Resumo: O presente estudo teve por objeto o princípio processual do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional, considerando que ainda existe grande divergência doutrinária e jurisprudencial que dificultam o emprego do instituto aos casos concretos, ocasionando insegurança jurídica. Utilizou-se para esse propósito o método dedutivo e a pesquisa bibliográfica. No primeiro capítulo, tratou-se dos aspectos introdutórios, tais como: origem, fundamentos e conceito do referido princípio. No segundo, cuidou-se de analisar o enfoque constitucional dado ao trabalho. Em seguida, tratou-se da relação e diferenciação entre as garantias constitucionais, os direitos fundamentais, os princípios e as regras inscritas na Constituição. Após, foram discutidos os principais motivos pelo qual se pode considerar o duplo grau como garantia constitucional, com suas respectivas refutações. Foram ventilados os seguintes argumentos: a tese que o considera como manifestação do devido processo legal, da ampla defesa e do direito de ação. Como também, a teoria do princípio implícito e a negação da limitação pela lei infraconstitucional como obstáculo para elevação a nível constitucional do princípio em epígrafe. No terceiro capítulo examinou-se o tratamento dispensado aos tratados internacionais sobre direitos humanos antes e após a entrada em vigor da EC nº. 45/2004, mediante a análise da ADI nº. 1675/DF e do RE nº. 466343/SP. Por fim, observou-se mais detidamente cinco julgados do Supremo Tribunal Federal em ordem cronológica a fim de demonstrar a evolução de sua jurisprudência no sentido de conferir ao duplo grau de jurisdição status de garantia constitucional. No entanto, conclui-se que, malgrado tenha havido grande progresso no entendimento do Supremo em relação ao tema ora abordado, ainda não há posição definitiva, prevalecendo a tese da supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos e, por consequência, do duplo grau neles consagrado.
Palavras-chave: Duplo Grau de Jurisdição. Garantia Constitucional. Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos. Supralegalidade.
Abstract: The present study had as its object the procedural principle of dual degree of jurisdiction as constitutional guarantee, considering that there is still great divergence doctrine and jurisprudence that hampering the use of this instrument to concrete situations, causing legal uncertainty. Was used for this purpose the deductive method and literature. The first chapter was about the introductory aspects, such as origin, rationale and concept of the principle. In the second, analyzed the constitutional approach to the trouble. The next topic was about the relationship and differentiation between constitutional guarantees and fundamental rights, the principles and rules contained in the Constitution. After, we discussed the main reasons why we can consider the dual degree of jurisdiction as constitutional guarantee with their respective refutations. Were used the following arguments: the thesis that considers it as a manifestation of due process of law, full defense and the right of action. As well, the theory of implicit principle and the denial of limitation by ordinary law as an obstacle to raise the level of constitutional principle. In the third chapter we examined the treatment of international treaties on human rights before and after the EC n. 45/2004 by analysis of ADI n. 1675/DF and RE n. 466343/SP. Finally, we observed more closely five Supreme Court cases in chronological order to show the progress of their cases, making the principle of the double degree of jurisdiction becomes constitutional guarantee. However, it is concluded that, although there has been great progress in understanding the Supreme Court on the topic discussed herein, there are no definitive position, prevailing the supralegalidade thesis of international treaties on human rights and, therefore the dual degree of jurisdiction also.
Keywords: Dual Degree of Jurisdiction. Constitutional Guarantee. International Treaties on Human Rights. Supralegalidade.
Sumário: Introdução. 1. Questões preliminares sobre o duplo grau de jurisdição. 1.1 Origem. 1.2 Evolução histórica no Brasil. 1.3 Fundamentos. 1.4 Conceito. 2. O duplo grau de jurisdição como garantia constitucional. 2.1 Abordagem constitucional. 2.2 Direitos fundamentais e garantias constitucionais. 2.3 Princípios, regras e garantias constitucionais. 2.4 Devido processo legal e o duplo grau de jurisdição. 2.5 Princípio constitucional implícito. 2.6 Limitação pela lei infraconstitucional. 3. A visão do Supremo Tribunal Federal a respeito do duplo grau de jurisdição e os tratados internacionais. 3.1 A constitucionalidade dos tratados internacionais. 3.2 Julgados relevantes sobre a constitucionalidade do duplo grau de jurisdição. Conclusão. Referências.
O presente trabalho tem por propósito abordar a respeito do princípio do duplo grau de jurisdição sob o enfoque constitucionalista, e demonstrar que tal princípio pode ser considerado uma garantia constitucional.
Para tanto, utilizar-se-á predominantemente o método dedutivo, e, de forma auxiliar a pesquisa bibliográfica.
Em primeiro lugar, para melhor compreender o instituto do duplo grau de jurisdição se fará um breve estudo sobre sua origem, isto é, qual era o contexto histórico da época e em que civilização nasceu.
Será analisado seu berço no Direito grego, romano, germânico, canônico e francês, dando-se ênfase ao segundo.
Em seguida, relatar-se-á como se deu o seu surgimento no Brasil, tendo por ponto de partida o Direito Português, uma vez que, por longos anos, o Brasil foi regido pelas leis lusitanas, sobretudo, na época da colonização.
Após, será realizada uma análise a respeito dos seus fundamentos, que representam a sua razão de ser, o que facilitará na tarefa de se traçar um conceito deste princípio nos tempos atuais.
Na segunda etapa desse estudo, discorrer-se-á a respeito da importância de se fazer uma abordagem sob a luz da Constituição, ou seja, não se limitando apenas à lei processual que disciplina o tema.
Antes de adentrar no ponto central do trabalho, tratar-se-á sobre a relação das garantias constitucionais com os direitos fundamentais, e também com os princípios e regras da Constituição.
Ultrapassadas essas questões preliminares, alcançar-se-á o ápice dessa pesquisa, que cumprirá esclarecer os motivos mais relevantes pelo qual se pode considerar o duplo grau como garantia constitucional, e as respectivas críticas que se atribuem a tais argumentos.
O primeiro deles a ser analisado será o que considera o referido princípio como uma manifestação do devido processo legal, sendo este o mais conhecido e utilizado.
Em desdobramento dessa tese, também analisar-se-ão as teorias que indicam ser o duplo grau decorrente da ampla defesa ou derivado do direito de ação.
O segundo argumento consistirá em considerar que tal princípio estaria implícito na organização judiciária trazida pela Constituição Federal, a qual prevê órgãos de hierarquias distintas.
O último contestará a tese que prevê a possibilidade de limitação dos recursos pela lei infraconstitucional como obstáculo à caracterização de garantia constitucional ao princípio do duplo grau de jurisdição.
Na terceira etapa do trabalho, abordar-se-á inicialmente a respeito dos tratados internacionais de direitos humanos e como foram acolhidos no ordenamento jurídico pátrio, fazendo-se assim um ponto de ligação com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da natureza do duplo grau de jurisdição.
Além disso, discorrer-se-á sobre as mudanças trazidas pela EC nº. 45/2004, em especial a introdução do §3º ao art. 5º. da Constituição Federal, que modificou o tratamento dispensado aos tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil.
Para esse intento, valer-se-á do julgamento da ADI nº. 1675/DF, que trouxe a discussão acerca da constitucionalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos, antes da referida emenda.
E, para ilustrar o posicionamento adotado pelo Supremo após ela, utilizar-se-á o RE nº. 466343/SP, que trata sobre a prisão civil do depositário infiel à luz do Pacto de São José da Costa Rica e da Constituição Federal Brasileira.
Na fase final dessa investigação, cuidar-se-á mais atentamente do posicionamento do STF sobre o princípio do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional. Sendo utilizados alguns importantes julgados exemplificativos.
O primeiro a ser analisado será o RHC nº. 79785/RJ, que trata a respeito do duplo grau de jurisdição em face da competência originária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Nele, demonstrar-se-á o entendimento do STF em negar o caráter de garantia constitucional ao duplo grau.
O segundo será a ementa do Agravo Regimental em Agravo de Instrumento de nº. 209954/SP, em que o STF se posiciona no mesmo sentido.
O terceiro será o HC nº. 88420/PR, em que se evidenciará a tendência do Supremo em conferir qualidade mais garantista ao duplo grau, mesmo que ainda não se empreste dignidade constitucional a ele.
O quarto julgado será AI nº. 601832/SP. Neste poder-se-á observar uma nova posição segundo a qual o referido princípio representaria uma garantia constitucional de recurso, por força da Convenção Interamericana de Direitos Humanos devido à nova interpretação trazida pela EC nº 45/2004. Com a ressalva de que tal garantia não é absoluta.
O quinto e último será a Questão de Ordem da AP n°. 470/MG, conhecida por “Mensalão”. Nela constatar-se-á uma certa contradição da Corte, ao privilegiar a regra da conexão, constante do Código de Processo Penal, em detrimento da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que teria caráter supralegal, conforme entendimento já pacificado.
Ao final do estudo, concluir-se-á que, não obstante tantos julgados a respeito do assunto, e ainda a evolução da jurisprudência do Supremo no sentido de conferir cada vez mais status de garantia constitucional ao princípio do duplo grau de jurisdição, ainda não há posição definitiva neste sentido, prevalecendo a tese da supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos e, por conseguinte, do duplo grau neles consagrado.
1 QUESTÕES PRELIMINARES SOBRE O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO.
Para melhor compreender o instituto do duplo grau de jurisdição se faz necessário um breve estudo sobre seu antecedente histórico, ou seja, de onde surgiu e por qual motivo, como também, qual era o contexto histórico da época, em que civilização nasceu, entre outros dados relevantes.
A origem do princípio do duplo grau de jurisdição está completamente relacionada à origem do recurso de apelação, isto é, com a possibilidade de se recorrer das decisões. E os mecanismos de impugnação das decisões surgem da falibilidade humana, além do sentimento de insatisfação da parte vencida.[1]
De forma mais ampla, tem-se que a ideia de recurso surgiu com a primeira insatisfação humana por conflitos de interesses e promoção de medidas de reversão do resultado desfavorável.[2]
Na civilização grega, segundo Carolina Alves de Souza Lima[3]:
"Todas as questões da vida, no campo social e político, giravam em torno da cidade (polis). O homem não era concebido na sua individualidade. Os gregos não desenvolveram as noções de Direitos Individuais. A igualdade e a liberdade civil, apesar de conhecidas dos gregos, não eram tidas como direito de todos. Eles desenvolveram noções de liberdade política que estava sempre atrelada ao cidadão como membro da polis. Assim, a noção de homem e de direitos estava sempre ligada à sociedade, ao Estado: a polis. Para pertencer à polis era preciso ser grego (e não bárbaro) e homem livre (não escravo). A própria noção de democracia estava ligada à integração do homem ao Estado. A escravidão era plenamente justificada na época como legítima."
As situações em que se poderia verificar o duplo grau de jurisdição no Direito Grego eram nos recursos endereçados ao Tribunal dos Heliastas, sendo essa sua primeira manifestação, guardadas as devidas proporções com a realidade da época e a evolução do Direito, tendo em vista o fato de os gregos não terem desenvolvido as noções de Direitos Individuais.[4]
Para Adalberto José Aranha[5], em Atenas:
"[…] antes do surgimento da reforma de Sólon, a possibilidade de reexame existia, porém limitadamente. Depois da referida reforma, as decisões dos arcontes, até então consideradas irrecorríveis, ficavam sujeitas ao recurso para o reexame para o tribunal dos heliastas. Em Esparta cabia aos Éforos o pedido de reexame para as decisões proferidas em processos considerados importantes."
Já no Direito Romano, o processo se desenvolveu em três grandes fases: a legis actiones, que vigorou de 754 a.C. até os fins da república; após, veio o período formulario, que durou de 149-126 a.C. até o império de Diocleciano em 285-305 d.C.; e por fim, a cognitio extra ordinem, com início no principado em 27 a.C. indo até a queda do império romano ocidental.[6]
As duas primeiras fases correspondem ao sistema de justiça privada, conhecido por ordo iudiciorum privatorum, que ocorria como um ato de vingança. Durante todo esse período não havia nenhum tipo de recurso que proporcionasse o reexame das decisões. O rei, que era autoridade máxima, era quem julgava os litígios na maioria das vezes. Portanto, era inviável qualquer forma de impugnação dessas decisões.[7]
Após a fase ordo iudiciorum privatorum sobreveio a terceira fase (cognitio extra ordinem) caracterizada pela ascensão do poder do pretor, entrando no mérito dos conflitos e proferindo decisões que os solucionava. Representava a superação da justiça privada pela justiça pública, do poder público sobrepondo-se e substituindo-se ao particular.[8]
Foi somente no período da cognitio extra ordinem que passa a ser possível o reexame da sentença para o Tribunal imperial pela parte insatisfeita. Surge então a appellatio, que pretendia uma nova apreciação com possível reforma da decisão anterior, mas, dessa vez, por um juízo de hierarquia superior. Tal instituto, tanto na sua finalidade, quanto nos seus efeitos e estrutura, pressupõe o duplo grau de jurisdição.[9]
Jaques de Camargo Penteado[10] aponta que:
"O imperador nomeava o juiz, que julgava em razão da autoridade daquele e, portanto, não mais em nome do povo. Esse juiz nomeado devia prestar contas a quem o investira no poder de julgar. Era um funcionário qualificado. Para evitar corrupção, influências provinciais e satisfazer a necessidade natural do vencido em se reexaminar a causa, surge a conveniência política de alguém dizer o direito por último."
