Corrupção e Processo Legislativo a Inconstitucionalidade de Leis Aprovadas Mediante Propinoduto: Uma Análise Histórica, Filosófica, Ideológica e Jurídica da Compra e Venda de Votos de Parlamentares Para a Aprovação de Leis

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Diego Luiz Victório Pureza

 

RESUMO: Objetivando garantir a supremacia da Constituição Federal, há instrumentos de controle de constitucionalidade expressamente previstos na Carta Magna. O controle é realizado pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O objetivo deste trabalho é apresentar e defender a existência de mais um instrumento de controle de constitucionalidade, qual seja, o vício de decoro parlamentar, vício este ocasionado pela espúria prática corrupta em que parlamentares comercializam voto para a aprovação de determinadas leis, visando a satisfação de interesses de codelinquentes. As motivações são inúmeras, desde o locupletamento ilício até a finalidade de metas de ideologias sem qualquer freio moral ou ético. Já temos processos concretos em andamento discutindo a tese, ainda pendentes de julgamento, sendo também objetos de estudo neste trabalho.

Palavras-Chave: Direito Constitucional, corrupção, controle de constitucionalidade, inconstitucionalidade por vício de decoro, compra e venda de votos de parlamentares.

 

ABSTRACT: In order to ensure the supremacy of the Federal Constitution, there are instruments of constitutionality control expressly provided for in the Magna Carta. Control is carried out by the Executive, Legislative and Judicial branches. The purpose of this paper is to present and defend the existence of another instrument of constitutionality control, that is, the vice of parliamentary decorum, a vice caused by the spurious corrupt practice in which parliamentarians commercialize a vote for the approval of certain laws, aiming at the satisfaction interests of codelinquentes. The motivations are innumerable, from the illiterate locupletamento to the goal of ideological goals without any moral or ethical restraint. We already have concrete processes in progress discussing the thesis, still pending judgment, being also objects of study in this work.

Keywords: Constitutional law. Corruption. Constitutionality control. Unconstitutionality for vice of decorum. Buying and selling of votes of parliamentarians.

 

Sumário: Introdução. 1. A construção do conceito de corrupção. 2. Registros Históricos recentes sobre a corrupção no Brasil. Conclusão. 3. Corrupção, política e ideologia: a corrução em governos comunistas, socialistas e marxistas. 4. O controle de constitucionalidade e o comércio indecoroso de votos de parlamentares. 4.1. a supremacia da Constituição Federal. 4.2. controle de constitucionalidade e suas espécies. 5. Inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar. 5.1. Vício de decoro parlamentar e a clara violação aos princípios constitucionais da moralidade, da representação democrática, dentre outros. 5.2. Vício de decoro: princípio da inafastabilidade do provimento jurisdicional ‘versus’ matéria interna corporis. 5.3. O quórum mínimo para aprovação das leis. 5.4. Condenação definitiva como condição requisito indispensável à declaração de inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar. Conclusões. Referências bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

O topo da pirâmide jurídico-normativa é ocupado pela Constituição Federal – alargada, pela doutrina moderna, pelo chamado bloco de constitucionalidade –, caracterizada pela rigidez, previsão de garantias fundamentais, previsão para a criação e alteração das demais normas, bem como de instrumentos de controle de constitucionalidade.

Para a Constituição Federal não há qualquer possibilidade de submissão à outras leis, ao contrário, atos normativos infraconstitucionais que afrontem a Carta Maior estará contaminada de inconstitucionalidade.

Observando a evolução do controle de constitucionalidade, podemos vislumbrar suas espécies de vícios reconhecidas pela doutrina tradicional: o vício formal e o vício material de constitucionalidade. É preciso ir além.

A realidade do cenário político atual aponta para a degradação da República, especialmente diante de rotineira prática de atos de corrupção. Pior quando tais práticas são levadas a efeito por representantes do povo, por aqueles ditos nomeados à representar a soberania popular.

O tema “corrupção” tem ocupado não só as manchetes dos telejornais, mas também a pauta do Poder Judiciário. A não saudosa lembrança da Ação Penal nº 470, popularmente conhecida por “Mensalão”, revelou ao Brasil o comércio espúrio, imoral e corrupto da compra e venda de votos de parlamentares em proporções nunca antes vista – ou imaginada por muitos – para a aprovação de leis visando o interesse de codelinquentes do meio empresarial.

Nesse sentido é que há a urgente necessidade de avanço do controle de constitucionalidade. Como admitir que legislações produzam efeitos diante de sua flagrante aprovação mediante propinoduto? Admitir leis aprovadas dessa forma sendo aplicadas regularmente não fere apenas o bom senso, mas especialmente valores consagrados constitucionalmente, a exemplo da representatividade democrática e da moralidade com que a máquina pública deve ser administrada.

Daí se falar em inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar como terceira modalidade de vício, com sua gênese nos ensinamentos do professor Pedro Lenza.

                                             

1. A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE CORRUPÇÃO

Tarefa não das mais simples é apresentar o conceito da palavra corrupção, definição essa que dependerá da acepção a ser trabalhada. Sendo assim, primordialmente cumpre buscar as acepções da palavra conforme momentos históricos marcantes, questionando a realidade que ela recobria.

O termo corrupção deriva do latim corruptione, com enfoque em sua acepção física significando putrefação, adulteração e decomposição. A título exemplificativo, vale citar as definições apresentadas por Raphael Bluteau em seu Vocabulario portuguez e latino, de 1728, que definine a palavra corrupção em seu sentido físico como “suspensão do concurso conservativo, e introdução de qualidades alterantes, e destrutivas”. O autor acrescenta ainda uma acepção metafórica à corrupção dos costumes, ou mesmo à corrupção da justiça[1].

