O reconhecimento da supremacia da Constituição Federal[1] e a respectiva projeção das normas constitucionais por sobre todo o ordenamento jurídico deu azo ao que se denominou de constitucionalização do direito.
Na seara do direito privado não existe mais a clássica e rígida separação entre direito civil e direito constitucional, vez que este último passou a irradiar para todo o ordenamento jurídico, uma gama enorme de princípios que se tornaram vetores axiológicos capazes de produção, interpretação e aplicação das normas de direito infraconstitucional.
Foi o pioneirismo alemão expresso no caso Lüth que originou a constitucionalização, indo até o reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais nas relações privadas, tendo como base a explicitação dos efeitos da constitucionalização nas leis privatísticas.
O presente texto visa dar um breve estudo doutrinário a respeito da constitucionalização do direito e deu-se ênfase à autoridade exercida pelas normas contidas na Constituição sobre todas as regras que tecem o ordenamento jurídico, explicitando particularmente a dimensão objetiva dos Direitos Fundamentais, nas relações entre particulares.
Concluímos que a constitucionalização afetou princípios cardeais do direito privado clássico tais como a autonomia da vontade, e propriedade que diante de nova dimensão passarão a ser funcionalizando, tendendo a repercutir positivamente na coletividade.
É estudo contemporâneo observar atentamente a constitucionalização do direito, principalmente a partir da análise de irradiação dos valores constitucionais para todo o ordenamento jurídico brasileiro, e ainda demonstrar os efeitos dessa projeção axiológica que remodelou o direito privado.
Realmente a nova hermenêutica constitucional nos orienta no sentido de dar maior efetividade aos princípios constitucionais, superando a compreensão de que os direitos fundamentais apenas teriam o poder de proteger o indivíduo em face do Estado.
A ocorrência de afronta aos direitos fundamentais[2] exercida pelos próprios particulares e, em face uns dos outros, sendo que, nesse caso, ao contrário do que ocorre na tradicional concepção de proteção aos direitos fundamentais que entende ser oponíveis apenas em face do Estado, sendo o indivíduo o polo da relação que titulariza os direitos, ao passo que ao Estado cumpre protegê-los, ambas as partes do conflito são pois titulares de direitos e garantias fundamentais, de maneira a ensejar três modos de aperfeiçoamento da ordem jurídica que se preocupa a dar maior concretude a esses direitos nas relações privadas:
a) quando da criação/atualização da norma de direito privado;
b) quando de sua interpretação;
c) quando da aplicação, seja de forma extrajudicial seja através da atividade jurisdicional.
O fenômeno da constitucionalização do Direito traz consequências específicas e, peculiar repercussão no direito brasileiro. Tanto assim que há decisões da Corte Constitucional alemã que servem de fonte doutrinária e jurisprudencial para nosso direito constitucional.
É sabido que os direitos fundamentais[3], tal como lhes concebeu a doutrina e a jurisprudências constitucionais desenvolvidas na segunda metade do século XX, passaram a tecer a base de todos os ordenamentos jurídicos, como valores informativos e diretivos, de maneira a figurar, conforme Robert Alexy, como normas de otimização da aplicação das regras jurídicas.
Essa mudança de concepção do ordenamento jurídico deu-se pelo reconhecimento da superioridade hierárquica da Constituição, e da existência da força normativa de seus princípios, consistiu num autêntico giro de Copérnico porquanto colocou os valores fundamentais como vetores e fundamento da atuação do Estado e dos indivíduos.
Também se deu o reconhecimento da nova hermenêutica constitucional e com a expansão da jurisdição constitucional, são os três elementos que, segundo Luís Roberto Barroso viabilizaram a constitucionalização do direito.
Existem três acepções que procuram definir o que é constitucionalização do direito. Sendo a primeira destas a que o entende como existência, num determinado Estado, de uma ordem jurídica com Constituição própria, dotada de supremacia.
A segunda acepção consiste no entendimento de que a expressão constitucionalização do direito significa o fato de que as normas jurídicas tipicamente infraconstitucionais passam a fazer parte do corpo normativo contido na Carta Magna.
Ambos os entendimentos contém falhas, seja por não especificarem fenômeno nenhum, haja vista o caráter genérico que expressa, como no primeiro caso; seja por compreender a constitucionalização a partir de prisca especificamente positivista e restritiva como no segundo caso.