O sistema recursal no império romano representava então, mais do que a garantia da justiça, o controle sobre a sociedade, uma vez que era o próprio imperador quem julgava por último os recursos.[11]
Observa-se, assim, que o duplo grau de jurisdição busca, antes de tudo, a preservação e consolidação do poder estatal. Era o imperador quem tinha a última palavra. Não visava, portanto, o resguardo dos direitos dos jurisdicionados em rever uma decisão.
A estrutura político-administrativa era composta pelo Senado, pelas Assembleias do Povo e pela Magistratura. Essa última era dividida em ordinária e extraordinária. Sendo a primeira composta por cônsules, pretores, censores, edis e questores. E a segunda era eleita pelo povo, substituindo a ordinária durante períodos excepcionais, relevantes e urgentes. A elaboração da Lei das XII Tábuas, por exemplo, deu-se pela magistratura extraordinária, convocada exclusivamente para a sua feitura.[12]
O poder discricionário dos magistrados, intitulado coercitio podia ser restringido pela apelação ao povo, direito esse exclusivo de cidadãos romanos, ou seja, as mulheres, os escravos e os estrangeiros não gozavam dessa prerrogativa. Assim, após o processo penal da época, chamado comicial, poderia haver ou não a apelação à Assembleia Popular que atuava como corte de apelação nos processos referentes à aplicação da pena de morte a ao exílio. Tal apelação tinha efeito suspensivo. Portanto, uma decisão desfavorável ao cidadão romano era reexaminada pela Assembleia do Povo.[13]
Carolina Alves de Souza Lima[14] conclui que:
"Ao longo da história do Direito Romano não se vislumbra a proteção dos Direitos Individuais diante do arbítrio do Estado. O império Romano, de acordo com as conjecturas políticas da época, tinha como prioridade o seu poder e a sua prosperidade. Os Direitos e as Garantias do Homem não estavam dentre as preocupações e conquistas dos romanos. O que se garantia eram os direitos das classes privilegiadas, como os imperadores e os patrícios. No entanto, como já mencionado, havia a possibilidade de reexame das decisões judiciais, mediante apelação, no período da extra ordinaria cognitio. O surgimento da apelação demonstra a existência de um sistema recursal e da garantia do Duplo Grau de Jurisdição, guardadas as devidas proporções com a realidade da época. Todavia, convém ressaltar que a possibilidade de recurso no Direito Romano visava possibilitar à autoridade superior o controle em relação a seus subalternos, e, assim, deter o controle das decisões."
Com a queda de Roma e as invasões bárbaras adveio o Direito Germânico. A princípio os julgamentos eram realizados por inspiração divina (ordálias) e não havia previsão de recursos. Posteriormente, no entanto, criaram-se Tribunais cujas decisões poderiam ser objeto de apelação sem sofrer limitações, em virtude da complexidade das questões.[15]
Em substituição ao sistema romano surgiu a visão processual germânica, acolhida por longo tempo na Europa. Esta subdividia o processo em diversas fases, sendo duas delas, a instrução e o julgamento. O juiz encerrada a instrução, verificava se fora ou não realizada a demonstração de pretensão e resolvia a causa. Tal sistema permitia amplo emprego da apelação e, com isso, o acesso ao duplo grau de jurisdição em escala elevada, interferindo na efetividade do processo.[16]
O processo canônico, assim como o germânico, se desenvolveu por uma série de termos. Com o encerramento de cada termo gerava-se uma decisão interlocutória sobre questão processual, tornando-se imutável se não recorrida. Razão pela qual difundiu-se o princípio que admite a apelação não só da sentença definitiva, mas também da sentença interlocutória.[17]
No Direito Francês, resistiu-se por muito tempo em se reconhecer o princípio do duplo grau de jurisdição, pois se temia que o reexame interferisse na centralização do poder. Após a Revolução Francesa, intensificaram-se as manifestações a favor ou contra o instituto da apelação, embora seja antigo o direito de apelar.[18]
A justificativa para os que queriam manter a apelação era a justiça e a preservação dos direitos dos jurisdicionados. De outro lado, aqueles que eram contra, indicavam como fundamento o elitismo dos juízes e tribunais superiores. Após as discussões, acabou sendo assegurada a possibilidade de recurso das sentenças prolatadas por juízes de primeiro grau, tornando-se um princípio fundamental da organização jurisdicional.[19]
Como se pode observar, o princípio do duplo grau de jurisdição está atrelado ao surgimento do recurso de apelação, tendo por berço o Direito Romano. E, diferente da concepção de direito do jurisdicionado que se tem hoje, antigamente, o instituto representava concentração de poder, controle político e afirmação do soberano ante os súditos.
1.2. Evolução histórica no Brasil.
Para traçar um breve histórico sobre o duplo grau de jurisdição no Brasil, importante também se faz mencionar o surgimento desse princípio no Direito Português, uma vez que, por longos anos, o Brasil foi regido pelas leis lusitanas, sobretudo, na época da colonização.
No reinado de D. Afonso III surge a apelação numa tentativa de imposição do poder real, sendo muito incentivada pelo rei, pois ele acreditava que, dessa forma, ampliaria seu poder a todo reino. Nesse período, a apelação ganhou força e era cabível contra decisões definitivas e interlocutórias. Mas foi aos poucos sofrendo restrições, e limitando-se apenas às decisões que colocavam fim ao processo, na tentativa de não protelá-lo.[20]
Dentre as restrições, não era permitido apelar no caso de pactuação, no sentido de aceitar o resultado do processo, e ainda, quando as decisões eram proferidas por árbitros. O rei podia ainda determinar situações que considerava inapeláveis, em especial aquelas por ele mesmo tomadas, já que ele representava a maior autoridade dentro do reino.[21]
No reinado de Afonso IV, tornou-se inadmissível recorrer-se de decisões interlocutórias, excepcionando-se apenas quando a decisão tivesse força de definitiva, se causasse dano de difícil reparação, ou ainda, se impedisse a prolação de uma sentença definitiva.[22]
Após, vieram as Ordenações Manuelinas e Filipinas sem trazerem maiores modificações. Assim, o sistema de recursos continuou a existir, a apelação foi mantida e muito utilizada pelos jurisdicionados, consagrando-se o princípio do duplo grau de jurisdição.[23]
O sistema de recursos, em especial, a apelação, foi introduzido no Brasil com as Ordenações Filipinas, que vigoravam na época em Portugal e tinham por fontes principais o Direito Romano e o Canônico. A apelação seguiu o mesmo molde do Direito Português, isso significa que só era possível recorrer das decisões que findavam o processo, com possibilidade de recurso para a instância superior.[24]
Dessa forma, percebe-se que o Brasil, seguindo a tradição do Direito Português, que, por sua vez, foi influenciado pelo direito romano e canônico, manteve inalterado o recurso de apelação, pelo menos na sua essência – de reexame da decisão para uma instância superior -, inclusive restringindo quanto às decisões interlocutórias. Observando-se, assim, ao duplo grau de jurisdição.
Foi somente após a emancipação do povo brasileiro, que se buscou elaboração de uma legislação própria. E, em 25 de março de 1824 foi então outorgada por Dom Pedro I a primeira Constituição Brasileira, denominada Constituição do Império.
Segundo Maria Fernanda Rossi Ticianelli[25]: “Durante a vigência dessa Carta Política, o segundo grau de jurisdição era composto pelos Tribunais de Relação, enquanto na Capital do Império situava-se o último grau, o Supremo Tribunal de Justiça.”
O Supremo Tribunal de Justiça era o encarregado de conhecer as revistas nas causas, os delitos, os erros de ofício “que commetteremos seus Ministros, os das Relações, os Empregados no Corpo Diplomático e os Presidentes das Provincias”, além dos conflitos “de Jurisdicção, e competencia das Relações Provinciaes” (arts. 163 e 164).[26]
Importante ressaltar que, na Constituição Imperial, o duplo grau de jurisdição estava previsto expressamente, embora situado no título “Do Poder Judicial” e não dentre as “Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros”.
Conforme Nelson Nery Junior[27]:
"O art. 158 da Constituição do Império de 1824 dispunha expressamente sobre a garantia absoluta do duplo grau de jurisdição, permitindo que a causa fosse apreciada, sempre que a parte quisesse pelo então Tribunal da Relação (depois de Apelação e hoje de justiça). Ali estava inscrita a regra da garantia absoluta ao duplo grau de jurisdição."
Rompendo com a disposição da Constituição do Império, a Constituição da República de 1891 não estabeleceu expressamente a garantia do duplo grau de jurisdição. Assim como todas as demais constituições que se seguiram.[28]
Entretanto, a Constituição Republicana tratou dos tribunais superiores atribuindo-lhes competência para julgar em grau de recurso as questões resolvidas pelos juízes e colegiados. E previu ainda, a ampla defesa com todos os meios e recursos essenciais a ela. Posteriormente, com a Constituição de 1934 disciplinou-se a organização dos tribunais, a Corte Suprema, os tribunais federais, a justiça militar, a justiça eleitoral. Manteve-se a proteção a ampla defesa, mas nenhuma menção expressa ao duplo grau.[29]
A autoritária Constituição de 1937 também se limitou a tratar da organização dos tribunais superiores. Além disso, na sua declaração de direitos, estabeleceu que os acusados teriam as necessárias garantias de defesa. Em seguida, a Constituição de 1946 não trouxe maiores inovações, além do conceito de plena defesa.[30]
A Constituição de 1967 e a Emenda de 1969 mantiveram a organização judiciária a previsão da ampla defesa, e perduraram até a abertura democrática e a inauguração do regime liberal com a promulgação da Constituição de 1988, vigente até os dias atuais.[31]
A Carta Magna de 1988, embora revestida de garantias e proteção aos direitos fundamentais, seguiu a tradição de suas antecessoras e foi omissa quanto à garantia do duplo grau de jurisdição. Também organizou o Poder Judiciário, “[…] construindo um sistema de pluralidade de graus jurisdicionais e prevendo alguns recursos.”[32]
Pode-se notar então que, as Constituições seguintes a de 1824 dispuseram a respeito do duplo grau de jurisdição apenas de forma implícita, mencionando a existência de tribunais e conferindo-lhes competência recursal.[33]
Antes de adentrar propriamente no conceito do duplo grau de jurisdição, é necessário, para sua melhor compreensão, que se faça um estudo a respeito dos seus fundamentos, pois estes representam a sua razão de ser.
Segundo Jaques de Camargo Penteado[34]:
"São vários os fundamentos do duplo grau de jurisdição. Considera-se a natural pretensão do vencido ao reexame da decisão desfavorável. Levam-se em conta a possibilidade de decisão injusta e a conveniência de sua correção. O julgador é estimulado ao bom desempenho de sua atividade em face da previsão de controle por órgão distinto. Traduz-se a expectativa de melhor resultado na instância de reexame, em razão da sua composição colegiada e de ser ela integrada por julgadores mais experientes. Mostra-se uma preocupação com o sentimento de segurança e de justiça que envolve cada indivíduo e que é satisfeito com a operacionalidade de um sistema jurisdicional eficiente e garantista."
Por sua vez, Gustavo Henrique Badaró[35] também elenca dentre os fundamentos do duplo grau: a cautela do julgador ao proferir uma decisão, já que há a possibilidade que ela venha a ser reexaminada por outro órgão; a irrelevância de eventuais erros individuais no órgão colegiado, pois o julgamento é pelo voto da maioria; por fim, a presunção de serem as decisões reexaminadas menos eivadas de erros, pois são pronunciadas por juízes mais experientes do que os de primeira instância.
Propõe ainda, o autor, um fundamento político, pois a “[…] ausência de controle daria ao titular de tal decisão um poder ilimitado e absoluto, o que não pode ser aceito em um Estado de Direito.”[36]
Dentre os pontos negativos, deve-se ressaltar que a reforma de uma decisão pelo tribunal poderá implicar uma contradição entre os julgados. Pode também acontecer de se substituir uma primeira decisão correta por outra equivocada. Em terceiro lugar, caso a decisão colegiada seja simplesmente pela confirmação da anterior, tal situação seria contrária à economia processual.[37]
Não obstante os vários fundamentos que justificam a necessidade do princípio do duplo grau de jurisdição, pode-se dizer que o principal deles, a fonte da qual emana todos os outros, é a insatisfação humana com consequente desejo pela modificação da decisão.