Décadas depois, Antonio de Moraes Silva sintetiza o conceito de corrupção sobre as acepções física e moral do termo, como “o estado da coisa corrupta ou corrompida” ou “alteração do que é reto ou bom, em mau e depravado”, vinculando-se ao ato de “perverter, subornar, peitar”[2].

Aprofundando na acepção moral, cumpre destacar que o uso da palavra corrupção no campo moral e jurídico já era realizado em períodos muito pretéritos, a exemplo das Ordenações Afonsinas – legislação de 1314 que, a título de exemplo, estabelecia sanções penais àqueles que tentassem influir em julgamentos, recorrendo às peitas[3], “para corromper e impedir o andamento legal do pleito”[4].

As variações semânticas do termo corrupção começou a ganhar maior relevância no campo moral e político – remetendo à degradação política – ao longo da chamada Época Moderna. Diogo do Couto, em sua obra intitulada de O soldado pratico, escrita no final do século XVI, recorre às metáforas da degeneração e doenças para definir a situação moral e política de sua época, onde, segundo o autor, já “não há cousa sã; tudo está podre e afistulado, e muito perto de herpes, se se não cortar um membro, virá a enfermar todo o corpo, e a corromper-se”[5]. Emprestando da acepção física para a política, o autor conclui que a corrupção da justiça e da política acarretará, inevitavelmente, à degradação da própria República, pois, sendo função do governante distribuir a justiça, bem como considerando caminhar em sentido diametralmente oposto – visando, em geral, fins particulares – o estado de coisas resultante deixará de ser público para pertencer às particularidades da pessoa do governante. Segundo Diogo do Couto, por definição, o governo justo é o governo firmado em valores cristãos. Quando a justiça é afrontada por meio da corrupção, haverá também tirania.

Fato é que o conceito de corrupção, mais do que sua acepção física, vem ganhando novos contornos segundo as acepções morais, políticas e jurídicas. Atualmente no Brasil, as condutas corruptas levadas à efeito no âmbito da Administração Pública (ou contra esta) são tipificadas como crimes de corrupção passiva (artigo 317) e ativa (artigo 333) no atual Código Penal.

Em síntese, a corrupção decorre do desvio de condutas retas e justas, o que, por conseguinte, coloca em risco o bem comum – nas devidas proporções, até mesmo o Estado Democrático de Direito, conforme será abordado em capítulos seguintes – sendo as acepções moral, política e jurídica que utilizaremos no decorrer deste trabalho.

 

2. REGISTROS HISTÓRICOS RECENTES SOBRE A CORRUPÇÃO NO BRASIL      

Cediço que o problema da corrupção não é um monopólio brasileiro. Há, evidentemente, registros históricos e mundiais sobre a corrupção, em todos os níveis sociais. Desde o cidadão de que decide oferecer vantagem ilícita à um guarda de trânsito da expectativa de não ser multado, até mesmo governantes, parlamentares e até mesmo partidos políticos que se valem de práticas corruptas como meio para se manterem no poder.

Como a pretensão deste trabalho se limita à tese de inconstitucionalidade de atos normativos aprovados mediante o pagamento ou promessas de propinas, não há a necessidade de se perquirir todos os antecedentes históricos de nosso país sobre a corrupção – tarefa essa das mais difíceis, sendo, para alguns, até mesmo impossível de se alcançar fontes e dados seguros. Todavia, importa trazer à luz alguns números recentes de casos de corrupção de nível nacional que evidenciaram diversas práticas corruptas como meio de manutenção no poder por parte de partidos políticos, governantes e parlamentares no Brasil, ou seja, corrupção como instrumento de manutenção indevida em cargos públicos e políticos, bem como de alcance de interesses particulares valendo-se da máquina pública.

Para definir esse estado de coisas, tomaremos por empréstimo o termo Cleptoplutocracia brilhantemente empregado pelo professor Luiz Flávio Gomes. Segundo o mencionado autor:

“Quando nossa luta é colocada sobre as elites dirigentes e delinquentes, logo se descobre que o Brasil é, ao mesmo tempo, uma cleptocracia e uma plutocracia. Kleptos significa ladrão e cracia é o poder, governo; logo, em um governo composto de ladrões ou de governantes ladrões. Ploutos significa riqueza, pessoas endinheiradas e kratos ou cracia é poder, governo; logo, um governo administrado ou influenciado por pessoas com muito dinheiro.

Subornar um agente público na rua ou nas repartições para a prática ou omissão de um ato é corrupção. “Comprar” a quase totalidade dos parlamentares para aprovarem 15 atos normativos (medidas provisórias, leis e projeto de resolução) em benefício de uma empresa provada (Odebrecht), que conseguiu isenções fiscais, fraudes em concorrência, favorecimentos, é cleptoplutocracia. Subornar um juiz para obter uma sentença favorável é corrupção. Conchavar o apoio de sete ministros da Corte Suprema para manter no poder caciques reconhecidamente corruptos é cleptoplutocracia”[6].

O renomado autor, em sua obra, definiu cleptoplutocracia à luz de casos recentes como a Ação Penal nº 470 – popularmente chamada de “Mensalão” – e Operação Lava-jato, dois casos de repercussão nacional que elevaram o país no indesejado ranking dos países mais corruptos do mundo.

Segundo o relatório da Transparência Internacional de 2017, o Brasil ocupa o 96º lugar na lista que avaliou a corrupção do setor público em 180 países – caiu 17 posições em comparação ao ano anterior e há a expectativa de continuar em queda livre nos próximos anos. Na escala que vai de 0 (mais corrupto) a 100 (menos corrupto), o Brasil aparece com singelos 37 pontos[7].

