Natureza Parlamentarista das Medidas Provisórias: Desequilíbrio de Forças Entre os Poderes Executivo e Legislativo no Sistema Presidencialista de Governo

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Parliamentariate Nature of Provisional Measures: Imbalance of Forces Between Executive and Legislative Powers in the Presidentialist Government System.

Marco Vicente Dotto Köhler: Pós-graduado, em nível de Especialização lato sensu, em Direito Público, pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL / Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina – ESMESC; em Direito Constitucional, pela Universidade Anhanguera-Uniderp (rede LFG); e em Direito Civil pelas Faculdades Integradas Jacarepaguá – FIJ. E-mail: [email protected]

Resumo: A presente pesquisa tem por objetivo abordar o instituto das medidas provisórias na forma como atualmente está disposta na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, com sua redação posterior à Emenda Constitucional número 32, de 2001. Objetiva-se analisar a natureza parlamentarista de tal instituto, com breve descrição do seu funcionamento nesse sistema, bem como as regras de sua aplicação no sistema presidencialista, com breve análise das diferentes responsabilizações do Chefe do Poder Executivo em cada sistema em decorrência da edição de medida provisória. Diante da natureza presidencialista das medidas provisórias, pretende-se analisar possível efeito de desequilíbrio entre os Poderes Legislativo e Executivo em caso de ocorrer aumento de força deste em detrimento daquele, como consequência direta da existência e uso reiterado de instituto configurado para sistemas parlamentaristas em uso em sistema presidencialista. Para tal análise, partir-se-á da distinção dos diferentes sistemas de governo, suas peculiaridades, passando por breve análise histórica da elaboração da Constituição de 1988, para então tratar das medidas provisórias e suas peculiaridades no Brasil.

Palavras-chave: Medidas provisórias. Parlamentarismo. Presidencialismo. Desequilíbrio entre os Poderes.

 

Abstract: The present research aims to approach the institute of provisional measures as it is currently laid down in the Constitution of the Federative Republic of Brazil, 1988, with its wording after Constitutional Amendment number 32, 2001. The objective is to analyze the parliamentary nature of such an institute, with a brief description of its operation in that system, as well as the rules for its application in the presidential system, with a brief analysis of the different responsibilities of the Chief Executive in each system as a result of the publication of a provisional measure. In view of the presidential nature of the provisional measures, it is intended to analyze a possible effect of imbalance between the Legislative and Executive Powers in the event of an increase in strength in detriment of the former, as a direct consequence of the existence and repeated use of an institute configured for parliamentary systems in use in presidential system. For this analysis, we will start from the distinction of the different government systems, their peculiarities, going through a brief historical analysis of the elaboration of the 1988 Constitution, to then deal with the provisional measures and their peculiarities in Brazil.

Keywords: Provisional measures. Parliamentarism. Presidentialism. Imbalance between Powers.

 

Sumário: Introdução. 1. Sistemas de Governo. 1.1. Noções preliminares: organização e estrutura do Estado. 1.2. Sistema Parlamentarista. 1.3. Sistema presidencialista. 2. Separação de Poderes nos sistemas de governo. 2.1.Separação de Poderes no parlamentarismo. 2.2. Separação de Poderes no presidencialismo. 3. Processo legislativo e medidas provisórias. 3.1. Processo legislativo. 3.2 Medidas provisórias e Separação de Poderes. Conclusão. Referências.

 

Introdução

Para fins de que se compreenda o que se busca no presente trabalho, a título introdutório faz-se um breve comparativo entre os institutos da Medida Provisória, do Brasil presidencialista, com o Decreto-Lei, da Itália parlamentarista, possibilitando uma visão superficial, mas panorâmica, acerca de um dos aspectos consequenciais de se utilizar num regime presidencialista um instituto desenvolvido eminentemente para um sistema parlamentarista.

No mesmo sentido em que há no Brasil a Medida Provisória, na Itália há o Decreto-Lei, e o Art. 77 da Constituição italiana traz a expressão “sob sua responsabilidade” política. Tal expressão, que não encontra paralelo na Constituição do Brasil deve ser melhor explicada para que se possa compreender a estrutura das medidas provisórias no contexto parlamentarista e como difere do contexto presidencialista.

Assim como o instituto da medida provisória na Constituição Federal do Brasil, de 1988, há na Constituição Federal Italiana o Decreto-Lei, também previsto para casos de extraordinária urgência e relevância.

Quem emite o Decreto-Lei é o primeiro ministro, sob sua responsabilidade, sujeitando-se ao voto de desconfiança do parlamento, que poderá desconstituir todo o gabinete do Primeiro-Ministro.

No Brasil, por sua vez, a Medida Provisória é emitida pelo Presidente da República, e não há essa responsabilização pessoal, com sujeição a perda do cargo eletivo.

No contexto parlamentarista o instituto se encaixa perfeitamente, pois o presidente no parlamentarismo tem apenas função de chefe de Estado, cabendo ao Chefe de Governo, que é o Primeiro-Ministro, a emissão de Medidas Provisórias.

No contexto do presidencialismo o instituto não se encaixa, pois acaba gerando demasiados poderes ao presidente (Chefe de Estado + Chefe de Governo), ao permitir emissão de medidas de cunho legislativo, sem sujeita-lo a responsabilização, como se dá no sistema parlamentarista.

Além disso, sabe-se que há uma taxa de predominância de aprovação dos projetos vindos do Executivo, o que pode, segundo alguns estudiosos do assunto, trazer como um dos efeitos a força exacerbada do Poder Executivo, em sentido aproximado ao que acontece em regimes autoritários, pois o parlamento, no sistema presidencialista em que há medidas provisórias, acaba ficando sujeito a uma dominação do executivo.

Essa possível sobreposição de forças do executivo para com o legislativo pode ser caracterizada também como uma ameaça a uma das cláusulas pétreas, que é a separação dos Poderes, pois tende a manter o Legislativo refém do Executivo, na medida em que a pauta da Casa parlamentar (Câmara dos Deputados ou Senado Federal) pode ficar sobrestada enquanto não se deliberar acerca da medida provisória encaminhada pelo Executivo, nos termos do Art. 62, §6º, da Constituição da República.

