Resumo: A consagração histórica dos direitos fundamentais, desde seu reconhecimento inicial com a contraposição ao absolutismo monárquico, fez com que os textos constitucionais albergassem comandos normativos para seu reconhecimento e efetividade. O movimento liberal burguês que culminou, em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento que marca o início do movimento constitucionalista, consagrou os direitos políticos como fundamentais e, a partir de então, a cada nova etapa evolutiva da sociedade, os direitos foram incorporados aos textos constitucionais e erigidos à fundamentalidade. A análise histórica das Constituições brasileiras permite verificar, em cada momento evolutivo do Estado, a preocupação em proteger os direitos do homem. A Constituição de 1988, neste cenário, representa a retomada dos ideais democráticos, e a concretização dos direitos fundamentais por ela consagrados a consolidação do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Democracia. Direitos fundamentais. Efetividade.
Sumário: Introdução; 1. Os direitos fundamentais nas Constituições Brasileiras; 2. A concretização dos direitos fundamentais; 3. A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e o Mandado de Injunção (MI) para efetividade dos direitos fundamentais; Conclusões; Referências bibliográficas.
Introdução
A contraposição da burguesia ao absolutismo monárquico que culminou, em 1789, com a Revolução Francesa, inspirada pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, consagrou, no documento histórico, que toda sociedade em que não estejam assegurados os direitos fundamentais e a separação de poderes não possui Constituição[1]. Naquele momento histórico, o paradigma estatal estava condensado na necessidade de se romper com o Ancien Régime e, portanto, a liberdade passava a constituir o novo norte de consecução do Estado.
Superado o momento de afastamento do Estado das relações privadas, a sociedade percebeu que a lei, geral e abstrata, não era capaz de garantir a liberdade e assegurar a igualdade, visto que esta se traduzia nos ideais burgueses de igualdade classista. Diante desta percepção e da ausência do Estado, a sociedade busca, então, a intervenção estatal como forma de limitar os abusos advindos com o capitalismo. Inicia-se, pois, o movimento social que passa a exigir do Estado a atuação positiva para a consecução dos direitos fundamentais, devendo propiciar condições de vida à sociedade, circunstância que consagra o Estado Social.
A influência dos movimentos na Europa pode ser percebida nos textos constitucionais do Brasil que refletem, em grande medida, os ideais sociais do Velho Continente.
Após duas décadas de regime de exceção e da limitação aos direitos individuais, a atual Constituição, novamente inspirada pelos ideais democráticos, foi pródiga na consagração dos direitos fundamentais, erigindo a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, circunstâncias que se sobrelevam para a efetiva constitucionalização do direito e a consolidação da democracia.
1. Os direitos fundamentais nas Constituições Brasileiras
O reconhecimento de que os direitos do homem são fundamentais conduziu a necessidade de salvaguardá-los de supressão pelo legislador ordinário. A fim de não se deixar ao legislador comum a possibilidade de mutação dos direitos consagrados com o passar histórico, a positivação dos direitos naturais e inalienáveis do indivíduo mereceu a dimensão de “[…] Fundamental Rights colocados no lugar cimeiro das fontes de direito: as normas constitucionais”, sem o que os “[…] direitos do homem são esperanças, aspirações, idéias, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política”.[2]
Adverte, porém, o ilustre constitucionalista português que:
“[…] a positivação constitucional não significa que os direitos fundamentais deixem de ser elementos constitutivos da legitimidade constitucional, e, por conseguinte, elementos legitimativo-fundamentatantes da própria ordem jurídico-constitucional positiva, nem que a simples positivação jurídico-constitucional os torne, só por si, ‘realidades jurídicas efectivas’.”[3]
A constitucionalização, desta forma, garante aos direitos fundamentais sua indisponibilidade ao legislador ordinário e ao Poder Constituinte Derivado, eis que consagrados como estrutura fundamental da ordem jurídico-constitucional e dotados de imutabilidade em sede de normas constitucionais derivadas.
Além de garantir a imutabilidade dos direitos erigidos à Constituição, a constitucionalização tem ainda, como conseqüência, o controle judicial de constitucionalidade de atos reguladores destes direitos, vinculando os poderes estatais, devendo, desta forma, os direitos fundamentais serem “[…] compreendidos, interpretados e aplicados como normas jurídicas vinculativas e não como trechos ostentatórios ao jeito das grandes ‘declarações de direitos’”.[4]
A normatização dos direitos fundamentais na Constituição traz consigo a consagração da idéia de fundamentalidade formal dos direitos, e tem como conseqüência que (i) as normas que consagram os direitos fundamentais estão no ápice da ordem jurídica e sua alteração deve passar pelo crivo de um processo legislativo diferenciado, constituindo, em muitos casos, (ii) óbice à edição de normas, ainda que constitucionais, tendentes à modificação ou extinção destes direitos, assim como, por se tratarem de normas que veiculam direitos fundamentais (iii) têm aplicabilidade imediata.