Entre os anos de 2015 e 2016 houve aparente melhora no respectivo ranking diante do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e deflagração da Operação Lava Jato, momento em que a corrupção se tornou mais perceptível. Todavia, tal sutil percepção vem induzindo ao erro o senso comum. É cada vez mais corriqueiro se ouvir a seguinte frase: “apesar de nossas crises, as instituições estão funcionando”. Lendo engano ao confundir parte com o todo. O fato de setores da justiça, polícia e do Ministério Público estarem promovendo uma verdadeira microrrevolução contra a cleptoplutocracia não significa que todo o ordenamento jurídico esteja funcionando regularmente.

O relatório da Transparência Internacional aponta a gênese da corrupção endêmica em dois terços dos países submetidos à análise – especialmente aqueles com menores notas, dentre eles o Brasil. Segundo o relatório, tais países, incluindo o Brasil, são afetados por instituições públicas que carecem de confiança e que funcionam muito mal, a exemplo das forças policiais e do poder judiciário. A realidade nos mostra que o relatório aponta para a verdade, com a ressalva de que a operação Lava Jato tem se mostrado um ponto fora da curva.

Importante frisar que o problema do Brasil, assim como de outros países em situações semelhantes, não aponta para a ausência de arcabouço legislativo. Os piores países do ranking supra mencionado possuem leis anticorrupção em pleno vigor, todavia, a prática revela que tratam-se de leis por vezes ignoradas ou contornadas. De nada serve legislar sem dar a devida efetividade às leis. Segundo Marquês de Beccaria, e sua clássica obra “Dos Delitos e das Penas”, um relevante fator de prevenção da criminalidade é a promoção da certeza do castigo, da efetiva aplicação de leis penais, algo bem distante da decrépita prática de se criar leis aparentemente severas sem pouca aplicação prática, o que fazem os legisladores demagogos[8].

O resultado já é muito conhecido: partindo-se do pressuposto de que a escolha pelo crime é totalmente racionalmente – especialmente nos chamados crimes de cifra dourada –, ponderando-se entre riscos e vantagens, estas últimas tem revelado enorme probabilidade de ocorrência comparada às singelas chances de risco, o que se traduz, na prática, em um enorme estímulo à corrupção por parte de personagens públicos e políticos que, em geral (há evidentemente exceções), têm se apresentado com poucos freios ético-morais.

Apenas a título de ilustração, vale citar um dos resultados da operação Lava Jato alcançado por meio de delações premiadas e, posteriormente, as respectivas confirmações probatórias. Já no ano de 2017, restou demonstrado por meio da delação de Cláudio Melo Filho, ex-executivo da Odebrecht, que a empresa “investiu” diretamente ao menos o montante de R$ 17 milhões de reais com a específica finalidade de se “fazer aprovar” em benefício próprio 15 atos normativos, dentre medidas provisórias, resolução e projeto de lei (MP 252/05, 255/05, 449/08, 460/09, 470/09, 472/09, 544/11, 563/12, 579/12, 613/13, 627/13, 651/14, PLC 32/07, 06/09 e Projeto de Resolução do Senado 72/70).

Ora, será que mesmo após futuras condenações de todos os personagens que atuaram na aprovação dos respectivos atos normativos, mediante o pagamento de propina, todas essas leis, medidas provisórias e resolução continuariam produzindo seus efeitos? A resposta só pode ser negativa. Ademais, não é outra a pretensão deste trabalho que não seja apontar o vício de inconstitucionalidade de tais atos normativos, conforme será devidamente aprofundado em capítulos seguintes. No mesmo caminho, conclui o professor Luiz Flávio Gomes, valendo citar suas palavras:

“Todos os atos normativos aprovados mediante o pagamento de propinas podem ser, eventualmente, anulados – embora seja um resultado muito difícil, como já se comprovou no Mensalão. De qualquer modo, o recebimento de propina da Odebrecht para aprovar leis comprova a corrupção e pode levar seu autor a uma condenação criminal pesada”[9].

Todavia, antes de enfrentarmos os argumentos jurídicos que embasam a tese de inconstitucionalidade, não há como fechar os olhos para questões metajurídicas que gravitam sobre o tema. Obviamente, a prática de condutas corruptas pode ser relacionada à diversos fatores, como desvio de caráter, ausência de freios ou valores morais, legislações lenientes que oferecem vantagens com pouquíssimas chances de punição, etc. Mas um fator em especial nos chama a atenção quando o tema é a prática de corrupção praticada por poderosos, governantes e parlamentares, ou seja, por aqueles que ostentam o poder, seja emanado pelo povo, ou mesmo por aqueles com grande poder aquisitivo e com interesses diretamente ligados à atos públicos: ideologia.

No capítulo seguinte, será analisado a influência de ideologias em práticas corruptas como meio para alcançar os propósitos de partidos ou da própria ideologia, ou mesmo para a manutenção no poder por parte de governantes inescrupulosos.

É de extrema importância que o operador do direito não fique alienado à questões ideológicas, devendo conhecer o poder de influência de ideologias (em geral, aquelas que não reconhecem freios morais ou éticos para o alcance de seus propósitos) no cenário da corrupção, pois, só é possível desenvolver eventual antídoto (mecanismos de prevenção e repressão à corrupção) identificando o tumor (causa, etiologia da corrupção praticada por governantes e parlamentares, em especial), e não apenas combatendo meros sintomas, sob pena de se perseguir cegamente um simulacro de justiça que nada resolve, previne ou combate.