A acepção mais escorreita de constitucionalização do direito é a que a define como um fenômeno de expansão das normas constitucionais, cujo conteúdo axiológico se irradia, com força normativa, sobre todo o sistema jurídico. Assim os princípios constitucionais passaram a condicionar a validade e o sentido de todo o ordenamento.
A constitucionalização no direito privado é visível através de limitações construídas aos dois institutos mais prestigiados pela doutrina jusprivatística: a autonomia da vontade, a relatividade à liberdade de contratar; e uso da propriedade privada, mediante a subordinação aos valores constitucionais e o respeito aos direitos fundamentais.
É pacífico em doutrina que a constitucionalização do direito é um processo que veio se consolidando a partir da Segunda Guerra Mundial, quando, com a criação do Tribunal Constitucional da Alemanha, em 1949, e diante do reconhecimento da carga valorativa do texto constitucional, evidenciou-se o "giro copernicano" conforme se referiu Jorge Miranda apud Marcelo Lima Guerra.
Com esse momento histórico marcante para os países de tradição romano-germânica, surgiu um novo constitucionalismo cuja ideia fundamental baseado na dignidade da pessoa humana e que serve de fundamento de todos os demais princípios constitucionais. Serve de fundamento material para a unidade axiológica da Constituição Federal, harmonizando os demais direitos fundamentais.
Com efeito, a pessoa humana é o valor básico da Constituição, o uno do qual provém os direitos fundamentais não por emanação metafísica, mas por desdobramento histórico, ou seja, pela conquista direta do homem. Só podemos compreender os direitos fundamentais mediante o retorno da noção de dignidade da pessoa humana, pela regressão à origem.
E, havendo colisão[4] de direitos fundamentais[5] em um caso concreto, deve-se referi-los à noção de dignidade da pessoa humana, pois nela todos os princípios encontrarão a sua harmonização prática, descobrindo-se uma solução que considera a existência de todos os direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que se procede a uma hierarquização entre eles, em consonância com a compreensão social do que é mais relevante para se alcançar o fim coletivo e a dignificação da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana serve de pré-compreensão para os direitos fundamentais (emanações), e a compreensão dos últimos, no caso concreto, através do retorno à ideia original, configurará um círculo hermenêutico.
Desta forma, se expressa uma repersonificação juntamente com uma despatrimonialização e uma funcionalização do Direito Civil, na medida em que a proclamação da dignidade da pessoa humana, como vetor do sistema constitucional brasileiro que rende primazia ao sujeito de direitos, visando a afastar o individualismo patrimonialista despersonalizado que domina, por muitos séculos, a doutrina civilista.
O caminho a percorrer, relatou Fachin é a retomada e decolagem. Uma viagem pedagógica do saber jurídico informado pelas premissas críticas e pelos novos perfis do Direito Civil. Conjugando a virada copernicana que recoloca os papéis e funções do Código e da Constituição, reafirma a primazia da pessoa concreta, tomada em suas necessidades e aspirações, sobre a dimensão patrimonial, e sustenta, por meio da repersonalização, a inegável oportunidade do debate permanente entre os espaços público e privado.
Ao assim proceder, baseia-se na funcionalização das titularidades para repensar paradigmas contemporâneos, e para introduzir questões de fundo que, associando conteúdo e método no arco histórico, atravessam o evento unitário da codificação.
Nesse sentido, um processo específico constitui o marco jurisprudencial do reconhecimento da constitucionalização do direito. Trata-se de um julgado da Corte Constitucional alemã, datado de 15 de janeiro de 1958, conhecido como caso Lüth. Para melhor compreensão, passamos a descrever de forma resumida esse histórico processo.
O Sr. Lüth iniciou, em 1950, uma campanha, junto aos proprietários e frequentadores de salas de cinema, visando a que um filme fosse boicotado, sob o argumento de que o diretor havia rodado um filme antissemita quando do regime do nacional socialismo.
Iniciado o processo, fora condenado, nas instâncias ordinárias, a não repetir o ato de estímulo ao boicote, com fundamento no parágrafo 856 do BGB (Código Civil Alemão) teria violado o direito fundamental à liberdade[6] de opinião do recorrente, que é assegurado pelo art. 5º, inciso I da Lei Fundamental de Bonn.
Foi nesse julgado que a Corte Constitucional utilizou-se de expressão que se celebrizou, quando se afirmou que a Lei Fundamental, "erigiu na seção referente aos direitos fundamentais uma ordem objetiva de valores (…) que deve valer enquanto decisão fundamental de âmbito constitucional para todas as áreas do direito".
