Resumo: Através de uma análise das obras do professor Lênio Streck, observa-se uma crítica à forma como os tribunais vem atuando na prestação jurisdicional. Mais especificamente, o professor Lênio reprova o fato de que, mesmo após o giro ontológico lingüístico (e a superação do esquema sujeito-objeto), os magistrados – ou pelo menos boa parte deles – desprezando a invasão da linguagem na filosofia, ainda insistem em decidir utilizando parâmetros subjetivos, sob a alegação de estarem julgando de acordo com a consciência. Trata-se da subjetividade surgida na modernidade, momento em que o sujeito “assujeita” a coisa e passa a explicar o mundo por meio da razão. Ocorre queo sentido não está mais na consciência do sujeito, mas na linguagem, que passa a ser condição de possibilidade de estarmos no mundo, motivo pelo qual ela não pode ser produto de um sujeito solipsista que constrói o seu próprio objeto de conhecimento. Nos Juizados Especiais o processo de formação da decisão judicial é ainda mais delicado, na medida que há a terceirização da consciência do magistrado para o juiz leigo, este último o responsável por analisar o caso à luz dos valores do togado, mostrando corresponder a um procedimento nada hermenêutico de construção da decisão.
Palavras-chave: decisão; hermenêutica; consciência; subjetivismo; modernidade.
Abstract:Through an analysis of the works and teacher texts Lênio Streck, there is a dense critique of how patriotic courts has been working in the judicial services. More specifically, Professor Lênio condemns the fact that even after the linguistic ontological turn (and the overcoming of the subject-object scheme), the magistrates – or at least most of them – despising the invasion of language in philosophy, still insist on decide using highly subjective parameters, on the grounds that they were judging according to conscience. This is the subjectivity that emerged in modernity, at which time the subject for himself thing and goes on to explain the world through reason. It turns out that, according to Streck, the meaning is no longer in the subject's consciousness but in language that becomes condition of possibility of being in the world, which is why it can not be the product of a solipsistic subject that builds its own object knowledge. Special Courts in the judicial decision-making procedure is even more delicate, in that there is the magistrate awareness outsourcing to the lay judge, the latter responsible for reviewing the case in light of the robin values, showing corresponds to a nothing hermeneutic procedure of building the final decision.
Keywords: decision; hermeneutics ; conscience; subjectivism ; modernity.
Sumário: Introdução.1 De como a filosofia da consciência ainda predomina no imaginário dos juízes em terrae brasilis.2Os Juizados Especiais: uma abordagem necessária acerca dos “juízes” que participam do processo.3O Juiz Leigo: decido conforme a consciência do juiz togado.4Conclusão. Referências.
Introdução
Fazendo economia das palavras – se é que é possível sintetizar esta ideia de Streck que deu origem a uma de suas obras (O que é isto: decido conforme minha consciência?) -, o que se observa é a censura do autor no que concerne a uma posição solipsista dos juízes em terra brasilis que consideram o ato de julgar como um ato de vontade, utilizando-se de uma suposta discricionariedade conferida pela lei para construir a decisão que acreditam mais justa ao caso concreto. Entretanto, é justamente a discricionariedade – herança da postura positivista – que é combatida por Streck, na medida em que esse paradigma subjetivista dá margem a decisionismos e voluntarismos, uma vez que abre espaço à decisão que o juiz julgar mais conveniente.
É a nítida oposição à concepção de sentença advinda de sentire (BERMUDES, 2010, p. 93), ou, conforme ainda domina no imaginário dos juristas, o juiz é o senhor dos sentidos. Trata-se, segundo afirma, de uma vulgata da “filosofia da consciência” que traz consequências nefastas para a democracia, pelo fato de que esta posição solipsista adotada pelo juiz enfraquece o Direito. Por uma razão simples, se cada magistrado é dono de sua razão e se é esta quem aponta os parâmetros para a interpretação da lei, cada juiz é livre para julgar de acordo com a sua consciência.Basta apenas pensar que se a interpretação judicial deve ser pautada nas preferências valorativas pessoais do intérprete – de acordo com a sua consciência -, é forçoso concluir que cada julgador acredita estar decidindo corretamente as questões que lhe são dadas, uma vez que o senso de justiça é inerente à sua formação interna.
De qualquer forma, essa ainda é a postura adotada pelos tribunais pátrios, uma posição em que o conceito de justiça inerente ao juiz é motivo de norte para a prolação de decisões, subordinando o julgado aos sentimentos da pessoa investida na função de julgar. Aceitar tal conduta é admitir a inexistência de qualquer condição, de cunho hermenêutico, de controle para a atuação do juiz.
Mas o propósito do presente estudo não é tentar buscar os argumentos necessários para se criar uma teoria da decisão, tampouco fazer um aparato das correntes filosóficas que defendem ou não o positivismo. Na verdade, se tentará demonstrar aqui, ainda que de forma tímida, que a crítica feita à “filosofia da consciência” é válida, também e principalmente, para os Juizados Especiais, em virtude da caótica situação em que se encontram os JECC’s em termos de qualidade das decisões – não que as demais estruturas do Poder Judiciário sejam merecedoras de elogio.
