O direito à alimentação adequada como integrante indissociável da rubrica do mínimo existencial social: primeiros apontamentos

Resumo: O objeto do presente estudo reside na análise da juridificação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) no ordenamento jurídico nacional, em especial devido ao fortalecimento da temática, alçada à condição de política pública, a partir do ano de 2003, com a reconstrução do conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), reclamando maior atenção à promoção de tal direito, em especial no contingente populacional em situação de vulnerabilidade social (insegurança alimentar e nutricional), com vistas a reduzir os alarmantes índices até então existentes.  A discussão existente em torno da alimentação, na condição de direito fundamental, atingiu seu ápice com a Emenda Constitucional nº 64/2010, alterando a redação do artigo 6º da Constituição Federal de 1988, incluindo-a como direito. Inicialmente, a universalização do DHAA traduz-se em assegurar o respeito, a proteção, a promoção e o provimento, desse direito a todos os seres humanos, independente de sexo e orientação sexual, idade, origem étnica, cor da pele, religião, opção política, ideologia ou qualquer outra característica pessoal ou social. Acresça-se que fartas são as evidências de que tal universalização é uma árdua tarefa que incumbe aos Estados e governos de alguns países. Ainda que existam ganhos importantes na órbita internacional, quanto à inclusão do tema na agenda social e política, e conquistas normativas e judiciais, subsiste um caminho longo a ser trilhado Em uma perspectiva mais restrita, o estado do Espírito Santo apresenta índices expressivos de segurança alimentar e nutricional. Porém, ao examinar a temática em uma perspectiva regionalizada, percebe-se que a promoção da SAN e do DHAA é um desafio, em especial devido ao número elevado de indivíduos em vulnerabilidade social (insegurança alimentar). Nesta esteira, ao se valer dos fundamentos alicerçantes da Bioética, o presente visa promover um exame dos esforços envidados na região sul capixaba no que se refere ao DHAA.

Palavras-chaves: Segurança Alimentar e Nutricional. Direito Humano à Alimentação Adequada. Dignidade da Pessoa Humana.

Sumário: 1. Introdução; 2. A construção filosófica da locução dignidade da pessoa humana: a possibilidade de alargamento dos direitos fundamentais propiciado pelos cenários contemporâneos; 3. A construção do mínimo existencial social: o reconhecimento dos direitos sociais como indissociáveis da dignidade da pessoa humana; 4. O direito à alimentação adequada como integrante indissociável da rubrica do mínimo existencial social: primeiros apontamentos; 5. Comentários finais.

1 INTRODUÇÃO

Com o findar da Segunda Grande Guerra Mundial, especialmente com a queda do regime nazista, verificou-se um alinhamento dos discursos internacionais voltados para a promoção dos direitos humanos, impulsionado, sobremaneira, pelos eventos nefastos produzidos durante o período bélico.  Assim, é plenamente possível assinalar que o direito estende, maciçamente, a sua incidência sobre novos assuntos sociais que eram tratados, principalmente, de maneira informal no mundo da vida tradicional. Cuida destacar que a regulação jurídica, no que se refere a novos âmbitos da sociedade, é densamente caracterizada pela extensão do direito em consonância com o desmembramento da matéria jurídica global em múltiplas searas peculiares que reclamam especificidades próprias, a exemplo do que se observa com a busca pela erradicação de pobreza e desigualdade social e a expansão continua dos direitos humanos. Vivencia-se, assim, uma constante juridificação de temáticas sociais, buscando, continuamente, a promoção dos indivíduos e de seus respectivos direitos fundamentais. Segundo Andrews (2010, p. 09), “o termo ‘juridificação’ tem um sentido próximo ao termo ‘judicialização’, que corresponde à substituição do debate político pela regulação legal; ainda assim, ele tem um sentido mais abrangente”, porquanto faz referência à formalização de todas as relações sociais e não somente à substituição do debate por normas e leis. Nessa perspectiva, a juridificação é descrita como um processo pelo qual os conflitos humanos são inteiramente despidos de sua dimensão existencial própria por meio do formalismo jurídico, sofrendo, via de consequência, desnaturação em razão da respectiva submissão a processos de resolução de natureza jurídica.

Trata-se, dessa maneira, de conferir aspecto jurídico a temas que florescem na dinamicidade da sociedade, a fim de dispensar tutela e salvaguarda jurídica. Assim, é possível frisar que, ao se emprestar a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas como ponto de análise ao tema em destaque, os direitos humanos sofreram alargamento concomitantemente com as ondas de juridificação. Dessa maneira, não causa perplexidade entre os estudiosos do assunto a construção de vasta literatura debruçada sobre os direitos humanos, permeando uma pluralidade de áreas do conhecimento. “Além disso, os assuntos relacionados aos direitos humanos tendem a pautar os debates acadêmicos, sobretudo, por seu aspecto de transversalidade, tendo em vista tratar-se de um tem que interessa às mais distintas áreas do saber” (BORGES, 2008, p. 73). Trata-se de temática que ultrapassa os meandros do direito, comportando uma discussão polissêmica e diversificada, refletindo a complexidade do assunto, notadamente em decorrência de sua influência fluída e pluralizada. O aspecto positivista do direito e o papel desempenhado pelos direitos humanos não podem ser minorados e, certamente, repousa sobre tal aspecto a função da ciência jurídica em busca da construção de tal concepção, objetivando, assim, a continua construção e ampliação de tais temas, permitindo que sejam compreendidos temas contemporâneos, dotados de significação nova e refletindo os anseios da coletividade. As estruturas normativas e os efeitos advindos das normas jurídicas são instrumentos dotados de racionalidade, os quais contribuem para os modos de ação e de compreensão do controle social por meio do direito.