Sob a influência direta do movimento constitucionalista que se expandia na Europa no final do século XVIII, as Constituições brasileiras sempre integraram em seus textos o reconhecimento dos direitos fundamentais consagrando a cada novo Texto, as dimensões fundamentais dos direitos do homem.
Desta forma é que a Constituição de 1824 já consagrara os direitos fundamentais de primeira dimensão, inserindo-os em título específico (Título 8º) sob a nomenclatura de Garantia dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros. O Art. 179 da Constituição outorgada ao final do primeiro quarto do século XIX reconheceu os direitos à legalidade, à irretroatividade da lei, à igualdade, à liberdade de pensamento e expressão, à inviolabilidade de domicílio, à propriedade, entre outros direitos individuais inerentes à primeira dimensão dos direitos fundamentais.
José Afonso da Silva afirma ser esta a “[…] primeira Constituição, no mundo, a subjetivar e positivar os direitos do homem, dando-lhes concreção jurídica efetiva […], anterior, portanto, à da Bélgica, de 1831, a que se tem dado tal primazia”.[5]
Primou, ainda, a Constituição de 1824, em reconhecer já naquele momento histórico, direitos sociais que somente viriam a ser constitucionalizados em outros países no final do século XIX, tal como o direito à educação primária gratuita (Art.179, inc. XXXII) e o direito aos socorros públicos (Art.179, inc. XXXI).
Mesmo com o reconhecimento de tais direitos e os progressos normativos no campo dos direitos fundamentais, a Constituição de 1824 implementou uma ditadura constitucional ao consagrar o Poder Moderador, desvirtuando o pensamento central de seu autor que “[…] era fazê-lo uma espécie de poder judiciário dos demais poderes, investido claramente nessa tarefa corretiva para pôr cobro às exorbitâncias e aos abusos suscetíveis de abalar a unidade política do sistema”.[6]
O Poder Moderador consistia, em verdade, na revisitação do absolutismo com a concentração dos poderes do Estado na pessoa do Imperador de forma que
“[…] o período constitucional do Império é portanto aquela quadra de nossa história em que o poder mais se apartou talvez da Constituição formal, e em que essa logrou o mais baixo grau de eficácia e presença na consciência de quantos, dirigindo a vida pública, guiavam o país para a solução das questões nacionais da época”.[7]
Com isso, muito embora tenha primado em consagrar os direitos fundamentais de primeira e segunda dimensão, a Carta Constitucional do Império não foi capaz de garantir o exercício desses direitos, ante a baixa densidade normativa da Constituição.
Quase sete décadas mais tarde, após a proclamação da República (1889), é promulgada, em 24 de fevereiro de 1891, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil.
Diferentemente da Constituição Imperial, outorgada, a Constituição de 1889, já em seu preâmbulo, consagra os novos valores sociais e a finalidade da nova ordem estatal: “Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”.
Observa-se, com isso, que os novos valores republicanos, inspirados, ainda, pelos ideais do liberalismo, rompem com a antiga ordenação do Estado, constituindo a representatividade do poder (democracia representativa) e direcionando a ordem jurídica para a construção de um Estado livre e democrático.
No que toca aos direitos fundamentais a primeira Constituição republicana instituiu, em seu Art. 72, uma Declaração de Direitos estabelecendo que “[…] a Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade”, e que em seus trinta e um parágrafos estabeleceu novo parâmetro de igualdade, ampliando seu conceito, ao consagrar que “[…] a República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho” (§ 2º, Art. 72); garantiu os direitos de associação e reunião (§ 8º); e o direito de petição (§ 9º); aboliu a pena de galés e de banimento (§ 20); limitou a pena de morte para os tempos de guerra (§ 21); garantiu o Habeas Corpus para os casos de violência ou coação, mesmo preventivamente (§ 22), dentre outros direitos já consagrados na Constituição anterior.
Mesmo tendo sido extensiva no rol dos direitos, o Art. 78 garantiu que “[…] a especificação das garantias e direitos expressos na Constituição não exclui outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna” prerrogativa que se faz presente na atual Constituição e denota a preocupação constitucional em não vedar o reconhecimento de outros direitos inerentes ao ser humano, que não tenham sido contemplados pelo Poder Constituinte.