A esse respeito, Renata Malta Vilas-Bôas[38]aduz que: “A raiz desse princípio encontra-se na própria história do homem que insatisfeito com o resultado busca sempre rever uma decisão, ou seja, pede uma segunda opinião.”
Para Alexandre Sormani[39]:
"A justificativa jurídica da existência do duplo grau fundamenta-se na garantia de justiça da decisão. […] a necessidade de um novo exame de uma mesma lide objetiva a satisfazer as necessidades psicológicas das partes do processo. Vencedor ou vencido não se sente plenamente satisfeito com uma única decisão. O vencido, obviamente, porque refuta a decisão que lhe é desfavorável e visa a um novo pronunciamento que lhe agrade. O vencedor se sentirá mais confortável se o seu êxito for coroado com a confirmação de um colegiado de juízes teoricamente mais experientes. Outrossim, a análise de um colegiado, com uma distância maior dos fatos da causa, possibilita uma visão global do processo, garantindo teoricamente uma boa solução."
A total aderência das decisões judiciais implica a necessidade do reexame, e isso se deve à insatisfação do vencido e seu desejo de reversão do estado daquilo que lhe é desfavorável.[40]
Observa-se então que, a insatisfação humana, o inconformismo com as decisões e a sensação de injusta são as bases em que se sustenta o princípio do duplo grau de jurisdição, servindo-lhe de fundamento. No entanto, deve-se tomar cuidado para a busca pela justiça não inviabilizá-la por completo, com julgamentos que nunca têm fim em virtude de sucessivos reexames.
Após a análise da origem histórica do duplo grau de jurisdição e da observação de seus fundamentos, torna-se mais simples a tarefa de se traçar um conceito deste princípio nos tempos atuais.
Na importante missão de compreender o instituto, mas sem a pretensão de esgotar o assunto, vale mencionar alguns conceitos elaborados por autores que assumiram essa responsabilidade.
A doutrinadora Maria Fernanda Rossi Ticianelli[41], a respeito do tema dispõe que:
"O duplo grau de jurisdição é um princípio que possibilita o direito à revisão de uma decisão, que quase sempre é feita a pedido da parte vencida ou insatisfeita. Assim, através dele, a parte que não concorda com a decisão proferida em primeiro grau, poderá interpor recurso com o objetivo de que aquele processo tenha um novo julgamento, e que a segunda decisão lhe seja mais favorável."
Para Jaques de Camargo Penteado[42]: “Duplo grau de jurisdição é a garantia outorgada ao vencido de obter uma nova decisão, por órgão jurisdicional superior e dentro do mesmo processo, que substitui a primitiva resolução recorrida.”
Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró[43], por sua vez, aponta que, ressalvada a competência originária dos Tribunais, o duplo grau de jurisdição deve ser examinado a primeira vez em primeiro grau de jurisdição e reexaminado uma única vez em sede recursal pelo Tribunal, que é órgão jurisdicional diverso do que proferiu a decisão.
Na visão de Renata Malta Vilas-Bôas[44], a possibilidade de revisão, mediante o recurso cabível, das causas já julgadas pelo juiz de primeiro grau deve ser por uma instância superior.
Em contrapartida, Djanira Maria Radamés de Sá[45] aponta que: “[…] não importa que o reexame seja feito por órgão jurisdicional colegiado de hierarquia igual ou superior à do prolator da sentença; impende seja realizado. Cuida-se mais, de um duplo exame que, propriamente, de um duplo grau.”
No mesmo sentido, Carolina Alves de Souza Lima relata que, para[46] “[…] o direito processual moderno, a Garantia do Duplo Grau de Jurisdição prescinde de órgão superior para a análise da matéria em discussão. Conforme o sistema jurídico brasileiro, a Lei n. 9099/1995 prevê a aplicação do referido princípio e o reexame dá-se por órgão jurisdicional do mesmo nível do sentenciante.”
Oreste Nestor de Souza Laspro[47] vai mais além ao apreciar a inadequação da nomenclatura duplo grau de jurisdição, pois, segundo ele, não existiria uma pluralidade de jurisdição, como deixa entrever a terminologia utilizada, mas sim, a possibilidade de reexame das decisões. Completa afirmando que a jurisdição é una e soberana, assim sendo, admitir o duplo grau de jurisdição implicaria em aceitar a ideia de uma pluralidade de soberanias.
Portanto, observa-se nos conceitos mencionados que estes guardam relação e similaridades entre si, divergindo, basicamente, quanto à necessidade de ser ou não o órgão revisor de hierarquia superior ao órgão ad quo.
Enquanto alguns autores consideram que o reexame da decisão só pode se dar quando é submetido a órgão de hierarquia superior ao do prolator da decisão original, outros entendem que a reanálise prescinde de tal requisito, sendo admitido, tão somente, que seja efetuado o reexame por órgão diverso.
Para aqueles que adotam a primeira posição, a exemplo de Maria Fernanda Rossi Ticianelli[48], a reapreciação da decisão por órgão de mesma jurisdição não configura um não atendimento ao princípio do duplo grau, uma vez que fora concedido a parte oportunidade de discutir as questões em que fiou vencida. Exemplo disso é o julgamento do recurso nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, pois a turma recursal é composta por juízes de primeira instância.
Em lado oposto, Jaques de Camargo Penteado[49] sustenta a orientação de reexame tradicional por juízo superior refutando o pensamento acima mencionado ao afirmar que o órgão recursal os juizados especiais não atenderia ao duplo grau insculpido pela Constituição e tratados de direitos humanos.
Quando se trata do duplo grau de jurisdição, devem ser observados ainda dois pontos na aplicação do direito de forma justa e no tempo razoável. O primeiro deles é que, quanto mais as decisões sofrem revisões, mais elas podem ser aperfeiçoadas, no entanto, se isso é feito sem restrições, dará azo para julgados intermináveis, sendo este o segundo ponto. Assim, trava-se uma eterna batalha entre o princípio da justiça e o da certeza jurídica.[50]
O duplo grau de jurisdição nos moldes atuais, entretanto, tem sido um entrave para a efetiva prestação jurisdicional, isso porque ele tem impedido que os processos transcorram em um tempo razoável, o que prejudica a solução dos conflitos. Acontece que, mesmo quando a pretensão do autor é acolhida, aquela decisão parece ser injusta e ineficaz, pois já passou tanto tempo que o estado de insatisfação permanece, ainda que para parte vencedora.[51]
Não se pode olvidar que tal princípio é necessário ao sistema jurídico brasileiro, pois garante o exercício da ampla defesa, possibilitando a correção de erros e de decisões injustas. No entanto, se for empregado sem nenhuma restrição terá por consequência a morosidade da justiça e ineficiência da tutela jurisdicional.[52]
Portanto, não obstante, o princípio do duplo grau de jurisdição seja essencial para tutela jurisdicional, ele deve ser aplicado de forma a manter o equilíbrio entre a justiça e a segurança jurídica, sob pena de ser esvaziar em decisões, que longe de serem rápidas e justas, sejam insatisfatórias a ambas as partes, vencido e vencedor.
2 O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL.
O duplo grau de jurisdição conforme já conceituado trata-se de instituto de Direito processual. No entanto, para que se tenha uma verdadeira dimensão de sua aplicação é necessário que se faça um estudo à luz da Constituição, pois esta permeia todos os ramos do Direito.
Ela nem sempre recebeu a atenção que tem hoje. Era comum colocar em destaque apenas a lei ordinária principal que disciplinava a solução do problema em determinada área, deixando em segundo plano o enfoque constitucionalista. Entretanto, paulatinamente, sua aplicação foi ocupando o lugar de base fundamental para o direito do País.[53]
Para Nelson Nery Junior[54]: “O intérprete deve buscar a aplicação do direito ao caso concreto, sempre tendo como pressuposto o exame da Constituição Federal. Depois, sim, deve ser consultada a legislação infraconstitucional a respeito do tema.”
A Carta Maior, por ser uma norma de hierarquia superior deve fundamentar toda a ordem jurídica por meio de seus princípios e regras, que devem irradiar-se por todo o ordenamento.[55]
Portanto, resta claro que a intenção desse trabalho é estudar o princípio do duplo grau de jurisdição com foco na Constituição Federal e em seus princípios norteadores e, não somente, nos diplomas infraconstitucionais (processo civil e processo penal).
2.2 Direitos fundamentais e garantias constitucionais.
Após comentar a abordagem constitucional que o trabalho se propõe, faz-se importante ainda, antes de adentrar no enfoque central a respeito do caráter garantista do princípio do duplo grau de jurisdição, tratar primeiramente a respeito da relação das garantias constitucionais com os direitos fundamentais, e também com os princípios e regras da Constituição, a fim de se obter um melhor entendimento do tema.
Na busca incansável do homem pelo aprimoramento da sociedade, onde haja mais justiça e igualdade em direitos e obrigações, se encontra o cerne do Estado de Direito, sendo indispensável, para que este exista, as garantias constitucionais juntamente com os direitos fundamentais, tais como direito à vida, à liberdade, à segurança, à propriedade, entre outros.[56]
De modo geral, sempre estiveram presentes, ao longo das Constituições brasileiras, garantias aos homens, que surgem e se desenvolvem de acordo com a sociedade nos mais diversos aspectos como: moral, ético, social, político e religioso.[57]
Entende-se então, que as garantias e os direitos fundamentais decorrem do próprio Estado de Direito. Eles estão inseridos em um contexto histórico e se desenvolvem acompanhando a evolução da sociedade.
Para Carolina Alves de Souza Lima[58], direitos e garantias fundamentais representam vasta gama de direitos inerentes à dignidade do ser humano e em constante evolução, levando-se em conta fatores sociais, políticos, econômicos, culturais e humanitários da sociedade. Devem gozar de plena proteção e respeito “[…] sob pena de se continuar repetindo o lado trágico da história da humanidade, sempre marcada pelo desrespeito a esses direitos.”
Maria Fernanda Rossi Ticianelli[59], por sua vez, diferencia-os, indicando que enquanto os direitos fundamentais podem ser identificados nos dispositivos constitucionais que declaram a sua existência, estando relacionados à dignidade do homem, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a saúde entre outros. Por outro lado, as garantias constitucionais “[…] são os meios e os instrumentos colocados à disposição dos titulares dos direitos fundamentais para impedir sua violação ou buscar sua reintegração.”
Observa-se então, que as garantias constitucionais existem para proteger os direitos fundamentais, não podendo ser com estes confundidos.
2.3 Princípios, regras e garantias constitucionais.
Quanto à diferenciação entre princípios, regras e garantias constitucionais convêm analisar a estrutura da Constituição Federal.
A atual Constituição Federal de 1988 está dividida de forma a prescrever regras e princípios, formando um todo harmônico, que se fundamenta nos valores e interesses de seus cidadãos. Seria inconcebível se de outro modo o diploma constitucional visasse apenas regras ou, apenas princípios.[60]
A diferença entre os princípios jurídicos e as regras constitucionais reside no fato de serem aqueles os contornos e os comandos ordenadores do sistema; e estas, as formadoras de comportamentos e valores a serem seguidos na sua aplicação, inspiradas, contudo, nos primeiros.[61]
Os princípios podem ainda ser expressos ou implícitos na Constituição Federal, mas, “[…] para que tenham aplicabilidade absoluta dentro de um sistema jurídico, é necessário que estejam garantidos constitucionalmente.”[62]
Assim, percebe-se que pode o legislador elevar determinado princípio ou regra à categoria de garantia constitucional, nesse caso, tal preceito terá maior valoração para todo ordenamento jurídico, sendo mais dificultosa qualquer restrição que se pretenda pela via infraconstitucional, sendo necessária a observância de requisitos específicos para a sua alteração.[63]
Então, tanto as regras quanto os princípios podem se converter em garantias constitucionais, desde que lhes sejam atribuídos caráter especial de proteção a determinados direitos considerados fundamentais ao ser humano.
Isso revela a importância das garantias constitucionais para a sociedade, proporcionando acesso à justiça, como também, decisões mais justas. Por meio delas, os cidadãos contam com uma proteção contra atos arbitrários do Estado. Além do mais, as garantias asseguram “[…] a manutenção das instituições vigentes, tornando-se a estrutura do sistema atual.”[64]
Ressalta-se ainda que, não se podem confundir garantias com os remédios constitucionais como: o habeas corpus, o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas data, a ação popular e o direito de petição; pois estes são apenas espécies do gênero garantias.[65]
Para a Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon Alves[66], as garantias são princípios qualificados pelo seu conteúdo específico. Elas previnem o exercício arbitrário do poder estatal, limitando-o.