Ademais, não se pode falar em inconstitucionalidade de tal dispositivo, ante a impossibilidade de haver norma inconstitucional no próprio texto da Constituição.

O que se pode perceber, no entanto, e como será melhor desenvolvido no decorrer do trabalho, é o fato das medidas provisórias serem instituto de natureza, e feitas para funcionarem num sistema parlamentarista, chegando às margens da incompatibilidade com o sistema presidencialista.

 

1 Sistemas De Governo

Para que se possa alcançar a melhor compreensão do tema do presente trabalho, imperioso que se faça uma rápida diferenciação dos sistemas parlamentarista e presidencialista de governo.

 

1.1 Noções preliminares: organização e estrutura do Estado

Antes, no entanto, de abordar sistemas de governo, é preciso, ainda que perfunctoriamente, apenas para melhor situar o tema que será desenvolvido, explicar e diferenciar alguns conceitos, terminologias, relacionadas com a organização e estrutura do Estado (LENZA, 2009, p.289), como “forma de governo”, “sistema de governo” e “forma de Estado”.

Pode-se, ainda, dizer que o Brasil tem como Regime Político, também chamado de Regime de Governo (PAULO e ALEXANDRINO, 2015, p. 298) a Democracia, pois, nos termos da Constituição, no parágrafo único do Art. 1º, “todo poder emana do povo […]”, contrapondo, assim, regimes políticos ditatoriais, autoritários, totalitários, autocráticos.

Estado democrático de direito como expoente do regime democrático, pois além de garantir que o Estado seja Democrático e de Direito, cria “[…] um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.” (SILVA, 2008, p.117), na medida em que “[…] há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais […]”. (SILVA, 2008, p.117-118)

Voltando aos rumos do presente trabalho, tem-se: a) quanto à forma de governo, possibilidade de ser republicana ou monárquica; b) quanto à forma de Estado, ser unitário ou federativo; e c) quanto ao sistema de governo, ser presidencialista ou parlamentarista. (PAULO e ALEXANDRINO, 2015, p. 291)

Ainda que o aspecto a ser desenvolvido diz respeito aos sistemas de governo, cumpre mencionar que a forma de Estado é tratada pelo Constituinte Originário com especial cuidado, pois elenca dentre as cláusulas pétreas a forma federativa de Estado (Art.60, §4º, I, da CF/88), e não pode ser alvo sequer de propostas de emendas constitucionais tendentes a abolir o modelo federativo (MENDES, 2017, p. 125), sendo que não houve a mesma proteção quanto à forma de governo e ao sistema de governo, tanto que o Art. 2º do Ato Das Disposições Constitucionais Transitórias deixou para o eleitorado decidir quanto a esses aspectos, ao determinar a realização de plebiscito no dia 7 de setembro de 1993.

Sabe-se que “o Brasil adotou a república como forma de governo, o presidencialismo, como sistema de governo, e a federação, como forma de Estado.” (BULOS, 2018, p.936).

Essa adoção pode ser vista de forma evidente já no Preâmbulo da Constituição, bem como nos artigos 1º, 3º e 18, dentre outros, em que se lê “República Federativa do Brasil”, bem como há a instituição do “Estado Democrático de Direito” e, no que tange ao sistema de governo, no Título IV, Capítulo II, Seção I, em que trata do Presidente e do Vice-Presidente da República.

Visto isso, como breve contextualização e conceituação periférica ao assunto objeto do presente trabalho, passa-se a tratar especificamente sobre os sistemas de governo.

 

1.2 Sistema parlamentarista

A existência de um parlamento não é o que define o sistema parlamentarista. Tanto é assim que o Brasil tem sistema presidencialista de governo e tem parlamento, formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, que são as casas parlamentares que compõem o Congresso Nacional, que exerce o Poder Legislativo, nos termos do Art. 44, caput, da Constituição Federal.

O que define, ou possibilita identificar um sistema parlamentarista é o fato de ser um

 

“Regime de governo em que a Chefia de Governo (administração) é confiada ao próprio Parlamento – daí a expressão parlamentarismo – sendo exercida por um primeiro-ministro que comanda um Gabinete formado por ministros auxiliares, ao passo que a Chefia de Estado (representação odo Estado perante outros Estados) é confiada ao presidente da República ou, se a forma do governo for monárquica, ao rei. (ACQUAVIVA, 2011, p.626/627. Grifos do autor).”

 

O parlamentarismo pode ser: a) monista, em que o “[…] os monarcas e os presidentes reinam ou presidem, mas não governam, porque o governo todo é obra do gabinete, designadamente do primeiro-ministro” e isso se dá pelo fato de este primeiro-ministro concentrar “[…] em sua mão o exercício do monopólio da autoridade de governo, neutralizando nesse ponto a figura do Chefe de Estado, habitualmente desfalcado de faculdades ativas e mero representante ou símbolo da unidade do poder ou da nação” (BONAVIDES, 2006, p.211/212); ou b) dualista, no qual as “competências governamentais” dividem-se entre o Chefe de Estado (presidente ou monarca) e o Primeiro-Ministro, podendo haver maior risco de desequilíbrio na repartição do poder, sendo perniciosa à natureza parlamentarista do sistema, bem como pode desaguar “[…] na diminuição ou na limitação da amplitude democrática dessa forma de governo.” (BONAVIDES, 2006, p.212).

O Brasil vivenciou forma de parlamentarismo dualista após a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, e o sucessor natural, o vice-presidente João Goulart, que era visto pelos mais conservadores e por setores militares como “a encarnação da República sindicalista e a brecha por onde os comunistas chegariam ao poder”. (FAUSTO, 2012, p.376).