As diversificadas situações produzidas na contemporaneidade reclamam um alargamento da estrutura jurídica. “Em função dessa leitura é sinalizada que a interferência sistêmica no mundo da vida traz consigo, inevitavelmente, processos de juridificação constituídos pela tendência de as sociedades modernas ampliarem significativamente a extensão do direito escrito” (BANNWART JÚNIOR; OLIVEIRA, 2009, p. 2.217). Ora, observa-se um cenário dotado de densa mutabilidade e diversificação de estruturas, impulsionado, sobremaneira, pela dinamicidade contemporânea, logo, é imprescindível a edificação de uma ótica jurídica concatenada com tal moldura. Assim, com o objetivo de compreender a juridificação dos direitos, é necessário compreender a paulatina construção dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. “A evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas sim conforme a própria experiência da vida humana em sociedade” (SILVEIRA; PICCIRILLO, 2009, s.p.).

Observa-se, sobretudo nas últimas décadas do século XX e no início do século XXI, uma busca desenfreada pelo alargamento de direitos humanos fundamentais, a fim de corresponder às inerentes necessidades apresentadas pelo indivíduo, no que toca ao seu desenvolvimento, com o escopo primordial da promoção do ser humano, o que é retratado em um sucedâneo de compromissos internacionais entre as nações voltados pela erradicação da pobreza e da desigualdade. No cenário interno, tal busca representa a perseguição dos objetivos fundamentais da República, expressamente disposto no artigo 3º, inciso III. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos.

2 A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DA LOCUÇÃO DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A POSSIBILIDADE DE ALARGAMENTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PROPICIADO PELOS CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

É perceptível que a edificação de um Estado Democrático de Direito, na contemporaneidade, guarda umbilical relação, no cenário nacional, com o ideário da dignidade da pessoa humana, sobremaneira devido à proeminência concedida ao tema na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.  Ao lado disso, não se pode perder de vista que, em decorrência da sorte de horrores perpetrados durante a Segunda Grande Guerra Mundial, os ideários kantianos foram rotundamente rememorados, passando a serem detentores de vultosos contornos, vez que, de maneira realista, foi possível observar as consequências abjetas provenientes da utilização do ser humano como instrumento de realização de interesses. A fim de repelir as ações externadas durante o desenrolar do conflito supramencionado, o baldrame da dignidade da pessoa humana foi maciçamente hasteado, passando a tremular como flâmula orientadora da atuação humana, restando positivado em volumosa parcela das Constituições promulgadas no pós-guerra, mormente as do Ocidente. “O respeito à dignidade humana de cada pessoa proíbe o Estado e dispor de qualquer indivíduo apenas como meio para outro fim, mesmo se for para salvar a vida de muitas outras pessoas” (HABERMAS, 2012, p. 09). É perceptível que a moldura que enquadra a construção da dignidade da pessoa humana, na condição de produto da indignação dos humilhados e violados por períodos de intensos conflitos bélicos, expressa um conceito fundamental responsável por fortalecer a construção dos direitos humanos, tal como de instrumentos que ambicionem evitar que se repitam atos atentatórios contra a dignidade de outros indivíduos.

Por óbvio, a República Federativa do Brasil, ao estruturar a Constituição Cidadã de 1988 concedeu, expressamente, relevo ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo colocada sob a epígrafe “dos princípios fundamentais”, positivado no inciso III do artigo 1º. Há que se destacar, ainda, que o aludido preceito passou a gozar de status de pilar estruturante do Estado Democrático de Direito, toando como fundamento para todos os demais direitos. Nesta trilha, também, há que se enfatizar que o Estado é responsável pelo desenvolvimento da convivência humana em uma sociedade norteada por caracteres pautados na liberdade e solidariedade, cuja regulamentação fica a encargo de diplomas legais justos, no qual a população reste devidamente representada, de maneira adequada, participando e influenciando de modo ativo na estruturação social e política. Ademais, é permitida, inda, a convivência de pensamentos opostos e conflitantes, sendo possível sua expressão de modo público, sem que subsista qualquer censura ou mesmo resistência por parte do Ente Estatal.

Nesse ponto, verifica-se que a principal incumbência do Estado Democrático de Direito, em harmonia com o ventilado pelo dogma da dignidade da pessoa humana, está jungido na promoção de políticas que visem a eliminação das disparidades sociais e os desequilíbrios econômicos regionais, o que clama a perseguição de um ideário de justiça social, ínsito em um sistema pautado na democratização daqueles que detém o poder. Ademais, não se pode olvidar que “não é permitido admitir, em nenhuma situação, que qualquer direito viole ou restrinja a dignidade da pessoa humana” (RENON, 2009, p. 19), tal ideário decorre da proeminência que torna o preceito em comento em patamar intocável e, se porventura houver conflito com outro valor constitucional, aquele há sempre que prevalecer. Frise-se que a dignidade da pessoa humana, em razão da promulgação da Carta de 1988, passou a se apresentar como fundamento da República, sendo que todos os sustentáculos descansam sobre o compromisso de potencializar a dignidade da pessoa humana, fortalecido, de maneira determinante, como ponto de confluência do ser humano. Com o intuito de garantir a existência do indivíduo, insta realçar que a inviolabilidade de sua vida, tal como de sua dignidade, faz-se proeminente, sob pena de não haver razão para a existência dos demais direitos. Neste diapasão, cuida colocar em saliência que a Constituição de 1988 consagrou a vida humana como valor supremo, dispensando-lhe aspecto de inviolabilidade.