Conforme já salientado, parte-se da premissa de que, para formular seu julgamento, o juiz analisa o caso concreto de acordo com as suas convicções pessoais (critérios subjetivos) para, só então, buscar na lei a fundamentação adequada. Ou seja, tem-se um ponto de partida (que é o caso apreciado) e uma decisão final (que é a posição adotada pelo magistrado), sendo necessário agora traçar o percurso entre os dois momentos acima delineados, como se julgar fosse um ato de escolha. Algo parecido ocorre com as decisões proferidas no âmbito dos Juizados Especiais, já que, em alguns casos, nem mesmo se confundem a pessoa que decide e a que expõe asrazões do decisum. Eis o ponto fulcral do vertente trabalho.
1 De como a filosofia da consciência ainda predomina no imaginário dos juízes em terrae brasilis
Para o objetivo que ora se propõe no presente trabalho, mostra-se despiciendo traçar uma abordagem mais aprofundada do paradigma subjetivista (filosofia da consciência) surgido na modernidade com o cogito de Descartes. Entretanto, é necessário fazer algumas considerações acerca das características desse pensamento e a forma como ainda encontra-se impregnado no modo de decidir dos juízes em terrae brasilis, o que demonstra o fato de o giro ontológico linguístico não ter sido recepcionado no nosso país (STRECK, 2011a, p. 75).
Não é preciso muito esforço para se perceber que muitos juízes fazem questão de deixar claro que estão julgando conforme sua consciência, fundamentando a decisão de acordo com elementos de convicção pessoal. Esse individualismo do sujeito (esquema sujeito-objeto) muitas vezes é externado sob a alegação do poder discricionário ante a insuficiência do texto legal – herança do positivismo Kelseniano (ainda não completamente superado) – em que se considera o ato de julgar como ato de vontade. Ou seja, discricionariedade e positivismo são como faces da mesma moeda (STRECK, 2011a, p. 79).
Ao considerar o sujeito como lugar da verdade e ponto de partida de qualquer conhecimento (LUIZ, 2013, p. 31), a filosofia da consciência dá margem a ativismos e decisionismos que acabam por prejudicar a construção hermenêutica da decisão judicial e, até mesmo, enfraquecem o Direito, na medida em que deixa ao critério do sujeito solipsista (STRECK, 2012a, p. 59) a sua interpretação – o que dá margem a diversos entendimentos sobre o mesmo objeto. Contudo, conforme Streck (2012a, p. 25), “o direito não é (e não pode) ser aquilo que o intérprete quer que ele seja”.
Ocorre que essa ainda é a tônica nos tribunais brasileiros, onde se vê a interpretação judicial como sendo produto da razão e preferências valorativas do intérprete, o qual fica responsável por atribuir ao texto o sentido que achar conveniente. Por tais motivos, Luiz (2013, p. 35) entende que “a aplicação do Direito é realizada por um sujeito solipsista, proprietário dos significados, que, julgando conforme sua consciência, acredita – de forma alienada – estar decidindo corretamente (com justiça)”.
Em outros termos, no subjetivismo delega-se ao julgador a função de escolher a resposta mais adequada ao caso concreto de acordo com o seu íntimo convencimento, levando em consideração que o texto legal é plurissignificativo e que a interpretação consistiria em indicar o contexto da norma a ser aplicada no caso concreto (STRECK, 2011b, p. 423). O magistrado estaria livre, pois, para decidir de acordo com o seu senso do que é justo, ou seja, o julgamento ocorre(ria) na consciência do juiz. Tal fato comprova a carência de uma teoria da decisão adequada que supere a discricionariedade positivista.Em virtude de uma teoria da decisão claudicante, conforme apontado pela Nova Crítica do Direito, prolifera no Brasil a aposta nas diversas modalidades de protagonismo judicial, onde cada vez mais o Judiciário se considera legitimado para atuar, ainda que extrapolando a competência estabelecida na Constituição.
Neste momento, faz-se necessário abrir um parêntese: não se deve confundir ativismo judicial com a judicialização da política. Ambos representam o acentuado grau de judicialização que o direito brasileiro assume na atual conjuntura. No entanto, de acordo com Tassinari (2013, p. 32) “pode-se dizer que a judicialização apresenta-se como uma questão social. A dimensão desse fenômeno, portanto, não depende do desejo ou da vontade do órgão judicante”. É uma decorrência da passagem do Estado Social para o Estado de Democrático de Direito e a consequente transferência do pólo de tensão para o Poder Judiciário, a quem incumbiu concretizar as promessas não cumpridas pelos Poderes Executivo e Legislativo.
Já o ativismo judicial diz respeito a um Poder Judiciário supremo, considerando a sua postura e atuação em relação à Constituição. Em outros termos, desconsidera-se a ordem constitucional e legal democraticamente construída, passando-se à consciência do julgador. Tem-se, pois, a atuação jurisdicional além dos limites propostos na Constituição, por meio de atribuições que não lhe haviam sido conferidas, passando o tribunal a decidir utilizando-se de critérios pessoais em substituição do direito.