Para poder assumir a Presidência da República, submeteu-se à solução encontrada pelo Congresso Nacional, por meio do Ato Adicional (Emenda Constitucional nº4), de 2 de setembro de 1961 (BONAVIDES, 2006, p.217), que passou o sistema de governo para parlamentarista, “[…] e João Goulart tomou posse, com poderes diminuídos, em 7 de setembro de 1961”, tendo, portanto, o parlamentarismo, entrado em vigor “[…] pela porta dos fundos”, e, sendo apenas solução para uma crise política, durou pouco, pois “em janeiro de 1963, cerca de 9,5 milhões de um total de 12,3 milhões de votantes responderam ‘não’ ao parlamentarismo [retornando] assim o sistema presidencialista, com João Goulart na chefia do governo” (FAUSTO, 2012, p.377/387).

Há quem defenda o parlamentarismo como sendo superior ao presidencialismo, como Raul Pilla, para quem o primeiro é um “governo da responsabilidade a prazo incerto; o segundo, o governo da irresponsabilidade a prazo certo” (PILLA apud BONAVIDES, 2006, p.213), ou Rui Barbosa, segundo o qual o presidencialismo brasileiro nada mais é que “a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo” (BARBOSA apud BONAVIDES, 2006, p.213).

Por outro lado, a defesa do parlamentarismo no Brasil pode ser vista como algo não tão acertado assim, pois é um sistema consolidado na Inglaterra, que é o expoente do parlamentarismo, tendo lá sua “consagração definitiva”, pode ter o sucesso atrelado “[…] a dois fatores peculiares aos anglo-saxões: uma profunda consciência nacional demonstrada no respeito às tradições políticas e às instituições e, depois, a existência de apenas dois partidos que efetivamente decidem as eleições.” (ACQAVIVA, 2011, p.627/628).

Outra questão que se levanta em relação ao parlamentarismo no Brasil, é em relação à forma federalista de nosso Estado (BONAVIDES, 2006, p.219/220), pois como seriam os governos dos Estados Federados? Teriam governadores eleitos pelo voto direto, ou primeiro-ministros, ou Ministro-presidente, eleitos pelos deputados estaduais?

Dessa forma, “o regime parlamentarista é propício apenas aos sistemas bipartidários, nos quais não ocorre a fragmentação indesejável da opinião parlamentar e, portanto, a estabilidade ministerial é muito maior”. (ACQUAVIVA, 2011, p.628).

Ainda assim, conforme será melhor tratado adiante, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, foi, em grande parte, construída pensando-se em um sistema de governo parlamentarista.

Tanto é assim que existe o instituto da medida provisória, próprio do parlamentarismo, estranho ao presidencialismo, justamente por adequar-se a um sistema de colaboração e responsabilidades mútuas entre os Poderes Legislativo e Executivo, e não a um sistema de independência e harmonia, como se dá no presidencialismo brasileiro.

 

1.3 Sistema presidencialista

No sistema presidencialista, há que se ter claras as distinções já feitas acerca das expressões forma de Estado, forma de governo e regime de governo, bem como se ter em mente que “[…] governo é a dinâmica do poder; quem exerce o poder governa. Já a expressão regime de governo diz respeito ao modo pelo qual os Poderes Executivo-Legislativo se relacionam” (ACQUAVIVA, 2011, p.677. grifos do autor).

Assim, pode-se simplificar a definição de presidencialismo como sendo “o regime de governo que a Chefia de Estado (representação do Estado) e a Chefia de Governo (administração) são encarnadas num só órgão, o presidente da República” (ACQUAVIVA, 2011, p.677).

O surgimento do presidencialismo está relacionado à independência dos Estados Unidos, com declaração ratificada em 4 de julho de 1776, e sua Constituição, promulgada em 1787, com forte influência do pensamento de Montesquieu e a Teoria da Tripartição de Poderes. (BULOS, 2017, p.1259).

A Constituição de 1988 deixou para momento posterior a escolha, por meio de plebiscito, a escolha da forma e sistema de governo, nos termos do Art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Art. 2º. No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País.” (BRASIL, 1988).

Referido plebiscito acabou por ser realizado de forma antecipada, por força da Emenda Constitucional nº 2/93, no dia 21 de abril de 1993, mantendo-se pelo voto popular a república como forma de governo e como sistema foi mantido o presidencialismo (SILVA, 2008, p.543).

Não foi surpresa a manutenção do presidencialismo, tendo em vista a longa tradição brasileira com esse sistema de governo, que “[…] iniciou-se com a nossa primeira Constituição republicana, de 1891, por influência de Ruy Barbosa, permanecendo até hoje.” (BULOS, 2017, p.1259).

No Brasil, o poder executivo é o que se denomina “executivo monocrático” (SILVA, 2008, p.542), pois, nos termos do Art. 76, da Constituição “Art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.” (BRASIL, 1988).

Ademais, o Presidente da República é escolhido por meio do sufrágio universal, diretamente pelo voto popular, considerando-se eleito se obtiver a maioria absoluta dos votos, descontados os votos brancos e nulos (Art.77 da CF/88).

Diferencia-se, portanto, a forma de escolha do chefe de governo e de Estado, centralizados na pessoa do Presidente da República, se comparado ao parlamentarismo, em que a escolha do chefe de governo, como visto, é feita pelo parlamento.

A separação de poderes pode ser melhor diferenciada entre os dois sistemas de governo justamente por causa da forma de escolha (e destituição, no parlamentarismo), pois demanda confiança do parlamento no primeiro-ministro, no parlamentarismo, e independe dessa confiança, para manter-se no cargo, no presidencialismo, pois tem mandato conferido pelo voto direto do povo, por tempo certo (4 anos, nos termos do Art. 82 da CF/88).

Pode-se dizer, de forma simplificada, que são duas as principais características do sistema presidencialista: “o presidente reclama total legitimidade democrática; o presidente é eleito para um período de tempo, que, sob circunstâncias normais, não pode ser modificado, encurtado ou […] prolongado.” (MORAES, 2001, p.46).

Vistas as principais características dos sistemas de governo parlamentarista e presidencialista, passa-se, a seguir, a análise do princípio da separação de poderes nesses sistemas, de fundamental importância para que se entenda melhor a estranheza que é a existência das medidas provisórias no sistema presidencialista de governo.