É evidenciável que princípio da dignidade da pessoa humana não é visto como um direito, já que antecede o próprio Ordenamento Jurídico, mas sim um atributo inerente a todo ser humano, destacado de qualquer requisito ou condição, não encontrando qualquer obstáculo ou ponto limítrofe em razão da nacionalidade, gênero, etnia, credo ou posição social. Nesse viés, o aludido bastião se apresenta como o maciço núcleo em torno do gravitam todos os direitos alocados sob a epígrafe “fundamentais”, que se encontram agasalhados no artigo 5º da CF/88. Ao perfilhar-se à umbilical relação nutrida entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, podem-se tanger dois aspectos primordiais. O primeiro se apresenta como uma ação negativa, ou passiva, por parte do Ente Estatal, a fim de evitar agressões ou lesões; já a positiva, ou ativa, está atrelada ao “sentido de promover ações concretas que, além de evitar agressões, criem condições efetivas de vida digna a todos” (BERNARDO, 2006, p. 236).

Comparato alça a dignidade da pessoa humana a um valor supremo, eis que “se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente, daquele que o criou. O que significa que esse fundamento não é outro, senão o próprio homem, considerando em sua dignidade substância da pessoa” (1998, p. 76), sendo que as especificações individuais e grupais são sempre secundárias. A própria estruturação do Ordenamento Jurídico e a existência do Estado, conforme as ponderações aventadas, só se justificam se erguerem como axioma maciço a dignidade da pessoa humana, dispensando esforços para concretizarem tal dogma. Mister faz-se pontuar que o ser humano sempre foi dotado de dignidade, todavia, nem sempre foi (re)conhecida por ele. O mesmo ocorre com o sucedâneo dos direitos fundamentais do homem que, preexistem à sua valoração, os descobre e passa a dispensar proteção, variando em decorrência do contexto e da evolução histórico-social e moral que condiciona o gênero humano. Não se pode perder de vista o corolário em comento é a síntese substantiva que oferta sentido axiológico à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, determinando, conseguintemente, os parâmetros hermenêuticos de compreensão. A densidade jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana, no sistema constitucional adotado, há de ser, deste modo, máxima, afigurando-se, inclusive, como um corolário supremo no trono da hierarquia das normas.

A interpretação conferida pelo corolário em comento não é para ser procedida à margem da realidade. Ao reverso, alcançar a integralidade da ambição contida no bojo da dignidade da pessoa humana é elemento da norma, de modo que interpretações corretas são incompatíveis com teorização alimentada em idealismo que não as conforme como fundamento. Atentando-se para o princípio supramencionado como estandarte, o intérprete deverá observar para o objeto de compreensão como realidade em cujo contexto a interpretação se encontra inserta. Ao lado disso, nenhum outro dogma é mais valioso para assegurar a unidade material da Constituição senão o corolário em testilha. Assim, ao se considerar os valores e ideários por ele abarcados, não é possível perder de vista que as normas, na visão garantística consagrada no ordenamento jurídico nacional, reclamam uma interpretação em conformidade com o preceito analisado até o momento.

Diante de tal cenário, os valores de igualdade, fraternidade e solidariedade recebem especial relevância em tempos contemporâneos e clamam, assim, por posicionamentos que busquem promover a inclusão por parte dos poderes constituídos em prol da busca do bem comum. Pozzoli (2003, p. 109) afirma que uma nova sociedade, fundada em valores fraternos, teria o amor como princípio dinâmico social. Assim, a sociedade é composta por pessoas humanas e tem como fim precípuo o bem comum coletivo, não significando apenas o bem individual, mas sim o empenho de cada um na realização da vida social dos demais das outras pessoas. O bem comum de um ser humano está calcado na realização do bem comum do outro ser humano. Repousa em tal ideário o verdadeiro sentido do bem comum de uma humanidade.

Ainda em relação à proeminência da dignidade da pessoa humana, inclusive no que tange ao alargamento dos direitos fundamentais, consoante a dicção de Rocha, o perfil do Estado Social repousa no fato de ser um Estado intervencionista em duplo aspecto: por um lado, intervém na ordem econômica, seja direcionando e planejando o desenvolvimento econômico, seja promovendo inversões nos ramos da economia considerados estratégicos; por outro turno, intervém no âmbito social, no qual dispensa prestações de bens e serviços e realiza outras atividades visando à elevação do nível de vidas das populações consideradas mais carentes. “O desenvolvimento humano a ser perseguido pelos Estados nacionais liga-se, intimamente, na qualidade de vida do seu povo e a fome, de modo particular, mostra-se como uma forma de afastar o indivíduo da participação nos destinos da democracia de um Estado” (MEDEIROS; SILVA; ARAÚJO, s.d., p. 32). Ocorre, porém, que os famintos excluídos são observados como impotentes para reivindicar direitos, subordinando-se a edificar uma cultura de ver a pobreza social como realidade naturalmente construída.