 

3. CORRUPÇÃO, POLÍTICA E IDEOLOGIA: A CORRUÇÃO EM GOVERNOS COMUNISTAS, SOCIALISTAS E MARXISTAS

Tarefa das mais difíceis – ou mesmo impossível – é apontar a etiologia da corrupção. Obviamente, não há como atribuir à um único fator. Perpassamos especialmente por questões morais. Sendo assim, não há a pretensão de se apontar a raiz da corrupção à determinada corrente ideológica.

Todavia, não há como ignorar que algumas ideologias, especialmente considerando os ensinamentos de seus “gurus” e expoentes, terminam por valer-se da corrupção como meio para alcançar os respectivos objetivos.

Antes de adentrarmos aos números recentes em nosso país, é importante para a compreensão desta análise que o leitor esteja completamente imune ao romantismo e toda a publicidade fantasiosa ofertada pelo socialismo/comunismo.

Isso porque, por meio de críticas ao sistema capitalista, o marxismo surge como a ideologia que supostamente defenderia as classes menos favorecidas que estariam sendo oprimidas diante de uma nefasta divisão de classes. Com base nessa maquiagem para encobrir seus verdadeiros propósitos, muitos autores defendem a ideia de que o marxismo, quando efetivamente implementado em um Estado, apresentaria o efeito de redução na corrupção – ensinamentos completamente dissociados da realidade, por não apresentarem qualquer base científica ou mesmo qualquer exemplo prático extraído de algum governos socialista.

A título de exemplo, vale citar as palavras de Antenor Batista:

“No plano dos efeitos, o marxismo, ao disciplinar as relações de produção ou socialização dos meios de produção, fundamentalmente materiais, fez prevalecer o interesse coletivo sobre a opulência de lucros, diluindo as bases da corrupção. Mas como a corrupção e a violência são inerentes à natureza humana, as suas garras continuam deixando terríveis marcas em todos os governos ou em todos regimes”[10].

François Furet, marxista que reescreveu a Revolução Francesa, entende que “alguns países precisam passar pelo marxismo para chegar a uma democracia menos corrupta”. Tais pensadores partem do romântico pressuposto de que, ao visar o bem estar das classes menos favorecidas – tirando das classes mais abastadas – o governo marxista estaria menos propenso à corrupção diante de motivações tão nobres, altruístas, transcendentes, não se contaminando com motivações egoístas, mesquinhas e individualistas. Lendo engano e, repita-se: completamente dissociados da realidade.

Não precisamos ir muito longe para perceber que governos de esquerda em geral, na corrida em se manterem no poder, utilizam-se de atos de corrupção apenas como meio. Não se trata da corrupção em si mesma, cuja finalidade seria o auto enriquecimento de personagens no poder.

O Comitê Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, a partir de informações divulgadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, informando dados relativos à corrupção política no Brasil a partir da aprovação da Lei nº 9.840/1999, elaborou dossiê de “Políticos cassados por corrupção eleitoral”[11]. Ao analisar o ranking dos partidos políticos mais corruptos, percebe-se um percentual relevante de políticos cassados nos doze primeiros colocados. Nas primeiras colocações, destacam-se os seguintes partidos: Democratas (DEM); Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB, atual MDB); Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB); Partido Progressista (PP); Partido Trabalhista Brasileiro (PTB); Partido Democrático Brasileiro (PDT); Partido da República (PR); Partido Popular Socialista (PPS); Partido dos Trabalhadores (PT); Partido Progressista Brasileiro (PSB); Partido Socialista Brasileiro (PSB); e, Partido Social Liberal (PSL), totalizando o número de 325 políticos cassados.

Apesar de diversos nomes e siglas indicarem, vale frisar que se tratam de partidos de esquerda (todos), com algumas variações quanto ao espectro político (partidos de esquerda, centro-esquerda e extrema esquerda).

Além disso, quando analisamos grandes operações como a Ação Penal nº470, vulgarmente chamada de “Mensalão” (comprovadamente liderada pelo Partido dos Trabalhadores), ou mesmo a Operação Lava-jato, percebe-se a participação, de um modo gera, dos mesmos partidos políticos.

A conclusão não é lógica, é ideológica.

Os casos concretos nos revelam que a busca incansável pelo poder hegemônico por parte de partidos políticos, motivados pela ideologia comunista (e toda a respectiva agenda), têm como um de seus instrumentos a corrupção – além de outros como a construção e repetição de narrativas, meios de comunicação, divisão de classes, etc.

Ademais, cediço que os ensinamentos de Nicolau Maquiavel, na obra “O Príncipe” influenciaram (e continuam influenciando fortemente) políticos e partidos políticos de esquerda no Brasil e em diversos outros países. Na referida obra, Maquiavel aponta de forma sedutora que o governante deve agir segundo a moral sempre que possível, mas deve infringi-la somente quando for isso necessário para a manutenção do poder. Em outras palavras, o governante deverá agir moralmente enquanto conveniente, todavia, a partir do momento em que questões morais forem obstáculos para a manutenção do poder, então o governante deverá afrontá-las[12].

Um governo que não encontra qualquer freio moral na busca pela manutenção do poder tem a corrupção não só como algo corriqueiro, mas, estrategicamente, como meio para permanência hegemônica no poder.

Sendo assim, importante que o operador do direito não permaneça alienado em relação à outras ciências e ramos do saber, como a filosofia, sociologia, política, etc.

Dentre diversas práticas de corrupção, uma em especial se destaca como objeto deste trabalho: a aprovação de leis mediante o propinoduto. Já tivemos a oportunidade de destacar em capítulo anterior que, apenas em algumas delações premiadas realizadas no âmbito da Operação Lava-Jato, confirmadas posteriormente por outras provas, constatou-se o pagamento de mais de dezessete milhões de reais a título de propina com a finalidade específica para a aprovação de 15 atos normativos.

