Inconstitucionalidade do § 1O do Art. 58 da CLT

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Por força do § 1o, do art. 58 da CLT, na redação que lhe foi dada pela Lei 10.243, de 19.06.2001:

“Não serão descontadas nem computadas como jornada extraordinária às variações de horário no registro de ponto não excedentes de cinco minutos, observado o limite máximo de dez minutos diárias”.

Ao se ler tal preceptivo legal, vem de imediato a indagação:  referida norma é constitucional e obriga o seu intérprete aplicá-la? É isso que pretende-se analisar neste pequeno e modesto artigo. Nele se objetiva demonstrar a ilegitimidade constitucional da aludida regra consolidada.

Com efeito, se a idéia de Estado de Direito se constitui como decorrência da obrigação política de obediência à lei, o dever que se inscreve nesse princípio pressupõe um fundamento de legitimidade, tanto no sentido substancial (lei justa), quanto formal (lei emanada de quem tem o direito de legislar e obediência ao devido procedimento legislativo). Por conseguinte, o dever de obediência à lei não pode conduzir e nem conduz, cegamente, ao submeter-se à ordem independentemente de seu conteúdo. Precisa o intérprete/aplicador investigar a legitimidade substancial e formal da norma para rejeitá-la quando destituída desses requisitos, pois como pondera a boa doutrina[1], para que a aplicação do direito se possa efetivamente realizar, enquanto expressão de um dos poderes do Estado, não é possível pretender-se que o juiz se subordine de modo irrestrito à vontade do legislador miticamente idealizado.

Nesse contexto, penso que a norma do § 1o do art. 58 da CLT, na redação que lhe foi dada pela Lei 10.243/2001 padece do vício de inconstitucionalidade, na medida em que viola a garantia prevista no inciso  XIII, do art. 7o do Texto Maior.

Deveras, o citado preceito constitucional fixou o limite máximo da jornada do trabalhador em oito horas diárias ou quarenta e quatro semanais, salvo as exceções previstas no próprio Texto Maior.

Assim, tratando-se de garantia constitucional a evidência não pode ser apequenada ou reduzida por norma de dignidade inferior menos suprimida, pois outorgada pelo poder constituinte originário.

A bem da verdade, nem mesmo por Emenda constitucional poderia o limite da jornada fixado no citado preceito maior ser alterado, pois se trata de direito fundamental gravado com a cláusula do não retrocesso e portanto, protegido pelo disposto no § 4o, inciso IV, do art. 60 da Carta da República.

É certo que existe corrente doutrinária defendendo que os direitos sociais, dada à dinâmica da economia, não estariam alcançados pela referida garantia. Todavia, penso equivocado tal posicionamento, pois como nos lembra Paulo Bonavides:

“A Nova Hermenêutica constitucional se desataria de seus vínculos com os fundamentos e princípios do Estado de democrático de Direito se os relegasse ao território das chamadas normas programáticas, recusando-lhes concretude integrativa sem a qual, ilusória, a dignidade da pessoa humana não passaria também de mera abstração.

A observância, a prática e a defesa dos direitos sociais, a sua inviolável contextura formal, premissa indeclinável de uma construção material sólida desses direitos, formam hoje o pressuposto mais importante com que fazer eficaz a dignidade da pessoa humana nos quadros de uma organização democrática da Sociedade e do Poder.

Em função disso, essa dignidade se fez artigo constitucional em nosso sistema jurídico, tendo sido erigida por fundamento de um novo Estado de Direito, que é aquele do art. 1o da Carta Política da República.

Sem a concretização dos direitos sociais não se poderá alcançar jamais “a Sociedade livre, justa e solidária”, contemplada constitucionalmente como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3o). O mesmo tem pertinência com o respeito à redução das desigualdades sociais, que é, ao mesmo passo, um princípio da ordem econômica e um dos objetivos fundamentais de nosso ordenamento republicano, qual consta respectivamente do art. 170, VII, e do sobredito art. 3o.

Em obediência aos princípios fundamentais que emergem do Título I da Lei Maior, faz-se mister, em boa doutrina, interpretar a garantia dos direitos sociais como cláusula pétrea e matéria que requer, ao mesmo passo, um entendimento adequado dos direitos e garantias individuais do art. 60. Em outras palavras, pelos seus vínculos principais já expostos – e foram tantos na sua liquidez inatacável -, os direitos sociais recebem em nosso direito constitucional positivo uma garantia tão elevada e reforçada que lhe faz legítima a inserção no mesmo âmbito conceitual da expressão direitos e garantias individuais do art. 60. Ferem, por conseguinte, uma intangibilidade que os coloca inteiramente além do alcance do poder constituinte ordinário, ou seja, aquele poder constituinte derivado, limitado e de segundo grau, contido no interior do próprio ordenamento jurídico.