Diante dessa afirmação se concluiu que o sistema de valores constitucionais[7] "obviamente também influi no Direito Civil [e] nenhuma prescrição juscivilista pode estar em contradição com este, devendo cada qual ser interpretada à luz do seu espírito.”.
A partir desse julgado, afirmou-se peremptoriamente, o efeito de irradiação dos Direitos Fundamentais sobre o Direito Privado, através do reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais.
Especificamente no Brasil, a acepção de constitucionalização do direito, antes presente na doutrina, ganhou grande reforço com o advento da Constituição Federal de 1980, uma vez traz, em seu bojo, tratamento jurídico de diversos institutos de direito infraconstitucional, como, por exemplo, usucapião, relações trabalhistas, etc.
A inserção dessas matérias no bojo da Constituição, apesar de não caracterizar tecnicamente a constitucionalização do direito, é de enorme finalidade na medida em que, sendo a Constituição o fundamento de validade último de todo o ordenamento jurídico, já traz em si a explicitação dos valores que guiarão a atividade do intérprete e do aplicador da norma infraconstitucional.
Para melhor compreensão do processo de criação de norma de direito privado, tendo como norteador a Constituição Federal, faz-se imperioso explicitar o entendimento de Luís Roberto Barroso para quem a relação Direito Civil/Direito Constitucional tem três fases distintas, quais sejam:
No primeiro momento, havia mundos apartados. Trata-se do primeiro constitucionalismo, decorrente das revoluções burguesas, notadamente a Revolução Francesa, quando prevaleceu entendimento de que a Constituição seria apenas uma Carta Política, disciplinando as relações entre o Estado e o cidadão, em que o Estado abstencionista deveria permitir a livre atuação dos particulares na realização de seus interesses.
O Código Civil, por outro lado, representava, efetivamente um documento jurídico, porquanto disciplinava as relações entre os particulares, sendo compreendido como a "Constituição do direito privado".
Os poderes da Constituição sofriam limitação, na medida em que representava uma convocação à atuação dos Poderes Públicos, e a efetivação dependia da atuação do legislador.
Não tinha força normativa própria nem aplicabilidade direta e imediata, ao passo que o Código Civil herdeiro do Direito Romano, disciplinava as relações jurídicas dos dois principais atores da vida civil: o proprietário e o contratante.
No segundo momento, dá-se a publicização do Direito Privado. Diante dos abusos perpetrados pelo individualismo que a legislação civil infraconstitucional permitia, fez- necessária à atuação do Estado no sentido de barrar esses abusos, visando a possibilitar a equiparação das partes no trato negocial.
Surge, nesse momento, o chamado Estado Social[8], projetado no Direito Privado, sobretudo através do dirigismo contratual, que se expressava no momento em que o Estado começa a intervir nas relações privadas, através da edição de normas de ordem pública destinadas à proteção do lado mais fraco da relação jurídica.
Dá-se, aqui, a revisão da autonomia da vontade e atribuição de relevância à solidariedade social e à função social de institutos como a propriedade e o contrato. E, que passou também ocorrer para a responsabilidade civil e para a família.
No terceiro momento da Constitucionalização do Direito Civil quando efetivamente a Constituição ocupa o centro do sistema jurídico, de onde passa a irradiar os valores através dos quais deve ser criado/interpretado/aplicado o Direito Civil.
A própria Constituição já em seu bojo traz as normas que privilegiam os princípios constitucionais, vão de encontro a outras regras infraconstitucionais, de sorte que, no confronto entre as duas, a norma inferior perca seu fundamento de validade.
É fácil identificar no exemplo do que ocorreu como o pátrio poder quando da promulgação da Constituição de 1988, com o fim da supremacia do marido no casamento, sucedeu que o pátrio poder cedeu lugar ao poder familiar, isto é, como base na isonomia que vige entre marido e mulher, na administração dos interesses da família.
Da mesma forma, podem-se citar as alterações diretamente decorrentes da afirmação da plena igualdade entre os filhos (entre os cônjuges), que vedou qualquer forma de discriminação àqueles que não sejam concebidos na relação conjugal.