Ante o exposto, Maria Fernanda Rossi Ticianelli[67], conclui que:
"As garantias constitucionais são cláusulas que se encontram nas Constituições, com o objetivo de protegê-las de qualquer violação, possuindo com relação ao processo, natureza assecuratória. Para os direitos, enuncia a forma de tutelá-los, exercê-los, sendo deles um instrumento. Essas garantias são, portanto, indispensáveis para manter a eficácia da ordem constitucional com a observância dos direitos nela prescritos."
Após conceituar o que são garantias constitucionais, fica claro que elas possuem uma face voltada também para o Direito processual, pois são inúmeros os dispositivos da Constituição relacionados ao processo e sua devida observância. E estes foram promovidos à categoria de garantias constitucionais, pois representam a devida prestação da tutela jurisdicional.[68]
Segundo a Ministra Eliana Calmon[69], de forma mais restrita, os princípios constitucionais do processo “[…] podem estar expressos na Constituição, ou implícitos, só identificados porque resultam das limitações políticas do Estado, em outra dimensão que não a processual, como os limites resultantes do regime federativo.”
Há quem entenda que os princípios se erigidos à categoria de garantias não poderiam sofrer qualquer restrição por normas infraconstitucionais, pois tais normas estariam violando o próprio diploma constitucional.[70]
Esse pensamento reflete uma das polêmicas a serem discutidas ao longo do presente trabalho, e será combatido no tempo oportuno.
2.4 Devido processo legal e o duplo grau de jurisdição.
Ultrapassadas as questões preliminares acerca das garantias constitucionais, chega-se finalmente ao ápice desse estudo, que cumpre esclarecer os motivos mais relevantes pelo qual se pode considerar o duplo grau como garantia constitucional, e as respectivas críticas que se atribuem a tais argumentos.
Para Carolina Alves de Souza Lima[71]:
"O duplo Grau de Jurisdição é, no sistema jurídico brasileiro, uma Garantia constitucional. Ele decorre do princípio do Devido Processo Legal, do Princípio da Ampla Defesa e da própria organização constitucional dos tribunais brasileiros. A legislação infraconstitucional também trata do Princípio do Duplo Grau de Jurisdição. Os Códigos de Processo Civil e de Processo Penal, a Consolidação das Leis do Trabalho, as Leis Extravagantes e as leis que cuidam da organização judiciária prevêem o referido princípio."
Um dos argumentos mais utilizados por aqueles que defendem essa ideia é o que considera o princípio do duplo grau de jurisdição como uma manifestação do devido processo legal.
Este é uma garantia constitucional, que assim como as demais, também visa à proteção dos direitos fundamentais previstos na Constituição. Ele assegura que ninguém seja privado de seus direitos sem que haja um processo com suas disposições disciplinadas por lei e que objetive a realização da justiça. [72]
Trata-se, então, de uma garantia constitucional que ampara todos os cidadãos, uma vez que assegura tanto o exercício do direito de acesso ao Judiciário, quanto o desenvolvimento processual de acordo com normas preestabelecidas.[73]
Pode-se dizer ainda que o princípio de devido processo legal é o gênero do qual são espécies todos os demais princípios constitucionais do processo, portanto, bastaria que a Constituição adotasse tal princípio para que daí derivasse todas as consequências processuais para garantir aos litigantes o direito a um processo e uma sentença justa.[74]
Aqueles que defendem a natureza constitucional do princípio do duplo grau como manifestação do devido processo legal indicam que ele estaria contido principalmente nos incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição Federal. Fundamentam também na previsão constitucional de existência de órgãos jurisdicionais de segunda instância, assunto que será tratado posteriormente.[75]
Outro motivo para justificar a inserção do duplo grau de jurisdição no devido processo legal seria o fato deste último resguardar qualquer bem da vida corpóreo ou incorpóreo. E, portanto, sendo a busca de uma sentença favorável um bem incorpóreo, seria ela assegurada pelo devido processo legal.[76]
O duplo grau de jurisdição seria, dessa forma, elemento essencial do devido processo legal, representando sua substância e essência, uma vez que o reexame da decisão é, em última análise, um limitador do Estado, impedindo a ocorrência de arbítrios.[77]
Para Djanira Maria Radamés de Sá[78] é assegurando “[…] ao vencido uma única revisão de sentença que lhe foi desfavorável, que se considera o duplo grau de jurisdição como garantia de ordem constitucional diretamente derivada da cláusula do devido processo legal […].”
No mesmo sentido, Alexandre Sormani[79] conclui que: “[…] não restam dúvidas de que o duplo grau de jurisdição é um consectário do princípio do devido processo legal, gozando assim, como ele, de qualidade constitucional. […]”
Entretanto, há também aqueles que discordam de tal pensamento, como Oreste Nestor de Souza Laspro[80]. Para ele: “O duplo grau de jurisdição e o devido processo legal são princípios ligados entre si, sem, contudo, resultar em uma relação de dependência ou continência […].”
Entende ele, que a restrição dos recursos é mais desejável ao desenvolvimento do processo do que a busca pela verdade dos fatos, pois as constantes impugnações reduziriam a efetividade do processo. Por tal motivo, considera o duplo grau de jurisdição mero elemento acidental que não pode se incluir ao devido processo legal.[81]
Esposando essa ideia, Maria Fernanda Rossi Ticianelli[82] levanta o motivo de que mesmo sem a observância do duplo grau de jurisdição em algumas situações, o processo ainda seria considerado perfeito, levando a uma decisão justa, e não haveria nenhum desrespeito ao devido processo legal.
Nesse caso, as limitações aos recursos seriam amplamente aceitas bastando apenas estarem baseadas em argumentos sólidos e constitucionais, não representando qualquer ofensa às garantias constitucionais e nem à cláusula do due process of law.[83]
Portanto, entende a autora que, seria o princípio do duplo grau independente do devido processo legal, não configurando uma garantia constitucional, e, por consequência, poderia ser suprimido em determinadas situações sem que houvesse ofensa à Constituição. Só assim se alcançaria o objetivo do processo e a realização da justiça.[84]
Percebe-se que os doutrinadores que não consideram o princípio do duplo grau de jurisdição como inerente ao devido processo legal partem do pressuposto de que este último, como garantia constitucional, jamais poderia sofrer limitação infraconstitucional, mas, aquele, de outra sorte, poderia sofrê-las sem qualquer prejuízo ao desenvolvimento regular do processo e sem qualquer afronta à Constituição.
Entretanto, esses argumentos contrários à tese então sustentada não devem prevalecer, pois o simples fato de existirem limitações legais ao princípio do duplo grau de jurisdição não tem o condão de retirar-lhe a condição de garantia constitucional, pois as restrições visam atender à exigência da certeza jurídica. Em última análise, a limitação infraconstitucional está em consonância com a aplicação adequada do duplo grau no âmbito social.[85]
Vale ressaltar que alguns estudiosos entendem que o duplo grau de jurisdição estaria implícito no princípio da ampla defesa, em especial no art. 5º, inciso LV, in verbis:[86]
"Art. 5º. […]
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes."
A respeito desse dispositivo legal, Djanira Maria Radamés de Sá[87], aduz que:
"[…] a partir da argumentação linguística, é possível demonstrar a intenção do autor no momento em que se utilizou do aditivo ‘e’ para ligar os termos meios e recursos. Se a vontade do legislador fosse a de igualar os termos, teria utilizado a conjunção ‘ou’, o que não fez. Assim a palavra recurso tem a conotação específica de instrumento para a prática de um ato específico, ou seja, recorrer da decisão que lhe foi desfavorável."
Nesse sentido, seria o duplo grau de jurisdição um princípio constitucional que decorre do direito de defesa, já que assegura às partes o direito mínimo de ter revisto um ato judicial, que lhe prejudique, por outro órgão jurisdicional, hierarquicamente superior.[88]
Há, no entanto, entendimento contrário a essa tese, no sentido de que, o duplo grau de jurisdição não seria inerente ao princípio da ampla defesa. Estariam apenas relacionados, pois ainda que a possibilidade de recurso de uma decisão desfavorável seja um meio de defesa assegurado às partes, não são todas as decisões que comportam um recurso.[89]
Existe também entendimento propício a considerar o duplo grau de jurisdição como decorrente do direito de ação. Nesse sentido, afirma-se ser aquele princípio diretamente ligado a este.
Para Djanira Maria Radamés de Sá[90], o direito de ação, de forma ampla, implica no próprio direito ao exercício de jurisdição. E, tendo o recurso natureza de procedimento de continuidade, nesse caso, a primeira decisão não poria fim à função jurisdicional, havendo necessidade de um recurso.
Portanto, o recurso seria um direito inerente ao exercício da função jurisdicional e, por conseguinte, uma certeza de que o processo se desenvolveu de forma regular e que atingiu os escopos da atividade jurisdicional.[91]
Contudo, os que rejeitam a fundamentação acima aduzida, argumentam que seria inviável considerar a sentença desfavorável como lesão a direito, pois cada decisão tomada nas respectivas instâncias superiores, em âmbito recursal, também teria que ser considerada como lesão a direito, e, assim, o processo jamais teria fim, e a justiça nunca seria satisfeita.[92]
Nota-se que, tanto as teorias que indicam ser o duplo grau como decorrente da ampla defesa, quanto as que afirmam ser ele derivado do direito de ação, respeitadas as devidas particularidades, ambas podem ser entendidas, em última análise, como parte integrante do devido processo legal.
2.5 Princípio constitucional implícito.
Um segundo argumento utilizado para sustentar o entendimento de ser o duplo grau de jurisdição uma garantia constitucional consiste em considerar que tal princípio estaria implícito na organização judiciária trazida pela Constituição Federal, a qual prevê órgãos de hierarquias distintas.
Segundo Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró[93]:
“A Constituição de 1988, que foi pródiga em explicitar vários princípios constitucionais, não assegurou, expressamente, o duplo grau de jurisdição. Todavia, como a Magna Carta estrutura o Poder Judiciário, criando órgãos de primeiro e órgãos de segundo grau de jurisdição, sendo função precípua destes últimos rever as decisões proferidas em primeiro grau, tem-se entendido que o princípio do duplo grau de jurisdição é um princípio constitucional implícito”.
No mesmo sentido, Darlan Barroso[94] afirma que, por ter a Constituição Federal “[…] organizado o Poder Judiciário em graus de hierarquia, ou seja, órgãos de primeira instância, órgão de segunda instância e tribunais superiores, tudo isso para permitir que os órgãos hierarquicamente superiores pudessem reapreciar os atos dos inferiores.”
Lembra ainda o citado autor que, a admissibilidade do princípio em âmbito constitucional também se deve ao fato de a própria Constituição ter criado recursos, previstos nos arts. 102 e 105.[95]
Contrário a esse argumento, Jaques de Camargo Penteado[96] rebate arguindo que:
"A garantia expressa do duplo grau de jurisdição e a disciplina dos órgãos judiciários de ambas as instâncias diminuem a força da argumentação de que nas Constituições posteriores permanece o princípio do duplo grau de jurisdição com base nessa previsão de tribunais superiores. Se bastasse essa indicação dos diversos órgãos judiciários para se extrair essa garantia, seria dispensável a menção expressa ao duplo grau de jurisdição, como o fez a Constituição do Império."
Contudo, o autor faz a ressalva de que o duplo grau de jurisdição, conforme essa teoria, seria uma faculdade conferida somente ao acusado contra o Estado, jamais podendo ser utilizada pelo acusador para ter acesso à instância superior nas causas penais.[97]
Também em oposição, Oreste Nestor de Souza Laspro[98] afirma: “Assim, efetivamente, o duplo grau de jurisdição não é garantido no Direito Brasileiro a nível constitucional, estando somente regulado a nível ordinário.”
Para ele, somente os recursos ordinários previstos na Constituição constituiriam garantias ao duplo grau de jurisdição, excluindo-se dessa qualificação todos os demais recursos constitucionais.[99]
Considera ainda que a simples previsão constitucional de recursos não significa necessariamente que deva haver o reexame de todas as decisões. E, assim, a Constituição estimula a restrição do direito de apelação pelo legislador ordinário.[100]
Portanto, infere-se que a teoria do princípio constitucional implícito tem amparo na previsão constitucional de recursos aos tribunais e pela organização judiciária em órgãos de primeira e segunda instância, além dos tribunais superiores, ainda que não traga expressamente o princípio do duplo grau.
2.6 Limitação pela lei infraconstitucional.
Um ponto dos mais polêmicos na discussão acerca da natureza de garantia constitucional do duplo grau de jurisdição é o que se refere à possibilidade de limitação dos recursos pela lei infraconstitucional, o que, por consequência, implicaria na restrição do próprio princípio em análise.
Nelson Nery Junior[101] acredita que o duplo grau está apenas previsto no ordenamento jurídico, mas não seria uma garantia constitucional, pois o direito de recurso pode ser limitado pelo legislador infraconstitucional.