Neste aspecto, Rocha (1995, p. 131), ao discorrer acerca da proeminência do Estado em assumir a função de agente de transformação social, assevera que determinadas mudanças ocorridas em tal ambiente repercuti significativamente. Ora, nas funções do direito, que deixou de ser apenas uma técnica de mediação de comportamentos para promover a transformação em técnica de planificação e planejamento, ou seja, as normas jurídicas passaram a arvorar não apenas regras contendo hipóteses de incidência e consequências jurídicas, mas também escopos a serem alcançados, no plano concreto. Com destaque, o direito à alimentação adequada, em especial, passa a compor a rubrica dos direitos fundamentais, definido expressamente no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), do qual o Brasil é signatário:

“ARTIGO 11

1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.

2. Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessárias para: a) Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais; b) Assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios” (BRASIL, 1992, s.p.).

Amartya Sen (2000, p. 189), ao abordar a temática em comento, explicita que uma pessoa pode ser forçada a passar fome, ainda que haja abundância de alimentos ao seu redor, em decorrência de uma minoração da renda, em razão, por exemplo, de desemprego ou um colapso no mercado dos produtos que essa pessoa produz e vende para se sustentar. Doutro viés, mesmo quando um estoque de alimentos passa a declinar acentuadamente um país ou região, todos podem ser salvos da fome, desde que haja uma divisão melhor dos alimentos disponíveis, promovendo-se, para tanto, a criação de emprego e renda adicionais para as potenciais vítimas da fome.

3 A CONSTRUÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL SOCIAL: O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS SOCIAIS COMO INDISSOCIÁVEIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Em ressonância com o preceito de necessidades humanas básicas, na perspectiva das presentes e futuras gerações, é colocada, como ponto robusto, para reflexão a exigência de um patamar mínimo de qualidade e segurança social, sem o qual o preceito de dignidade humana restaria violentado em seu núcleo essencial. A seara de proteção do direito à vida, quando confrontado com o quadro de riscos sociais contemporâneos, para atender o padrão de dignidade alçado constitucionalmente, reclama ampliação a fim de abarcar a dimensão no seu quadrante normativo, sobretudo no que toca à superação dos argumentos e obstáculos erigidos pela Administração Pública no que se relaciona à reserva do possível para sua implementação. Insta salientar, ainda, que a vida se apresenta como condição elementar para o pleno e irrestrito exercício da dignidade humana, conquanto esta não se limite àquela, porquanto a dignidade não se resume a questões existenciais de natureza essencialmente biológica ou física, todavia carece a proteção da existência humana de forma mais ampla. Desta maneira, é imprescindível que subsista a promoção dos direitos sociais para identificação dos patamares necessários de tutela da dignidade humana, a fim de promover o reconhecimento de um direito-garantia do mínimo existencial social.

A exemplo do que ocorre com o conteúdo do superprincípio da dignidade humana, o qual não encontra pontos limítrofes ao direito à vida, em uma acepção restritiva, o conceito de mínimo existencial não pode ser limitado ao direito à simples sobrevivência na sua dimensão estritamente natural ou biológica, ao reverso, exige concepção mais ampla, eis que almeja justamente a realização da vida em patamares dignos, considerando, nesse viés, a incorporação da qualidade social como novo conteúdo alcançado por seu âmbito de proteção. Arrimado em tais corolários, o conteúdo do mínimo existencial não pode ser confundido com o denominado “mínimo vital” ou mesmo com o “mínimo de sobrevivência”, na proporção em que este último tem seu sentido atrelado à garantia da vida humana, sem necessariamente compreender as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida dotada de certa qualidade.

Nesta senda de exposição, ainda, o conteúdo normativo ventilado pelo direito ao mínimo existencial deve receber modulação à luz das circunstâncias históricas e culturais concretas da comunidade estatal, inclusive numa perspectiva evolutiva e cumulativa. Destarte, é natural que novos elementos, decorrentes das relações sociais contemporâneas e das novas necessidades existenciais apresentadas, sejam, de maneira paulatina, incorporados ao seu conteúdo, eis que o escopo primordial está assentado em salvaguardar a dignidade da pessoa humana, sendo indispensável o equilíbrio e a segurança ambiental. Com o escopo de promover a conformação do conteúdo do superprincípio da dignidade da pessoa humana, é imperioso o alargamento do rol dos direitos fundamentais, os quais guardam ressonância com a concepção histórica dos direitos humanos, porquanto a tendência é sempre a ampliação do universo dos direitos fundamentais, de maneira a garantir um nível cada vez maior de tutela e promoção da pessoa, tanto em uma órbita individual como em aspectos coletivos.

Ademais, cuida anotar que o processo histórico-constitucional de afirmação de direitos fundamentais e da proteção da pessoa viabilizou a inserção dos direitos sociais no rol dos direitos fundamentais. Nessa premissa, cuida reconhecer que o mínimo existencial social se desdobra como uma das múltiplas e indissociáveis órbitas vinculadas ao superprincípio da dignidade da pessoa humana, em especial no que atina à realização de suas potencialidades, sobremaneira no que se relaciona aos direitos. Recentemente, o rol do artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil sofreu considerável alargamento, passando a abarcar uma plêiade de direitos sociais como fundamentais ao indivíduo: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988). De maneira reiterada, o Supremo Tribunal Federal reconhece que os direitos sociais materializam um agir positivo do Estado, devendo, portanto, ser adimplido em favor do cidadão.

