Analisa as teorias do direito pressuposto e do positivismo optando por aquela como a mais adequada à concretização dos deveres constitucionais do Ministério Público.
Não se discute a existência, em toda sociedade, de um sistema composto por interesses conflitantes, muitas vezes inconfessáveis, na medida em que cada indivíduo é um ser particular.
Nessa linha de pensamento, o ser humano, ao longo de sua breve vida, sofre o influxo de toda sorte de fatores, tais como os sociais, jurídicos, políticos, econômicos, culturais, etc., formando sua personalidade. Dessa forma, lícito afirmar que cada pessoa humana é um composto dessas variantes, umas preponderando sobre outras, na medida de cada idiossincrasia.
A despeito disso, pretendemos neste estudo nos restringir à formação do membro do Ministério Público quanto ao aspecto jurídico, aspecto esse que, como veremos na seqüência, não prescindirá daqueles outros fatores antes mencionados.
Para tanto, utilizaremos, entre outras, a teoria do direito posto e pressuposto, magnificamente exposta na obra do Professor Eros Roberto Grau, intitulada O direito posto e o direito pressuposto. A razão de nossa predileção pela referida teoria radica no fato de que, com a absorção do positivismo normativista pela ciência jurídica, seus cientistas deram início ao raciocínio, sob a influência preponderante de Hans Kelsen, em boa parte predominante até os dias atuais, segundo o qual o direito, enquanto ciência, reduz-se à lei positivada, posta. Mais, que essa lei provém tão-somente do Estado, produto exclusivo do Estado (teoria estatista).
Não obstante as vantagens auferidas pelo jurismo com essa concepção, mister refletir sobre a idéia de que o direito é um produto sócio-cultural, ensejado por aqueles mesmos fatores que exercem influência sobre a personalidade humana. Daí a conclusão de lógica formal de que só há direito enquanto houver sociedade.
Na linha da teoria estatista, os membros do Parquet, formados em escolas positivistas, nas quais a ciência jurídica se resume às explicações articuladas de códigos e leis em geral, têm visão unilateral do fenômeno jurídico, como de resto todo aquele que não logrou sua alforria dos dogmas, na medida em que sua metodologia interpretativa – na relação sujeito-objeto – tem como início a lei formal em direção ao fato, abstraídas quaisquer formas de valorações ou apreciação das condicionantes pré-legais.
Importa ademais referir que, em um exercício silogístico, a tese (lei formal) se traduz em dogma insuperável, cuja eventual ausência faz surgir a profunda perplexidade frente ao conflito apresentado à resolução. Resulta de tal fato (pensamento dogmático), segundo a irretorquível assertiva de Casanova (2000, p. 47), que: “É verdade que quando um homem acostumado a pensar dogmaticamente se vê sem dogmas, dá-se conta de que está acostumado a não pensar.”
Destarte, tentaremos propor, no presente estudo, uma forma mais ampla, apesar de não constituir nenhuma novidade, de se vislumbrar a ciência jurídica, no afã de se lograr uma concretização mais efetiva do dever constitucional de defesa da sociedade pelo Ministério Público no constitucionalismo democrático.
A teoria estatista, que os positivistas normativistas acolhem, sofre de erro essencial para a efetivação de um Estado democrático.
Permitimo-nos, neste tópico, repetir, com as necessárias modificações, o que foi dito em artigo de doutrina, intitulado Precificação de Produtos (Lei n.º 10.962/04): inconstitucionalidade, de nossa autoria.
Como asseveramos naquela oportunidade (ALMEIDA; COELHO, 2005, p. 3 et seq.), por mais paradoxal que possa parecer, não vivemos, absolutamente, no Estado tal qual ele é, porém sobre a idéia de Estado, onde reside o objetivo indisfarçável de fomentar a convivência pacífica dos indivíduos em uma sociedade de classes sócio-econômicas diversas, sempre com predomínio de uma sobre as demais.