Essa prática solipsista – postura adotada pelo juiz atual – é externada de diversas formas, dentre as quais Streck (2012a, p. 33) aponta: a interpretação como ato de vontade do juiz ou no adágio de “sentença como sentire”; a interpretação como fruto da subjetividade judicial; e a interpretação como produto da consciência do julgador. Seja como for, o ato de decidir ainda se encontra vinculado ao esquema sujeito-objeto, fazendo com que o julgamento dependa apenas de convicções pessoais do intérprete, sem qualquer critério racional de controle.
Ressaltando a necessidade de harmonização entre os paradigmas decisórios, Lorenzetti (2010, p. 184) não nega que existam juízes que julgam com base em suas convicções prévias sobre a vida, mas “resulta necessário estabelecer a um mínimo de critérios de correção que limitem a interpretação jurídica meramente subjetiva ou hermética”. Essa preocupação surge a partir da análise que se faz pela perspectiva do destinatário das normas, na medida em que a decisão baseada nas próprias convicções pode afetar a igualdade perante a lei, assim como princípios da democracia republicana (LORENZETTI, 2010, p. 184).
Nesses termos, é forçoso reconhecer que o controle do juiz é, única e exclusivamente, a sua consciência, ficando o jurisdicionado ao alvedrio de julgamentos fundamentados de acordo com questões de formação religiosa, convivência familiar, preferências pessoais e demais experiências de vida que fazem parte da formação interna do intérprete. Volta-se à velha doutrina Kantiana do “tribunal da razão”, onde a verdade está na consciência do sujeito. Prova disso é a emblemática decisão proferida pelo STJ, na qual se posicionou o Ministro Humberto Gomes de Barros (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2002):
“Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico – uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja.”
Não se quer aqui defender que o ato de julgar seja totalmente desvinculando das razões de quem decide. Interpretar é compreender, e compreender é aplicar. Não mais interpretamos para compreender, mas, sim, compreendemos para interpretar (STRECK, 2012a, p. 75). Contudo, o que não se pode conceber é que a concretização dos textos legais em normas dependa da atribuição do sentido por um sujeito que constrói o seu próprio objeto de conhecimento, de acordo com a sua razão pessoal.
Nada contra o ofício de interpretar desempenhado pelo juiz. Até porque, consoante Grau (2005, p. 82), o Direito é alográfico. Os textos nada expressam e “somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em norma)”. O enunciado somente atinge sua completude por meio da atribuição do sentido pelo intérprete. Contudo, sabe-se que esta interpretação não se dá a partir de um grau-zero, pois o sujeito encontra-se num contexto de mundo, tendo a tradição como “condição necessária do processo interpretativo, servindo de base ao conteúdo da estrutura prévia da compreensão” (LUIZ, 2013, p. 110).
Quer se dizer com isso que, por mais que a função do intérprete seja atribuir o sentido ao texto, ele não está autorizado a fazê-lo de forma arbitrária, como se norma e texto existissem de forma autônoma, sem qualquer relação. O texto está ali e foi criado por alguém legitimado para tanto com o escopo de regular uma determinada situação, ou, conforme Streck (2011b, p. 219), “textos dizem sempre respeito a algo da faticidade”. É insuficiente e cabe ao intérprete adequá-lo à necessidade do presente. Mas pensar que o juiz pode amoldar o texto da lei de acordo unicamente com a sua consciência é aceitar arbitrariedades incompatíveis com um Estado Democrático de Direito.
O voto anteriormente colacionado traduz a realidade nos tribunais brasileiros, conforme será mais adiante demonstrado. Mostra que o subjetivismo não foi superado, pois ainda permeia no pensamento dos juízes a forma de julgar com base em convicções íntimas, mesmo que não sejam razões aceitas pelos demais estudiosos do direito. A interpretação da lei passa a ser aquela dada pelo tribunal – ou pelo menos pela maioria dos seus integrantes -, como se o entendimento do Judiciário fosse o único adequado e todos devessem a ele estar vinculados, o que mostra o desprezo com a doutrina jurídica (ou o conformismo da própria doutrina que passou a aceitar o Direito como aquilo que o Judiciário diz que ele é).
Por tais razões, em face dessa posição de supremacia (sic) avocada pelo Judiciário em virtude de ser o intérprete final do texto legal, Rocha (1995, p. 70) adota uma posição inegavelmente subjetivista, enaltecendo o poder discricionário do juiz, pois afirma que “no Brasil, a Constituição não é simplesmente a Constituição, mas a Constituição interpretada pelo Judiciário”. Ou seja, o autor defende que o texto constitucional – onde presentes estão direitos historicamente conquistados -, depende da vontade do juiz para que sejam concretizados. Mais uma vez está-se diante de uma situação em que o sujeito solipsista é o detentor dos sentidos do texto.