Com outros casos recentes, restou evidenciado que tal prática tem sido corriqueira entre empresários, parlamentares e chefes do Poder Executivo.

Como estes ator normativos podem permanecer produzindo seus respectivos efeitos jurídicos? Um defeito ou vício pode acarretar na anulação de um negócio jurídico. Ilegalidades em licitações podem acarretar em anulação de todo o respectivo processo. Um ato normativo permaneceria intocável mesmo após a comprovação de que se originou de práticas corruptas, ilícitas, motivadas por interesses particulares em detrimento da coletividade? Em nosso entendimento, a resposta só poderá ser negativa.

A partir do próximo capítulo passaremos a abordar os fundamentos jurídicos quanto à inconstitucionalidade de atos normativos aprovados mediante práticas corruptas.

 

4. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E O COMÉRCIO INDECOROSO DE VOTOS DE PARLAMENTARES

2.1. A supremacia da constituição federal

Para o controle de ator normativos, o legislador constituinte originário firmou mecanismos objetivando verificar sua adequação aos preceitos previstos na “Bíblia Política”.

Vale lembrar que nossa Constituição Federal de 1988 é classificada como rígida – ou, segundo Alexandre de Morares, super-rígida[13] – ante seu processo dificultoso de alteração (artigo 60).

A noção de controle proveniente da rigidez pressupõe a ideia de hierarquia normativa, ocupando a Constituição Federal o grau máximo no aludido escalonamento, sendo, portanto, norma de validade para os demais atos normativos do sistema.

Eis o princípio da supremacia da Constituição Federal, que, tomando por empréstimo as palavras do professor José Afonso da Silva, trata-se de “pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político”. Continua o mestre:

“Significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas”. “Desse princípio, resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a Constituição. As que não forem compatíveis com elas são inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como fundamento de validade das inferiores”[14].

Apesar da tendência em se ampliar o conteúdo do paradigma de constitucionalidade – o que a doutrina tem chamado de bloco de constitucionalidade –, a Constituição encontra-se do ápice da pirâmide orientando e norteando os demais ator normativos infraconstitucionais.

 

4.2. Controle de constitucionalidade e suas espécies

Importa saber quando uma norma infraconstitucional sofrerá vício de inconstitucionalidade, podendo se verificar diante de ato comissivo ou omissivo do Poder Público. A inconstitucionalidade por omissão é decorrente da inércia legislativa na regulamentação de normas constitucionais de eficácia limitada (silêncio legislativo[15]), enquanto que o vício de inconstitucionalidade por comissão (ação, por atuação ou positiva) decorre da incompatibilidade vertical dos atos ou leis do Poder Público diante da Lei Maior.

A inconstitucionalidade por ato comissivo pode-se dar: (a) por vício formal (nomodinâmica); (b) por vício material (nomoestática); (c) por “vício de decoro parlamentar”[16].

O vício de inconstitucionalidade formal ocorre quando o ato normativo é elaborado e promulgado em desacordo com o processo legislativo previsto na Constituição Federal, seja por afronta aos trâmites legais (vício formal objetivo), seja por incompetência da autoridade que deflagrou o projeto de lei (vício formal subjetivo).

Já a inconstitucionalidade material, segundo Alexandre de Moraes, “trata-se da verificação material da compatibilidade do objeto da lei ou do ato normativo com a Constituição Federal”[17], ou seja, o vício reside no conteúdo da norma infraconstitucional, incompatibilizando-a com preceitos constitucionais.

Já em relação ao chamado vício de decoro parlamentar, considerando se tratar do objeto central deste trabalho, bem como a necessidade de aprofundarmos no assunto, trataremos em tópico próprio a seguir, todavia, importa destacar a natureza jurídica desta espécie. O professor Pedro Lenza trabalha em sua obra tratando-a como espécie sui generis de vício de inconstitucionalidade (ao lado do vício material e formal, conforme classificamos acima por questões de didática). Todavia, a doutrina europeia, já tendo superado tal assunto há tempos, trata de espécie de vício material, especialmente diante a violação de diversos princípios expressos e implícitos da Constituição Federal, bem como contrariando conteúdo específico da Lei Maior – no caso, a regra prevista no §1º, do art. 55.

Apesar da saudável controversa, defendemos a ideia de que se trata de vício material. Os tópicos a seguir serão dedicados ao aprofundamento do vício de decoro, bem como às respectivas violações constitucionais diante da espúria prática do “comércio de votos e posicionamentos de parlamentares”.

 

5. INCONSTITUCIONALIDADE POR VÍCIO DE DECORO PARLAMENTAR

Para tratarmos do tema, vale a utilização do caso discutido e julgado na Ação Penal 470, denominada de “mensalão” pois foi nesse episódio paradigmático que ficou comprovado um enorme esquema de compra de votos de parlamentares para votarem em certo sentido (quase sempre com o governo da ocasião).

Conforme noticiado pelo Supremo Tribunal Federal:

“Houve, efetivamente, a distribuição de milhões de reais a parlamentares que compuseram a base aliada do governo, distribuição essa executada mais direta e pessoalmente por Delúbio Soares, Marcos Valério e Simone Vasconcelos, como nós vimos nas últimas sessões de julgamento”, disse o ministro-relator. Ele afirmou que o responsável pela articulação da base aliada era José Dirceu, que se reunia frequentemente com líderes parlamentares que receberam dinheiro em espécie do Partido dos Trabalhadores para a aprovação de determinadas emendas constitucionais. O dinheiro, afirma o ministro, foi distribuído em espécie na agência do Banco Rural, em Brasília, “onde Simone Vasconcelos dispunha de uma sala reservada para a entrega do numerário aos parlamentares e aos seus intermediários”[18].

