Constitucionalidade do § 3º do artigo 666 do CPC frente à ratificação do Pacto de San José da Costa Rica

Resumo: O presente estudo tem a finalidade de analisar a constitucionalidade do § 3º do art. 666 do CPC, dispositivo que trata da prisão do depositário judicial infiel. Inicialmente, cumpre diferenciar as espécies normativas existentes no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de se verificar a existência de hierarquia entre elas, dessa forma, tornando mais compreensível a análise da constitucionalidade do dispositivo em voga. Ainda, é necessário tratar da influência do Pacto de San José da Costa Rica na legislação brasileira, tendo por base a disposição expressa do §3º do art. 5º da CF que possibilita a equivalência de tratados internacionais sobre direitos humanos, dos quais o Brasil seja signatário, a emendas constitucionais, mediante aprovação pelo Congresso Nacional, motivo pelo qual o estudo da constitucionalidade do §3º do art. 666 torna-se imprescindível. Com a demonstração das questões supra mencionadas, constata-se que, embora a Constituição Federal de 1988 seja classificada como rígida, devido ao processo solene exigido para a sua alteração, há uma tendência a sua flexibilização hodiernamente.[1]


Palavras-chave: Constitucionalidade, depositário infiel, prisão civil, hierarquia de normas, tratados internacionais sobre direitos humanos.


Sumário: 1. Eficácia e diferenciação das espécies normativas. 1.1. Normas constitucionais e emenda à Constituição. 1.2. Lei complementar e lei ordinária. 1.3. Lei delegada, medida provisória, decreto legislativo e resolução. 2. Flexibilização da Constituição Federal de 1988. 2.1. Classificação das constituições quanto à estabilidade. 2.2. A classificação da Constituição vigente. 2.3. Possibilidade de flexibilização da norma constitucional. 2.4. Recepção de tratados internacionais sobre direitos humanos. 3. Da prisão civil do depositário infiel. 3.1. Influência do Pacto de San José da Costa Rica. 3.2. Natureza da obrigação do depositário judicial 3.3 Confronto do § 3º do art. 666 do Código de Processo Civil. 3.4. Orientação jurisprudencial.


INTRODUÇÃO


O objetivo deste trabalho é a busca de conceitos constitucionais que possibilitem a análise do dispositivo processual civil que trata da prisão do depositário judicial infiel.


Cumpre, inicialmente, verificar o posicionamento doutrinário de constitucionalistas consagrados acerca da existência de hierarquia entre as espécies normativas. Imprescindível esta análise para a identificação da natureza jurídica dos tratados internacionais recepcionados pelo ordenamento jurídico brasileiro, a fim de classificar a posição por eles ocupada e sua eficácia executiva.


Tendo em vista que o Brasil é signatário do Pacto de San José da Costa Rica, um tratado internacional sobre direitos humanos que admite a prisão civil por dívida apenas para o devedor de prestação alimentícia, é necessário buscar, através de análise doutrinária e jurisprudencial com que status esse tratado ingressou no ordenamento jurídico brasileiro.


A importância desse estudo se torna latente se verificada a disposição expressa do artigo 5º, inciso LXVII da Constituição vigente, que permite não só a prisão do inadimplente de verba alimentar, mas também a do depositário infiel, evidentemente em confronto com a orientação do Pacto de San José da Costa Rica.


1 EFICÁCIA E DIFERENCIAÇÃO DAS ESPÉCIES NORMATIVAS


Conforme dispõe o art. 59 da Constituição Federal, são espécies normativas as emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. A ordem de enumeração do artigo em tela enseja grande discussão doutrinária acerca da existência de hierarquia vertical entre essas normas.


Nesse sentido, segundo o entendimento do professor Celso Ribeiro Bastos:


O que distingue uma espécie normativa de outra são certos aspectos na elaboração e o campo de atuação de cada uma delas.


Lei complementar não pode cuidar de matéria de lei ordinária, da mesma forma que lei ordinária não pode tratar da matéria de lei complementar ou de matéria reservada a qualquer outra espécie normativa, sob pena de inconstitucionalidade.