Em sentido contrário ao de Rocha, comentando o voto anteriormente colacionado, Luiz (LUIZ, 2013, p. 59) aduz que
“Esse voto demonstra a prevalência, na jurisdição, da filosofia da consciência, consubstanciada num julgador solipsista que, como proprietário dos significados, molda as leis, e mesmo a Constituição, apenas aos ditames de sua consciência. Parece claro que, em um Estado Democrático de Direito, o Direito não é aquilo que os tribunais dizem que ele é”.
Na mesma esteira do Ministro Humberto Gomes de Barros, o Desembargador Jaime Luiz Vicari (TJ-SC, AI nº 149788 SC 2006.014978-8. Julgamento: 31/08/2006) também se mostra adepto à filosofia da consciência e aos poderes subjetivos do intérprete, consoante se percebe de trecho do seu voto ao afirmar que
“Ao Tribunal, e ao Juiz, não compete detalhar os dispositivos legais aplicados no julgamento da causa. Incumbe-lhes apenas julgar de acordo com o seu convencimento e com a sua consciência, optando pelo posicionamento que lhe parecer mais adequado ao enfrentamento da questão colocada ao seu poder-dever de decisão (…)”
Em decisão de relatoria do Desembargador Arno Werlang, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Ação Rescisória nº 70003681947, julgado em 19/02/2003), novamente se observa a liberdade que tem o juiz no momento de decidir, recorrendo a elementos constantes em sua consciência, com base no princípio do livre convencimento motivado:
“O juiz pode livremente julgar, baseando-se na sua consciência e no ordenamento jurídico, o que não pode faltar na decisão judicial é sua fundamentação, em observância ao princípio do livre convencimento fundamentado, discordando, deve a parte que se sentir prejudicada recorrer à segunda instância, para que o juízo ad quem reaprecie a decisão, não podendo fazer uso da rescisória, o que somente é possível em limitadíssimas situações, que não o caso dos autos”.
Há quem defenda um senso de justiça nas decisões. Julgar não se resume mais à mera aplicação da letra fria da lei. O juiz não deve mais ser o “boca da lei”, cabendo ao magistrado buscar razões que expressem a decisão mais justa ao caso concreto (BARBI, 2010, p. 531), sentimento este que deve dominar a sua persuasão íntima (filosofia da consciência). A decisão passa a ser um ato de justiça, construída pelas razões do próprio intérprete.
Mas se cada juiz possui discricionariedade para decidir de acordo com a sua consciência o que é justo ou o que é certo e errado, há que se admitir que estaremos diante de uma noção de justiça casuísta, na medida em que cada magistrado é possuidor de razões e convicções próprias. A decisão proferida por um juiz “A” pode ser antagônica à proferida por um juiz “B” num mesmo caso concreto, já que pautadas em circunstâncias pessoais distintas. A questão é: o fato de serem divergentes, significa que alguma dessas decisões não seria justa? Se o sentimento de justiça é inerente a cada intérprete, a resposta há de ser negativa.Por tais razões, é inegável que teremos um enfraquecimento do Direito, uma vez que o resultado do julgamento depende(ria) do senso de cada julgador.
É justamente esse sentimento de justiça que é utilizado pelo juiz para justificar atuações subjetivistas na busca da alegada resposta mais correta. A decisão mais equânime passa a ser o elemento primeiro do procedimento decisório, relegando-se a fundamentação a um segundo plano. Primeiro o juiz julga – utilizando-se de elementos pessoais que o façam alcançar o senso de justiça – para somente após buscar no ordenamento jurídico a fundamentação para sustentar sua opção, como se a lei pudesse ser modulada de acordo com sua vontade. É a reprodução da decisão como ato de vontade de Kelsen.
Ainda assim, é este o pensamento que permeia na mente dos integrantes da mais alta Corte em terrae brasilis, podendo ser observado pela posição adotada pelo Ministro Eros Grau corroborando entendimento anteriormente proferido pelo Ministro Marco Aurélio (STF, ADI nº 3826/GO, julgamento em 20/08/2010), no sentido de que primeiro se idealiza a decisão mais justa para somente após buscar sua fundamentação legal:
“É bem verdade que o Ministro Marco Aurélio está coberto de razão ao dizer, na ementa do RE n. 140.265, cogitando do ofício judicante e da postura do juiz, que, “[a]o examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensável apoio, formalizá-la”.”
Oportuna a crítica feita por Luiz em relação ao posicionamento adotado pelo Ministro Marco Aurélio, segundo o qual o intérprete é livre para formular a decisão que considera mais justa e somente após deve buscar os argumentos jurídicos para fundamentá-la – discurso ainda presente no senso comum teórico dos juristas. O erro está em se pensar que primeiro se decide e somente depois encontra o fundamento, quando na verdade o juiz “somente decidiu por já tê-lo encontrado” (LUIZ, 2013, p. 65).