O legislador, inserido nessa nova realidade de primazia da Constituição sobre todo o sistema jurídico, fica condicionado, na elaboração normativa de todo o direito, inclusive do direito privado, à observância, por exemplo, dos princípios de igualdade, quando for disciplinar matéria de conteúdo contratual e de direito de família; e da solidariedade e da socialidade, na elaboração de normas que digam respeito à propriedade.
Desta forma, a tarefa legislativa adaptar a legislação ordinária às prescrições constitucionais de caráter dirigente, realizá-la por meio da legislação.
No mesmo sentido expressou-se Gustavo Tepedino, quando afirmou: "Não há dúvida que as normas constitucionais incidem sobre o legislador ordinário, exigindo produção legislativa compatível com o programa constitucional, e se constituindo em limite para a reserva legal[9]".
A elaboração normativa se expressa, num primeiro momento, quando da criação de regramento novo pelo legislador. Nesse sentido, as normas que surgem devem ter o condão de explicitar os valores constitucionais que são afetos ao tema legislado. Assim, a criação legislativa tem o dever de render eficácia à Constituição, através da disponibilização de normas que atendam aos seus princípios norteadores.
Nesse sentido, cita-se como exemplo, o advento do Código de Defesa do Consumidor, visando dar maior eficácia, nas relações jurídicas de direito privado, aos princípios constitucionais fundamentais que tratam da proteção e defesa do consumidor.
Mas o legislador tem o dever, também, de aperfeiçoar a legislação que já se encontra em vigor, de modo que as normas infraconstitucionais sejam otimizadas no sentido de possibilitar uma maior aplicação dos valores constitucionais.
Sobre esse segundo momento de atuação do legislador, pode-se citar, por exemplo, o advento do próprio Código Civil, que traz em seu conteúdo, regras que consagram princípios constitucionais, como a função social da propriedade e do contrato, a instituição do poder familiar em substituição ao pátrio poder, dentre outros.
Ressalte-se que esse mecanismo de otimização da legislação infraconstitucional tem se verificado, na seara civil, também no diz respeito às leis esparsas.
Como, por exemplo, Lei Federal 10.931/04 que, alterando dispositivos do Decreto-Lei 911/69, pôs fim à situação anti-isonômica que se criara em desfavor do devedor fiduciário.
Pela antiga disciplina da matéria, este apenas poderia requerer a purga da mora caso já houvesse adimplido 40% do débito, hipótese que gerava desigualdades em face dos demais devedores que não se encaixassem nessa situação.
O legislador ordinário, desta forma, visando por fim a essa mesma desigualdade, editou a Lei 10.931/04, que, reconhecendo a inconstitucionalidade que então havia, expurgou a exigência de adimplemento mínimo para que se concedesse a faculdade de pleitear a purga da mora.
Em decorrência da afirmação de que a Constituição passa a ocupar o centro do ordenamento, impera a necessidade de se reconhecer que todos os atores da atividade jurídica estão sujeitos à observância dos princípios constitucionais. E, dessa realidade não pode fugir os intérprete da norma, uma vez que a interpretação de toda e qualquer norma está condicionada à observância dos princípios constitucionais.
Nesse sentido, é curial a lição de Luís Roberto Barroso:
"O ponto de partida do intérprete há de ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie.".
Aos princípios cabe embasar as decisões políticas fundamentais; dar unidade ao sistema normativo e pautar a interpretação e aplicação de todas as normas jurídicas vigentes. Os princípios irradiam-se pelo sistema normativo, repercutindo sobre as demais normas constitucionais e infraconstitucionais.
Quanto à aplicação da norma jurídica, não há mais lugar para o silogismo puro e simples. A estrutura principiológica da Constituição, proclamando valores, confere ao intérprete maior grau de liberdade. Mas há, em contrapartida, a criação de deveres direcionados ao intérprete, uma vez que se exige um comprometimento deste com a própria essência da Constituição.
Esse caráter aberto e fragmentário, que dá ao intérprete maior grau de mobilidade na sua concretização, acarreta maior responsabilidade, porque não se pode prescindir da normatividade constitucional, isto é, não se pode admitir qualquer atribuição de sentido em detrimento da manifestação ontológica da Constituição – pois se trata de algo que se dá como condição de possibilidade de sua interpretação, mas de verificar o grau, a intensidade de vinculação que ela objetivamente suscita no intérprete e na liberdade de concretização que ele possui diante de suas normas.
Predominou, por longo tempo, o entendimento de que os princípios norteadores da ordem jurídica seriam os princípios gerais de direito, a que se refere à Lei de Introdução ao Código Civil[10].