Apresenta como exemplo de seu ponto de vista, o não cabimento de apelação “[…] nas execuções fiscais de valor igual ou inferior a 50 OTNs (art. 34, da Lei 6.830/80) e nas causas, de qualquer natureza, nas mesmas condições, que forem julgadas pela Justiça Federal (art. 4º, da Lei 6.825/80), ou ainda, não caber recurso dos despachos (art. 504, CPC).”[102]
Completa seu raciocínio afirmando que, se fosse de fato o duplo grau uma garantia constitucional, os exemplos mencionados deveriam ser considerados inconstitucionais, mas não são.[103]
Acolhendo tal entendimento, Maria Fernanda Rossi Ticianelli[104] afirma que, para ser considerada verdadeira garantia constitucional, o princípio do duplo grau deveria ter aplicação ilimitada, além disso, seria preciso que a Constituição Federal o elencasse expressamente como fez com os demais princípios processuais.
Constata então que: “Ocorre que a atual Constituição Federal também não faz previsão expressa desse princípio, o que resulta na possibilidade de o legislador infraconstitucional determinar que algumas decisões sejam irrecorríveis.”[105]
Dessa forma, conclui que o duplo grau de jurisdição pode ser considerado apenas um princípio, já que não possui as característica de garantia constitucional, o que permite que seja suprimido sem implicar em violação aos demais preceitos constitucionais vigentes no ordenamento jurídico brasileiro.[106]
Enrique Feldens Rodrigues[107] vai mais além, ao dispor que as limitações recursais são impressas não só pela lei infraconstitucional, mas pela própria Constituição:
"Examinem-se, primeiramente, as normas da Constituição de 1988 que afastam o duplo grau. Tratando-se de processo penal, pode-se invocar, inicialmente, o disposto no art. 29, X, do Texto Magno, que prevê a competência do Tribunal de Justiça para o julgamento dos Prefeitos Municipais, sem que, nos arts. 102 ou 105, haja o estabelecimento de competência do Supremo Tribunal Federal, ou do Superior Tribunal de Justiça, para o conhecimento de recurso ordinário contra a decisão. Em termos equivalentes, refira-se às ações de competência originária dos Tribunais Regionais Federais (art. 108, I), tais como os processos criminais movidos contra juízes integrantes do Poder Judiciário da União (juízes federais, militares e do trabalho), bem ainda contra os membros do Ministério Público da União, com as ressalvas estabelecidas na Carta.
Passando-se à seara do processo civil, têm-se, a título de exemplificação, as hipóteses de mandado de segurança de competência originária dos TRFs e dos Tribunais de Justiça ou do STJ, para cujos casos a Constituição prevê recurso ordinário ao STJ ou ao STF, respectivamente, apenas quando denegatória a decisão (arts. 105, II, b, e 102, II, da CF/88). "
Entretanto, todos esses argumentos merecem ser combatidos, pois partem da premissa de que o princípio do duplo grau de jurisdição deveria ser absoluto, mas, logicamente, sabe-se que nenhum direito é absoluto. E, consoante o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “[…] alguns atos judiciais são irrecorríveis pela própria Constituição e mais, a definição da amplitude do direito de recorrer é da competência da norma processual.”[108]
Bem colocado é o posicionamento de Alexandre Sormani[109] quando afirma:
"Pois bem, é importante verificar que a principal crítica à colocação do referido princípio no âmbito constitucional é o fato de ele não ser absoluto. Ora, nem as garantias constitucionais fundamentais, de altíssima envergadura, são absolutas, pelo simples fato de que nenhum direito (em sentido amplo, abrangendo o conceito de garantia) é absoluto, sob pena de se transformar em excesso ou abuso de direito."
A disciplina do duplo grau de jurisdição, no Brasil, fica sob a responsabilidade tanto da Constituição Federal, quanto da legislação infraconstitucional. E ambas se prestam a equilibrar o binômio “desejo de um novo julgamento e a certeza jurídica.”[110]
Destarte, percebe-se que as limitações ao duplo grau impostas pela lei ordinária, de forma alguma reduzem seu patamar constitucional. Pois, resultam de uma adequação jurídica para que seja efetivada a perfeita aplicação do duplo grau no âmbito social. Então, em vez de descaracterizá-lo como garantia constitucional, as limitações afirmam e aprimoram ainda mais o referido princípio.[111]
Como se pode acompanhar durante as confrontações de opiniões doutrinárias a respeito da matéria, o patamar de garantia constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição dá azo a inúmeros argumentos contrários e a favor.
Em geral, se afasta seu comando garantista pela não manifestação expressa do princípio na Constituição Federal, e por ser ele passível de restrições de cunho infraconstitucional.
Mas, numa visão mais realista e progressista a respeito do assunto, compreende-se que não há mais lugar para acepções que preveem princípios absolutos e ilimitados. Isso porque uma de suas características é a relatividade.
Pensar de forma diferente implicaria em reduzir de posição todos os demais princípios constitucionais, pois todos eles, uma hora ou outra, são passíveis de sofrer restrições para adequar o ordenamento jurídico à evolução da sociedade.
A adequação às necessidades de efetividade, celeridade processual sem perder de vista a busca pela justiça, impõem, cada vez mais, novos contornos ao princípio do duplo grau de jurisdição. É inegável que tanto a Constituição Federal, quanto as leis infraconstitucionais cuidaram, felizmente, de infligir limites à aplicação desmedida de recursos.
Nada disso, no entanto, afasta as características do duplo grau, que por ser uma garantia constitucional cumpre seu papel de garantidor dos direitos fundamentais e limitador dos poderes arbitrários do Estado.
3 A VISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A RESPEITO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO E OS TRATADOS INTERNACIONAIS.
3.1 A constitucionalidade dos tratados internacionais.
Nessa oportunidade, faz-se indispensável abrir um parêntese para tratar dos tratados internacionais de direitos humanos, em especial o Pacto de São José da Costa Rica, e como eles foram acolhidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista a previsão do art. 5º, §2º, da Constituição Federal, e a sua relevância no tema ora abordado.
A importância de se examinar esse assunto se deve ao fato de que ele refletirá bastante na formação da convicção do Supremo a respeito da natureza do duplo grau de jurisdição, uma vez que este tem previsão expressa em um tratado internacional sobre direitos humanos.
Vale lembrar que o Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, entrando em vigor internacional em 18 de julho de 1978, e integrada ao direito brasileiro mediante o Decreto no. 678, de 6 de novembro de 1992.
Nelson Nery Junior[112] indica que da leitura do art. 8º n. 2, letra h, dessa norma internacional percebe-se claramente “[…] a adoção da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria penal, isto é, o direito de o réu, no processo penal, interpor recurso de apelação. […]”. No entanto, esclarece o autor que o caráter de garantia absoluta só pode ser auferido quando se refere ao processo penal, não se podendo dizer o mesmo para o processo civil ou trabalhista.
Segundo o juízo de Jaques de Camargo Penteado[113], o Pacto de San José da Costa Rica “[…] é norma interna de nível constitucional, assegura o direito de ser ouvido, com as devidas garantias e no prazo razoável, pelo juiz natural da causa, o direito de defesa pessoal ou por advogado de confiança e o direito à prova (art. 8º).”
Afirma ainda que tal tratado consagra o duplo grau de jurisdição ao prever a plena igualdade das pessoas em seu direito ao recurso, previsto no art. 8º, n. 2, h.[114]
Por fim, o autor, fazendo uma comparação entre o Pacto de San José da Costa Rica e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aponta que este último é menos abrangente que o primeiro já que neste não é permitida a revisão da decisão quando esta tiver por finalidade a alteração de sentença absolutória. Enquanto naquele, não há qualquer limitação ao ingresso no juízo superior para o reexame da decisão condenatória, permitindo assim, inclusive o acesso ao segundo grau visando à alteração do fundamento da decisão que absolve o acusado.[115]
Tal previsão do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos[116] está contida em seu art. 14, n. 5, in verbis:
"Art. 14 […]
5. Toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei.”
Na visão de Maria Fernanda Rossi Ticianelli[117], nenhum desses argumentos é suficiente para afirmar que o duplo grau de jurisdição estaria garantido na Constituição. Para ela, o Pacto de São José da Costa Rica, ainda que recepcionado por nosso ordenamento jurídico por força do art. 5º, §2º da Constituição, não teria o poder de erigir o duplo grau ao nível de garantia constitucional, uma vez que ele abrange apenas o campo do Processo Penal, excluindo-se o Processo Civil.
Para melhor demonstrar o tratamento dispensado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) à constitucionalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos, seleciona-se o julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade nº. 1675/DF[118] de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, julgada em 24 de setembro de 1997 e publicada em 19 de setembro de 2003.
Tal julgado trouxe a discussão acerca da constitucionalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos, sobretudo, a Convenção nº. 106 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Essa ação foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio (CNTC), para suspender liminarmente a vigência do dispositivo da Medida Provisória 1539-35/97, o qual autorizava o trabalho aos domingos no comércio varejista.
Do voto vencedor do Ministro Relator pode-se constatar que ainda não havia se consolidado o entendimento doutrinário sobre o alcance preciso da regra inscrita no art. 5º, §2º, da Constituição, segundo o qual os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros decorrentes […] dos tratados em que a República Federativa do Brasil seja parte.”[119]
Nesse sentido, afirma o Ministro Relator Sepúlveda Pertence[120] que:
"Duas decisões do Supremo Tribunal, contudo – malgrado para concluir pela hierarquia infraconstitucional dos tratados nelas considerados – permitem antever, a contrario sensu, com relação às convenções pre-constitucionais atinentes a direitos e garantias fundamentais uma clara abertura à tendência contemporânea de atribuir status constitucional às normas internacionais de outorga e proteção dos direitos humanos: tanto no HC 72.131, Plen., 23.11.95, Maurício Corrêa – onde se repeliu a revogação pelo Pacto de São José das leis permissivas da prisão civil do depositário infiel -, quando no recentíssimo julgamento da ADIn 1480 – quando se discutiu a constitucionalidade da Convenção 158 da OIT -, à visão majoritária foi decisiva a circunstância de tratar-se em ambos os casos, de convenções internacionais que, embora anteriormente celebradas, só foram referendadas, ratificadas e promulgadas no Brasil após a Constituição."
Concluiu ser inquestionável que os direitos sociais dos trabalhadores, gravados no art. 7º da Constituição, se compreendem entre os direitos e garantias constitucionais incluídos no âmbito normativo do art. 5º, §2º, de modo a reconhecer tal alçada constitucional às convenções internacionais anteriormente codificadas no Brasil.[121]
Adverte por fim que:
"Ainda, porém, que não se queira o Tribunal comprometer-se com a tese da hierarquia constitucional dos tratados sobre direitos fundamentais ratificados antes da Constituição, o mínimo a conferir-lhe é o valor de poderoso reforço à interpretação do texto constitucional que sirva melhor à sua efetividade: não é de presumir, em Constituição tão ciosa da proteção dos direitos fundamentais quanto a nossa, a ruptura com as convenções internacionais que se inspiram na mesma preocupação."[122]
Por meio desse julgado já se podia antever uma leve disposição do Supremo em atribuir status constitucional às normas internacionais de outorga e proteção dos direitos humanos.
Essa tendência, no entanto, só se tornou realidade com a entrada em vigor da Emenda Constitucional n°. 45/2004, que entre outros, acrescentou o §3° ao art. 5° da Constituição Federal, in verbis:
"Art. 5° […]
§3° Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais."
Para Pedro Lenza[123]:
"Mesmo antes da EC n. 45/2004 entendíamos que os tratados internacionais veiculadores de direitos humanos fundamentais ingressavam no ordenamento interno, por forca do art. 5°, §2°, da CF/88 com o caráter de norma constitucional, enquanto outros tratados internacionais, de natureza diversa, com caráter de norma infraconstitucional."
Adverte, porém que, ressalvado seu entendimento contrário, grande parte da doutrina e dos tribunais, inclusive o STF, entendiam que os tratados internacionais, até mesmo sobre direitos humanos, ingressam no ordenamento interno com o caráter de norma infraconstitucional, guardando estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias editadas pelo Estado brasileiro, podendo, por conseguinte, ser revogados por norma posterior e ser questionada a sua constitucionalidade perante os tribunais, de forma concentrada ou difusa.[124]
No entanto, essa visão foi superada após a EC nº. 45/2004, fazendo surgir duas espécies do gênero “tratados e convenções internacionais”. A primeira referente aos tratados sobre direitos humanos, que se subdividiam em: tratados cujo quorum de aprovação e demais requisitos eram os mesmos exigidos para as emendas constitucionais, e por esse motivo a estas equivaliam; e os que não seguiram essa formalidade, então denominados de “supralegais” pelo STF. A segunda espécie, por sua vez, referia-se aos tratados que versavam a respeito de outras matérias que não fosse direitos humanos.[125]
Alerta ainda o autor que: “Diferentemente da regra da Constituição da Argentina, que é expressa em afirmar que, os tratados anteriores sobre direitos humanos passam a ter, com a Reforma de 1994, hierarquia constitucional, a regra brasileira foi omissa.”[126]
E sendo assim, só poderá ser atribuída natureza constitucional aos tratados internacionais, se respeitadas as formalidades previstas no §3° do art. 5° da CF/88, respeitados ainda, os limites do poder de reforma das emendas. Para poder ampliar os direitos e garantias individuais da Constituição.[127]
Entretanto, longe de dar fim à problemática da natureza normativa dos tratados internacionais, a EC nº. 45/2004 trouxe uma nova inquietação referente àqueles tratados sobre direitos humanos ratificados anteriormente a sua entrada em vigor, e que, portanto, não cumpriam os requisitos apostos no novo dispositivo constitucional.
