosse sanado o defeito dentro do prazo estipulado pelo juiz. Ao compulsar os autos, verifica-se que não foi aberta vista ao Ministério Público no 1º grau de jurisdição, estando em manifesto confronto com o que determina o artigo 232 da Carta Magna: “Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.” Como bem salientou o Ministério Público Federal em seu parecer, a capacidade processual da recorrente decorre da consciência e do conhecimento do ato praticado, desde que não lhe seja prejudicial, e da extensão de seus efeitos. A recorrente praticou diversos atos da vida civil, que restaram devidamente documentados nos presentes autos, e pleiteia o recebimento do benefício de salário-maternidade, em decorrência de ter dado à luz a uma criança. Certamente não lhe será prejudicial receber o referido benefício, de natureza alimentar, considerando os alarmantes índices de mortalidade infantil entre as populações indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul, em razão de desnutrição. Cabe ao magistrado determinar que se proceda à emenda da petição inicial que apresentar defeitos ou irregularidades que impeçam o regular processamento do feito, nos termos do artigo 284, do Código de Processo Civil, em atendimento à função instrumental do processo. Somente depois de decorrido in albis o prazo para atendimento da determinação e tendo havido a prévia manifestação do Ministério Público, nos termos inseridos na Carta Magna, poderá ser indeferida a inicial defeituosa. O que não é admissível é cercear o acesso da parte à Justiça sem dar a ela a prévia possibilidade de suprir a eventual falha de sua exordial. […]. Portanto, não há que se falar em ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo, devendo ser anulada integralmente a r. decisão monocrática, com o retorno dos autos à Vara de origem para o regular processamento do feito. É certo, que as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores não têm caráter vinculante. No entanto, é notório que o decisum proferido pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça sanou a controvérsia a respeito da aplicação do dispositivo processual em comento, demonstrando-se certo o desfecho de qualquer recurso quanto à questão, de modo a inviabilizar qualquer alegação em sentido contrário, não deixando margem para novas teses […]. Nesse diapasão, torna-se dispensável a submissão do julgamento à Turma, cabendo o provimento do recurso diretamente por decisão monocrática.
Posto isso, dou provimento ao recurso da parte autora, nos termos do §1º- A, do artigo 557 do Código de Processo Civil, para anular a r. sentença, com a conseqüente remessa dos autos à Vara de origem para o regular processamento do feito. Certificado o decurso in albis do prazo recursal, remetam-se os autos à Vara de origem […]. (Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Apelação Cível, Desembargador Federal WALTER DO AMARAL, Data de julgamento: 11 de março de 2005)
O citado precedente é um exemplo de como a questão da legitimidade processual do indígena deve ser explorada e discutida em rodas de debate, visto que, apesar da previsão constitucional de autonomia processual dada pelo artigo 232, ainda é possível notar grande resistência dos tribunais para se adaptarem a esta nova realidade, como bem se viu na decisão acima citada.
Reitere-se que, não obstante à autonomia processual indígena, a atuação da FUNAI e do MPF pode se dar de forma acessória, inclusive porque a participação do Ministério Público é prevista constitucionalmente no art. 129, V, o qual reza da seguinte maneira: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: […] V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas”.
Neste ano de 2020, foi apresentado ao Supremo Tribunal Federal (STF), de forma histórica, uma Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF), tendo como um dos Requerentes a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), organização coletiva indígena, representada pelo Advogado indígena Dr. Luiz Eloy Terena. Trata-se de ADPF cujo objeto da ação está relacionado a atos comissivos e omissivos do Poder Público em relação à defesa das comunidades indígenas no combate à pandemia gerada em razão da COVID-19.
A ADPF usou diversos argumentos em favor das comunidades indígenas de um modo geral, afirmando inicialmente que as comunidades indígenas são grupos de alta vulnerabilidade de contágio, devido ao menor contato com essas patologias, o que pode ocasionar o extermínio dos povos indígenas, bem como violação ao princípio da dignidade humana. Adiante, explicitou que diversas comunidades indígenas vivem em lugares isolados e de difícil acesso, o que lhes deixam distantes do acesso a saneamento básico e às unidades de saúde, fatos que as tornam mais vulneráveis ao contágio, além de impedir um tratamento adequado em caso de contaminação. Por fim, elencou diversos atos comissivos/omissivos do Poder Público que consequentemente são obstáculos na luta contra a COVID-19, como decisões políticas da FUNAI que excluem índios de populações mais isoladas do acesso ao Sistema Único de Saúde, limitando-os apenas aos índios não aldeados.