Analisando o caso, a Ministra Rosa Weber afirmou que:

“Aos meus olhos, ficou evidente que o Partido dos Trabalhadores costumava alcançar dinheiro a outros partidos, entregando-o a parlamentares ou membros da organização partidária”, considerou a ministra. Tal prática, conforme ela, ocorria para a obtenção de apoio político no parlamento. “Disso, resulta a verossimilhança na descrição dos fatos pela denúncia. Foi criado um esquema para pagar deputados federais em troca de seus votos na Câmara Federal e os valores eram expressivos. Esses recursos tinham origem em peculato, em gestão fraudulenta do Banco Rural, em empréstimos simulados, foi o que se concluiu por este Plenário, ainda que por maioria”, completou.

Para a ministra Rosa Weber, “houve, sem dúvida, um conluio” para a compra de apoio de deputados federais – não todos – para as votações a favor do governo na Câmara dos Deputados. O dinheiro, prossegue a ministra, veio de recursos, pelo menos em parte, públicos. Ela ressaltou que os parlamentares receberam dinheiro ilicitamente, “caso contrário o pagamento não teria ocorrido pela forma como foi feito, sempre às escondidas, mediante a utilização de terceiros e o recebimento de vultosos valores em espécie, inclusive malas em quartos de hotel”[19].

Obviamente, uma vez provados os fatos, os responsáveis deverão suportar todas as sanções legais de natureza criminal, civil, administrativa, etc. Todavia, permanece a grande questão: comprovado o comércio espúrio de votos de parlamentares, os atos normativos aprovados dessa forma, bem como as emendas constitucionais, estariam eivadas de vício de inconstitucionalidade?

Seguimos com o professor Pedro Lenza respondendo positivamente[20]. Trata-se de vício de decoro parlamentar com fundamento no artigo 55, §1º, da Constituição Federal, segundo a qual “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.

Pois bem, após o julgamento da AP, tivemos o ajuizamento de ADIs no STF visando justamente a declaração da inconstitucionalidade e emendas constitucionais que ensejaram a chamada Reforma Previdenciária, sob o fundamento de que tais aprovações foram frutos da compra de votos de parlamentares, encabeçada por condenados no “mensalão”. As ADIs foram ajuizadas pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL)[21], Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB)[22], e, o Partido Socialista e Liberal (PSOL)[23].

A Procuradoria Geral da República, em parecer nos autos da ADI nº 4.887, admitiu a tese de vício de decoro parlamentar, denominando-a como “vício na formação da vontade no procedimento legislativo”. Segundo a PGR, há flagrante afronta aos princípios democráticos e do devido processo legislativo, implicando, invariavelmente, a inconstitucionalidade do ato normativo[24].

Porém, o parecer do Ministério Público Federal caminhou em sentido contrário, valendo destacar trecho conclusivo:

“Não há dúvida, portanto, de que o vício na formação da vontade no procedimento legislativo viola diretamente os princípios democrático e do devido processo legislativo e implica, necessariamente, a inconstitucionalidade do ato normativo produzido.

Ocorre que, por força desses mesmos princípios, bem como em razão da garantia constitucional da presunção de não culpabilidade (art. 5º, LVII, CR), é indispensável que haja a comprovação da maculação da vontade de parlamentares em número suficiente para alterar o quadro de aprovação do ato normativo, o que não ocorre na hipótese ora analisada.

Na Ação Penal 470, foram condenados sete parlamentares em razão da sua participação no esquema de compra e venda de votos e apoio político que ficou conhecido como “mensalão”.

Não se pode presumir, sem que tenha havido a respectiva condenação judicial, que outros parlamentares foram beneficiados pelo esquema e, em troca, venderam seus votos para a aprovação da EC 41/2003.

 Assim, mesmo com a desconsideração dos votos dos sete deputados condenados, os dois turnos de votação da emenda constitucional na Câmara dos Deputados superam o quórum qualificado exigido pela

Constituição para a sua aprovação”[25].

O tema ainda está pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Ainda assim, podemos concluir que a compra de votos de parlamentares enseja em vício que macula a livre manifestação da vontade do parlamentar no exercício de sua função política em benefício da coletividade, constituindo em manifesta violação ao mandato que lhe foi conferido pelo povo. Ou seja, há manifesta violação da vontade e interesse da soberania popular.

Da mesma forma, também não podemos ignorar que será necessário enfrentar a problemática do quórum para a aprovação de determinado ato normativo.

Questões como a comprovação e condenação definitiva de parlamentar que vendeu seu voto como condição para a declaração de inconstitucionalidade do ato normativo aprovado, bem como a necessidade de análise do caso concreto, perseguindo o montante da contaminação do número de votos em detrimento do quórum necessário para a aprovação de leis, serão analisados em tópicos próprios ante a complexidade do tema.

 

6.1. Vício de decoro parlamentar e a clara violação aos princípios constitucionais da moralidade, da representação democrática, dentre outros

Reforça-se ainda à ideia de inconstitucionalidade diante da regra insculpida no art. 55, §1º, da Carta Maior, a violação de dois princípios de igual natureza diante da prática de compra de votos de parlamentares: os princípios da representação democrática e moralidade.