 

2 Separação De Poderes Nos Sistemas de Governo

O tema da separação de poderes não é novidade histórica, encontrando raízes na Idade Antiga, mais precisamente na Antiguidade grega, tendo na obra clássica Política, do pensador Aristóteles a identificação de três funções de poder exercidas pelo Soberano: “[…] a função de elaborar normas gerais e abstratas (função legislativa), a função de aplicar essas normas gerais aos casos concretos (função executiva) e a função de dirimir os conflitos eventualmente havidos na aplicação de tais normas (função de julgamento)”. PAULO e ALEXANDRINO, 2015, p. 443).

 

Apesar de identificadas as funções, eram exercidas pelo mesmo Soberano, sem divisão do exercício do poder. Apenas no período histórico do Iluminismo, séculos XVII e XVII, de fato iniciou-se movimento em direção à separação do exercício do poder, tendo Montesquieu como expoente desse pensamento, em sua obra mais O Espírito das Leis, como “vigorosa contraposição ao absolutismo”, consolidando-se de forma definitiva com a Revolução Francesa, com a inclusão na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão da ideia de que somente há um Estado com Constituição se nela for prevista a Separação de Poderes. (PAULO e ALEXANDRINO, 2015, p.444/445).

 

No Brasil atual, a Constituição da República, de 1988, já em seu Art. 2º traz a separação dos Poderes da União ao determinar que Legislativo, Executivo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si. (BRASIL, 1988).

Pode-se dizer que “o refirmar da separação de poderes como princípio estruturante da ordem político-constitucional brasileira inaugurada em 1988 coroa uma tradição de quase dois séculos com a separação de poderes do Estado como princípio constitucional” (MORAES FILHO, apud MORAES, 2001, p.45)

Corrobora tal visão o fato de, no Art. 60, §4º, III, o Constituinte colocar a Separação dos Poderes dentre as cláusulas pétreas, “[…] núcleo irreformável da constituição [também denominadas] cláusulas de inamovibilidade […]” (BULOS, 2017, p.417. grifo no original), sendo um dos limites materiais expressos do poder reformador (BULOS, 2017, p.412), além de ser também um “[…] princípio geral do Direito Constitucional […]”. (SILVA, 2008, p.106).

Ainda que se discuta acerca da impropriedade da utilização da expressão separação de Poderes (ou divisão dos Poderes), pois seria tecnicamente a mais acertada, pois o Poder do Estado é uno e indivisível, sendo que o que se separa, divide, portanto, são suas funções (legislativa, executiva e judicante), e não o Poder (LENZA, 2009, p. 338/340; SILVA, 2008, p.108/111), no presente trabalho utilizar-se-á da expressão constante na Constituição da República, ou seja: separação dos Poderes.

Apesar da importância da Separação dos Poderes como fator de limitação do Poder do Estado, ainda que todos os Poderes possam “[…] agregar atividades e competências facilmente definidas, todos possuem um feixe de atribuições comuns, unificadas pela ideia e pela forma de administração pública, que permeia o Estado” (MENDES, 2017, p.883), devendo a ideia de separação de Poderes da doutrina clássica, “[…] deve ser vista, no Brasil, na ótica da relatividade.” (BULOS, 2017, p. 1089).

Após concisa introdução passa-se à análise desse princípio nos sistemas de governo parlamentarista e presidencialista.

 

2.1 Separação de Poderes no parlamentarismo

Conforme já visto acima, o parlamentarismo é um sistema de governo que depende mais da confiança mútua entre Primeiro-Ministro e Parlamento, motivo pelo qual, nesse sistema, “[…] atualmente se prefere falar em colaboração de poderes […]” (SILVA, 2008, p.109. grifo do autor).

 

Dizer que há colaboração e não independência, entre os Poderes Executivo e Legislativo, é dizer que “[…] no exercício do poder, isto é, na manutenção do poder no âmbito de um depende da vontade do outro”, pois no sistema parlamentarista a responsabilidade de governo se dá perante o parlamento, que foi quem aprovou o chefe de governo (Primeiro-Ministro), sendo que “[…] se o plano de governo perde apoio parlamentar, o Primeiro-Ministro exonera-se imediatamente.” (PAULO e ALEXANDRINO, 2015, p.295/297).

Mesmo sendo bem definidas as funções exercidas pelo parlamento, pelo Primeiro-Ministro e pelo chefe de Estado (presidente ou monarca), há menor grau de autonomia, de separação entre os Poderes Executivo, bipartidos entre o chefe de Estado e o chefe de governo, e o Poder Legislativo, na figura dos parlamentares.

Isso se dá pelo fato de que “a outorga de confiança política da Nação mantém os governos no poder por via do instituto da responsabilidade ministerial” e também por meio da maioria parlamentar, sem a qual “[…] não há governo que se conserve em pé” pois “a moção de confiança pode em todas as ocasiões de crise renovar ou recusar o apoio parlamentar de que depende a conservação dos gabinetes.” (BONAVIDES, 2006, p. 213).

Da mesma forma que o parlamento pode destituir o Primeiro-Ministro, seja por ter perdido a maioria do parlamento, seja pelo voto de desconfiança, o Chefe de Estado pode dissolver o parlamento e convocar novas eleições (LENZA, 2009, p.463).

Além dessa natureza de dependência maior da confiança mútua, a separação de Poderes tem contornos menos visíveis pois o parlamento é fortalecido por desempenar função executiva, tendo em vista que “no parlamentarismo verifica-se o deslocamento de uma parcela da atividade executiva para o Legislativo.” (TEMER apud LENZA, 2009, p.464).

 

2.2 Separação de Poderes no presidencialismo

O sistema de governo presidencialista, por sua vez, pode ter maior independência entre os Poderes, se comparado com o sistema parlamentarista, pois neste há maior relação de dependência e colaboração, como já visto, e no presidencialismo “desenvolveram-se as técnicas da independência orgânica e harmonia dos poderes.” (SILVA, 2008, p.109. grifo do autor).

A expressão “independência dos poderes” pode ser desmembrada em várias significações, como a desnecessidade de autorização ou consulta a terceiros “[…] no exercício das atribuições que lhes sejam próprias […]”; e como na livre organização dos respectivos serviços, “[…] observadas apenas as disposições constitucionais e legais”. (SILVA, 2008, p.110).