De forma que, se cada uma das espécies tem o seu campo próprio de atuação não há de se falar em hierarquia. […]” (BASTOS, 1999, p. 357)


Assim, embora a letra do dispositivo acarrete a ideia de que há hierarquia entre as normas, parte da doutrina cuidou de desmistificar tal entendimento. Todavia, há de se atentar ao fato de que a emenda à Constituição se trata de uma exceção, sendo hierarquicamente superior às demais espécies normativas, as quais se encontram em um mesmo plano de existência. 


1.1 Normas constitucionais e emenda à Constituição


As normas constitucionais são elaboradas pelo poder constituinte originário, o qual tem por função elaborar o texto primitivo da Constituição, impondo a sua supremacia diante das demais normas e possuindo efeito erga omnes. As normas infraconstitucionais, por sua vez, situam-se em um patamar inferior, devendo obediência aos ditames da Carta Magna sob pena de incorrer em vício de inconstitucionalidade.


Devido à rigidez atribuída pelo legislador à Carta Constitucional de 1988, eventuais propostas de modificação no seu texto devem passar por um rigoroso processo de aprovação pelo Congresso Nacional, haja vista o fato de que essa espécie normativa ganha status de norma constitucional após a sua aprovação, sendo incorporada à Constituição e tendo a mesma eficácia e aplicabilidade das demais normas.


Destarte, importa ressaltar que a proposta de emenda constitucional encontra tanto limitações expressas quanto implícitas, nunca podendo ser contrária ao espírito da legislação. As restrições que encontramos expressamente na Constituição podem ser relativas à matéria, como as cláusulas pétreas, dispostas no § 4º, do art. 60 do texto constitucional, bem como relativas a circunstâncias excepcionais (§ 4 do art. 60) e, por fim, referentes ao procedimento legislativo estabelecido para a reforma. Já as limitações tácitas cuidam de garantir a efetividade da Constituição, impedindo que haja supressão de normas expressas e alteração do titular do poder constituinte derivado reformador.


Desta forma, desde que observadas as limitações impostas pelo legislador constituinte originário, as emendas constitucionais possuem a mesma eficácia e posição hierárquica das normas constitucionais originárias. Importante salientar, entretanto, que por serem obra do legislador constituinte derivado, as emendas sofrem as restrições supra referidas, diferenciando-se nesse tocante das normas constitucionais e sendo passíveis de controle de constitucionalidade, podendo ser retiradas do ordenamento jurídico quando não observadas as regras previstas no art. 60 da CF.


1.2 Lei complementar e lei ordinária


As leis complementares são normas elaboradas com a finalidade de atribuir aplicabilidade aos comandos constitucionais. Embora não sejam menos importantes que as normas constitucionais, são leis que não devem estar no texto da Constituição devido à possibilidade de ser necessária posterior alteração das mesmas. A matéria passível de regulamentação por lei complementar está prevista no texto constitucional em alguns dispositivos, sendo, dessa forma, seu campo de atuação limitado por eles. Há, também, um quorum especial exigido para a sua aprovação: o de maioria absoluta dos votos dos membros das duas casas do Congresso Nacional.


Outra espécie normativa a ser definida é a lei ordinária, que possui o mesmo procedimento de elaboração e aprovação exigido para a lei complementar, diferindo-se desta pela votação, que estabelece o quorum de maioria simples.


Frequente é a discussão acerca da existência ou não de hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária, matéria controvertida que possui brilhantes doutrinadores de ambos os lados. Devido à ordem estabelecida pelo legislador no artigo 59 da Carta Constitucional, há inicialmente uma ideia de que a supremacia é evidente, entendendo nesse sentido juristas como Pontes de Miranda, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Alexandre de Moraes entre outros.


O argumento basilar dos doutrinadores que defendem a hierarquia da lei complementar sobre a lei ordinária é o fato de que a competência da primeira está taxativamente nos dispositivos constitucionais, enquanto a competência da segunda é residual. Reforçam, ainda, com o argumento de que o quorum exigido para a aprovação da lei complementar é mais rigoroso que o da lei ordinária.