Tanto a lei ordinária como a emenda à Constituição que afetarem, abolirem ou suprimirem a essência protetora dos direitos sociais, jacente na índole, espírito e natureza de nosso ordenamento maior, padecem irremissivelmente da eiva de inconstitucionalidade, e como inconstitucionais devem ser declaradas por juizes e tribunais, que só assim farão, qual lhes incumbe, a guarda bem sucedida e eficaz da Constituição”[2]

Assim, em boa hermenêutica constitucional, deve-se entender que os direitos sociais, no sistema constitucional brasileiro, encontram-se incluídos na proteção constante do inciso IV do § 4o do art. 60 do Texto Maior. Por conseguinte, não podem ser abolidos nem mesmo desarrazoadamente restringidos por força de emenda originária do poder de reforma, menos ainda através de norma de dignidade infraconstitucional como é o caso do  § 1o do art. 58 da CLT.

Ora, se na prática o § 1o do art. 58 da CLT – norma infraconstitucional –  retira do trabalhador ainda quanto tendo laborado além do limite constitucionalmente permitido, o direito de remunerado, estabelecendo que somente haverá remuneração a partir do décimo primeiro minuto extra trabalhado, induvidosamente afronta à garantia constitucional que limita a jornada em oito horas diárias.

Inadmissível que, a pretexto de flexibilizar as relações de trabalho, garantia fundamental do trabalhador, como aquela constante do inciso XIII, do art. 7o do Texto Supremo simplesmente seja retirada por norma de dignidade inferior como se pretendeu com a edição da regra contida § 1o do art. 58 da CLT.

Não vejo, pois, como se possa legitimar perante a ordem constitucional a aludida norma, máxime porque fere de forma total não apenas o art. 7o, inciso XIII do Texto Supremo, mas também ao princípio da onerosidade inerente ao contrato de emprego permitindo ao empregador que se enriqueça indevida e imoralmente às custas da força de trabalho do empregado.

Me parece intolerável e moralmente ilegítimo aceitar que o empregador se enriqueça às custas da força do labor do trabalhador, ainda que o tempo em este que permaneça à sua disposição não seja superior a dez minutos, pois a norma do art. 4o da Lei Consolidada não estabelece nenhum limite, ao contrário, garante como efetivo trabalho o tempo em que o empregado esteja à disposição do empregador, mesmo sem executar qualquer tipo de atividade.

De outro lado, no campo do direito laboral para corresponder ao objetivo do princípio da proteção, a doutrina constituiu o princípio da norma mais favorável ao assalariado, segundo o qual, havendo duas ou mais normas dispondo sobre a mesma matéria, será aplicável aquela que represente maiores vantagens para o trabalhador. Logo, não se tem, no campo do direito do trabalho, uma hierarquia fixa, senão dinâmica, daí porque no ordenamento laboral o vértice da pirâmide normativa nem sempre é a norma fundamental ou de hierarquia superior, mas aquela que, em cumprimento à sua disposição natural, confira mais direitos ao assalariado.[3]

O objetivo desse princípio é proporcionar uma compensação da superioridade do empregador frente ao empregado, dando a este último uma superioridade jurídica. Esta  compensação é conferida ao empregado no momento em que a ele se dá a proteção que lhe é dispensada por intermédio da lei. O princípio da proteção é dividido em três subespécies: a) o “in dubio pro operário”; b) o da aplicação da norma mais favorável ao trabalhador; c) o da aplicação da condição mais benéfica ao trabalhador.

Na dúvida, deve-se aplicar a regra mais favorável ao trabalhador ao se analisar um certo preceito que encerra regra trabalhista, o “in dubio pro operario”.

É possível subdividir a regra mais favorável de três maneiras: a) a elaboração da norma mais favorável, em que as novas leis devem dispor de maneira mais favorável ao trabalhador. Com isso se quer dizer que as novas regras devem tratar de criar regra visando a melhoria da condição social do trabalhador; b) a hierarquia das normas jurídicas: havendo várias normas a serem aplicadas numa escala hierárquica, deve-se observar a que for mais favorável ao trabalhador. Se houver um adicional de horas extras de 60% fixado na norma coletiva e o da Constituição é de no mínimo 50%, deve-se aplicar o adicional da primeira. Em se tratando, porém, de normas de caráter proibitivo;  c) a interpretação da norma mais favorável: havendo várias normas a observar, deve-se aplicar a regra que for mais favorável ao trabalhador.[4]

O princípio da norma ou condição mais benéfica foi incorporado ao ordenamento jurídico laboral pátrio através da regra constante do art. 620 da CLT ao estabelecer:

“As condições estabelecidas em Convenção, quando mais favoráveis, prevalecerão sobre as estipuladas em Acordo”.