No entanto, a significação que mais importa para o presente trabalho é aquela em que se percebe a maior distinção entre a característica da separação de Poderes no presidencialismo em comparação com o parlamentarismo, que é justamente a característica presidencialista de independência que determina “[…] que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros”. (SILVA, 2008, p.110. grifou-se).

Essa característica da separação de Poderes no sistema presidencialista está no cerne da discussão da adequação do instituto das medidas provisórias no presidencialismo, pois no parlamentarismo, como será melhor desenvolvido adiante, o instituto equivalente tem como característica justamente a confiança que se deve ter entre chefe de governo e parlamento, na medida em que há previsão de responsabilização política pelas medidas provisórias (decretos-leis, in casu), inibindo o envio desenfreado ao Parlamento de medidas ou decretos pelo Primeiro-Ministro.

O mesmo não ocorre no presidencialismo, pois o Presidente da República não arca com um custo tão alto politicamente quanto no parlamentarismo se não obtiver a aprovação de uma medida provisória pelo parlamento, pois seu mandato é por tempo certo, e por eleição direta pelo povo, ao contrário do parlamentarismo, que é indicado pelo chefe de Estado, presidente ou monarca, e tem aprovada sua indicação pelo Parlamento, que pode também destituí-lo por meio de votação. (BONAVIDES, 2006, p.211/220).

Isso se dá justamente pelo fato de no presidencialismo ter uma melhor definição da separação dos Poderes, e tem como uma de suas principais características, a consagração da “[…] cláusula da irresponsabilidade política do Presidente da República […]”, ou seja: a irresponsabilidade política, que, na realidade, é “[…] corolário do princípio fundamental da separação de Poderes, cujo lema é harmonia e equilíbrio, freios e contrapesos, de um Poder em relação ao outro, aquilo que os americanos chamam de checks and balances.” (BULOS, 2017, p. 1259/1260. Grifos do autor).

Visto desse prisma, tem-se que no presidencialismo “[…] as ações presidenciais não podem ser impedidas pelo Poder Legislativo [nem] interferem no Parlamento” ou seja: “[…] o Presidente não dissolve o Congresso Nacional nem impede os seus membros de legislarem, do mesmo modo que deputados e senadores não demitem nem escolhem os auxiliares diretos da Presidência da República.” (BULOS, 2017, p.1259/1260).

Por outro lado, é sabido que, ainda que mantenha-se a separação de Poderes como princípio fundamental, “[…] inexiste exclusividade absoluta de atribuições” (BULOS, 2017, p.1091), motivo pelo qual utiliza-se comumente da expressão “função precípua” de cada um dos Três Poderes para se referir à atribuição principal, de Legislar, para o Legislativo; executar, administrar, para o Executivo; e Judicar, julgar, para o Judiciário.

As funções legislativa, administrativa e jurisdicional são atribuídas a órgãos distintos, independentes entre si, em que se deve manter o equilíbrio de forças, pois para se manter os freios e contrapesos, “[…] o poder deve conter o poder […]” ainda que “[…] o delicado equacionamento de forças entre Poderes, no Brasil, não poderá seguir, à risca, a proposta dos autores clássicos, notadamente Montesquieu”, pois no atual momento histórico e de evolução das instituições democráticas, “[…] cada uma dessas funções [dos três Poderes] não é, em absoluto, estanque uma da outra.” (BULOS, 2017, p.1089).

O objetivo do presente trabalho é abordar o instituto da Medida Provisória, instituto de origem parlamentarista utilizado no presidencialismo, e não aprofundar a análise do princípio da separação de Poderes, de forma isolada, mas sim relacionada ao tema das medidas provisórias, seus impactos no presidencialismo e consequências na relação da separação de Poderes.

Assim, após essa breve e distinção da separação de Poderes nos sistemas parlamentarista e presidencialista, inicia-se a abordagem do tema das Medidas Provisórias.

 

3 Processo Legislativo E Medidas Provisórias

Neste capítulo, trata-se de forma geral do processo legislativo, conceituando-o e contextualizando-o nas atividades do Estado, bem como, mais especificamente, analisa-se o instituto da medida provisória, sua origem, sua natureza parlamentarista e as consequências de sua existência e largo uso no presidencialismo de coalisão do Brasil.

 

3.1 Processo legislativo

O processo legislativo é função precípua do Poder Legislativo (MENDES, 2017, p.944; MORAES, 2012, p. 431), sendo que a Constituição Federal elenca os “instrumentos normativos”, as modalidades legislativas, no Art. 59, e os respectivos processos legislativos nos artigos 60 a 69. (MENDES, 2017, p.944).

Como a fonte do processo legislativo está expresso na Constituição, a modalidade que o Brasil adotou, portanto, é o “[…] processo legislativo jurídico-normativo ou propriamente constitucional.” (BULOS, 2017, p.1187. grifos do autor).

Pode-se conceituar, de forma mais concisa, o processo legislativo como “[…] conjunto de atos preordenados que permitem a feitura, a mudança e a substituição de espécies normativas (CF, art. 59)” (BULOS, 2017, p.1186. grifo do autor).

Tais atos preordenados, ou simplesmente conjunto de atos, são assim elencados pela doutrina: a) iniciativa legislativa; b) emendas; c) votação; d) sanção e veto; e e) promulgação e publicação. (BULOS, 2017, p.1187; SILVA, 2008, p.524/525), e “Tem, pois, por objeto, nos termos do art. 59, a elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.” (SILVA, 2008, p.524. grifos do autor).

Se analisado com rigor, “a promulgação e a publicação não integram o processo legislativo, porque não são atos oriundos do trabalho de deputados e senadores, no exercício do munus legiferante”, mas “por motivos estritamente didáticos” são estudados pela doutrina em conjunto com as etapas propriamente legiferantes. (BULOS, 2017, p.1187).

Dessa forma, “o conjunto de atos que uma proposição normativa deve cumprir para se tornar uma norma de direito forma o processo legislativo, que é objeto de regulação n Constituição e por atos internos no âmbito do Congresso Nacional.” (MENDES, 2017, p.944)

Estando o processo legislativo como um todo devidamente conceituado, passa-se à análise das Medidas Provisórias, objeto principal do presente trabalho.