Diante de tais argumentos, a ADPF requereu, em cautelar, que: i) a União tome as devidas providências e que sejam instaladas barreiras sanitárias para a proteção dos povos indígenas em diversas terras; ii) Que a União Federal providencie o imediato funcionamento da Sala de situação, para que se possa subsidiar a tomada de decisões de gestores no que tange a questão indígena em situações de contato, surto e epidemias; iii) Que seja determinado à União Federal que tome imediatamente todas as medidas necessárias para a retirada dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu- Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá, valendo-se para tanto de todos os meios necessários, inclusive, se for o caso, do auxílio das Forças Armadas; iv) Que os serviços do SUS sejam prestados a todos os povos indígenas, aos aldeados e aos não aldeados e aos que vivem em territórios não demarcados; v) Que o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), juntamente com órgãos competentes elaborem planos de enfrentamento da COVID-19, para se tornar vinculante após homologação do relator; vi) e que, após homologação da ADPF, seja determinado cumprimento pelo Estado Brasileiro e seja delegado monitoramento pelo CNDH.
Diante dos requerimentos, a medida cautelar foi deferida parcialmente pelo Ministro Barroso (relator), nos termos em que segue:
“III.1. QUANTO AOS POVOS INDÍGENAS EM ISOLAMENTO OU POVOS INDÍGENAS DE RECENTE CONTATO: 1. Criação de barreiras sanitárias, que impeçam o ingresso de terceiros em seus territórios, conforme plano a ser apresentado pela União, ouvidos os membros da Sala de Situação (infra), no prazo de 10 dias, contados da ciência desta decisão. 2. Criação de Sala de Situação, para gestão de ações de combate à pandemia quanto aos Povos Indígenas em Isolamento e de Contato Recente, nos seguintes termos: (i) composição pelas autoridades que a União entender pertinentes, bem como por membro da Procuradoria-Geral da República, da Defensoria Pública da União e por representantes indígenas indicados pela APIB; (ii) indicação de membros pelas respectivas entidades, no prazo de 72 horas a contar da ciência desta decisão, apontando-se seus respectivos nomes, qualificações, correios eletrônicos e telefones de contato, por meio de petição ao presente juízo; (iii) convocação da primeira reunião da Sala de Situação, pela União, no prazo de 72 horas, a contar da indicação de todos os representantes, por correio eletrônico com aviso de recebimento encaminhado a todos eles, bem como por petição ao presente juízo; (iv) designação e realização da primeira reunião, no prazo de até 72 horas da convocação, anexada a respectiva ata ao processo, para ciência do juízo.
III.2. QUANTO A POVOS INDÍGENAS EM GERAL
- Inclusão, no Plano de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para os Povos Indígenas (infra), de medida emergencial de contenção e isolamento dos invasores em relação às comunidades indígenas ou providência alternativa, apta a evitar o contato. 2. Imediata extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos aldeados situados em terras não homologadas. 3. Extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos indígenas não aldeados, exclusivamente, por ora, quando verificada barreira de acesso ao SUS geral. 4. Elaboração e monitoramento de um Plano de Enfrentamento da COVID-19 para os Povos Indígenas Brasileiros pela União, no prazo de 30 dias contados da ciência desta decisão, com a participação do Conselho Nacional de Direitos Humanos e dos representantes das comunidades indígenas, nas seguintes condições: (i) indicação dos representantes das comunidades indígenas, tal como postulado pelos requerentes, no prazo de 72 horas, contados da ciência dessa decisão, com respectivos nomes, qualificações, correios eletrônicos e telefones de contatos, por meio de petição ao presente juízo; (ii) apoio técnico da Fundação Oswaldo Cruz e do Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO, cujos representantes deverão ser indicados pelos requerentes, no prazo de 72 horas a contar da ciência desta decisão, com respectivos nomes, qualificações, correios eletrônicos e telefones de contato; (iii) indicação pela União das demais autoridades e órgãos que julgar conveniente envolver na tarefa, com indicação dos mesmos elementos.” (BRASIL, 2020, p.33-35).
É de suma importância reafirmar que a sustentação oral da ADPF no Supremo Tribunal Federal, foi feita por um advogado de origem indígena da comunidade Terena, Dr. Luiz Henrique Eloy Amado – Eloy Terena, patrono da APIB.