A filosofia do Idealismo – desde a Grécia com Platão – entendeu os objetos reais como mera representação imperfeita de uma idéia, esta irretocável, conquanto também inalcançável pelo intelecto humano.
Com o Estado ocorre fenômeno idêntico, porém invertido. Já que inconcebível a coexistência de classes díspares de indivíduos sob os aspectos social, econômico, financeiro, cultural, etc., imaginou-se um Estado ideal onde coexistem variegadas espécies de personalidades humanas e grupos sociais, sem que, contudo, houvesse autodestruição, porquanto a classe que detém o poder incute nas mentes dos membros das demais noções impossíveis de se definir, que, ao mesmo passo, representariam o Estado em seus objetivos, fins e conseqüências, como, e. g., o interesse público, a ordem social, a ordem jurídica e expressões outras que, nem mesmo com muito esforço, chegar-se-á a conceitos concretamente aceitáveis, porque tais objetos só existem no mundo das idéias. Estas, por sua vez, relativamente agrupadas, formam a ideologia propagada pelos canais ideológicos, dentre os quais, o próprio direito. Dessa forma, segundo Chauí (2001, p. 23), em O que é ideologia, esse grupo de idéias possui um objetivo claro e constante:
Em sociedades divididas em classes (e também em castas), nas quais uma das classes explora e domina as outras, essas explicações ou essas idéias e representações serão produzidas e difundidas pela classe dominante para legitimar e assegurar seu poder econômico, social e político. Por esse motivo, essas idéias ou representações tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política.
Tal técnica mascarava – como até hoje – o sistema econômico capitalista, ou seja, o modo de produção capitalista. (MOREIRA, 1987, p. 66)
Devemos anotar, em razão da importância, o entendimento diametralmente oposto no que concerne ao direito de Grau (2000, p. 36) quando afirma que “[…] pretendi negar que o direito positivo (direito posto) seja a expressão de uma classe dominante; ele é a tradução da correlação das forças produtivas existentes.” E complementa: “O direito acolhe as contradições das relações sociais, reproduzindo-as, de sorte que, nele, os paradoxos não configuram anomalias, porém elementos essências do seu discurso.” (GRAU, 2000, p. 36)
A despeito da aguda observação, pensamos que, para atingirmos a essência dos institutos e princípios jurídicos, e não a sua mera existência, faz-se mister um repensar crítico sobre esta espécie de lógica, evoluindo, conseqüentemente, para o pensamento crítico que a lógica dialética engendra para nos desvencilharmos do obscurecimento que o dado ideológico proporciona.
Daí afirmar o ilustre membro da Escola Crítica do Direito, Professor Michel Miaille, em obra indispensável, intitulada Introdução Crítica ao Direito, que (1994, p. 50):
Para que, no sistema capitalista onde os homens estão profundamente divididos em classes antagónicas, uma vida social ainda assim seja possível, é necessário que exista uma estrutura política, cuja função primeira será ordenar a desordem, reconciliar aparentemente indivíduos que tudo separa, velar pela salvação pública. Esta instituição, sabemo-lo, é o Estado […] Ora, e é o que muitos esquecem às vezes, esta existência da ideia de Estado é importante para o próprio funcionamento das estruturas estatais. Se cada um de nós não estiver intimamente convencido da necessidade de um Estado, quer dizer, do valor desta (aparente) função de apaziguamento e de regulamentação pacífica dos conflitos, se cada um de nós não acreditar que existe um bem comum, distinto e superior aos nossos interesses particulares, torna-se difícil fazer funcionar o Estado, isto é, concretamente a administração, os tribunais, o exército e, de uma maneira geral, todas as instâncias a ele ligadas. Assim se impõem, na prática e nas consciências, noções tais como: interesse geral, direitos e deveres do cidadão, soberania, razão do Estado, vontade da administração e outras tantas ‘expressões’ sem as quais, afinal, o funcionamento da instituição estatal estaria comprometido.