Entretanto, deve-se atentar ao fato de que, o legislador estabeleceu o campo de atuação de cada espécie normativa e, em havendo qualquer interferência de competência, a referida lei infringe em vicio de inconstitucionalidade.


1.3 Lei delegada, medida provisória, decreto legislativo e resolução


Cabe, ainda, nesse estudo a definição das demais espécies normativas existentes no ordenamento jurídico brasileiro, bem como a análise de suas características.


As leis delegadas são normas elaboradas pelo Presidente da República, em face de uma autorização do Poder Legislativo, que encontra restrições materiais, fulcro no §1º do art. 68 da CF.


A delegação de função transferida ao Executivo tem caráter temporário e surge a partir de uma solicitação do Presidente da República, o qual deve indicar sobre qual matéria pretende legislar.


Ressalte-se, porém, que apesar da necessidade da aprovação pelo Congresso Nacional, as leis delegadas têm a mesma eficácia das demais normas dispostas no art. 59, sendo a diferença básica entre elas a autoridade que a promulga. Desta forma, a natureza jurídica dessa lei é a de ato normativo primário, originado da Constituição Federal.


Outra espécie normativa que tem origem no Executivo é a medida provisória, que veio a substituir um instrumento de extremo poder chamado decreto-lei, o qual o legislador constituinte resolveu não manter no texto atual, em face da abusividade que dele poderia advir.


A medida provisória possui eficácia desde sua edição e de imediato deve ser submetida à apreciação pelo Congresso Nacional, que se estiver em recesso deve se reunir extraordinariamente para este fim.


Este instrumento está previsto no art. 62 da CF e deve ser adotado apenas em caso de relevância e urgência. Possuem força de lei e são normas necessárias em função da celeridade e eficácia da prestação legislativa do Estado.


Existe, ainda, o decreto legislativo, uma espécie normativa de competência exclusiva do Congresso Nacional, com matéria regulada no artigo 49 da CF. Sua natureza jurídica é de ato normativo primário, todavia a Constituição não cuida de seu procedimento, o qual é disciplinado pelo próprio Congresso Nacional, sendo sua promulgação realizada pelo Presidente da República, não cabendo a ele veto ou sanção.


Por fim, como última espécie normativa a ser analisada está a resolução: ato de competência privativa de qualquer das casas do Congresso Nacional, com efeitos internos, não possuindo caráter genérico como as demais leis, podendo excepcionalmente, entretanto, haver a elaboração de resolução com efeitos externos.


Cabe observar que a disciplina procedimental das resoluções é proposta pelo próprio Congresso Nacional, através do regimento interno de cada casa e não estão sujeitas ao veto ou sanção do Presidente da República, uma vez que se trata de matéria de competência do Legislativo.


2 FLEXIBILIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988


O estudo das constituições nos permite concluir que possuem quatro tipos de classificações quanto à estabilidade dos textos constitucionais, são elas: flexíveis, semi-rígidas, rígidas e imutáveis. A Constituição Federal de 1988 é considerada pela doutrina como rígida, entretanto, há de se analisar algumas circunstâncias que vem a flexibilizar o entendimento por essa classificação.


2.1 Classificação das constituições quanto à estabilidade


A constituição é a compilação das normas que devem reger a vida em sociedade. Desta forma, impossível admitir-se que exista alguma constituição imutável, pois isto seria o mesmo que concluir que uma sociedade não sofre nenhuma modificação. Todavia, a doutrina cuida de classificar como imutável a constituição que não permite nenhum tipo de alteração no seu texto.


Logo, existem as constituições rígidas, que permitem alteração através de um processo legislativo solene, apenas de suas normas, não podendo modificar preceitos e princípios.


Ainda, existem as constituições semi-rígidas, as quais permitem alteração de algumas regras por processo legislativo ordinário, enquanto outras apenas por processo legislativo especial e admitem modificação de normas e preceitos, sendo imutáveis seus princípios.


Por fim, as constituições flexíveis são aquelas podem ser alteradas pelo mesmo processo legislativo das leis ordinárias e admitem modificação de normas, preceitos e princípios.