Embora os progressos em relação à Constituição Imperial, a Constituição da República não reconheceu os direitos sociais trabalhistas, embora já houvesse uma classe trabalhadora merecedora da proteção do Estado. Além disso, a Constituição jurídica afastou-se da realidade social, conforme afirmam Paulo Bonavides e Paes de Andrade:
“Entre a Constituição jurídica e a Constituição sociológica havia uma enorme distância; nesse espaço se cavara também um fosso social das oligarquias e se descera ao precipício político do sufrágio manipulando, que fazia a inautenticidade da participação do cidadão no ato soberano de eleição dos corpos representativos”.[8]
Tardou-se a perceber a necessidade de modificação da Constituição e o reconhecimento dos movimentos sociais só se deu com a Constituição de 1934, inaugurando o Estado social brasileiro.
Após as revoluções que marcaram o início da década de 1930, Getúlio Vargas chega ao poder em 03 de novembro de 1930 e revoga a Constituição de 1891, passando a governar através de decretos, assumindo a condição de Chefe do Governo Provisório que se estenderia até a promulgação da Constituição de 1934, fruto da Revolta Constitucionalista de 1932, permanecendo, contudo, no poder através de eleição indireta do Congresso Nacional realizada no mesmo dia da promulgação da Carta Constitucional.
Promulgada em 16 de julho de 1934, após o movimento político militar de 1930 e sob a forte influência das Constituições européias, especialmente a da República de Weimar (1919), a Constituição brasileira declarou assegurar “[…] à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico” dotando de fundamentalidade os direitos sociais, reconhecendo-os em título próprio.
Dos Arts. 115 a 143 da Constituição de 1934, sob o título Da Ordem Econômica e Social, estabeleceu-se que a ordem econômica “[…] deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna” (Art.115). Destarte, a dignidade existencial passou a ser parâmetro para a ordem econômica, colocando o homem como destinatário da economia e não simples artista do capitalismo.
Na ordem social trabalhista o novo ordenamento constitucional regeu: a proibição de diferença de salário em decorrência de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; salário mínimo condizente com a satisfação das necessidades do trabalhador; limitação da jornada diária de trabalho em oito horas; proibição da exploração do trabalho de menores; garantia do repouso semanal remunerado; férias; indenização por dispensa sem justa causa e assistência médica ao trabalhador e à gestante (Art. 121).
Pela primeira vez houve uma relativização ao direito à propriedade que não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo (Art.113, item 17).
No campo dos direitos individuais, consagrou o mandado de segurança como garantia para a “[…] defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade” (Art. 113, item 33), estabelecendo, assim, mecanismo de defesa dos direitos fundamentais que se consagrara ao longo da evolução social.
Importante evolução também é notada no campo da educação e cultura, estabelecendo que:
“Art. 149: A educação é direito de todos e deve ser ministrada, pela família e pelos Poderes Públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no país, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana”.
Neste campo dos direitos fundamentais ficou estabelecido que cumpriria aos municípios e à União a aplicação de, no mínimo, dez por cento, e aos Estados e Distrito Federal vinte por cento, “[…] da renda resultante dos impostos na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos” (Art. 156).
Denota-se, desta forma, que a Constituição de 1934 foi pródiga em constitucionalizar direitos fundamentais, dentre eles os direitos sociais, garantindo, ainda, mecanismo para sua proteção e a responsabilização do Presidente da República pela prática de atos que atentassem contra “[…] o gozo ou exercício legal dos direitos políticos, sociais ou individuais” (Art. 57, letra ‘d’).
O enfraquecimento dos ideais libertários da década de 1930 fez com que tomasse corpo o ideário autoritário. “A radicalização da luta entre os integralistas e os comunistas acabou por facilitar a reunião das camadas dominantes e dos setores revolucionários, que se aliaram no apoio à ditadura do Estado Novo”.[9]
Se a Constituição de 1934 foi capaz de inovar na consagração dos direitos fundamentais, foi três anos após, com a imposição totalitária de Vargas, que os direitos do homem foram suprimidos abruptamente.
Com forte inspiração nas constituições autoritárias da Polônia (1935) e do Estado Novo português (1933) a Constituição brasileira de 1937, apelidada de A Polaca, foi outorgada em 10 de novembro de 1937. Suprimindo as eleições que seriam realizadas em 1938, Getúlio Vargas fechou o Congresso Nacional e extinguiu os partidos políticos, outorgando uma nova ordem constitucional que lhe assegurava a plenitude do poder à frente do Executivo e que tolhia da sociedade os direitos fundamentais até então consagrados.