Para ilustrar o posicionamento adotado pelo Supremo para tentar dar solução a esse problema, após a referida emenda constitucional, selecionou-se um importante julgado que foi o Recurso Extraordinário nº. 466343/SP[128], julgado em 03/12/2008 e publicado em 05/06/2009. Este tratava sobre a prisão civil do depositário infiel à luz do Pacto de São José da Costa Rica e da Constituição Federal Brasileira.
Em seu inovador voto, o Ministro Gilmar Mendes[129] enfatizou a falta de consenso na interpretação dispensada aos tratados internacionais relativos a direitos humanos em razão do disposto no § 2° do art. 5° da CF/88. Para isso, elencou as quatro principais correntes vigentes:
"a) a vertente que reconhece a natureza supraconstitucional dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos; (MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. O §2° do art. 5° da Constituição Federal. In: TORRES, Ricardo Logo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 25-26.)
b) o posicionamento que atribui caráter constitucional a esses diplomas internacionais; (CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos nos planos internacional e nacional. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, Brasília, n° 113-118, 1998. pp. 88-89; e PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996. p. 83.)
c) a tendência que reconhece o status de lei ordinária a esse tipo de documento internacional; (RE n° 80.004/SE, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, DJ 29.12.1977.)
d) por fim, a interpretação que atribui caráter supralegal aos tratados e convenções sobre direitos humanos. (Art. 25 da Constituição da Alemanha; art. 55 da Constituição da França; art. 28 da Constituição da Grécia.)"
O eminente Ministro sustentava esta última tese que atribuía a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos, sob o argumento de que essa espécie de tratado, embora infraconstitucional, teria um atributo especial em relação aos demais atos normativos internacionais.[130]
Isso significava que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos “[…] não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.”[131]
É importante ressalvar que o entendimento então abraçado referia-se aos tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil antes da entrada em vigor da EC n. 45/2204, e que não cumpriram com os requisitos exigidos pelo §3° do art. 5° da CF/88, para serem equivalentes às emendas constitucionais, a exemplo do Pacto de São José da Costa Rica e de tantos outros.
Lembra-se ainda que o termo “supralegal” foi extraído pela primeira vez no julgamento do RHC n° 79.785-RJ, em que se acenou para essa possibilidade, consoante o voto do Ministro Relator Sepúlveda Pertence. Tal julgado será também objeto deste estudo logo mais.
Concluindo seu voto, o Ministro apontou para a insubsistência da prisão civil do depositário infiel, considerando o que o Brasil ratificou sem ressalvas o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. E como já esclarecido anteriormente, “[…] o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna.”[132]
Portanto, “o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. […]”[133]
Esse julgado foi de enorme relevância jurídica, pois sinalizava mudanças na orientação interpretativa da Constituição, que condiziam com a complexidade social e com a contínua necessidade de adaptação das normas com os fatos do cotidiano.
Demonstrou-se, assim, uma nova tendência da Constituição Federal de 1988, que não representa mais um sistema fechado e único, estando aberta ao contexto internacional e supranacional na proteção efetiva dos direitos humanos.
Em resumo, o entendimento que prevaleceu foi o de que tratados internacionais de matérias comuns ratificados pelo Brasil teriam nível infraconstitucional; já aqueles que versassem sobre direitos humanos poderiam seguir dois caminhos: caso fossem ratificados após a EC nº. 45/2004 e cumprissem com os requisitos de aprovação e quorum especiais teriam status constitucional, uma vez que seriam equivalentes às emendas constitucionais; mas, caso fossem ratificados anteriormente a tal emenda, teriam caráter supralegal, isto é, estariam abaixo da Constituição, porém, acima das leis.
3.2 Julgados relevantes sobre a constitucionalidade do duplo grau de jurisdição.
Nesta etapa do trabalho cumpre-se analisar mais precisamente como tem se manifestado o STF sobre o princípio do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional. Para tanto, serão utilizados alguns julgados de relevo em que a Suprema Corte posicionou-se a respeito do assunto.
Um julgado de extrema importância em que se discutiu exaustivamente sobre o tema foi no Recurso Ordinário em Habeas Corpus de nº. 79785/RJ[134], julgado em 15/08/2000, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence.
Neste julgamento analisou-se o recurso de uma dentre vários condenados em processo da competência originária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em virtude de conexão por figurar um Juiz de Direito como corréu.[135]
Ela interpôs recurso inominado para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), pretendendo conferir-lhe poder de apelação, invocando, para tanto, a Constituição e a Convenção Americana de Direitos Humanos.[136]
Entretanto, teve seu recurso indeferido liminarmente no Tribunal de origem, o que gerou a interposição de habeas corpus ao STJ, visando à subida do recurso inominado. Lá, também teve seu remédio liminarmente indeferido, suscitando então a propositura de agravo regimental, igualmente improvido.[137]
Insistindo na pretensão, a parte finalmente ingressou com Recurso Ordinário em habeas corpus ao STF impugnando a decisão do STJ.[138]
Debruçando-se sobre o assunto, o Ministro Sepúlveda Pertence[139] em seu voto aduziu que:
"Não obstante as graves preocupações subjacentes à tese – não é fácil, no Brasil, alçar, de lege lata, o duplo grau a princípio e garantia constitucional, tantas são as previsões na própria Constituição de julgamentos de única instância, já na área cível, já, particularmente, na área penal.
A mim me parece que – para que tenha a eficácia instrumental, que lhe atribuem, na realização de eminentes valores – o "duplo grau" há de ser concebido, à moda clássica, com seus dois caracteres específicos: a possibilidade de um reexame integral da sentença de primeiro grau e que esse reexame seja confiado a órgão diverso do que a proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária."
Não obstante entenda que a Constituição de 1988 não tenha erigido o duplo grau de jurisdição em garantia fundamental, não nega tratar-se de um princípio geral do processo, pois decorre da previsão constitucional de tribunais de segundo grau, superiores e até mesmo o Supremo, que se constituem em órgãos recursais.[140]
Mas, seu caráter de universalidade é afastado tendo em vista as limitações impostas pelo texto constitucional ao prever hipóteses de competência originária dos tribunais para julgar como instância ordinária única, e também pelas restrições conferidas pela lei ordinária “[…] conforme a ponderação em cada caso, acerca do dilema permanente do processo entre a segurança e a presteza da jurisdição.”[141]
De outra sorte, o ilustre Ministro[142] ressalva que na esfera processual penal o duplo grau é inegavelmente uma garantia tendo em vista a previsão da Convenção Interamericana de Direitos Humanos em seu art. 8º, item 2, alínea h; e art. 25, itens 1 e 2, alínea b.[143]
"Art. 8º – Garantias judiciais
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior;
Art. 25 – Proteção judicial
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
2. Os Estados-Partes comprometem-se: […]
b.) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial;"
Isso se deve ao fato de ter a Constituição de 1988 dado especial destaque aos tratados internacionais ratificados pelo Brasil quando imprimiu em seu art. 5º, § 2º que:[144]
"Art. 5º. […]
§ 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."
A partir de então surge uma nova questão sob a perspectiva do juiz nacional. Discute-se se as convenções de que decorrem direitos e garantias fundamentais do indivíduo, aplicáveis independentemente da intermediação normativa dos Estados pactuantes, têm hierarquia constitucional e consequente força ab-rogatória da Constituição, de modo, por exemplo, a nela inserir o princípio questionado do duplo grau de jurisdição.[145]
Nesse ponto o relator se posiciona firmemente contra qualquer prevalência das convenções internacionais sobre a Constituição.[146]
E o fundamento para tanto é que a hierarquia constitucional está subentendida em seus próprios preceitos, quando submete a aprovação e a promulgação das convenções ao processo legislativo, que por sua vez é menos rigoroso que o das emendas constitucionais, além de estar sujeito ao controle da constitucionalidade (CF, art. 102, III, b).[147]
Cumpre esclarecer que tal posição assume as feições jurídicas da época em que esta inserida, ou seja, antes do advento da EC n°. 45/2004, que veio, dentre outras coisas, remodelar a estrutura do Poder Judiciário e trouxe consigo nova disciplina aos tratados internacionais sobre direitos humanos. Assunto a ser abordado logo mais.
De forma inovadora, o Min. Sepúlveda Pertence[148] afirma que:
"Ainda sem certezas suficientemente amadurecidas, tendo assim – aproximando-me, creio, da linha desenvolvida no Brasil por Cançado Trindade (e.q., Memorial cit., ibidem, p. 43) e pela ilustrada Flávia Piovesan (A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratado Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, em E. Boucault e N. Araújo (órgão), Os Direitos Humanos e o Direito Internos) – a aceitar a outorga de força supra-legal às convenções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas – até, se necessário, contra a lei ordinária – sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes."
Enorme importância ganha esse trecho destacado do voto do eminente relator, já que foi introduzida pela primeira vez a ideia de supralegalidade das convenções de direitos humanos, tese esta até hoje abraçada pelo Supremo.
Contudo, alerta ainda que:[149]
"No caso presente, entretanto, o aprofundamento dessas reflexões seria ocioso.
É que, em relação ao ordenamento pátrio, para dar a eficácia pretendida à cláusula do Pacto de São José, de garantia do duplo grau de jurisdição, não bastaria sequer lhe conceder o poder de aditar a Constituição, acrescentando-lhe limitação oponível à lei: seria necessário emprestar à norma convencional força ab-rogatória de normas da Constituição mesma, quando não dinamitadoras do seu sistema."
Para que pudesse ser atribuída qualidade de garantia constitucional ao duplo grau deveria haver recurso de devolução ampla à sentença da instância originária, o que de fato não há. Existindo apenas recursos extraordinários que não se prestam a essa finalidade.[150]
Finalizando seu voto nesse caso penal em que se discutia a respeito do duplo grau de jurisdição em face da competência originária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o Ministro Relator Sepúlveda Pertence[151] ao negar o acesso da parte ao reexame, reafirmou que:
"Toda vez que a Constituição prescreveu para determinada causa a competência originária de um Tribunal, de duas uma: ou também previu recurso ordinário de sua decisão (CF, arts. 102, II, a; 105, II, a e b; 121, § 4º, III, IV e V) ou, não o tendo estabelecido, é que o proibiu. […]
À falta de órgãos jurisdicionais ad qua, no sistema constitucional, indispensáveis a viabilizar a aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição aos processos de competência originária dos Tribunais, segue-se a incompatibilidade com a Constituição da aplicação no caso da norma internacional de outorga da garantia invocada."
Observa-se então que, no presente julgado, ainda era firme a convicção do STF de negar qualquer atributo de garantia constitucional ao princípio do duplo grau de jurisdição. Uma vez que a própria Constituição impunha limites ao direito de amplo reexame das decisões, quando previa, por exemplo, a competência originária dos tribunais.
Jaques de Camargo Penteado[152] manifestando sua opinião quanto esse julgado assevera que:
"A crítica que se pode fazer ao resultado desse julgamento é que não se adotou uma solução mais garantista. Não importa a omissão do primitivo texto constitucional quanto ao cabimento de recurso ordinário na hipótese de competencia originaria do Tribunal de Justiça. A interpretação conforme à garantia do individuo perante o Estado é aquela que, diante da integração da Carta Magna por um diploma internacional protetivo dos direitos humanos que, expressamente, contempla o direito ao duplo grau de jurisdição para o argüido, deve ser assegurado a este um amplo exame da causa penal."
Prosseguindo na análise dos julgados, vale mencionar que o RHC n. 79785/RJ, não foi o primeiro, após a Constituição de 1988, a se manifestar a respeito do duplo grau a nível constitucional, mas com certeza foi o que mais profundamente discorreu sobre o assunto.