2.2 A classificação da Constituição vigente


A Carta Constitucional de 1988 é classificada pela doutrina como rígida, tendo como fundamentos o fato de exigir o quorum de três quintos, em dois turnos de votação em cada casa do Congresso Nacional para a aprovação de emendas à constituição; a limitação de legitimidade para propor emendas à constituição (são legítimos: o Presidente da República, um terço dos membros da Câmara dos deputados ou do Senado e mais da metade das Assembléias Legislativas); a existência de limitação material (cláusulas pétreas) e circunstancial (não permite modificação da constituição em vigência de estado de sítio, estado de defesa e intervenção federal).


Alexandre de Moraes (2006, p. 6), ainda, atribui uma classificação diversa da acima descrita para a Constituição Federal de 1988: justamente pelo fato de ser imutável em alguns pontos, este doutrinador a considera como super-rígida.


2.3 Possibilidade de flexibilização da norma constitucional


Devido a diversas circunstâncias, bem como por conta das questões a serem analisadas no presente estudo, embora a doutrina atribua características de rigidez a constituição vigente, é plausível entender que a mesma pode ser classificada como semi-rígida, uma vez que já permitiu alteração de preceitos e normas, como, por exemplo, as advindas da emenda constitucional nº 45.


2.4 Recepção de tratados internacionais sobre direitos humanos


Com o advento da emenda constitucional nº 45 de 2004, o Congresso Nacional passou a ter competência para incorporar tratados internacionais que versem sobre direitos humanos a legislação pátria, com status de lei ordinária, conforme o art. 49, inc. I, da CF, quando introduzido através de decreto legislativo, ou com status de norma constitucional, conforme o § 3º do art. 5º, também da CF.


Assim, após a edição de decreto legislativo aprovando o tratado internacional – aprovação esta que dispensa sanção presidencial – o mesmo ainda não possui executoriedade no plano nacional. Para tanto, necessita da ratificação por parte do Presidente da República, passando então a ter aplicação erga omnes.


Imperioso salientar que após o tramite acima descrito, o tratado recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro passa a ter a mesma eficácia das normas infraconstitucionais. Todavia, para que tenha status de norma constitucional, é imprescindível observar a disposição do §3º do art. 5º da CF, que prevê a aprovação em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, ou seja, o mesmo processo legislativo das emendas constitucionais, sendo a elas equiparado.


3 DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL


Há muito se discute acerca do cabimento da prisão civil do depositário judicial que descumpra sua função pública de guarda e conservação dos bens em litígio. A prisão, que tem por finalidade a aplicação de medida coercitiva em face do poder de polícia do juiz, vinha sendo admitida, lastreada por orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.


Entretanto, apesar da aparência de pacificação do entendimento da possibilidade de prisão, baseada não só na Constituição Federal, mas também no texto da lei 11.382 de 2006, a questão ainda se mostra extremamente controvertida, sendo pertinente, assim, um estudo minucioso do tema.


3.1 Natureza da obrigação do depositário judicial


O depositário judicial é um auxiliar da justiça e tem por função guardar o bem e protegê-lo até o momento em que o juiz o requisita novamente para que se proceda à expropriação e posterior entrega do produto da alienação ao credor da ação em litígio.


Importante ressaltar que não se trata de simples relação cível, firmada a partir de contrato de depósito, trata-se de função pública, em virtude da qual receberá emolumentos, no caso de ser depositário público, ou remuneração, se particular, sendo responsabilizado cível e criminalmente pelos atos praticados.


Desta forma, o depositário que descumpre ordem judicial será considerado infiel e será submetido ao disposto no § 3º, do art. 666 do CPC: “A prisão de depositário judicial infiel será decretada no próprio processo, independentemente de ação de depósito.”


Com a reforma do Código de Processo Civil em 2006, que acrescentou ao texto do art. 666 o parágrafo 3º acima referido, surgiram ares de pacificação da matéria, vez que o dispositivo contava ainda com a taxativa permissão constitucional da prisão civil do depositário infiel, fulcro no art. 5º, inciso LXVII.


3.2 Confronto do § 3º do art. 666 do Código de Processo Civil


A Carta Constitucional brasileira, junto ao § 3º, do art. 666 do CPC, admitem a prisão civil do depositário judicial infiel.