Na verdade, não se pode esquecer que a interpretação não mais ocorre fora de um contexto. O compreender não é fruto de um processo de dedução. O juiz, através da pré-compreensão que tem do caso posto, mediada pela tradição, projeta uma fundamentação para sua decisão, eis que antes de argumentar o intérprete já compreendeu. Nesse sentido, Streck (2007, p. 9) ensina que “é equivocado afirmar, por exemplo, que o juiz primeiro decide, para só depois fundamentar; na verdade, ele sódecide porque já encontrou, na antecipação de sentido, o fundamento (a justificação)”.
Dessa forma, não se pode conceber que mesmo após o giro ontológico linguístico – e a invasão da filosofia pela linguagem, onde esta deixa de ser mero instrumento de cognição entre sujeito e objeto e passa a ser condição de possibilidade para a interpretação – o juiz ainda acredite (e defenda) que possa fazer interpretações em abstrato, fora de um contexto prático, como se os sentidos dependessem exclusivamente de sua vontade, afirmando que primeiro decidem para somente após fundamentar.
A pré-compreensão que o julgador tem acerca de determinado texto é norteada pela tradição. É o que assegura que a sua interpretação não seja arbitrária. Ao fundamentar sua decisão, o juiz o fez em virtude de já ter compreendido o enunciado legal ao caso que lhe foi dado, pois a interpretação se dá no caso concreto (applicatio), consoante Streck (2007, p 9). Caso assim não fosse, o juiz não estaria decidindo, mas sim escolhendo uma entre as diversas possibilidades que teoricamente existiriam para solução do caso.
É por tais motivos, em acreditar que o juiz não decide para somente após buscar o fundamento, a não ser através de uma visão subjetivista (esquema sujeito-objeto) da interpretação. Isso somente ratifica o que foi anteriormente esposado, de que ainda não se ultrapassou o paradigma positivista Kelseniano, onde o juiz ainda se considera responsável pela atribuição de sentidos ao objeto, sem, contudo, dar conta de sua condição de ser no mundo. É o caso a se pensar, pois, na necessidade de se (re)fundar uma teoria da decisão judicial hermeneuticamente estruturada que supere o “decido conforme minha consciência”.
2 Os Juizados Especiais: uma abordagem necessária acerca da composição e atuação das modalidades de “juízes” que participam do processo
Já foi anteriormente afirmado que a judicialização da política, decorrência do constitucionalismo pós Segunda Guerra – mudança da configuração do Estado Social para o Estado Democrático de Direito, fez com que o foco das respostas às demandas sociais passasse ao Poder Judiciário, tendo em vista a incapacidade dos Poderes Executivo e Legislativo para tanto (LEAL, 2007, p. 53). Surgem novos direitos e com eles novas demandas. Com isso, o Judiciário precisa se adequar para atender aos anseios que os protagonistas da relação processual passam a ter. A jurisdição aparece, nessa esteira, como mecanismo indispensável à concretização de promessas democráticas, para assegurar a justiça social.
Como forma de atender aos pleitos que surgiam, não apenas pelo considerável aumento de demandas, mas, também, pelo próprio surgimento de conflitos oriundos da democratização do acesso à justiça (VIANNA, 1999, p. 155), foram criados os Juizados de Pequenas Causas (lei n. 7.244/84) que, posteriormente se transformariam em Juizados Especiais, por meio da Lei n. 9.099/95. Para o interesse do presente estudo, o foco será a análise das decisões proferidas em processos que tramitam nos Juizados Especiais.
Com o advento da Lei n. 9.099/95, ficou instituída a criação dos Juizados Cíveis e Criminais como órgãos da Justiça Ordinária, com competência para conciliação, processo, julgamento e execução, nas causas de sua competência, aquelas consideradas de menor complexidade. Com o objetivo de se obter um rito mais simplificado, princípios básicos como o da oralidade, informalidade, celeridade e economia processual são utilizados como diretrizes à tramitação das demandas.
Pois bem, é partindo da análise da lei retro mencionada que se chegará à percepção de que os Juizados Especiais são compostos por dois tipos distintos de “juízes”, tendo cada um deles atribuições específicas conferidas na legislação: o Juiz de Direito (togado) e o Juiz Leigo. Além destes, há, ainda, o Conciliador, previsto na Lei n. 9/099/95 como auxiliar da Justiça que pode realizar conciliação, desde que devidamente supervisionado. Por tais motivos, será adiante abordada a função de cada um desses “juízes” e sua participação na tramitação processual perante o Juizado Especial.
Tanto Conciliadores quanto Juízes Leigos são, nos termos da lei, auxiliares da justiça (art. 7º), ou seja, não são membros de carreira, conforme o Juiz (togado). O único critério exigido para se tornar um Conciliador é que este seja escolhido preferentemente entre os bacharéis em Direito. Por essas razões, tudo indica que optou bem o legislador ao prever uma atuação não tanto incisiva, sendo obrigatório, em alguns casos, que os Conciliadores sejam supervisionados pelos Juízes (togado) ou Juízes Leigos, conforme aduz Corrêa (2010, p. 40) que “segundo a previsão legal não há possibilidade de o conciliador realizar a audiência de instrução e nem realizar quaisquer atos sem a presença de um juiz togado ou leigo que o supervisione”.