De efeito, resta evidente que a idéia de Estado produzida pelas sociedades capitalistas tem por fim uma aparente acomodação de classes sócio-econômicas distintas, ou seja, de interesses – muitas vezes não conscientes no seio dessas classes – diversos e divergentes, no universo complexo que é a sociedade.
Partindo da premissa ora exposta, chegamos à conclusão de que, se o Estado é uma idéia, tão-somente, a teoria estatista (positivista-normativista) do direito engendra um conjunto de leis postas que se traduz em um aglomerado de idéias, isto é, uma ideologia.
Portanto, parece não haver dúvida que, ao proceder considerando o direito posto como o ponto de partida para a resolução de um conflito, o positivista nada mais faz do que reproduzir, consciente ou inconscientemente, o statu quo estabelecido pela ideologia dominante através do direito.
Dessarte, mister reconhecer que devemos progredir em relação ao positivismo estatista, na medida em que sofre este de erro essencial.
Como todo sistema, que deve ser coerente, o jurídico não escapa da imprescindibilidade de uma base que lhe dê sustentação.
Menos nas regras e nas leis, é nos princípios que o sistema jurídico se depara com direcionamentos cujo grau de abstração comportará o fundamento de todo e qualquer sistema, mantendo sua necessária coerência. Nessa esteira, o Professor Paulo Bonavides (1997, p. 257), na sua obra Curso de Direito Constitucional, enfatiza a importância dos princípios como sustentáculo do sistema jurídico:
A proclamação da normatividade dos princípios em novas formulações conceituais e os arestos das Cortes Supremas no constitucionalismo contemporâneo corroboram essa tendência irresistível que conduz à valoração e eficácia dos princípios como normas-chaves de todo o sistema jurídico; normas das quais se retirou o conteúdo inócuo de programaticidade, mediante o qual se costumava neutralizar a eficácia das Constituições em seus valores reverenciais, em seus objetivos básicos, em seus princípios cardeais.
Impende ressaltar que, à símile do que ocorre com o raciocínio positivista, os princípios não se encontram na análise sistêmica do ordenamento de normas, como o fez Norberto Bobbio. (1999) Ao revés, radicam, nos escólios precisos de Grau (2000, p. 35):
[…] o fundamento do direito posto na sociedade que historicamente o pressupõe, o que me leva a tratar não de um direito absoluto, mas do direito de uma determinada sociedade (o direito não existe; existem os direitos), aquela sociedade na qual ele está inserido. No direito pressuposto encontramos os princípios (jurídicos) dessa determinada sociedade. (Grifos do autor)
Podemos inferir da lição duas conclusões, todas importantes: a) a desmitificação do direito como absoluto, único e imutável (racionalistas); b) que os princípios radicam na historicidade dialética de cada sociedade.
Mas ainda temos que colocar mais um conceito, qual seja, o de direito pressuposto, que, ainda nas lições do Professor rio-grandense-do-sul (2000, p. 51):
O direito pressuposto é fundamentalmente princípios, nada obstando, de toda sorte, a que nele vicejem regras, entendidas estas como normas jurídicas cujo grau de generalidade é mais estreito do que o grau de generalidade dos princípios.
Mas se o direito pressuposto são os princípios colhidos na sociedade, não podemos encará-los estaticamente, em razão de total incoerência com o corpo social, por natureza, dinâmico. Daí por que ainda afirma Grau (2000, p. 36):
Ademais, após observar que o direito é produzido a partir de múltiplas inter-relações, compreendi a necessidade de o pensarmos dialeticamente, estudando-o em movimento, em constante modificação, formação e destruição – isto é, como de fato ocorre na realidade concreta.
Pois bem.