Em 1992, entretanto, o Brasil ratificou o Pacto de San José da Costa Rica, um tratado internacional que admite tão somente a prisão civil por dívida em caso de inadimplemento de obrigação alimentícia. A colisão entre a disposição deste tratado e o §3º do art. 5º da CF, implicou uma análise mais apurada da hierarquia atribuída à norma recepcionada, bem como acarretou uma discussão acirrada acerca da constitucionalidade da prisão do depositário infiel.


Contudo, conforme já mencionado, o diploma processual civil parecia ter dado um fim a essa discussão, quando na reforma de 2006, momento em que vigia a súmula 619 do STJ, com a seguinte redação: “A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito.”, seguiu a orientação dos tribunais superiores admitindo a prisão do depositário infiel.


3.3 Influência do Pacto de San José da Costa Rica


Aparentemente adormecida a questão controvertida pelo advento da lei 11.382 de 2006, utilizando a expressão de Fredie Didier Junior (2009), eis que surge uma reviravolta jurisprudencial, quando em 03 de dezembro de 2008 o ministro Gilmar Mendes profere nos autos do RE n. 466.343-1/SP decisão que, em suma, conclui que não há base legal para a aplicação da parte final do art. 5º, inc. LXVII, da CF, embora a ratificação do Pacto de San José não tenha status de norma constitucional.


Após esta decisão, a súmula 619 do STJ foi revogada e, atualmente, mais uma vez a matéria em tela parece ter sido pacificada. Entretanto, deve-se atentar ao fato de que a decisão do STF considerou o status de supralegalidade do tratado, mesmo não tendo sido aprovado com o quorum exigido para a equivalência à emenda constitucional. O caráter de supralegalidade atribuído aos tratados internacionais, deve ser considerado, conforme o entendimento do Ministro Gilmar Mendes, como uma sobreposição às normas infraconstitucionais, ainda que não mudem o texto da constituição.


Evidentemente, a decisão é suprema no tocante aos depósitos civil particulares, decorrentes de contratos, bem como as de alienação fiduciária. Porém, o depósito judicial deve ser analisado com maior atenção, haja vista o fato de que a prisão prevista no § 3º do art. 666 do CPC não é decorrente de dívida, mas sim do descumprimento a ordem legal e por isso prescinde de coerção.


A finalidade primordial de se decretar um depositário para custodiar o bem é o fato de que o mesmo será a garantia de adimplemento da dívida e a falta de coerção leva a impunidade, uma vez que os depositários incorrem em má-fé ao se desfazerem dos bens sem nenhuma punição sofrem por isso.


Desta forma, percebe-se que há uma inversão de valores pelo fato de que princípios constitucionais e ratificação de tratados internacionais de direitos humanos propiciam e asseguram que a ação maliciosa de agentes que deveriam agir com fé pública fique impune. 


3.4 Orientação jurisprudencial


Em meio à discussão acerca da posição hierárquica dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de se verificar o cabimento da prisão do depositário infiel, o entendimento do Supremo Tribunal Federal permanece no sentido inadmissão de tal medida, conforme se depreende da jurisprudência que segue:


“RECURSO. Extraordinário. Provimento Parcial. Prisão Civil. Depositário infiel. Possibilidade. Alegações rejeitadas. Precedente do Pleno. Agravo regimental não provido. O Plenário da Corte assentou que, em razão do status supralegal do Pacto de São José da Costa Rica, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel.” (RE 404276 AgR, Relator: Min. Cezar Peluso, Segunda Turma, julgado em 10/03/2009, DJe-071, 16-04-2009)


Nesta esteira, percebe-se que o STF firmou o entendimento vanguardista do Ministro Gilmar Mendes, dando suporte aos demais Tribunais Superiores, que vêm seguindo essa mesma orientação jurisprudencial. Assim, vale analisar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:


“HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL DE DEPOSITÁRIO JUDICIAL. ILEGALIDADE. PRECEDENTES. 1. Consoante entendimento do Supremo Tribunal Federal, comungado por este Tribunal Superior, a prisão civil do depositário infiel é inconstitucional, em qualquer modalidade, podendo a segregação civil por dívida se dar, apenas, nos casos de inadimplemento voluntário e inescusável de pensão alimentícia. 2. Ordem concedida para afastar a prisão.” (HC 138457 / SP, Relator: Min. Vasco Della Giustina, T3 – Terceira Turma, julgado em 13/10/2009, DJe 27/10/2009).