 

3.2 Medidas provisórias e separação de Poderes

Nos termos do Art. 62, caput, da Constituição Federal “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.” (BRASIL, 1988).

Da redação do Art. 62 pode-se entender como conceito de medida provisória como sendo “ato monocrático do Presidente da República com força de lei, editada em caso de relevância e urgência, que deve ser imediatamente submetida à apreciação do Congresso Nacional (CF, art. 62, caput, com redação dada pela EC n. 32/2001).” (BULOS, 2017, p.1221).

No Brasil, a origem da medida provisória encontra raízes no decreto-lei “[que] surge no direito brasileiro a partir da Constituição ‘polaca’ de 1937 como apanágio da ditadura varguista, permitindo ao Executivo legislar sem a interferência dos outros Poderes.” (SAMPAR, 2012, p.38).

Com essa legislatura pelo Executivo sem interferência dos demais Poderes, é gritante a inexistência da independência de Poderes, o que é facilmente percebido pelo fato de

“A carta de 1937 não previa o envio dos decretos para a apreciação do Congresso Nacional e a técnica legislativa que o Brasil presenciou entre 10 de novembro de 1937 e 29 de outubro de 1945 significou a suspensão da separação de funções estatais para o comando da República. Sozinho, o Executivo daquela época governou, legislou e atuou como revisor das decisões do Supremo Tribunal Federal durante quase uma década. (NICOLAU, 2009, p. 83, apud SAMPAR, 2012, p.38)”

 

O atual instituto da medida provisória substituiu o instituto do decreto-lei previsto em constituições anteriores, como nos “arts. 74, ‘b’, c/cos arts. 12 e 13 da Constituição de 1937; arts. 49, V, e 58 d Constituição de 1967 e arts. 46, V, e 55 da Constituição de 1967, na redação dada pela E n.1/69” (LENZA, 2009, p.421/422).

Entendendo-se as origens do instituto das medidas provisórias, é mais facilmente compreensível a percepção de que mesmo previsto na Constituição de 1988, o instituto é forma de exceção ao princípio da separação de Poderes, pois acaba por permitir o exercício de atribuições de um dos Poderes por outro. (SILVA, 2008, p.111/112).

Indaga-se, inclusive, quanto às medidas provisórias serem ou não parte do processo legislativo, pois não existia previsão expressa na no rol da redação final original do Art. 59 da Constituição, sendo que “um gênio qualquer, de mau gosto, ignorante, e abusado introduziu-as aí, indevidamente, entre a aprovação do texto final (portanto depois do dia 22.9.88) e a promulgação-publicação da Constituição no dia 5.10.88.” (SILVA,2008, p. 524/525).

Isso se deu basicamente pelo fato de até a promulgação da Constituição não se ter a certeza se o sistema de governo seria parlamentarista ou presidencialista, mantendo-se, na Carta Constitucional, institutos que se adaptam melhor tanto a um quanto a outro sistema.

Indagado o constitucionalista Michel Temer, atual Presidente da República, e que foi um dos constituintes, sobre alguma disposição das quais não gosta na Constituição, responde justamente sobre a manutenção das medidas provisórias no texto constitucional:

“Da medida provisória. Eu sempre combati, na medida em que ela era pior que decreto-lei, porque no primeiro momento ela poderia versar sobre qualquer matéria. E o decreto-lei tinha limites. Ela entrou no bojo de um projeto parlamentarista, com o qual é compatível, mas acabou ficando quando prevaleceu o presidencialismo, como meio de fortalecer o Poder Executivo. (TEMER in CARVALHO, 2017, p.398). (grifou-se).”

 

A forma com que a medida provisória entrou no texto constitucional brasileiro tem clara inspiração e “[recebe] forte influência dos decreti-lgge da Constituição italiana, de 27 de dezembro de 1947, cujo art. 77 permite a sua adoção in casi straordinari di necessità e d’urgenza” (LENZA, 2009, p.422), ou seja, em caso de extraordinária necessidade e urgência, como se dá na previsão brasileira.

Referido artigo da Constituição italiana prevê também algo que no sistema presidencialista não é possível, mas que para o regular funcionamento e utilização das medidas provisórias é essencial, pois permite melhor equacionamento de forças entre os Poderes da República.

Tal previsão é de que o decreto-lei, provisório, mas dotado com força de lei, acarretará “responsabilidade política” (LENZA, 2009, p.422) do Governo, do Gabinete, por meio do Primeiro-Ministro. Como se dá essa responsabilização política no parlamentarismo? Dá-se de modo que, se não for aprovada uma medida provisória (decreto-lei), o gabinete, o primeiro-ministro, cai, pode ser destituído, seja pelo abuso na edição de medidas, que poderá acarretar no voto de desconfiança e na destituição do Primeiro-Ministro. (LENZA, 2009, p.422/463)

Dessa forma, percebe-se que a medida provisória ajusta-se melhor “[…] às conveniências do Parlamentarismo, jamais ao sistema presidencial” até porque em países com sistema parlamentarista, como Alemanha, França e Itália, “[…] a espécie normativa participa de um contexto político-constitucional diverso do brasileiro.” (BULOS, 2017, p.1223).

Apesar de serem previstas de forma muito clara para serem utilizadas apenas em casos de relevância e urgência, tais conceitos remetem a “estado de necessidade” e ao “periculum in mora” que poderia decorrer do lento processo legislativo do Congresso Nacional e, como conceitos abertos, geram mais incertezas, pois “tais signos participam de uma zona de penumbra, não encontrando base semântica sólida que lhes propicie a explicação do exato sentido”, cabendo, portanto, “[…] ao intérprete catalogar quais são os casos induvidosos de incidência, apurando a certeza positiva [bem como] deve estabelecer as situações em que as medidas provisórias extrapolem os pressupostos que as autorizariam para determinar a certeza negativa.” (BULOS, 2017, p.1223/1228).