“Ementa: Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Direito Constitucional. Educação de deficientes auditivos. Professores especializados em Libras. 3. Inadimplemento estatal de políticas públicas com previsão constitucional. Intervenção excepcional do Judiciário. Possibilidade. Precedentes. 4. Cláusula da reserva do possível. Inoponibilidade. Núcleo de intangibilidade dos direitos fundamentais. 5. Constitucionalidade e convencionalidade das políticas públicas de inserção dos portadores de necessidades especiais na sociedade. Precedentes. 6. Ausência de argumentos suficientes a infirmar a decisão recorrida. 7. Agravo regimental a que se nega provimento”. (Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma/ ARE 860.979 AgR/ Relator: Ministro Gilmar Mendes/ Julgado em 14 abr. 2015/ Publicado no DJe em 06 mai. 2015).

“Ementa: Recurso Extraordinário com Agravo (Lei nº 12.322/2010) – Manutenção de rede de assistência da criança e do adolescente – Deve estatal resultante da norma constitucional – Configuração, no caso, de típica hipótese de omissão estatal (RTJ 183/818-819) – Comportamento que transgride a autoridade da Lei Fundamental da República (RTJ 185/794-796) – A questão da reserva do possível. Reconhecimento de sua inaplicabilidade, sempre que a invocação dessa cláusula puder comprometer o núcleo básico que qualifica o mínimo existencial (RTJ 200/191-197) – O papel do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela Constituição e não efetivadas pelo Poder Público – A fórmula da reserva do possível na perspectiva da teoria dos custos dos direitos: impossibilidade de sua invocação para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais de prestação constitucionalmente impostos ao Poder Público – A teoria da “restrição das restrições” (ou da “limitação das limitações”) – Caráter cogente e vinculante das normas constitucionais, inclusiva daquelas de conteúdo programático, que veiculam diretrizes de políticas públicas, especialmente na área da saúde (CF, arts. 6º, 196 e 197) – A questão das “escolhas trágicas” – A colmatação de omissões constitucionais como necessidade institucional fundada em comportamento afirmativo dos Juízes e Tribunais e de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do Direito – Controle jurisdicional de legitimidade da omissão do Poder Público: atividade de fiscalização judicial que se justifica pela necessidade de observância de certos parâmetros constitucionais (proibição do retrocesso social, proteção ao mínimo existencial, vedação da proteção insuficiente e proibição de excesso) – Doutrina – Precedentes do Supremo Tribunal Federal em tema de implementação de políticas públicas delineadas na Constituição da República (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219-1220) – Existência, no caso em exame, de relevante interesse social – Recurso de Agravo Improvido”. (Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma/ ARE 745.745 AgR/ Relator:  Ministro Celso de Mello/ Julgado em 02 dez. 2014/ Publicado no DJe em 19 dez. 2014).

“Ementa: Agravo Regimental no Recurso Extraordinário. Administrativo e Processual Civil. Repercussão geral presumida. Sistema Público de saúde local. Poder Judiciário. Determinação de adoção de medidas para a melhoria do sistema. Possibilidade. Princípios da separação dos poderes e da reserva do possível. Violação. Inocorrência. Agravo Regimental a que se nega provimento. 1. A repercussão geral é presumida quando o recurso versar questão cuja repercussão já houver sido reconhecida pelo Tribunal, ou quando impugnar decisão contrária a súmula ou a jurisprudência dominante desta Corte (artigo 323, § 1º, do RISTF ). 2. A controvérsia objeto destes autos – possibilidade, ou não, de o Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a adoção de providências administrativas visando a melhoria da qualidade da prestação do serviço de saúde por hospital da rede pública – foi submetida à apreciação do Pleno do Supremo Tribunal Federal na SL 47-AgR, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ de 30.4.10. 3. Naquele julgamento, esta Corte, ponderando os princípios do “mínimo existencial” e da “reserva do possível”, decidiu que, em se tratando de direito à saúde, a intervenção judicial é possível em hipóteses como a dos autos, nas quais o Poder Judiciário não está inovando na ordem jurídica, mas apenas determinando que o Poder Executivo cumpra políticas públicas previamente estabelecidas. 4. Agravo regimental a que se nega provimento”. (Supremo Tribunal Federal – Primeira Turma/ RE 642.536 AgR/ Relator: Ministro Luiz Fux/ Julgado em 05 fev. 2013/ Publicado no DJe em 27 fev. 2013).

Ora, denota-se que a implementação do mínimo existencial social pressupõe, com claros contornos, a estruturação de políticas públicas pelo Poder Público, sobretudo no que concerne ao núcleo duro que sustenta os direitos sociais, dentre o direito à educação e o direito à saúde recebem especial atenção. É preciso sublinhar que o dever estatal de atribuir efetividade aos direitos fundamentais, de índole social, qualifica-se como expressiva limitação à discricionariedade administrativa. Assim sendo, a intervenção jurisdicional, por vezes, encontra justificativa pela ocorrência de arbitrária recusa governamental em conferir significação real ao direito à educação e à saúde, precipuamente, tornar-se-á plenamente legítima, sempre que se impuser, nesse processo de ponderação de interesse e de valores em conflito, a necessidade de prevalência da decisão política fundamental que o legislador constituinte adotou em tema de respeito e proteção aos direitos sociais.

Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção dos direitos sociais, de maneira geral, tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial.

Vê-se que, mais do que a simples positivação dos direitos sociais – que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica –, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente vinculadas à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição. Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito, em especial a plêiade que compõe o mínimo existencial social. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional.

4 O DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA COMO INTEGRANTE INDISSOCIÁVEL DA RUBRICA DO MÍNIMO EXISTENCIAL SOCIAL: PRIMEIROS APONTAMENTOS

É fato que alimentação e nutrição são requisitos básicos para a promoção e a proteção da saúde, viabilizando a afirmação plena do potencial de crescimento e desenvolvimento humano, com qualidade de vida e cidadania, tal como estruturação de condições sociais mais próximas das ideais. Podestá  (2011, p. 27-28) destaca que a locução segurança alimentar, durante o período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), passou a ser empregado na Europa, estando associado estritamente com o de segurança nacional e a capacidade de cada país de produzir seu próprio alimento, de maneira a não ficar vulnerável a possíveis embargos, boicotes ou cercos, em decorrência de políticas ou atuações militares. Contudo, posteriormente à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sobretudo com a constituição da Organização das Nações Unidas (ONU), o conceito da locução supramencionada passa a se fortalecer, porquanto compreendeu. Assim, nas recém-criadas organizações intergovernamentais, era possível observar as primeiras tensões políticas entre os organismos que concebiam o acesso ao alimento de qualidade como um direito humano, a exemplo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), e alguns que compreendiam que a segurança alimentar seria assegurada por mecanismos de mercado, tal como se verificou no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial. Após o período supramencionado, “a segurança alimentar foi hegemonicamente tratada como uma questão de insuficiente disponibilidade de alimentos” (PODESTÁ, 2011, p. 28). Passam, então, a ser instituídas iniciativas de promoção de assistência alimentar, que foram estabelecidas em especial, com fundamento nos excedentes de produção dos países ricos.

Havia a visão de que a insegurança alimentar decorria da produção insuficiente de alimentos nos países pobres. Todavia, nas últimas décadas, a concepção conceitual de segurança alimentar que, anteriormente, estava restrita ao abastecimento, na quantidade apropriada, foi ampliada, passando a incorporar, também, o acesso universal aos alimentos, o aspecto nutricional e, por conseguinte, as questões concernentes à composição, à qualidade e ao aproveitamento biológico. Em uma perspectiva individual e na escala coletiva, sobreditos atributos estão, de maneira expressa, consignados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os quais foram, posteriormente reafirmados no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos e Sociais e incorporados à legislação nacional em 1992 (BRASIL, 1992, s.p.). Historicamente, a inter-relação entre a segurança alimentar e nutricional e o direito humano à alimentação adequada (DHAA) começa a ser delineada a partir do entendimento existente acerca dos direitos humanos na Declaração Universal de 1948. Durante aludido período histórico, a principal preocupação acerca do tema voltava-se para a ênfase acerca da acepção de que os seres humanos, na condição de indivíduos pertencentes a uma sociedade, eram detentores de direitos que deveriam ser reconhecidos e expressos nas dimensões das quais faziam parte, como alude Albuquerque (2009, p. 896). Para tanto, contribuiu para inserir a proposta de que, a efetivação dos direitos, seria imprescindível a inclusão das questões sociais, econômicas, civis e políticas, as quais foram essenciais para identificá-los como direitos atrelados às liberdades fundamentais e à dignidade humana.

A partir de tais ponderações, é possível frisar que a concretização dos direitos humanos, sobretudo o direito humano à alimentação adequada (DHAA), abarca responsabilidade por parte tanto do Estado quanto da sociedade e dos indivíduos. Assim, nas três últimas décadas, denota-se que a segurança alimentar e nutricional passou a ser considerada como requisito fundamental para afirmação plena do potencial de desenvolvimento físico, mental e social de todo o ser humano, superando a tradicional concepção que alimentação é o mero ato de ingerir alimentos. A Cúpula de Roma de 1996 estabeleceu, em órbita internacional, que existe segurança alimentar quando as pessoas têm, a todo o momento, acesso físico e econômico a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares, com o objetivo de levarem uma vida ativa e sã. Afirma Podestá que “ao Estado cabe respeitar, proteger e facilitar a ação de indivíduos e comunidades em busca da capacidade de alimentar-se de forma digna, colaborando para que todos possam ter uma vida saudável, ativa, participativa e de qualidade” (PODESTÁ, 2011, p. 26).

Dessa maneira, nas situações em que seja inviabilizado ao indivíduo o acesso a condições adequadas de alimentação e nutrição, tal como ocorre em desastres naturais (enchentes, secas, etc.) ou em circunstâncias estruturais de penúria, incumbe ao Estado, sempre que possível, em parceria com a sociedade civil, assegurar ao indivíduo a concretização desse direito, o qual é considerado fundamental à sua sobrevivência. A atuação do Estado, em tais situações, deve estar atrelada a medidas que objetivem prover as condições para que indivíduos, familiares e comunidade logrem êxito em se recuperar, dentro do mais breve ínterim, a capacidade de produzir e adquirir sua própria alimentação. “Os riscos nutricionais, de diferentes categorias e magnitudes, permeiam todo o ciclo da vida humana, desde a concepção até a senectude, assumindo diversas configurações epidemiológicas em função do processo saúde/doença de cada população” (BRASIL, 2008, p. 11). Hirai (2011, p. 74) aponta que os elementos integrativos da concepção de segurança alimentar e nutricional foram sofrendo um processo de ampliação, passando, em razão da contemporânea visão, a extrapolar o entendimento ordinário de alimentação como simples forma de reposição energética. Convém destacar que, no território nacional, o novo conceito de segurança alimentar foi consolidado na I Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em 1994.