A título de exemplo, colaciona-se a ementa do Agravo Regimental em Agravo de Instrumento de n. 209954/SP[153], de 15 de setembro de 1998, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que o STF também se posicionou contrário a aceitação do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional:
"DEVIDO PROCESSO LEGAL – NEGATIVA DE SEGUIMENTO A RECURSO. A negativa de seguimento a recurso, no âmbito do STF, considerada a circunstância de as razões expedidas contrariarem precedente da Corte, longe fica de implicar transgressão ao devido processo legal. JURISDIÇÃO – DUPLO GRAU – INEXIGIBILIDADE CONSTITUCIONAL. Diante do disposto no inciso III do artigo 102 da Carta Política da República, no que revela cabível o extraordinário contra decisão de última ou única instância, o duplo grau de jurisdição, no âmbito da recorribilidade ordinária, não consubstancia garantia constitucional. (grifo nosso)"
O próximo julgado a ser abordado, trata do Habeas Corpus nº. 88420/PR[154], de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 16/04/2007, em que se buscou obter o recebimento de um recurso de apelação pela defesa sem a condicionante de recolhimento à prisão, garantindo assim o pleno acesso ao duplo grau de jurisdição.
"HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DE APELAÇÃO. PROCESSAMENTO. POSSIBILIDADE. DESNECESSIDADE DE RECOLHIMENTO DO RÉU À PRISÃO. DECRETO DE CUSTÓDIA CAUTELAR NÃO PREJUDICADO. PRISÃO PREVENTIVA SUBSISTENTE ENQUANTO PERDURAREM OS MOTIVOS QUE A MOTIVARAM. ORDEM CONCEDIDA I – Independe do recolhimento à prisão o regular processamento de recurso de apelação do condenado. II – O decreto de prisão preventiva, porém, pode subsistir enquanto perdurarem os motivos que justificaram a sua decretação. III – A garantia do devido processo legal engloba o direito ao duplo grau de jurisdição, sobrepondo-se à exigência prevista no art. 594 do CPP. IV – O acesso à instância recursal superior consubstancia direito que se encontra incorporado ao sistema pátrio de direitos e garantias fundamentais. V – Ainda que não se empreste dignidade constitucional ao duplo grau de jurisdição, trata-se de garantia prevista na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, cuja ratificação pelo Brasil deu-se em 1992, data posterior à promulgação Código de Processo Penal. VI – A incorporação posterior ao ordenamento brasileiro de regra prevista em tratado internacional tem o condão de modificar a legislação ordinária que lhe é anterior. VII – Ordem concedida.[155] (grifo nosso)"
Nesse julgado, observa-se que, embora o Supremo ainda “não empreste dignidade constitucional ao duplo grau de jurisdição”, já acena para uma tendência de mudança de posicionamento, mais garantista, o que pode ser percebido por meio do voto do Ministro Relator[156], em que afirma:
"Bem sopesada a questão, tenho para mim que o direito ao duplo grau de jurisdição tem estatura constitucional, ainda que a Carta Magna a ele não faça menção direta, como o fez a Constituição de 1824. Isso porque entendo que o direito ao due process of law, abrigado no art. 5º, LIV, da Lei Maior, contempla a possibilidade de revisão, por tribunal superior, de sentença proferida por juízo monocrático."
Aponta para sua posição dois motivos principais. O primeiro, porque tal direito integra o sistema pátrio de direitos e garantias fundamentais; e o segundo, porque a sua incorporação ao ordenamento jurídico nacional foi posterior à edição do Código de Processo Penal, uma vez que a ratificação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos pelo Brasil, conhecida como Pacto de San José, deu-se em 1992. Daí, infere-se que eventual disposição em contrário da lei processual encontra-se senão revogada, ao menos substancialmente mitigada.[157]
No entanto, vale mencionar a seguinte ressalva feita pelo Ministro Sepúlveda Pertence[158] ao voto do relator:
"Também acompanho o Relator. Conforme, salvo engano, ficou dito no voto de Sua Excelência, sou dos que não me comprometo com a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, particularmente, daqueles celebrados antes da própria Constituição. Por outro lado, no RHC 79785 – Caso Jorgina – proferi longo voto, no qual procurei demonstrar, com honra de ter sido acompanhado pela maioria do Plenário, que o duplo grau de jurisdição não pode ser erigido em garantia constitucional no ordenamento brasileiro, ao menos naquelas hipóteses em que a própria Constituição o desmente. O caso mais patente é a competência penal originária desta Casa. Porém, reconheço, por força da Convenção Interamericana – O Pacto de São José da Costa Rica – naquelas hipóteses em que a legislação admite o recurso, não pode ele ser elidido mediante restrição que nada tem a ver com o direito ao recurso, que é a prisão ou não do réu condenado em primeiro grau."
Dando sequência à análise dos julgados, selecionou-se o Agravo de Instrumento nº. 601832/SP[159], julgado em 17/03/2009, tendo por Relator o Ministro Joaquim Barbosa e por tema o duplo grau de jurisdição em matéria de competência originária dos Tribunais.
Este agravo, que foi improvido, pretendia o exame do recurso extraordinário no qual se buscava viabilizar a interposição de recurso inominado, com efeito de apelação, de decisão condenatória proferida por Tribunal Regional Federal, em sede de competência criminal originária.
Em seu voto, o Ministro Relator lembra que, quando se apreciou a matéria no RHC n. 79.785, que era anterior á promulgação da EC n. 45/2204, o Tribunal entendia que as Convenções Internacionais possuíam tão-somente força de lei ordinária. E, após essa Emenda, passou-se a atribuir às convenções internacionais sobre direitos humanos hierarquia constitucional.[160]
Portanto, exalta que a Corte deve evoluir para reconhecer a hierarquia constitucional da Convenção.[161]
Ressalva, contudo, que não pretendeu a referida emenda criar “[…] automaticamente nova espécie de recurso ordinário em matéria penal das decisões proferidas no âmbito da competência originária dos Tribunais, como quer fazer crer o agravante.”[162]
Ele participa da ideia de que a Convenção torna o princípio do duplo grau de jurisdição em uma garantia de recurso para Tribunal superior, o que o leva a crer que haveria uma aparente antinomia de normas, já que não há previsão de recurso para a hipótese então discutida.[163]
Por outro lado, lembra que tal garantia não é absoluta e encontra limite na própria Constituição. Exemplo disso seriam as decisões proferidas pelo Tribunal do Júri, que somente são passíveis de apelação uma única vez, quando contrariam a prova dos autos, ocasião em que se determina a realização de um novo julgamento. “Nesta hipótese, […] a garantia do duplo grau de jurisdição sofre um estreitamento diante da soberania do Tribunal do Júri, assegurada no próprio texto constitucional.”[164]
Outro exemplo limitador indicado pelo Ministro seria a previsão dos recursos extraordinários (art. 102, III), pois ao prever uma hipótese recursal para as causas decididas em única ou última instância, faz um temperamento ao princípio do duplo grau.[165]
Conclui então que: “As garantias inseridas na Carta Constitucional sofrem, pois, as limitações impostas pelo próprio texto, exatamente porque não podem ser consideradas de maneira absoluta.” [166]
E lembra ainda que, no presente caso, o agravante foi beneficiado com o rito próprio das ações originárias, o qual prevê dentre outros a defesa preliminar antes do recebimento da denúncia. Além disso, foi julgado por quatorze desembargadores federais.[167]
Para o ilustre Ministro[168]:
"A ausência de previsão expressa de recurso ordinário das decisões proferidas no exercício de jurisdição penal originária dos Tribunais deve ser entendida, assim, como um silêncio eloqüente do legislador constituinte e não como algo a ser completado por via interpretação jurisprudencial."
O ensinamento que se pode extrair desse julgado é o de que o princípio do duplo grau de jurisdição representaria uma garantia constitucional de recurso, por força da Convenção Interamericana de Direitos Humanos devido à nova interpretação trazida pela EC nº 45/2004. No entanto, tal garantia está longe de ser absoluta, em virtude das inúmeras exceções trazidas pela Constituição.
Para finalizar o estudo dos julgados, selecionou-se a Ação Penal nº. 470/MG[169], conhecida por “Mensalão”. E, embora ela não tenha por objeto principal a discussão do tema deste trabalho, que apenas foi tratado em sede de Questão de Ordem, sua análise se faz importante pela repercussão, importância e atualidade da decisão.
O tema “duplo grau de jurisdição” surgiu em uma Questão de Ordem levantada pelo advogado de defesa Márcio Thomaz Bastos, e teve por causa de pedir a incompetência do Supremo para julgar os réus que não tivessem prerrogativa de foro, e que, pela conexão prevista pela lei infraconstitucional, não tiveram assegurados seus direitos. Além disso, aduz ter sido infringido o Pacto de São José da Costa Rica que é lei supralegal. Esta tese, no entanto, não foi acolhida.
Enquanto o relator, Ministro Joaquim Barbosa, votou pelo indeferimento da questão de ordem sustentando a Súmula 704 do STF[170], o revisor, Ministro Ricardo Lewandowski, por sua vez, votou pelo deferimento. Este último voto, embora vencido, será então analisado pela riqueza de seu conteúdo no que diz respeito ao assunto ora trabalhado.
O Ministro acredita que a questão referente à competência do STF deve ser reavaliada no que se refere à matéria penal em processar e julgar originariamente outras pessoas que não possuem a prerrogativa de foro indicada pela Constituição Federal.[171]
Para ele, o duplo grau de jurisdição encontra amparo na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), internalizado no País pelo Decreto 678/1992, e que se configura em importante instrumento garantidor dos direitos fundamentais da pessoa.[172]
O Ministro Ricardo Lewandowski[173] aduz que:
"Ainda que não se adote a tese segundo a qual todos os direitos fundamentais previstos em tratados internacionais têm hierarquia constitucional, eis que tal depende da forma como são internalizados, lembro que esta Corte posicionou-se no sentido de eles possuem, no mínimo, uma natureza supralegal, segundo definição do Plenário levada a efeito no julgamento dos Recursos Extraordinários 394.703/RS, Rel. Min. Ayres Britto, e 466.343/SP rel. Min Cezar Peluso."
Lembrou que nesses julgados entendeu-se insubsistente a prisão civil do depositário infiel, prevista na legislação ordinária, em face da adesão do Brasil, sem qualquer reserva, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos.[174]
Afirma ainda o Ministro[175] que:
"Desse modo, não vejo como seja possível admitir-se que a interpretação de normas infraconstitucionais, notadamente daquelas que integram Código de Processo Penal – instrumento cuja finalidade última é proteger o jus libertatis do acusado diante do jus puniendi estatal -, derrogue a competência constitucional estrita fixada pela Carta Magna aos diversos órgãos judicantes e, mais, permita malferir o princípio do duplo grau de jurisdição, nela abrigado e mais uma vez acolhido, de livre e espontânea vontade, pelo Brasil, após a promulgação daquela, quando aderiu sem reservas ao Pacto de San José da Costa Rica."
Ele aponta que a interpretação das leis deve ser feita em conformidade com a Constituição, não se admitindo que seja extraído o sentido desta a partir do conteúdo das leis.[176]
Nesse caso o afastamento do duplo grau só poderia se aplicar em caráter excepcional, quando a limitação emanasse da própria Constituição, como é o caso dos ocupantes de cargos públicos sujeitos à competência penal originária da Suprema Corte cujo julgamento é único e irrecorrível.[177]
Para ele a regra é que o julgamento se dê em primeira instância, sendo este o juiz natural. Isso porque o magistrado estando mais próximo ao acusado, na própria comunidade, “[…] ao interrogá-lo, olha-o nos olhos, procura extrair do réu a verdade, assim como o faz com as testemunhas arroladas no processo, quando mais não seja para ficar em paz com a própria consciência quando proferir um veredito condenatório ou absolutório.”[178]
Eventual erro de avaliação, para a tranquilidade do julgador, poderá ser sempre corrigido por uma segunda instância, que reverá todos os aspectos formais e substantivos do processo, pois a apelação, como se sabe, devolve ao tribunal recursal a apreciação integral da matéria de fato e de direito versadas nos autos.[179]
Esse salutar exame e reexame dos autos ao longo de distintas instâncias jurisdicionais estaria sendo indevidamente sonegado aos réus deste processo, quer dizer, daqueles que não têm foro especial por prerrogativa de função. Eles seriam julgados em única e última instância pelo Supremo, que embora seja composto por pessoas de notável saber jurídico e ilibada reputação, são seres humanos como outros quaisquer, e, portanto, passíveis de erro.[180]
Em conclusão, o ilustre Ministro alerta para o fato de que a persistência do STF em julgar em única e última instância aqueles réus sem prerrogativa de foro, pode acarretar uma eventual reclamação perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por violação ao art. 8º, 2, h, do Pacto de São José da Costa Rica, que lhes garante, sem qualquer restrição, o direito de recorrer.[181]
Em rebate a essa proposição do Ministro revisor Ricardo Lewandowski, o Ministro Celso de Mello[182] entende que:
"A própria jurisprudência internacional, a respeito do princípio do duplo grau de jurisdição, tem reconhecido, como ressaltam, em seus preciosos comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, os professores Luiz Flávio Gomes e Valerio de Oliveira Mazzuoli, em extensa análise do art. 8º., item 3º., alínea ‘h’, do Pacto de São José da Costa Rica, que consagra o postulado do duplo grau, que há duas exceções, sendo uma delas a que envolve os processos instaurados perante o ‘Tribunal máximo de cada país’, vale dizer, perante a Corte judiciária investida do mais elevado grau de jurisdição, como sucede com o Supremo Tribunal Federal.