Apesar disso, sem precisar arcar com a previsão de “sob sua responsabilidade política”, prevista no sistema parlamentarista, o atual presidente da República no período de 18 meses, enviou 83 (oitenta e três) medidas provisórias à Câmara dos Deputados, primeira das Casas do Congresso Nacional em que deve tramitar a medida provisória para conversão, ou não, em lei. (fonte site G1).

Tanto é assim que na data de 04 de dezembro de 2020, foi publicada no Diário Oficial da União, a Medida Provisória nº 1.014, em contagem iniciada em 1988, no período pós-Constituição de 1988, conforme pode ser verificado no sítio do Planalto[1] na internet.

Não se está dizendo, com isso, que há sempre abuso por parte do Poder Executivo quando da edição de medidas provisórias. No entanto, é assustador o fato de terem tantas medidas encaminhadas pelo Presidente da República, sempre deixando mais tênue a linha que separa os Poderes, princípio tão caro ao Estado Democrático de Direito.

Para tentar conter esse impulso legiferante do Presidente da República, e manter bem delimitadas as fronteiras da Separação de Poderes, a Constituição institui mecanismos de limitação ao uso das Medidas Provisórias, tais como o previsto no §1º do Art. 62, em que há um rol de vedações à utilização de medidas provisórias:

“Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

  • 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:

I – relativa a:

  1. a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral;
  2. b) direito penal, processual penal e processual civil;
  3. c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros;
  4. d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º;

II – que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro;

III – reservada a lei complementar;

IV – já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República. (BRASIL, 1988).”

 

O §10 do mesmo Art. prevê outra forma de limitar o uso das Medias Provisórias, ao determina que “É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.” (BRASIL, 1988)

No entanto, ainda que haja na Constituição tais previsões de vedações e limitações ao uso de tal instituto, a indeterminação das expressões “relevância e urgência”, bem como a consagração presidencialista da “[…] cláusula da irresponsabilidade política do Presidente da República […]” (BULOS, 2017, p.1259), acabam por incentivar o fenômeno de utilização, pelo Poder Executivo, das medidas provisórias “[…] como atos de governo [e], ao afastar-se do caráter emergencial de utilização odo instituto, o Presidente da República fez com que as medidas provisórias fossem frequentemente empregadas como instrumento ordinário de alteração do status quo.” (DA ROS, 2008, p.144), ou seja: “a política do poder Executivo pautou-se por transformar as medidas provisórias, de instrumento de legislação emergencial, em atos ordinários de governo” (DA ROS, 2008, p.146).

Dessa forma, acaba por ter razão quem defende que

“as medidas provisórias são mais específicas do regime parlamentarista, em que o gabinete é uma dependência do corpo legislativo, podendo tal gabinete cair em face de desacordo com este. No regime presidencialista, o chefe do Executivo não está sujeito a censura que provoque a sua demissão, e assim a medida provisória é uma forma de concentração do poder no Executivo (FERREIRA apud LENZA, 2009, p.422).”

 

Um dos relatores da Constituição, Bernardo Cabral, questionado quanto “A constituinte começou parlamentarista – regime que o senhor defendia – e depois ficou presidencialista. Como foi esse embate?”, respondeu que “[…] quando derrubaram [o parlamentarismo] e ficou o presidencialismo, […] eu disse […] que precisava tirar o artigo da medida provisória, mais afeito ao parlamentarismo.” Justifica que “[…] Eu chamei a atenção para tirarem, porque iam dar ao presidente da República mais poder do que qualquer ditador da nossa revolução.” Por fim, complementa, de forma categórica que a solução para poder “[…] corrigir os problemas da medida provisória [seria] ‘extirpando da constituição’”. (Bernardo Cabral in Carvalho, 2017, p.100).

Em contrapartida a essa visão de hipertrofia do Executivo frente ao Legislativo, unicamente pela larga utilização das medidas provisórias, há quem entenda que “[…] mesmo executivos dotados de fortes poderes legislativos não podem governar contra a vontade da maioria parlamentar, pois proposições legislativas só são aprovadas se obtiverem apoio das maiorias” (MORAES, 2001, p.48).

“O presidencialismo brasileiro é o que se chama de “presidencialismo de coalisão”, que […] é o sistema presidencial de governo em que a governabilidade se dá pela formação de coalizão parlamentar mais ampla que o partido do presidente, servindo de apoio às políticas governamentais, o que é refletido na distribuição das pastas ministeriais e no exercício do poder de agenda legislativa pela presidência da República (SAMPAIO apud SAMPAR, 2012, p.34).”

 

Assim, “possuindo sólida coalização nas Casas legislativas, o governo conseguirá aprovar as matérias de seu interesse com rapidez”, o que ocorre, na prática, pela ampla utilização das medidas provisórias, demonstrando que “[…] o Poder Executivo exerce influência proeminente e amplo controle acerca da atividade legislativa no Brasil.” (SAMPAR, 2012, p.37/47).

Ademais, o caráter provisório e precário das medidas provisórias deixa claro que mesmo que o Poder Executivo possa impor sua agenda ao Congresso, por meio da edição de medida provisória, “[…] se ela não for aprovada no prazo constitucional, pelo Legislativo, perde a sua eficácia desde a edição (art. 62, §3º) [ostentando], portanto caráter provisório e resolúvel”. (MENDES, 2017, p.953/954).

Não bastasse isso, a Emenda Constitucional n. 32/2001, além de trazer várias limitações materiais expressas, já elencadas acima, proíbe a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória vetada (Art. 62, §10 da CF/88), “[…] sob pena de quebra do princípio da harmonia e independência dos Poderes.” (MENDES, 2017, p.956/960).

De outro norte, o legislador determina que

“Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados.

  • 1º O Presidente da República poderá solicitar urgência para apreciação de projetos de sua iniciativa.
  • Se, no caso do § 1º, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal não se manifestarem sobre a proposição, cada qual sucessivamente, em até quarenta e cinco dias, sobrestar-se-ão todas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa, com exceção das que tenham prazo constitucional determinado, até que se ultime a votação. (BRASIL, 1988) (grifou-se).”