“Assim, no conjunto dos componentes de uma política nacional, voltada para a segurança alimentar e nutricional, estão o crédito agrícola, inclusive o incentivo ao pequeno agricultor; a avaliação e a adoção de tecnologias agrícolas e industriais; os estoques estratégicos; o cooperativismo; a importação, o acesso, a distribuição, a conservação e o armazenamento de alimentos, o manejo sustentado dos recursos naturais, entre outros” (BRASIL, 2008, p.11).

No cenário nacional, as ações voltadas a garantir a segurança alimentar dão em consequência ao direito à alimentação e nutrição, ultrapassando, portanto, o setor de Saúde e recebe o contorno intersetorial, sobretudo no que se refere à produção e ao consumo, o qual compreende, imprescindivelmente, a capacidade aquisitiva da população e a escolha dos alimentos que devem ser consumidos, inclusive no que tange aos fatores culturais que interferem em tal seleção. Verifica-se que o aspecto conceitual de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), justamente, materializa e efetiva o direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade satisfatória, de modo a não comprometer o acesso a outras necessidades essenciais da dignidade da pessoa humana. “Nunca é demais lembrar que o direito humano à alimentação adequada tem por pano de fundo as práticas alimentares promotoras de saúde, atinentes à diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis” (MEDEIROS; SILVA; ARAÚJO, s.d., p. 34.).

Atualmente, consoante o escólio de Hirai (2011, p. 24), as atenções se voltam para as dimensões sociais, ambientais e culturais que estão atreladas na origem dos alimentos. Ademais, a garantia permanente de segurança alimentar e nutricional a todos os cidadãos, em decorrência da amplitude e abrangência das questões que compreende, passa a reclamar diversos compromissos, tais como: políticos, sociais e culturais, objetivando assegurar a oferta e o acesso universal a alimentos de qualidade nutricional e sanitária, atentando-se, igualmente, para o controle da base genética do sistema agroalimentar. De maneira expressa, a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006 (Lei Orgânica da Segurança Alimentar), estabeleceu, em seu artigo 2º, que

“[…] a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população” (BRASIL, 2006, s.p.).

Igualmente, o diploma legal supramencionado estabelece que a segurança alimentar e nutricional consiste na realização na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem que haja comprometimento do acesso a outras necessidades essenciais, tendo como fundamento práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Obtempera Ribeiro (2013, p. 38) que o direito humano à alimentação adequada não consiste simplesmente em um direito a uma ração mínima de calorias, proteínas e outros elementos nutritivos concretos, mas se trata de um direito inclusivo, porquanto deve conter todos os elementos nutritivos que uma pessoa reclama para viver uma vida saudável e ativa, tal como os meios para ter acesso. A partir da Lei Orgânica da Segurança Alimentar (LOSAN), a segurança alimentar e nutricional passou a abranger a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio de produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, compreendendo a água, bem como a geração de emprego e da redistribuição de renda. De igual forma, a locução supramencionada compreende, ainda, a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos, bem como a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população, incluindo-se os grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade sociais. A LOSAN abrange, ainda, a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica e racial e cultural da população.

Está inserido, igualmente, na rubrica em análise, a produção de conhecimento e o acesso à informação, bem como a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do País. Por derradeiro, a visão existente em torno do DHAA alcança como ápice, em sede de ordenamento jurídico interno, a Emenda Constitucional nº 64, de 4 de Fevereiro de 2010, responsável por introduzir na redação do artigo 6º, o direito fundamental em comento, incluindo-o no rol de direitos fundamentais sociais. Neste aspecto, para a consecução do DHAA, é importante explicitar que o alimento deve reunir uma tríade de aspectos característicos, a saber: disponibilidade, acessibilidade e adequação. No que concerne à disponibilidade do alimento, cuida destacar que, quando requisitado por uma parte, a alimentação deve ser obtida dos recursos naturais, ou seja, mediante a produção de alimentos, o cultivo da terra e pecuária, ou por outra forma de obter alimentos, a exemplo da pesca, caça ou coleta. Além disso, o alimento deve estar disponível para comercialização em mercados e lojas.