Essa noção de princípio remete ao jurista para a ideia do brocardo, ou seja, o princípio nada mais seria do que a fonte histórica do instituto, na forma como foi idealizada e aplicada em sua origem.
Ressalta o autor que o complemento, que a escola da exegese é, antes de tudo, uma estrutura de controle daquilo que deve ou não ser admitido em uma nova ordem, o que teria afastado a predominância dos princípios.
Por essa razão, como apontou Gustavo Kohl Muller Neves[11] foram os princípios gerais de direito, quando da época das codificações, relegados, a segundo plano, porquanto remetiam ao direito antigo, que os ideais revolucionários afastavam, como condição para o estabelecimento de uma nova ordem jurídica.
O culto à lei somando ao desprestígio dos princípios, agravado quando da supremacia do positivismo na Europa, fez com que não mais se questionassem as instâncias de valor que deveriam estar contidas na norma. Assim, não se cogitava sobre a justiça ou a legitimidade da regra, bastando que ela fosse elaborada em conformidade com o processo legislativo preceituado na Constituição.
Porém, os graves incidentes da Segunda Guerra Mundial criaram uma necessidade metodológica de se construir uma teoria do direito aliada a valores, somando, às instâncias de validade da norma – decorrentes do processo legislativo – as instâncias de valor.
Foi com esse ânimo que Gustav Radbruch[12] fez publicar uma circular, que distribuiu aos alunos da Faculdade de Direito Heidelberg, intitulada como "Cinco Minutos de filosofia do Direito" em que afirmava: "Não, não se deve dizer-se: tudo o que for útil ao povo é direito; mas, ao invés: só que for direito é útil e proveitoso para o povo.”.
Tornou-se premente assim que o Direito, notadamente o Direito Civil, passasse a ser interpretado em conformidade com os princípios constitucionais, o que permite afirmar que a interpretação do direito privado deve ser pautada, como já afirmou por Luís Roberto Barroso, nos valores contidos na Constituição.
Exige-se do intérprete-integrador-aplicado que proceda segundo os ditames do que denomina "Hermenêutica Total", observando-se sempre a finalidade da interpretação /integração, que é a busca da Justiça.
Mas, para ser total a Hermenêutica precisa de manter o ser humano em seu patamar de dignidade, ao mesmo tempo em que não permitia que sua individualidade prejudicasse o funcionamento do todo, em cujo âmbito também estão inumeráveis outras individualidades.
Assim, contemplará todos os valores que lhe for viável contemplar; lembrar-se-á da parte interpretante e da parte destinatária; terá sensibilidade para o funcionamento do todo como âmbito de realização das partes e de cada parte como possibilitarão funcional da coordenação no todo. E tudo isso como afã de equilíbrio, ou, no caso do Direito, como fator de consecução de justiça.
Nesse diapasão, tem-se que é obrigação primordial do aplicador na norma de direito privado manter como finalidade precípua a consecução da Justiça, representada, aqui, pela observância aos princípios constitucionais, notadamente aqueles que afirmem e promovam o reconhecimento da humanidade das pessoas envolvidas na relação jurídica.
Importante papel na interpretação do direito e, mais recentemente, do direito privado, é exercido pelo Princípio da Proporcionalidade[13]. Esse princípio constitucional tem exercido enorme influência na atividade hermenêutica, na medida em que tem direcionado o intérprete a encontrar a solução que mais renda eficácia aos preceitos contidos na Constituição.
As situações jurídicas de direito privado em conflito podem ter, cada uma destas, um fundamento em um determinado princípio constitucional, como, por exemplo, o conflito existente entre o direito à informação e o direito à privacidade, representando um conflito de direitos fundamentais[14] que ocorre exclusivamente no âmbito civil.
"O Direito perde, então, inevitavelmente, a cômoda unidade sistemática antes assentada, de maneira estável e duradoura, no Código Civil […] O intérprete passa então a se valer dos princípios constitucionais, como normas jurídicas privilegiadas para reunificação do sistema interpretativo, evitando, assim as antinomias provocadas por núcleos normativos díspares, correspondentes a lógicas setoriais sem sempre coerentes.".