 

Essa previsão de paralisação das atividades das Casas legislativas foi mitigado, sendo decidido que “[…] o sobrestamento das deliberações legislativas aludido no §2º do art. 64 da Constituição somente se aplica a projetos de lei ordinária, que possam ser objeto de medida provisória” bem como deve o sobrestamento ser aplicado apenas às sessões ordinárias da Câmara. (MENDES, 2017, p.962).

Assim, com a decisão do MS27.931, de relatoria do Ministro Celso de Mello, possibilitou-se equilibrar melhor a relação de forças entre o Executivo e o Legislativo, pois desafogou este último, que se via muitas vezes paralisado em sua função precípua, para ter que fazer papel apenas de revisor legislativo das medidas provisórias, sendo que buscou-se, com esse entendimento, “[…] além de propiciar o regular desenvolvimento dos trabalhos legislativos no Congresso Nacional, parece demonstrar reverência ao texto constitucional, pois (…) preserva, íntegro, o poder ordinário de legislar atribuído ao Parlamento.” (MELLO apud MENDES, 2017, p.962/963).

A EC n.32/2001 também diminuiu a sujeição do Congresso Nacional ao Poder Executivo ao suprimir do Art. 62 da CF/88 a parte que determinava que “[…] estando o Congresso Nacional em recesso, seria convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.” (PAULO e ALEXANDRINO, 2015, p. 562).

Outro fator limitador e delineador da separação de Poderes, no que tange às medidas provisórias é o fato de não poderem ser disciplinadas por medida provisória (limitação material) o que for “[…] de iniciativa e competência privativas do Congresso Nacional (art.49), da Câmara dos Deputados (art. 51), do Senado Federal (art. 52), do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos tribunais de contas […]” (PAULO e ALEXANDRINO, 2015, p. 564).

 

Conclusão

Diante do estudo realizado, pôde-se perceber que a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, foi elaborada sem que se soubesse com certeza qual seria o sistema de governo adotado.

Tanto que no Art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias previa que a escolha tanto da forma de governo, se republicano ou monárquico, quanto o sistema de governo, se presidencialista ou parlamentarista, seriam determinados em momento posterior ao da elaboração da Constituição, que foi promulgada em 5 de outubro de 1988, tendo sido, pelo voto popular, em plebiscito, apenas e 21 de abril de 1993 escolhidas a República como forma de governo e o Presidencialismo como sistema de governo.

Como visto, talvez justamente por essa incerteza é que foram mantidos no texto constitucional institutos que são mais apropriados ao parlamentarismo, ainda que nosso sistema seja o presidencialismo, sendo que o instituto das medidas provisórias é um dos expoentes desses institutos, e passível de muitas críticas, seja pelo fato de dar exacerbado poder ao Executivo, seja por deixar o princípio fundamental da separação de Poderes com contornos menos claros do que seria recomendado no sistema presidencialista.

Diz-se isso em função de, como bem explicado, no parlamentarismo haver menor separação e maior colaboração dos Poderes, sem que isso afete o Estado Democrático de Direito, e no presidencialismo, para que as instituições funcionem plenamente e também de forma democrática, com equilíbrio de forças, há necessidade de maior separação dos Poderes, e as medidas provisórias podem ser um instrumento de desequilíbrio nesse contexto.

Importante salientar que um instituto com origem e vínculos com o sistema parlamentarista, ao ser introduzido e mantido no sistema presidencialista, acabou por levar o equilíbrio de forças entre os Poderes ao limite, forçando as fronteiras da Separação de Poderes

Necessitou, como visto, de correções jurisprudenciais e por meio de Emenda Constitucional para permitir que o princípio da Separação de Poderes, tão caro e fundamental ao sistema presidencialista, fosse preservado, possibilitando que os freios e contrapesos entre os Poderes se mantivessem funcionando, almejando que se alcance a limitação do poder pelo poder.

Por fim, pode-se concluir, não sem margem à discussão, que as medidas provisórias são suscetíveis ao controle por parte do Poder Judiciário, além de necessitarem da aprovação pelo Congresso Nacional para manterem sua vigência, o que pende a balança para o lado do equilíbrio entre os Poderes, e não para o de seu corrompimento.

 

Referências

ACQUAVIVA, Marcus Claudio. Dicionário Jurídico Acquaviva. 5 ed. atual. e ampl. São Paulo: Ridel, 2011.

 

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19. ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores. 2006.

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 28/05/2018.

 

BRASIL. Planalto: < http://www.secretariadegoverno.gov.br/sobre/assuntos_parlamentares/medidas-provisorias>. Acesso em 28/05/2018.

 

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 11 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva. 2017.

 

CARVALHO, Luiz Maklouf. 1988: segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.

 

DA ROS, Luciano. Poder de decreto e accountability horizontal: dinâmica institucional dos três poderes e medidas provisórias no Brasil pós-1988. Rev. Sociol. Polit.,  Curitiba ,  v. 16, n. 31, p. 143-160,  nov.  2008 .   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782008000200011&lng=pt&nrm=iso>. acesso em  28  maio  2018. 

 

G1 – GLOBO.  <https://g1.globo.com/politica/noticia/desde-fhc-temer-e-o-presidente-que-em-media-mais-edita-medidas-provisorias.ghtml> acesso em 28/05/2018.

 

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.

 

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva Jur. 2017 (Série IDP).

 

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

 

MORAES, Filomeno. Executivo e Legislativo no Brasil pós-Constituinte. São Paulo Perspec.,  São Paulo ,  v. 15, n. 4, p. 45-52,  Dec.  2001. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392001000400006&lng=en&nrm=iso>. Accesso em  28  May  2018. 

 

PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO: 2015.

 

SAMPAR, Rene. O Papel Das Medidas Provisórias No Presidencialismo De Coalizão Brasileiro. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2012, vol. 4, n. 6, Jan.-Jun. p. 32-49. Disponível em < http://www.abdconst.com.br/revista-06>. < http://abdconst.com.br/revista7/papelRene.pdf>.Acesso em 28/05/2018.

 

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores. 2008.

 

[1] http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1/medidas-provisorias

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