O Dr. Eloy Terena iniciou sua sustentação afirmando sua satisfação em defender a associação dos povos indígenas do Brasil, na condição de indígena e destacou o contexto político adverso e a resistência das lideranças indígenas. Adiante salientou que a ADPF 709 é a voz dos povos indígenas na Corte Superior e o grito de socorro dos povos indígenas. Confira-se:
“Esta iniciativa é uma ação histórica. Porque pela primeira vez, no âmbito da jurisdição constitucional, os povos indígenas vêm ao judiciário, em nome próprio, por meio de advogados próprios, defendendo interesse próprio. Pois durante muitos séculos esta qualidade de sujeito ativo de direito nos foi negada. Ainda no período colonial, pairava-se a dúvida se os índios eram seres humanos, se tinham almas. Foi preciso uma bula Papal reconhecendo esta qualidade de que os índios tinham almas e, portanto, eram passíveis de evangelização. Depois instrumentalizou-se a tutela legal, na qual os índios não podiam falar por si mesmos. Sempre tinham que pedir licença para os puxarará, termo da língua terena utilizado para se referir aos brancos. Foi somente com a Constituição de 1988 que os índios, suas comunidades e organizações tiveram reconhecido o direito de estarem em juízo defendendo seus interesses. Seguindo este preceito, a Constituição rompeu com a perspectiva integracionista que antes orientava a política indigenista do Estado brasileiro e determinou respeito às formas organizacionais, línguas, crenças, costumes e tradição dos povos originários, estabelecendo o Estado pluriétnico. A nossa Carta Magna irá completar 32 anos, e, passados todos esses anos, aqui estão os povos indígenas batendo à porta do judiciário”. (BRASIL, 2020, p.02)
Houve referendo da medida cautelar pelo Plenário do STF em 05 de agosto de 2020. Pela primeira vez, a Corte Constitucional teve a atuação direta dos povos indígenas, por meio de suas próprias instituições, em defesa de seus direitos.
3 A Internacionalização dos direitos dos povos indígenas: da Convenção 169 da OIT às Declarações da ONU e Americana sobre os direitos dos povos indígenas
Dada a relevância e universalidade dos direitos humanos, a fim de promover a liberdade de indivíduos e coletividades, garante-se ao índio o direito à autodeterminação e manutenção de suas culturas e tradições. Apesar da competência dos Estados soberanos de reconhecer o índio como sujeito de direito, nos últimos anos, vem se desenvolvendo um acervo de normas internacionais em prol do reconhecimento dos povos indígenas como sujeitos de direitos internacional.
Baseando-se no princípio da não-discriminação, o ordenamento internacional mostra uma grande evolução ao buscar a inclusão dos povos coletivos como elementos dotados de direitos na seara do Direito Internacional dos Direitos Humanos, particularmente do Direito Internacional dos Povos Indígenas.
Em consequência, os Estados soberanos passaram a incorporar as comunidades indígenas ao plano de proteção dos Direitos Humanos em seus ordenamentos internos. Por outro lado, a Professora Doutora Silvia Loureiro sustenta em sua tese que:
“(…) os avanços obtidos no campo do Direito Internacional dos Povos Indígenas está intrinsecamente relacionado mais com o apoderamento dos mecanismos tradicionais de peticionamento internacional e a habilidade para adaptá-los a demandas de natureza coletiva, levando a condução bem-sucedida de casos paradigmáticos pelas organizações não governamentais e pelos representantes dos povos indígenas que, propriamente, com uma fundamentação teórica em prol do reconhecimento das coletividades como sujeitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos”. (LOUREIRO, 2015, p. 2019)
Ao fazer esta afirmação, não se está invalidando direitos já conquistados, entretanto, busca-se aludir à carência do reconhecimento dos povos indígenas como sujeitos coletivos de direito no plano internacional.
É importante ressaltar que a Convenção 169 da OIT garante o direito processual aos povos indígenas ao defender a ideia de autonomia dos povos indígenas e tribais. Dessa maneira, abre-se precedentes para a consecução de três direitos: direito à autoidentificação; direito à consulta prévia e direito à participação.
Destaca-se, aqui, o direito à participação, especificamente, o direito à participação em causas indigenistas, expressamente positivado na Declaração das Nações Unidas Sobre Direitos dos Povos Indígenas (DNUDPI) e na Declaração Americana Sobre direito dos Povos Indígenas (DADPI).