A acessibilidade alimentar, por seu turno, traduz-se na possibilidade de obtenção por meio do acesso econômico e físico aos alimentos. “La accesibilidad económica significa que los alimentos deben estar al alcance de las personas desde el punto de vista económico” (ONU, s.d., p. 03). Ainda no que concerne à acessibilidade, as pessoas devem ser capazes de adquirir o alimento para estruturar uma dieta adequada, sem que haja comprometimento das demais necessidades básicas. Neste aspecto, ainda, a acessibilidade física materializa-se pela imperiosidade dos alimentos serem acessíveis a todos, incluindo indivíduos fisicamente vulneráveis, como crianças, enfermos, deficientes e pessoas idosas. De igual modo, a acessibilidade do alimento estabelece que deve ser assegurado a pessoas que estão em ares remotas e vítimas de conflitos armados ou desastres naturais, tal como a população encarcerada. Renato Sérgio Maluf, ao apresentar sua conceituação sobre segurança alimentar (SA), faz menção ao fato de que se deve considerar aquela como “condições de acesso suficiente, regular e a baixo custo a alimentos básicos de qualidade. Mais que um conjunto de políticas compensatórias, trata-se de um objetivo estratégico […] voltado a reduzir o peso dos gastos com alimentação” (MALUF, 1999, p. 61), em sede de despesas familiares. Por derradeiro, o alimento adequado pressupõe que a oferta de alimentos deve atender às necessidades alimentares, considerando a idade do indivíduo, suas condições de vida, saúde, ocupação, gênero etc. “Los alimentos deben ser seguros para el consumo humano y estar libres de sustancias nocivas, como los contaminantes de los procesos industriales o agrícolas, incluidos los residuos de los plaguicidas, las hormonas o las drogas veterinarias” (ONU, s.d., p. 04). Ao lado disso, um alimento adequado, ainda, deve ser culturalmente aceitável pela população que o consumirá, estando inserido em um contexto de formação do indivíduo, não contrariando os aspectos inerentes à formação daquela.

5 COMENTÁRIOS FINAIS

Historicamente, a fome apresenta-se como um evento constante nas sociedades, assumindo, por vezes, índices tão complexos e alarmantes que são capazes de colocar em risco a harmonia social. Trata-se da carestia, ou seja, a fome como crise social econômica acompanhada de má nutrição em massa e epidemias. É interessante, ainda, rememorar que essa manifestação de fome crônica é aquela permanente, ocorrendo quando a alimentação diária não consegue propiciar ao individuo energia suficiente para que seja mantido o seu organismo e para o desempenho de suas atividades cotidianas. Essa materialização da fome traz consigo efeitos devastadores, causando sofrimento agudo e lancinante sobre o corpo, produzindo letargia e debilitando, de maneira gradual, as capacidades mentais e motoras. Há que se reconhecer que o espectro da fome é capaz de desencadear a marginalização social, perda da autonomia econômica e desemprego crônico, em decorrência da incapacidade de executar um trabalho irregular.

O ideário de soberania alimentar está assentado na autonomia alimentar do país e a menor dependência das importações e flutuações de preços do mercado internacional. É interessante destacar que o emprego da noção de soberania alimentar tem o início do seu fortalecimento no tema acerca da segurança alimentar, no próprio ano de 1996. Além disso, tal conceito busca dar importância à autonomia alimentar do país e à menor dependência das importações e flutuações de preços do mercado internacional.  Já a segurança alimentar e nutricional, parafraseando a concepção legal contida na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, em seu artigo 3º consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem que haja o comprometimento do acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.

Alimentar-se é muito mais do que a mera ingestão de alimentos. É, conforme o artigo 2º da LOSAN, a materialização de um direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na CF/88, devendo o Poder Público adotar as políticas e ações que se façam necessária para promover a segurança alimentar e nutricional da população. O ato de alimentação requer a presença de alimentos em qualidade, em quantidade e regularmente. A reunião dos três pilares materializa o ideário de segurança alimentar e nutricional (SAN) e o direito humano à alimentação adequada (DHAA). A qualidade dos alimentos consumidos preconiza que a população não esteja à mercê de qualquer risco de contaminação, problemas de apodrecimento ou outros decorrentes de prazos de validade vencidos. Trata-se da possibilidade de consumir um conjunto de alimentos de maneira digna, sendo que a extensão de dignidade assume a feição de um ambiente limpo, com talheres e seguindo as normas costumeiras de higiene e as particularidades caracterizadoras de cada etnia ou região. A quantidade dos alimentos ingeridos deve ser suficiente para assegurar a manutenção do organismo e o desenvolvimento das atividades diárias. A regularidade da alimentação, por sua vez, assenta suas bases na premissa que as pessoas têm que ter acesso constante à alimentação, sendo esse compreendido como a possibilidade de se alimentar ao menos três vezes ao dia.

Com efeito, inúmeros são os obstáculos a serem superados, sobretudo para a integral substancialização do direito em comento, notadamente quando se analisa uma sociedade dotada de contrastes tão robustos, sobretudo no que concerne à distribuição de renda desigual e a população que se encontra em situação de vulnerabilidade social acentuada. Denota-se, pois, que a materialização do direito humano à alimentação adequada é pilar primordial da promoção da dignidade da pessoa humana, pedra angular do ordenamento jurídico vigente, eis que busca atender a necessidade básica para o desenvolvimento humano. Neste aspecto, historicamente, o Estado Capixaba apresenta um papel de protagonismo no cenário nacional, no que concerne à substancialização de políticas públicas em prol da promoção da segurança alimentar e nutricional, detendo índices expressivos de diminuição de insegurança alimentar, em suas distintas manifestações. Neste aspecto, o reconhecimento das peculiaridades encontradas no Estado do Espírito Santo, no que tange à materialização do direito humano à alimentação adequada, se revela dotada de substancial relevância.

 

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Informações Sobre o Autor

Tauã Lima Verdan Rangel

Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES

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