Levando-se em conta que um dos objetivos basilares do rito processual em Juizados é a busca pela conciliação, consoante art. 2º, é indispensável que se tenha um servidor devidamente encarregado de conduzir as partes a uma eventual composição amigável, uma vez que, consoante Althaus “muitas vezes, ao se alcançar o acordo os conflitantes restam mais satisfeitos do que se ficassem à mercê de uma sentença, o que levaria mais tempo, havendo risco, ainda, de o resultado não ser o esperado por nenhuma das partes”.
A Constituição Federal traz de forma expressa a figura do Juiz Leigo (art. 98, I) que, juntamente com o Juiz (togado), possui competência para conciliação, julgamento e execução das causas de menor complexidade. O Leigo, diferentemente do Conciliador, possui atribuições que o tornam consideravelmente participativo no processo, pois cumula as funções relativas a este último além de outros poderes específicos que a lei lhe confere, como o de instruir o processo – presidindo a audiência de instrução e julgamento – e elaborar um parecer prévio a ser analisado pelo magistrado (ALTHAUS, 2011, p. 105). Nesse sentido, aduz Câmara (2012, p. 48)
“Consequência disso é que nos Juizados Especiais Cíveis, em que são submetidas a julgamento causas de pequeno valor ou de pequena complexidade, a atuação do juiz leigo pode ser extremamente útil. Além de decidir os casos que lhes sejam submetidos, os juízes leigos ajudariam, certamente (e ajudam onde já atuam), a desafogar os juízes togados, cercados de todos os lados por processos que, na maioria das vezes, se dirigem a um desfecho a que se chegaria independentemente da presença do magistrado profissional”.
Os Juízes (togados) possuem amplos poderes para atuar nos Juizados Especiais, para a prática dos mais simples aos complexos atos no processo, que vão desde presidir audiência de conciliação ou instrução e julgamento a proferir a sentença. Logicamente, por razões indubitáveis de impossibilidade de o Juiz (togado) cumular todas essas funções – até levando-se em consideração que não raro um mesmo magistrado responde por mais de um Juizado -, a sistemática adotada aponta para uma condução do processo pelos três protagonistas já mencionados (Conciliador, Juiz Leigo e Juiz togado), cada um com sua função delimitada, somando esforços para a correta tramitação processual.
De certa forma, pode-se sistematizar a divisão de atribuições mais comum nos Juizados Especiais com a atuação do Conciliador já nos primeiros momentos do processo, buscando a composição amigável entre as partes; caso não se alcance este objetivo, a demanda é levada ao conhecimento do Juiz Leigo, responsável pela instrução do processo, cabendo a este auxiliar da Justiça, também, o ofício de proferir o parecer decisório acerca do caso analisado; já o Juiz (togado) supervisiona os atos de seus auxiliares e, principalmente, orienta os Juízes Leigos em como devem decidir, para que o magistrado proceda ou não à homologação do decisum proferido por aquele.
Feitas estas explanações necessárias, há que se ressaltar que no próximo capítulo será abordada a atribuição do Juiz Leigo, sobretudo no que concerne à sua função de proferir o parecer decisório logos após a instrução do processo (art. 40 da Lei n. 9.099/95), julgamento este que será levado à apreciação do Juiz (togado) para eventual homologação. Na verdade, consoante será adiante demonstrado, a realidade atual dos Juizados Especiais mostra que há uma peculiaridade no modus decidendi nos processos que tramitam nessa estrutura (JECC), num modelo de procedimento decisório ainda infectado pelo subjetivismo inerente à filosofia da consciência tratada no capítulo anterior, sem qualquer critério de cunho hermenêutico na sua construção.
3 O juiz leigo: decido conforme a consciência do juiz togado
A realidade atual dos Juizados Especiais exige uma atuação extremamente participativa do Juiz Leigo. A vasta competência – uma vez que cada JECC responde por um perímetro territorial bastante extenso – e a claudicante estrutura física das sedes são apenas algumas das inúmeras dificuldades enfrentadas pelos integrantes deste segmento da Justiça. Some-se a isto a quantidade ínfima de servidores que é disponibilizada pelo Tribunal para os Juizados, o que exige o desempenho de funções cumulativas para dar vazão à excessiva demanda de processos que tramitam sob este rito. Nesse sentido, é imprescindível que cada servidor exerça enfaticamente suas funções na condução do processo, sob o risco de não se atingir as “metas” exigidas pelo CNJ, num contexto em que “a qualidade passou a ser acessório da produção jurisdicional, prevalecendo a mentalidade da quantidade” (LEAL, 2007, p. 23).
Dessa forma, por mais que a Lei n. 9.099/95 preveja a figura dos Juízes Leigos e Conciliadores como auxiliares da Justiça, o que se percebe é que sem a dedicação destes integrantes, o Juizado Especial entraria em colapso, na medida em que cada um destes servidores possui função definida e indispensável na condução do processo, desde o primeiro contato com as partes na audiência de conciliação (em regra presidida pelo Conciliador) até a prolação da sentença (geralmente proferida pelo Juiz Leigo e posteriormente homologada pelo togado).