É exatamente na resolução desse tipo de problema que se manifesta pungente a constitucionalização da interpretação do direito privado, que se dá através da aplicação do princípio da proporcionalidade. Imperioso se fazer menção aos ensinamentos de Willis Santiago Guerra Filho, que aduz:
"Para resolver o grau de dilema que vai então afligir os que operam com o Direito no âmbito do Estado Democrático contemporâneo, representado pela atualidade de conflitos entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, por ser a mesma posição que ocupam na hierarquia normativa, é que se preconiza o recurso a um "princípio dos princípios", o princípio da proporcionalidade, que determina a busca de uma "solução de compromisso", na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo ao (s) outro(s) jamais lhe(s) faltando minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhe seu "núcleo essencial", em que se encontra entronizado o valor da dignidade humana”.[15].
Não se pode esquecer, ainda, da constitucionalização do direito privado que se opera através da concessão, a determinada regra, de interpretação conforme a Constituição.
Através dessa técnica, é possível conceder, a determinada norma, significado que a amolde à interpretação que a Corte Constitucional confere à constituição, o que se pode dar por duas formas:
a) pela leitura da norma infraconstitucional da melhor forma que realize o sentido e o alcance dos valores constitucionais que lhe são subjacentes;
b) declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, mediante a exclusão de interpretação possível e afirmação de uma outra interpretação compatível com a Constituição.
Conforme aduziu Inocêncio Mártires Coelho:
"(…) presumem-se constitucionais os atos do Congresso; na dúvida, decide-se pela sua constitucionalidade; entre duas interpretações, escolhe-se a que torne esses atos compatíveis com a Constituição, ao invés de preferir a que afronte o texto fundamental; e por fim, diante de vários sentidos que se consideram igualmente constitucionais, deve-se dar preferência ao que, orientado para a Constituição, melhor corresponde às decisões do legislador constitucional."
Desta forma, verifica-se, que na tarefa de interpretação normativa do direito privado, diante de sua irradiação nas relações entre particulares, deve prevalecer o sentido que melhor atenda os princípios constitucionais, de sorte a conferir eficácia à Constituição.
É a proclamação da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que consiste, segundo Marcelo Lima Guerra, nos efeitos jurídicos decorrentes do reconhecimento dos direitos fundamentais como valores fundamentais constitutivos da ordem jurídica, que faz com que se possa aplicar, nas relações privadas. A proteção constitucional desses mesmos direitos fundamentais.
Willis Santiago Guerra Filho, proclamando a irradiação dos direitos fundamentais na relação entre particulares, afirma:
É nesse contexto que se supera, igualmente, a visão clássica dos direitos e garantias fundamentais enquanto direitos e garantias individuais, liberdades publicas, voltados exclusivamente contra o Estado, o qual, perante tais direitos, teria o dever de tão somente abster-se da prática de atos que os ameaçasse ou violasse.
Atualmente, não apenas se concebem os direitos fundamentais como dotados de um aspecto prestacional, a exigir ações por parte do Estado para implementá-los, mas também, sendo o que aqui nos importa particularmente destacar, se atribui a tais direitos uma eficácia reflexa, ou eficácia perante terceiros (Drittwirkung), tornando-os aptos a proteger seus titulares também contra ameaças e violações por parte de seus co-cidadãos, individualmente considerados ou coletivamente organizados, de modo especial na forma de “poderes sociais” (soziale Gewalten), representados por grandes organizações da sociedade civil organizada e/ou do setor empresarial (…).
É assim que o clássico direito de propriedade, pedra angular sobre a qual se erige grande parte do sistema de direito privado, deverá ser conformado pelos princípios fundamentais constitutivos do Estado Democrático[16] de Direito em nosso País, dentre os quais figuram, por força ao art. 1º, incisos III e IV, a dignidade da pessoa humana, bem como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, respectivamente.
Da mesma forma que essas formas sociais podem prejudicar o sistema político, em razão de sua alta concentração de poder, o mesmo ocorre no âmbito jurídico. Essas corporações, ainda que privadas, alcançam uma posição de dominação, sobretudo por meio da concentração financeira, que lhes confere um tal poder de decisão mas suas relações com os indivíduos, que qualquer relação jurídica entre ambos, a despeito de se fundar aparentemente na autonomia da vontade, é, na verdade, uma relação de dominação, que ameaça tanto quanto a atividade estatal, os direitos fundamentais dos particulares.
Foi a partir do reconhecimento da possível violação de direitos fundamentais levada a cabe por particulares que a Corte Constitucional alemã, como visto, concedeu provimento ao recurso interposto no caso Lüth.