Com a leitura do artigo 3º da DNUDPI é possível notar o direito à participação e sua ligação ao direito à autodeterminação: “os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.
No artigo seguinte (4º) é reforçada a ideia anteriormente citada: “Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas”.
Destarte, pelo Princípio da Autodeterminação podemos afirmar que é garantido aos nativos o direito à igualdade de oportunidade de participação plena e efetiva, enquanto povos indígenas, em todas instituições e foros nacionais.
No caso do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos deve solucionar demandas de violação dos Direitos Humanos que ocorrem em países que compõem a Organização dos Estados Americanos (OEA), inclusive aquelas que envolvem povos indígenas, tudo com base no Pacto San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos). Entretanto, encontra dificuldades para individualizar sujeitos, como aconteceu no caso da comunidade indígena Yakye Axa, privada de seu direito à vida digna em seu território tradicional desde 1999. Para solucionar esta demanda, a Corte listou diversas vítimas com base no censo demográfico da região, mas em números incertos devido à realidade local. Tal lista se encontra na sentença proferida em 17 de junho de 2015 e as críticas a esta metodologia podem ser vistas no voto dissidente conjunto dos juízes A.A Cançado Trindade e M.E. Ventura Robles, especificamente no item 8 (LOUREIRO, 2015, p.168-169).
A sentença, basicamente, adota medidas de reparação de danos e pagamento de indenização justa a parte lesada, com fulcro no artigo 63.1 da Convenção Americana. Diante disto, nota-se o quão emblemático é a questão da coletividade dos povos nativos na seara de proteção internacional, pois, apesar da inclusiva e progressista evolução, ainda se procura pelos cientistas jurídicos uma forma didática de tratar e adequar as demandas nas quais são vitimizados os povos coletivos.
Anteposto, mister se faz refletir sobre a atuação da Corte Interamericana diante desta problemática, uma vez reconhecida a legitimidade processual dos povos nativos de forma coletiva, os órgãos internacionais devem buscar mecanismos de adaptação a essa nova realidade.
Conclusão
No decorrer deste trabalho, esperamos ter obtido êxito na demonstração das questões propostas, tal como o avanço da democracia e o direito de participação das minorias e, sobretudo, dos povos nativos, em âmbito nacional e internacional.
A Constituição da República de 1988 marca para história a quebra da “tradição jurídica” que reconhecia os índios como incapazes. Ao analisar hermeneuticamente o art. 232, da Carta Magna, observa-se que a visão de incapacidade jurídica das comunidades indígenas deveria ter sido totalmente sepultada. Facultada a tutela da FUNAI, surge um novo direito para o ordenamento jurídico brasileiro, mais democrático e abrangente, o direito de capacidade/legitimidade dos povos indígenas.
Importa expressar que reconhecer a legitimidade processual dos povos indígenas é um marco a se comemorar, pois após 06 (seis) constituições federais, finalmente, na sétima, os nativos ganham um capítulo especial com diversos direitos contemplados. O instituto da capacidade postulatória aos povos indígenas é profícuo ao ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que está ancorado pelo princípio da efetividade da tutela jurisdicional e levará aos índios o acesso direto à justiça e, em consequência, resguardará a voz desses povos oprimidos diante de um sistema frágil e discriminador.
Assim, diante das conquistas dos povos indígenas que refletiram na atual proteção constitucional e internacional de seus direitos, há uma cobrança crescente para que cada Estado, em seus textos constitucionais, reconheçam os povos indígenas como verdadeiros sujeitos de direito, principalmente no que tange à sua capacidade para atuar na defesa de seus interesses, inclusive judicialmente (capacidade postulatória).
Não obstante os direitos conquistados, ainda há muito a se caminhar. A mudança do texto constitucional ainda não se refletiu na mudança de comportamento das instituições. Assim, o Estado deve focar em políticas públicas voltadas para este debate, a fim de fortalecer a atuação autônoma dos povos indígenas. A criação de núcleos especializados ao atendimento dos povos indígenas nos órgãos públicos federais facilitaria o acesso à justiça aos índios e, fortaleceria sua autonomia jurisdicional, fazendo jus ao direito legal e constitucionalmente previsto.
Por finalmente, a recente ADPF-709 abre um precedente para fomentar o debate entre lideranças indígenas, além de dá suporte ao Judiciário brasileiro para a fundamentação de decisões futuras que envolvam questões indigenistas demandadas pelas próprias comunidades indígenas.
Referências
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