Ocorre que, não é fácil julgar. Ainda que se trate de causas de menor complexidade, o ofício de decidir não pode ser considerado um ato mecânico, em que o processo seja apenas mais um número. Na verdade, ao apreciar um conflito, o julgador deve atentar para o fato de que aquela demanda representa o anseio de uma determinada pessoa – física ou jurídica – em expulsar de sua propriedade quem lá adentrou sem autorização, em reaver os valores que lhe foram indevidamente cobrados ou mesmo em receber uma compensação pelo descaso no fornecimento dos serviços contratados. Enfim, não se trata apenas de um pronunciamento jurisdicional, mas de alcançar o escopo social na solução do conflito, o que exige uma maior cautela do julgador.
É na audiência de instrução e julgamento que o Juiz Leigo observará o depoimento das partes, fará a oitiva das testemunhas e concederá prazo para que sejam feitas as alegações finais das partes, instruindo o processo para posterior julgamento. Considerando-se apto, ele decidirá o caso, submetendo o seu julgado à apreciação do Juiz (togado) para homologação. Ou seja, o Juiz Leigo acaba sendo o responsável pela sentença, uma vez que ao Juiz (togado) cabe apenas ratificar os termos em que foi proferida, o que quase sempre ocorre. É essa a sistemática de atuação dos “juízes” nos Juizados Especiais.
Surge, pois, uma questão de difícil elucidação: como se admitir que vários juízes leigos que tenham o mesmo entendimento acerca de determinada matéria profiram decisões divergentes? Só existe uma resposta plausível para esta indagação, decide-se conforme a consciência do Juiz (togado). Já foi criticado, nos capítulos anteriores, que o subjetivismo ainda está presente em boa parte dos tribunais brasileiros. Muitos juízes ainda defendem decidir de acordo com a consciência, utilizando de razões pessoais de convencimento, critérios nada hermenêuticos na construção das decisões proferidas. Pois bem, de forma semelhante – ou mesmo pior – acontece nos Juizados, onde o juiz leigo decide de acordo com a consciência do Juiz (togado), já que é este último o responsável pela homologação do julgado, numa espécie de “terceirização da consciência”.
É certo que o dispositivo da Lei n. 9.099/95 autoriza o juiz leigo a decidir o caso em virtude de ter ele participado da instrução do processo, tendo maiores condições de proferir a decisãoadequada ao caso. Trata-se da identidade física do juiz que, segundo Correa (2010, p. 47), “o contato direto com as partes, com a emoção dos depoimentos, confere maior legitimidade e segurança para o julgador a proferir um correto julgamento”. Contudo, não é o que se observa na prática. Na verdade, o Juiz Leigo não possui liberdade para decidir, pelo contrário, os casos já estão decididos antes mesmo de serem apreciados por ele, antes mesmo do próprio ajuizamento da ação. O Juiz (togado) já decidiu, cabe ao Leigo apenas construir o caminho que levou o magistrado a chegar àquela conclusão.
De fato, o entendimento do Juiz (togado) é repassado antecipadamente ao Juiz Leigo, no sentido de que este já possui noção de quais casos ou matérias estão sujeitos a um julgamento procedente, enquanto outros são rechaçados de plano pelo magistrado. É o caso, pois, de o Juiz (togado) apontar ao Leigo quais situações ele entende que enseja uma condenação em danos morais, inclusive com o patamar do valor já arbitrado. Em outros termos, ao assumir sua função perante determinado Juizado, o Juiz Leigo já é orientado em quais demandas (futuras!) deve julgar procedente e quais deve concluir pela improcedência, sob os argumentos de convencimento do Juiz (togado). Basicamente, pode-se concluir que o Leigo decide conforme a consciência do togado, apesar de, repita-se, o magistrado sequer ter participado da condução do processo.
Na verdade, quando a Lei n. 9.099/95 faculta ao Juiz Leigo proferir o “projeto de sentença” (CÂMARA, 2012, p. 115) e posteriormente submeter ao crivo do Juiz (togado), ela o faz pelo fato de que aquele tenha presidido a audiência de instrução e julgamento, tendo acesso direto às partes e às provas produzidas, o que facilitaria o julgamento. Nesse sentido, é indubitável que a lei concede ao Leigo certa liberdade para decidir, ficando seu decisum apenas dependendo da ratificação do magistrado. Contudo, não é o que acontece. Pelo contrário, o magistrado já proferiu a sentença antes mesmo de o processo ser iniciado, cabendo ao Leigo apenas adequá-la a esta nova demanda. Nesses termos, é forçoso concluir que a função do Juiz Leigo passa a ser, simplesmente, expor as razoes de fato e de direito que levaram o Juiz (togado) a decidir daquela forma. O problema é como fazer para se perquirir os elementos íntimos da convicção de um terceiro? Como elencar quais motivos foram determinantes para a construção daquela decisão?