Havendo, pois, conflito entre normas de diferentes fontes ou de hierarquias deve ser aplicada aquela que mais benefícios possa conferir ao trabalhador, máxime quando esta é de dignidade constitucional, como é o caso daquela inserida no inciso XIII, do art. 7o da Carta da República.

Parece óbvio, que a norma do inciso XIII, do art. 7o da Carta da República prefere àquela constante do § 1o, do art. 58 da CLT.

O direito do trabalho é direito dos mínimos. Ao legislador cabe a tarefa de garantir um mínimo indispensável à sobrevivência do trabalhador, podendo as próprias categorias convencionarem maiores e melhores garantias ou vantagens através do contrato individual, do regulamento da empresa, das convenções, dos acordos coletivos de trabalho e em outros instrumentos de natureza autônoma, inclusive aqueles originários do direito comunitário.

A propósito, vale ressaltar que a ordem jurídica do Estado abrange as ordens de âmbito menor. Todas elas se resolvem em uma unidade. E esta deve ser coerente. Existe, por conseguinte, uma hierarquia entre as diversas fontes do direito do trabalho, tal como ocorre entre as fontes do direito em geral.

Pode-se, assim, afirmar que existe uma ordem hierárquica das fontes do direito do trabalho, constituída pela Constituição, lei, regulamento, sentença normativa, convenção coletiva de trabalho e costume. Todavia, nesse particular, o que é preciso deixar claro é que a regulamentação estatal das relações de trabalho exprime um mínimo de garantias reconhecidas ao trabalhador. Por isso praticamente todas as normas legais em matéria de trabalho são cogentes, imperativas. Porém, sua inderrogabilidade pela vontade das partes, ou outra fonte do direito, há de ser entendida sem perder de vista que elas, traduzem um mínimo de garantias, que não pode ser negado, mas que pode, sem dúvida, ser ultrapassado: a derrogação de tais normas é admitida em um sentido favorável ao trabalhador, jamais em sentido contrário.

Fácil, pois, constatar que no ápice da pirâmide normativa laboral sempre se encontra a norma que melhores condições ou maiores vantagens puder proporcionar, em cada caso concreto, ao trabalhador.

Na doutrina lusitana António Monteiro Fernandes, comentando o princípio à luz da Lei Contrato de Trabalho em seu país pondera:

“A hierarquia das fontes de Direito do Trabalho foi vista na altura própria. Observou-se então que o art. 13/1 LCT faz intervir, no critério de determinação das normas aplicáveis segundo a hierarquia, a idéia de tratamento mais favorável ao trabalhador.

Esse preceito introduz, na verdade, uma limitação ao critério hierárquico: poderão prevalecer as “fontes inferiores” que estabeleçam tratamento mais favorável ao trabalhador do que as superiores, desde que não haja “oposição” por parte destas”.[5]

Assim, havendo conflito no momento da aplicação concreta entre o preceito constitucional – inciso XIII, do art. 7o da Carta da República – e o legal –  § 1o do art. 58 da CLT –,  deve prevalece aquele que seja mais favorável ao  trabalhador, qual seja, o primeiro que a meu sentir que recepcionou o disposto no art. 4o da Lei Consolidada.

Em conclusão, o § 1o do art. 58 da CLT na redação que lhe foi dada pela Lei 10.243/01 por violar a proibição constante do § 4o, inciso IV, do art. 60, além de ferir as garantias previstas no inciso XIII, do art. 7o  e IV do art. 1o do Texto Maior, deve ser declarado inconstitucional não obrigando ao juiz a sua aplicação.

Referências bibliográficas
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 594-595.
MONTEIRO FERNANDES, António. Direito do Trabalho. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 106.
NASCIMENTO, Amauri  Mascaro do. Teoria General del Derecho del Trabajo. Tradução de Jaime Marín Villegas. São Paulo: LTr, 1999, p. 84.
FARACO AZEVEDO, Plauto de. Aplicação do Direito e contexto social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 128-129.
PINTO MARTINS, Sérgio. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Dialética, 1998, p. 42-43.
* Juiz Titular da 2a Vara do Trabalho de Dourados – MS. Prof. de Direito Processual do Trabalho na UNIGRAN.
Notas
[1] FARACO DE AZEVEDO, Plauto . Aplicação do Direito e contexto social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 128-129.
[2] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 594-595.
[3] MASCARO DO NASCIMENTO, Amauri.. Teoria General del Derecho del Trabajo. Tradução de Jaime Marín Villegas. São Paulo: LTr, 1999, p. 84.
[4] PINTO MARTINS, Sérgio. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Dialética, 1998, p. 42-43.
[5] MONTEIRO FERNANDES, António. Direito do Trabalho. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 106.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Francisco das C. Lima Filho

 

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região. Mestre em Direito pela UNB. Mestre e doutorando em Direito Social pela UCLM (Espanha)

 


 

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