O artigo inaugural da Constituição Federal, no parágrafo único destaca que todo o poder emana do povo. A ideia de soberania popular, segundo pacífica doutrina e jurisprudência, no Brasil reflete na adoção da chamada democracia semidireta, por apresentar mecanismos de democracia direta (povo exercendo diretamente o poder, ao exemplo do plebiscito e referendo) e de democracia indireta (com a eleição de representantes que exercerão o poder em nome do povo). Eis a consagração do princípio da representação democrática ou da representação popular. Segundo Canotilho:

“A representação democrática significa, em primeiro lugar, a autorização dada pelo povo a um órgão soberano, institucionalmente legitimado pela Constituição (criado pelo poder constituinte e inscrito na lei fundamental), para agir automaticamente em nome do povo e para o povo. A representação (em geral parlamentar), assenta, assim, na soberania popular. (…) Esta autorização e legitimação jurídico-formal concedida a um órgão governante (delegação da vontade) para exercer o poder político designa-se representação formal. (…) A representação democrática, constitucionalmente conformada, não se reduz, porém, a uma simples delegação da vontade do povo. A força (legitimidade e legitimação) do órgão representativo assenta também no conteúdo dos actos, pois só quando os cidadãos (povo), para além das suas diferenças e concepções políticas, se podem reencontrar nos actos dos representantes em virtude do conteúdo justo destes actos, é possível afirmar a existência e a realização de uma representação democrática material”[26].

Uma lei ou qualquer ato normativo não decorrente da vontade do parlamentar, mas proveniente de interesses individuais, aprovada mediante a prática espúria da oferta e recebimento de propina, obviamente afronta de morte o princípio da representação democrática, quando o representante do povo se desvia de sua finalidade político-funcional para cumprir com as vontades de particulares por motivações criminosas (propinoduto).

Não obstante, isso não significa dizer que o parlamentar teria o dever de manter sua mentalidade no instante em que foi eleito por seus representados. Não se trata de petrificar a independência de voto. Todavia, diante da comprovação de atos corruptos cuja finalidade é a aprovação de determinado ato normativo, haverá flagrantemente afronta ao princípio em estudo.

Da mesma forma, a conduta de parlamentares deve obediência a valores como a moralidade, honestidade, ética e justiça. São princípios gerais de direito que, segundo Miguel Reale:

“São enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, que para a sua aplicação e integração, que para a elaboração de novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática”[27].

Logo, a aprovação de qualquer ato normativo eivado de vício de decoro parlamentar aponta para o exercício de indevido poder político (criminoso, inclusive), violador do devido processo legislativo, bem como ferindo fortemente os princípios da moralidade, da representação democrática, da segurança jurídica e da boa-fé.

 

5.2. Vício de decoro: princípio da inafastabilidade do provimento jurisdicional ‘versus’ matéria interna corporis

Não se pode ignorar o fato de que há temas imunes ao controle jurisdicional sob pena de violação do sistema da Tripartição dos Poderes (matéria interna corporis). É preciso lembrar também que questões relativas à aprovação de atos normativos passa necessariamente pelo dever em cumprir regras previstas no Regimento Interno das Casas Legislativas do Congresso Nacional.

Diante deste cenário, questiona-se: seria possível o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade de determinada lei por quebra de decoro parlamentar, considerando as regulamentações específicas em Regimento Interno relativo ao Poder Legislativo?

A resposta só pode ser positiva, especialmente diante da previsão expressa do princípio da inafastabilidade do provimento jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal). Ademias, assim tem decidido o Supremo Tribunal Federal, valendo citar ementa de julgado oriundo da ADI nº 2.666:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONTRIBUIÇÃO PROVISÓRIA SOBRE MOVIMENTAÇÃO OU TRANSMISSÃO DE VALORES E DE CRÉDITOS E DIREITOS DE NATUREZA FINANCEIRA-CPMF (ARTS. 84 E 85, ACRESCENTADOS AO ADCT PELO ART. 3º DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 37, DE 12 DE JUNHO DE 2002). 1 – Impertinência da preliminar suscitada pelo Advogado-Geral da União, de que a matéria controvertida tem caráter interna corporis do Congresso Nacional, por dizer respeito à interpretação de normas regimentais, matéria imune à crítica judiciária. Questão que diz respeito ao processo legislativo previsto na Constituição Federal, em especial às regras atinentes ao trâmite de emenda constitucional (art. 60), tendo clara estatura constitucional”.

Logo, conclui-se pela possibilidade do controle jurisdicional em hipóteses de atos interna corporis violarem direitos constitucionalmente previstos, vez que o devido processo legislativo inclui-se na proteção constitucional.

 

5.3. O quórum mínimo para aprovação das leis

O ato de aprovação de leis reveste-se de complexidade, especialmente diante da necessidade de alcance de quórum mínimo para a instalação da sessão legislativa e quórum para a aprovação.

A partir daí, indaga-se: para a declaração de inconstitucionalidade, bastaria que o vício de decoro recaísse sobre um ou outro voto de parlamentar ou seria necessário a contaminação de parcela capaz de contaminar o quórum mínimo para a aprovação da respectiva lei?

Defendemos a tese de que seria necessário a contaminação de número de votos capaz de macular o quórum mínimo para a aprovação da lei. É o entendimento que melhor espelha segurança jurídica. O raciocínio contrário conduziria a conclusão de que bastaria a comprovação da venda de um voto para eivar de inconstitucionalidade determinada lei aprovada com o quórum necessário. Tornar-se-ia, sem dúvida, manobra político-jurídica para a derrubada de leis contrárias ao posicionamento de partidos políticos e de parlamentares.

Ademais, esta é a conclusão estampada no mencionado parecer da Procuradoria Geral da República na ADI nº 4889.