Imperioso observar que, mesmo no âmbito da Justiça do Trabalho, onde, embora contrariando a orientação do STF, as decisões favoráveis à prisão do depositário infiel eram frequentes, atualmente têm se encontrado jurisprudências que firmam o entendimento de que não há mais base legal no ordenamento jurídico brasileiro para a efetivação da prisão por infidelidade depositária. Nesse sentido, eminente Ministro do Tribunal Superior do Trabalho preleciona:


“RECURSO ORDINÁRIO. HABEAS CORPUS. DEPOSITÁRIO JUDICIAL. PRISÃO CIVIL. IMPOSSIBILIDADE. A despeito do entendimento adotado pelo Tribunal a quo para conceder a ordem, bem como antes de se cogitar da hipótese de depositário fiel ou infiel, tem-se que a expedição do decreto prisional na hipótese mostra-se ilegal por outro fundamento, notadamente aquele acerca da ilegalidade da prisão civil do Paciente na condição de depositário infiel, porquanto relacionado com a aplicação das Convenções e dos Tratados Internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, como no caso do Pacto de São José da Costa Rica, que prevê a exclusividade da prisão civil do devedor de alimentos. Precedentes desta eg. Subseção em observância à jurisprudência da Suprema Corte que, inclusive, cancelou entendimento anterior sufragado na Súmula nº 619 daquele Tribunal. Nessa linha, tem-se como irretocável a decisão recorrida que, confirmando a liminar deferida, concedeu a ordem de habeas corpus para manter o salvo conduto expedido em favor da Paciente. Recurso ordinário a que se nega provimento.” (ROHC – 88/2003-000-05-00.3, Relator: Min. Emmanoel Pereira, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, julgado em 27/10/2009, DEJT 06/11/2009).


Desta forma, compreende-se que a posição adotada pelo STF tem acarretado a homogeneização do entendimento dos Tribunais Superiores, tornando pacifica, pelo menos no âmbito jurisprudencial, a decisão pela ilegalidade da decretação de prisão do depositário infiel.


CONCLUSÃO


A análise do §3º do art. 5º da Constituição Federal enseja o entendimento de que os tratados internacionais recepcionados pelo ordenamento jurídico brasileiro, com o quorum estabelecido por este dispositivo, são equivalentes às emendas à Constituição. Todavia, a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal nos permite concluir que tais tratados possuem um status de supralegalidade, estando hierarquicamente superior às leis infraconstitucionais, bem como abaixo das normas da Constituição Federal.


A alteração de normas e preceitos da Carta Constitucional pressupõe que, hodiernamente, tem havido uma flexibilização da Constituição, de forma que se torna questionável a classificação de rigidez atribuída pela doutrina.


Ao ser recepcionado pelo Brasil, o Pacto de San Jose da Costa Rica causou um imbróglio no ordenamento jurídico do país, uma vez que contraria preceitos que, até então, eram pacificamente utilizados pelos operadores da justiça. Com a reviravolta, a doutrina e a jurisprudência passaram a buscar uma solução para a situação desencadeada, sendo atualmente seguida a orientação jurisprudencial do STF de inadmissão da prisão do depositário judicial infiel, embora não se tratando de dívida civil.


 


Referências

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ENCARNAÇÃO, Fátima Luvielmo. Guia para apresentação de trabalhos científicos para os acadêmicos do curso de direito. Rio Grande: Editora da Furg, 2003.

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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 44ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

 

Nota:

[1] Trabalho Elaborado no Núcleo de Pesquisa Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, sob orientação do Prof. João Moreno Pomar.


Informações Sobre o Autor

Juliana Antunes Souza

Acadêmica de Direito da FURG/RS


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