A mim me parece, desse modo, Senhor Presidente, com toda vênia, que não há que se cogitar de transgressão às clásulas quer da Convenção Americana de Direitos Humanos quer do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Demais disso, a garantia da proteção judicial efetiva acha-se assegurada, nos processos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal, não só pela observância da cláusula do “due process of law” (com todos os consectários que dela decorrem), mas também, pela possibilidade que o art. 333, inciso I, do RISTF enseja aos réus, sempre que o juízo de condenação penal apresentar-se majoritário."
A esse respeito o doutrinador Valério Mazzuoli afirma que a exceção ora mencionada é prevista apenas no sistema regional europeu de direitos humanos. Já na Convenção Americana, da qual o Brasil é signatário, a regra é absoluta.[183]
Ressalta ainda a contradição do Supremo, uma vez que a Corte admitiu status supralegal aos tratados internacionais sobre direitos humanos.[184]
Mazzuoli acredita ser possível a anulação do julgamento do “Mensalão” pela Corte Interamericana, a exemplo do caso Barreto Leiva contra Venezuela e por ter o STF permitido que a regra de conexão prevista no Código de Processo Penal ficasse acima da Convenção.[185]
A Corte Interamericana, no caso Barreto Leiva, declarou que a Venezuela violou o seu direito reconhecido no citado dispositivo internacional, posto que a condenação proveio de um tribunal que conheceu o caso em única instância e o sentenciado não dispôs, em consequência da conexão, da possibilidade de impugnar a sentença condenatória. A coincidência desse caso com a situação dos réus do mensalão é total, visto que todos eles perderam o duplo grau de jurisdição em razão da conexão.[186]
Segundo Valério Mazzuoli[187]:
"Se eventualmente, a Comissão Interamericana aceitar a denúncia dos réus do “Mensalão” e submeter à Corte Interamericana a competente ação de responsabilidade internacional contra o Estado brasileiro, poderá a Corte decidir pela anulação do julgamento da AP 470, determinando a baixa do processo ao juiz de piso para que novo julgamento seja levado a efeito, valendo a decisão para todos os réus do processo ou, ao menos, para os que não detinham, à época da decisão do STF, o benefício do foro privilegiado."
Nota-se então que uma discussão aparentemente simples a respeito da constitucionalidade do Pacto de São José da Costa Rica, e consequentemente do princípio do duplo grau de jurisdição, poderia resultar em um sério gravame a sociedade brasileira com a possível anulação do julgamento do “Mensalão”.
Nessa questão de ordem o que se constatou do voto vencido do Ministro revisor Ricardo Lewandoswki foi que se privilegiou a regra da conexão, constante do Código de Processo Penal, em detrimento da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que teria caráter supralegal, conforme entendimento já pacificado pelo Supremo, o que denota certa contradição desta Corte.
Portanto, constata-se que, não obstante tantos julgados a respeito do assunto, e ainda a evolução da jurisprudência do Supremo no sentido de conferir cada vez mais ao princípio do duplo grau de jurisdição status de garantia constitucional, ainda não há posição definitiva neste sentido, prevalecendo a tese da supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos e, por conseguinte, do duplo grau neles consagrado.
Verificou-se no presente trabalho que o princípio do duplo grau de jurisdição esteve sempre atrelado ao surgimento do recurso de apelação, tendo sua origem no Direito Romano. E ainda, diferente da finalidade protecionista que se vislumbra hoje, tal instituto representou ao longo da história concentração de poder, controle político e afirmação do soberano ante os súditos.
No Brasil, a exemplo do Direito Português, manteve-se inalterado o recurso de apelação em sua essência, de reexame da decisão para uma instância superior. Mas, somente após a emancipação do povo brasileiro, e a elaboração da primeira Constituição Brasileira, denominada Constituição do Império, em 1824, é que o duplo grau de jurisdição teve pela primeira vez previsão expressa.
Em relação aos fundamentos desse princípio, constatou-se que estes representam a sua razão de ser, sendo o principal deles, a fonte da qual emana todos os outros, a insatisfação humana com consequente desejo pela modificação da decisão.
Quanto aos conceitos do duplo grau aqui estudados, observou-se que eles guardam relação e similaridades entre si no que diz respeito a sua finalidade de reexame das decisões, divergindo, basicamente, quanto à necessidade de ser ou não o órgão revisor de hierarquia superior ao órgão ad quo.
Verificou-se que, não obstante, o princípio do duplo grau de jurisdição seja essencial para tutela jurisdicional, ele precisa ser aplicado de forma a manter o equilíbrio entre a justiça e a segurança jurídica, sob pena de ser esvaziar em decisões, que longe de serem rápidas e justas, sejam insatisfatórias tanto ao vencido, quanto ao vencedor.
Após, viu-se que, apesar de ser o duplo grau de jurisdição um instituto de Direito processual, sua verdadeira dimensão de aplicação só poderia ser auferida diante de um estudo à luz da Constituição, pois esta permeia todos os ramos do Direito.
Em introdução ao ponto central do estudo, aduziu-se que as garantias e os direitos fundamentais decorrem do próprio Estado de Direito, estando inseridos em um contexto histórico e que seu desenvolvimento acompanha a evolução da sociedade. Observou-se ainda que tais garantias existem para proteger os direitos fundamentais, não podendo ser com estes confundidos.
Constatou-se também que, tanto as regras quanto os princípios podem se converter em garantias constitucionais, desde que lhes sejam atribuídos caráter especial de proteção a determinados direitos considerados fundamentais ao ser humano.
Finalmente, no ponto chave do trabalho, admitiu-se que um dos argumentos mais utilizados por aqueles que defendem a ideia de que o duplo grau de jurisdição representa uma garantia constitucional é aquele que o compreende como uma manifestação do devido processo legal.
Anotou-se que os doutrinadores que não participam dessa ideia partem do pressuposto de que o devido processo legal, como garantia constitucional, jamais poderia sofrer limitação infraconstitucional, mas, o duplo grau, de outra sorte, poderia sofrê-las sem qualquer prejuízo ao desenvolvimento regular do processo e sem qualquer afronta à Constituição.
No entanto, tal pensamento foi derrubado sob o argumento de que as limitações legais ao princípio do duplo grau de jurisdição não tem o condão de retirar-lhe a condição de garantia constitucional, pois elas visam atender à exigência da certeza jurídica e estão em consonância com a aplicação adequada do duplo grau no âmbito social.
Examinou-se ainda a respeito das teorias que indicam ser o duplo grau decorrente da ampla defesa ou derivado do direito de ação, no entanto, conclui-se que, respeitadas as devidas particularidades, ambas podem ser entendidas, em última análise, como parte integrante do devido processo legal.
Ato contínuo, inferiu-se que a teoria do princípio constitucional implícito tem amparo na previsão constitucional de recursos aos tribunais e pela organização judiciária em órgãos de primeira e segunda instância, e tribunais superiores, ainda que não traga expressamente o princípio do duplo grau.
Depois de percorrer diversas confrontações doutrinárias, aduziu-se que, em geral, se afasta o comando garantista do duplo grau pela não manifestação expressa do princípio na Constituição Federal, e por ser ele passível de restrições de cunho infraconstitucional.
Mas, demonstrou-se que não há mais lugar para acepções que preveem princípios absolutos e ilimitados. Isso porque uma de suas características é a relatividade. E, pensar de forma diferente implicaria em reduzir de posição todos os demais princípios constitucionais, pois todos eles, uma hora ou outra, são passíveis de sofrer restrições para adequar o ordenamento jurídico à evolução da sociedade.
Ressaltou-se que a adequação às necessidades de efetividade e celeridade processual conferem, cada vez mais, novos contornos ao princípio do duplo grau de jurisdição. E, tanto as restrições constitucionais, como os infraconstitucionais, devem ser vistos com bons olhos, pois impõem limites à aplicação desmedida dos recursos.
Nada disso, no entanto, pode afastar as características do duplo grau, que por ser uma garantia constitucional cumpre seu papel de garantidor dos direitos fundamentais e limitador dos poderes arbitrários do Estado.
No terceiro e último capítulo desse estudo, abriu-se um parêntese para tratar dos tratados internacionais de direitos humanos e como foram acolhidos no ordenamento jurídico pátrio, uma vez que tal assunto interfere diretamente na formação da convicção do Supremo a respeito da natureza do duplo grau de jurisdição.
Para esse propósito selecionou-se o julgamento da ADI nº. 1675/DF. Por meio desse julgado já se podia antever uma leve disposição do Supremo em atribuir status constitucional às normas internacionais de outorga e proteção dos direitos humanos.
Essa tendência, no entanto, só se tornou realidade com a entrada em vigor da EC n°. 45/2004, que entre outros, acrescentou o §3° ao art. 5° da CF/88. Mas, longe de dar fim à problemática da natureza normativa dos tratados internacionais, trouxe uma nova inquietação referente àqueles tratados sobre direitos humanos ratificados anteriormente a sua entrada em vigor, e que, portanto, não cumpriam os requisitos apostos no novo dispositivo constitucional.
Na tentativa de dar uma solução a esse problema o STF manifestou-se no RE nº. 466343/SP, um importante julgado que tratava sobre a prisão civil do depositário infiel à luz do Pacto de São José da Costa Rica e da Constituição Federal Brasileira. Este já sinalizava mudanças na orientação interpretativa da Constituição, que condiziam com a complexidade social e com a contínua necessidade de adaptação das normas com os fatos do cotidiano.
Demonstrou-se, assim, uma nova tendência da Constituição Federal de 1988, que não representa mais um sistema fechado e único, estando aberta ao contexto internacional e supranacional na proteção efetiva dos direitos humanos.
Em síntese, o entendimento que prevaleceu foi o de que tratados internacionais de matérias comuns ratificados pelo Brasil teriam nível infraconstitucional; já aqueles que versassem sobre direitos humanos poderiam seguir dois caminhos: caso fossem ratificados após a EC nº. 45/2004 e cumprissem com os requisitos de aprovação e quorum especiais teriam status constitucional, uma vez que seriam equivalentes às emendas constitucionais; mas, caso fossem ratificados anteriormente a tal emenda, teriam caráter supralegal, isto é, estariam abaixo da Constituição, porém, acima das leis.
Na etapa final do trabalho cuidou-se de analisar mais precisamente o posicionamento do STF sobre o princípio do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional. Sendo utilizados alguns importantes julgados exemplificativos.
No julgamento do RHC nº. 79785/RJ, ainda era firme a convicção do STF de negar qualquer atribuição de garantia constitucional ao princípio do duplo grau de jurisdição. Uma vez que a própria Constituição impunha limites ao direito de amplo reexame das decisões, quando previa, por exemplo, a competência originaria dos tribunais.
Já, no HC nº. 88420/PR, observou-se que, embora o Supremo ainda não empreste dignidade constitucional ao duplo grau de jurisdição, já acena para uma tendência de mudança de posicionamento, mais garantista.
No AI nº. 601832/SP, o ensinamento que se pode extrair é o de que o referido princípio representaria uma garantia constitucional de recurso, por força da Convenção Interamericana de Direitos Humanos devido à nova interpretação trazida pela EC nº 45/2004. Com a ressalva de que tal garantia não é absoluta.
Por fim, no estudo da Questão de Ordem da AP n°. 470/MG, constatou-se uma certa contradição da Corte, ao privilegiar a regra da conexão, constante do Código de Processo Penal, em detrimento da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que teria caráter supralegal, conforme entendimento já pacificado.
Portanto, conclui-se que, não obstante tantos julgados a respeito do assunto, e ainda a evolução da jurisprudência do Supremo no sentido de conferir cada vez mais status de garantia constitucional ao princípio do duplo grau de jurisdição, ainda não há posição definitiva neste sentido, prevalecendo a tese da supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos e, por conseguinte, do duplo grau neles consagrado.
Informações Sobre os Autores
Kelly Farias de Moraes
Advogada. Mestranda em Direito Ambiental na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Pós-graduada em Direito Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Pós-graduada em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Norte (UNINORTE). Atualmente advogada concursada da Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (SEMSA)
Kalyne Farias de Moraes
graduada no Centro Universitário do Norte UNINORTE pós-graduada em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus servidora pública do Tribunal de Contas do Estado do Amazonas