 

5.4. Condenação definitiva como condição requisito indispensável à declaração de inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar

O envolvimento com propina para a venda de voto pelo parlamentar configura crime contra a Administração Pública e merece a devida repressão por meio da respectiva ação penal.

Só com a condenação transitada em julgado é que será possível se falar em vício de decoro parlamentar. Essa conclusão possui alguns fundamentos, a saber:

I – Não se admite dilação probatória nas ações diretas de inconstitucionalidade, segundo pacífico entendimento do Supremo Tribunal Federal, razão pela qual não seria possível questionar a ocorrência de compra de votos no bojo da ADI;

II – Não se pode ignorar o arcabouço de garantias fundamentais que assistem ao acusado de crime. Será necessário que o parlamentar seja condenado criminalmente, respeitados os princípios que gravitam o devido processo legal, tais como o contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, dentre outros;

III – Somado aos fundamentos anteriores, será necessário a condenação definitiva de parlamentares em número que macule o quórum necessário para a aprovação da lei objeto de ação direta de inconstitucionalidade (vide capítulo anterior).

Só assim restará segura a demonstração da degradação do sistema republicano perpetrada pelo agente político.

 

6. CONCLUSÕES                                     

O grande desafio está na aplicabilidade prática da tese de inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar.

Tivemos a oportunidade de apontar em linhas anteriores que há casos pendentes de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal com todos os requisitos necessários preenchidos para a aplicação da tese, ora objeto deste trabalho.

Todavia, não se pode ignorar a enorme dificuldade em viabilizar a declaração de inconstitucionalidade por vício de decoro parlamentar, isso porque, mesmo após a descoberta de que parlamentares receberam propina para votarem em determinado sentido ou visarem a aprovação de determinada lei, será necessário a condenação criminal com o respectivo trânsito em julgado, bem como que a condenação incida sobre número de parlamentares suficiente para viciar de inconstitucionalidade a lei aprovada mediante propinodulto, considerando o quórum necessário para tanto.

Mas toda essa possível demora, somada a lentidão do Poder Judiciário, não podem servir de justificativa de não acolhida da tese. Os fundamentos destacados neste trabalho dão conta de que, preenchido os requisitos, a declaração de inconstitucionalidade por vício parlamentar será medida a se impor.

A representatividade popular, base de um Estado Democrático de Direito, e a moralidade deverão preponderar sobre atos corruptos, imorais e espúrios de alguns parlamentares que insistem em utilizar a máquina pública como instrumento para enriquecimento próprio e ilícito, permanência indevida no poder, atendimento de interesses de codelinquentes ou mesmo em atingir metas com motivações ideológicas desprovida de qualquer freio moral ou ético.

 

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[1] CORRUPÇÃO. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino, v.2, p. 572.

[2] SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da língua portuguesa: recompilado dos vocabulários impressos até agora, e nessa segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, p. 479.

[3] Segundo Bluteau (v.6, p. 369), peita é definida como “qualquer cousa que se dá para subornar o juiz e corromper a justiça”, ou seja, relaciona-se com o atual conceito de propina nos contextos da justiça.

[4] Legislação segundo a qual se estabelecem as sanções penais que devem ser aplicadas a advogados e procuradores que percebam das partes ofertas ou mesmo honorários antes da sentença definitiva, assim como às partes que tenham se beneficiado desse meio para os corromper e impedir o curso legal do pleito (ano de 1314). Disponível em: <http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt>. Acesso em 08 de julho de 2018.

[5] COUTO, Diogo do. O soldado prático, p. 90,

[6] GOMES, Luiz Flávio. O jogo sujo da corrupção – pela implosão do sistema político-empresarial perverso. Em favor da Lava Jato, dentro da lei, e pela reconstrução do Brasil. São Paulo: Astral Cultural, 2017, p.85-86.

[7] Disponível em < https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/20/politica/1519152680_008147.html> . Acessado em 08 de julho de 2018.

[8] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2006.

[9] Obra citada, p. 36.

[10] BATISTA, Antenor. Corrupção: o 5º Poder – Repensando a ética. São Paulo: Edipro, 14ª Ed., 2015, p. 120.

[11] Dossiê “Políticos cassados por corrupção eleitoral”. Comissão Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, p. 7. Consultado em 27 de julho de 2018.

[12] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Escrito em 1505, publicado em 1515. Edição Ridendo Castigat Mores.

[13] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 30ª Ed., 2014, p. 10.

[14] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 47 e 49.

[15] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7ª Ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 982.

[16] Termo apresentado pelo professor Pedro Lenza, conforme aprofundaremos em tópico próprio, sugerido por Simone Aparecida Smaniotto – onde concordamos, especialmente diante da regra prevista no art. 55, §1º, da Constituição Federal.

[17] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 30ª Ed., 2014, p. 732.

[18] Notícias STF de 03.10.2012. <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=220064>. Acesso em 28 de julho de 2018.

[19] Notícias STF de 04.10.2012. <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=220190>. Conforme informativos 682 e 683 do STF. Acesso em 28 de julho de 2018.

[20] Obra citada, p. 256.

[21] ADI nº 4.887.

[22] ADI nº 4.888.

[23] ADI nº 4.889.

[24] Fls. 18 do parecer da Procuradora Geral da República nº 10.323-RG, item 27.

[25] Parecer do Ministério Público Federal nº 10322-PGR-RG, p. 13-14. <http://www.mpf.mp.br/pgr/copy_of_pdfs/ADI%204889.pdf> Acessado em 28 de julho de 2018.

[26] Obra citada, p. 293-294.

[27] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 27ª Ed., 2009, p. 69.

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