Nessa dinâmica inerente aos princípios, condicionados historicamente, mostra-se impossível a assertiva de que o direito é constituído tão-somente de interpretações articuladas dentro do direito posto. Isso porque, como mais uma vez demonstra o ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal (2000, p. 39), desnudando escorreitamente o raciocínio de Karl Marx:
Afirmar que o modo de produção da vida material (social) – que é diverso do modo de produção dos bens materiais – determina o direito é algo inteiramente distinto da afirmação de que a estrutura econômica (uma das estruturas regionais integradas na estrutura global do modo de produção da vida social) determina o direito.
E complementa (GRAU, 2000, p. 39):
O que se extrai da conhecida afirmação de Marx […] é a verificação de que a sociedade não pode ser compreendida, em seu dinamismo, senão como também produzida pelas interferências procedentes de todas as demais instâncias (jurídico-política e ideológica).
Estamos que aí reside a diversidade das teorias em cotejo, com vantagens para aquela do direito pressuposto sobre a do positivismo, na medida em que, se a sociedade é dinamicamente compreendida também pela interferência de outras instâncias (jurídica, política e ideológica) e não só pela econômica, se a sociedade na sua historicidade é a produtora do direito pressuposto (princípios) e condicionadora do direito posto (leis), nada mais se conclui senão que o direito, muito além de leis formais, é o produto histórico-cultural da sociedade na qual é produzido, cuja interferência das demais instâncias também se faz presente.
A avultação dos elementos extrajurídicos para o conhecimento/interpretação do direito posto importará na abertura do âmbito de visão do jurismo, que a teoria positivista, de seu turno, reduz.
Demonstradas, na medida da necessidade, as linhas gerais das teorias sob comento, forçoso anuir sobre o fato de não ser o positivismo uma atitude interpretativa satisfatória contemporaneamente.
Ademais, consoante a direção traçada nas linhas que perfilam as incumbências ministeriais insertas na nossa Constituição, cujo caráter é desenganadamente dirigente, sua concretização restará comprometida, acaso o membro do Parquet tenha atitude interpretativa que revele a adoção do positivismo-normativista. Isso porque, assim agindo, o Ministério Público estará se desvirtuando daqueles parâmetros constitucionais impositivos, quais sejam, as defesas da sociedade e do regime democrático, limitando a sua atuação à reprodução (repetição) da ideologia construída por uma só classe sócio-econômica: a dominante.
É certo que o positivismo jurídico produziu seus efeitos em época na qual era necessário limitar o soberano, como forma de se garantir a liberdade burguesa. Atualmente, entretanto, mister reconhecer o privilégio conferido ao humano como ente social, isto é, aquele ser entronizado no grupo social que detém o poder de determinar sua história, condicionada pelos valores de seu tempo. É, em resumidas palavras, o fundamento antropológico-axiológico (CANOTILHO, 2002) do constitucionalismo democrático, notadamente da atual Constituição brasileira.
Com efeito, o pós-positivismo ético – aquele que confere normatividade aos princípios contidos no direito pressuposto, mormente se previstos em textos constitucionais, cuja hierarquia suplanta a lei formal – traduz-se, parece-nos, na melhor forma de conformar as cláusulas constitucionais impositivas relativas à atuação do Ministério Público. Isso porquanto, como anota o Professor da New York University (1999, p. 305), claro defensor da normatividade dos princípios:
Os juízes [e os membros do Ministério Público] que aceitam o ideal interpretativo da integridade decidem casos difíceis tentando encontrar, em algum conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas, a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de sua comunidade.
Como se pode divisar, em suma, a atuação do Parquet realizada por membros cuja formação é positivista nega o próprio documento constitucional, inerentemente principiológico, relegando aquele mister ao enclausuramento dogmático da lei formal.
Outubro/2005
Informações Sobre o Autor
Renato Franco de Almeida
Promotor de Justiça. Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça. Membro da Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas Gerais. Mestre e Doutor em Direito. Membro do Conselho Editorial da Revista De Jure do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Editorial do periódico MPMG Jurídico. Professor de Graduação e Pós-Graduação lato sensu. Autor do livro Constituição e Políticas Econômicas na Jurisdição Constitucional