A partir de então, reconhece-se a legitimidade do Judiciário, para, através da aplicação da Constituição nas relações entre particulares, dar nova interpretação às normas de direito privado, de modo a garantir a observância de preceitos constitucionais fundamentais.
A distinção que se levou a cabo, a partir desse julgamento, consiste em reconhecer que, ao contrário das relações indivíduo- Estado, em que apenas eram titulares de direitos fundamentais, nas relações privadas ambas as partes titularizam esses direitos, de sorte que, na atuação do Poder Judiciário, quando da resolução de conflitos desse jaez, se apresenta de fundamental importância o princípio da proporcionalidade[17], na medida em que viabilizará o sopesamento dos princípios em jogo, a fim de reconhecer qual valor fundamente da regra infraconstitucional deverá prevalecer, assegurando, ainda o menor prejuízo possível à parte que sucumbir.
O reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais possibilitou, assim, a atuação dos magistrados, no sentido de, através da interpretação e da aplicação da norma infraconstitucional, aperfeiçoar o sistema jurídico, adaptando-o à Constituição[18].
Sobre a influência da dimensão objetiva dos princípios constitucionais sobre o Poder Judiciário, afirma o Marcelo Lima Guerra: No tocante à atuação dos órgãos jurisdicionais, que é o que interessa mais de perto, no presente trabalho, advirta-se que a dimensão objetiva dos direitos fundamentais é o que determina, por exemplo:
a) que o órgão jurisdicional identifique e deixe de aplicar normas excessivamente restritivas de direito fundamental, independentemente de qualquer manifestação de um dos eventuais titulares do direito restringido;
b) “que os direitos fundamentais, uma interpretação conforme à Constituição, no sentido de extrair direito fundamental relacionado a esta;
c) que o órgão jurisdicional leve em consideração, na realização de um determinado direito fundamental, eventuais restrições a este impostas pelo respeito a outros direitos fundamentais independentemente mesmo de qualquer consideração quanto à dimensão subjetiva desses últimos”.
É essa alteração de posicionamento que se vem verificando na jurisprudência brasileira, irradiando da nova ótica que se tem dado aos julgados do STF que apesar de não ser propriamente caracterizado como Corte Constitucional, como assevera Marques de Lima, tem exercido, através de sua atuação, um papel pedagógico[19] relativamente aos demais tribunais, buscando vivificar os princípios constantes na Constituição Federal.
Isso não implica afirmar que essa específica atuação legitimadora dos direitos fundamentais nas relações entre particulares esteja restrita ao STF, porquanto, pela organização jurisdicional brasileira, qualquer magistrado, independentemente da instância de julgamento, tem o dever constitucional de velar pela Constituição.
Não há mais que se cogitar em proteção de Direitos fundamentais do indivíduo apenas em face do Estado, na medida em que os particulares, nas suas relações privadas, podem vir a praticar alguma ofensa a direitos fundamentais uns dos outros.
A partir da decisão de 1958, no caso Lüth, pela Corte Constitucional alemã, deflagrou-se o entendimento de que há, de fato, uma expansão da eficácia das normas constitucionais, de sorte a se poder tutelar, nas relações privadas, notadamente aquelas de direito civil, os direitos fundamentais mantenham ligação com os interesses privados em jogo.
Essa constitucionalização do direito privado tem ampliado seu âmbito, se sorte a influenciar os três momentos principais da norma jurídica: sua criação/ atualização pelo legislador; sua interpretação; e sua aplicação pelos magistrados.
Essa influência pode ser especificada na necessidade de busca de formas de se conceder a maior eficácia possível às normas constitucionais que fundamentem as regras infraconstitucionais em que se fundem os interesses particulares em questão, reconhecendo-se, por outro lado, a necessidade de conservação do princípio que, por força da escolha decorrente do princípio da proporcionalidade, deixou de ser aplicado.
Limita-se, assim, a atuação dos particulares, sobretudo diante dos dois princípios cardeais do direito privado clássico, a autonomia da vontade e a propriedade, que diante dessa nova compreensão, deverão ser funcionalizados para que, através do exercício dos negócios jurídicos, tendam a repercutir positivamente na coletividade.
Direito e justiça terminam por reencontrar-se numa nova perspectiva ética e filosófica, de modo que “uma leitura hermenêutica da Constituição” não poderá ser outra essência que é dar o respeito moral e material à dignidade humana.
Informações Sobre o Autor
Gisele Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.