Vários são os fatores que devem ser observados na construção hermenêutica de uma decisão judicial. Por vezes, já foram mencionadas no presente texto as censuras da Nova Crítica do Direito – especialmente do prof. Lenio Streck – à utilização de elementos de convicção íntima no ato de decidir em terrae brasilis. Nos Juizados Especiais as decisões são construídas não conforme a consciência de quem analisa o caso, mas de acordo com a consciência de um terceiro que muitas vezes (ou quase sempre) sequer participou do processo.
Importante ressaltar, que em determinadas situações o Juiz Leigo se vê obrigado a construir uma decisão –construir porque o Juiz (togado) somente expõe a conclusão de seu posicionamento e não as razões que o levaram a julgar daquela forma – que talvez nem mesmo concorde. É o caso, por exemplo, de alguns magistrados que recusam sumariamente os pedidos liminares que são protocolados nos Juizados Especiais, por entender que não são cabíveis neste rito. Mesmo não coadunando com este posicionamento, o Juiz Leigo tem obrigação de negar o pleito liminar e, de acordo com art. 93, IX da Constituição Federal, deve fundamentar sua decisão sob pena de nulidade. Perceba a incoerência: deve o Juiz Leigo proferir uma decisão devidamente fundamentada contrária à sua convicção, mantendo-a firme contra eventuais impugnações! Mas como fazer se nem mesmo aquele que constrói o decisum está convicto das razões que lhe serviram de embasamento?
Acrescente-se, ainda, que, se com Streck, é incorreto afirmar que o julgador não decide para somente depois buscar a fundamentação, pois ele só decidiu por já ter encontrado o fundamento, deve-se concluir que uma decisão que se formou com o posicionamento (no sentido de conclusão) de um julgador – o Juiz (togado) – e os fundamentos de outro – o Juiz Leigo -, seja um decisum que nem de longe foi construído de forma hermenêutica, muito menos que se adequa aos critérios de construção de uma teoria da decisão judicial defendida pela Nova Crítica do Direito. Talvez por estas razões, não surpreende o Tribunal de Justiça do Estado do Piauí ser considerado o menos eficiente do país.
4 Conclusão
O decidir como ato de vontade ainda predomina no imaginário dos juízes em terrae brasilis. Elementos de convicção pessoal acabam sendo fundamento de decisões construídas na consciência do julgador, sob a alegação de estarem perquirindo a solução mais justa ao caso concreto. Trata-se, em verdade, do produto da atuação de um sujeito solipsista que entende ser o proprietário dos sentidos do texto, julgando de acordo com parâmetros de racionalidade íntima. É justamente esta filosofia da consciência que dá margem a subjetivismos que enfraquecem o direito e prejudicam a construção hermenêutica da decisão judicial.
De certa forma, as decisões judiciais proferidas no âmbito dos Juizados Especiais não se afastam da crítica que se fez nas linhas anteriores, eis que também fundamentadas em discernimentos pessoais de quem julga. Há que se ressaltar, que o modo como é conduzido o processo com participação de outros sujeitos (Juiz Leigo) que auxiliam o Juiz (togado), inclusive na produção do ato decisório, demonstra que o ato de julgar se dá através de uma “terceirização da consciência”, o que atesta a ausência de qualquer critério de controle dos julgados.
Na verdade, cabe ao Juiz Leigo decidir os conflitos que lhe são postos, haja vista que sua atuação tem o nítido escopo de auxiliar o Juiz (togado) a quem cabe(ria) homologar a o projeto de sentença proferido por aquele. Juiz Leigo não é magistrado e, por tais razões, deve ser supervisionado pelo Juiz (togado), daí porque a previsão legal de homologação posterior do decisum.
Entretanto, a realidade vivida neste segmento do Poder Judiciário demonstra que a construção da decisão judicial se dá de forma anômala, se considerarmos que há a participação de dois “juízes” distintos, um que decide (no sentido de apontar a conclusão) e outro que fundamenta. O que se percebe, conforme já delineado, é que as decisões são proferidas pelo Juiz (togado) antes mesmo do ajuizamento da demanda, cabendo ao Juiz Leigo apenas aplicá-las, independentemente de coadunar com o entendimento do magistrado.
Não se quer, neste momento, pugnar pela ampliação dos poderes do Juiz Leigo, mas simplesmente alertar para um fato que o modo de construção da decisão judicial nestes casos não obedece a nenhum critério hermenêutico (e mesmo racional) de controle, padecendo de inúmeros vícios inclusive o mais grave de todos: o de qualidade.O que não se pode admitir, é que ainda se pense que a decisão deva ocorrer na razão do julgador, ou, conforme nos Juizados Especiais, de acordo com a consciência do togado, que sequer participou do processo.
Informações Sobre o Autor
Fernando Fortes Said Filho
Mestre em Direito Público pela UNISINOS. Professor Substituto da Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Docente dos cursos de graduação e pós-graduação do Centro Universitário UNINOVAFAPI e da Faculdade Maurício de Nassau. Juiz Leigo do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí. Advogado