A Carta de 1937 restringiu direitos e garantias individuais, abolindo o mandado de segurança e alijando os princípios de legalidade e irretroatividade da lei; instituiu a censura prévia e a pena de morte em casos expressamente especificados, inclusive para a subversão da ordem política e social por meios violentos e para o homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade.[10]
Muito embora houvesse previsão da realização de plebiscito para sua legitimação e eleição do Congresso Nacional, assim como, após seis anos, a realização de plebiscito para nova legitimação da Constituição, tais fatos jamais ocorreram sendo que a Constituição de 1937 “[…] foi solapada, logo depois, pelos seus próprios autores. Não se realizou; não foi respeitada, – quase toda, nem sequer, existiu”,[11] ficando o país
“[…] sem Constituição, sem partidos políticos, sem imprensa livre, embora o art.122 reconhecesse direitos individuais, estes não tiveram efetividade, pois com a ditadura houve concentração de poderes nas mãos do Presidente da República, que governava através de decretos-leis e de leis constitucionais.”[12]
Em outubro de 1945, Getúlio Vargas foi deposto por força do movimento militar liderado por seu próprio ministério e renunciou formalmente ao cargo, não perdendo, porém, os direitos políticos nem tendo sido exilado. Como não havia previsão do cargo de vice-presidente, governou o país o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, até que, em 02 de dezembro de 1945, passou o cargo para o presidente eleito, Eurico Gaspar Dutra.
Embora tenha renunciado ao cargo de presidente, Getúlio Vargas não deixou a vida política, tendo sido eleito senador pelos Estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul, assumindo o Senado, representando este último, não tendo, porém, participado ativamente da Assembléia Constituinte sendo o único parlamentar a se recusar a assinar a Constituição que viria a ser promulgada em 18 de setembro de 1946.
A nova Carta Constitucional revigorava os direitos fundamentais do homem, reconhecidos nos capítulos que tratavam da Nacionalidade e a Cidadania e dos Direitos e Garantias Individuais (Arts. 129 a 144). Aboliu-se, novamente, a pena de morte e de prisão perpétua. Foram restaurados os mecanismos de garantia dos direitos fundamentais, Habeas Corpus, mandado de segurança e ação popular, bem como a observância dos primados da legalidade e da irretroatividade da lei.
É de se observar a extrema semelhança que guarda a Constituição de 1946 com a de 1934, tendo esta servido como base para sua elaboração, retomando-se, então, a orientação social trazida com o advento da ordem constitucional de 1934. Ficou, porém, “[…] limitada aos termos programáticos de justiça social, não podendo concretizar cláusulas como aquelas que determinavam a participação do trabalhador no lucro da empresa, nem tantas outras exaradas na esfera das relações do capital com o trabalho”.[13]
O avanço da Carta de 1946 é representado pela inserção da cláusula de inafastabilidade da jurisdição – atual inc. XXXV do Art. 5º – estabelecendo que “a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual” (Art. 141, § 4º).
O aumento da participação popular nas eleições e a ampliação do número de partidos políticos, levaram a pressões para a efetivação de uma democracia de massas, situação que passou a “[…] assustar cada vez mais as oligarquias e as classes médias, temerosas de perder seu poder de barganha política com a ascensão popular”.[14]
A crescente busca pela democracia participativa e o amendrontamento da elite dominante frente à massa popular culminou com o Golpe Militar de 1964 e a renúncia do então presidente João Goulart, passando o poder às mãos dos militares.
Permaneceu em vigor a Constituição de 1946, porém, os militares editaram atos institucionais que buscavam a centralização e fortalecimento do Poder Executivo. Durante o regime militar, diversos Atos Institucionais foram editados, destacando-se o Ato de nº 05, conhecido como AI-5, que além de restaurar todos os quatro Atos anteriores, entre outras coisas, suspendeu o Habeas Corpus e concedeu total arbítrio ao Presidente da República para a decretação do estado de sítio.
Vladimir Brega Filho destaca que:
“Em relação aos direitos fundamentais, o Ato Institucional nº 01 suspendeu as garantias constitucionais ou legais da vitaliciedade e estabilidade dos juízes; e permitiu a cassação dos mandados legislativos e a suspensão dos direitos políticos. O Ato institucional nº 02 extinguiu os partidos políticos e deu poderes ao Presidente da República para decretar o recesso do Congresso Nacional. O Ato nº 04 convocou o Congresso Nacional para discutir e votar um novo texto constitucional.”[15]
Com isso, foi elaborado o texto da Constituição de 1967, que mantinha as previsões de direitos e garantias individuais (Art. 150), os direitos sociais dos trabalhadores (Art. 158), assim como os direitos de nacionalidade (Art. 140) e direitos políticos (Art. 142). Não houve, desta forma, ao menos no que tange ao ponto de vista formal, rompimento com a consagração dos direitos fundamentais, porém, há uma clara evidência de tolhimento do ideário democrático, consistindo em uma ruptura com a evolução que se seguia desde a proclamação da República, e que somente veio a ser retomada em termos fáticos após a derrota do Regime Militar, mais de vinte anos após sua implantação no país e a promulgação da nova ordem constitucional, em 05 de outubro de 1988, restabelecendo direitos e garantias, reconhecendo os direitos sociais, e erigindo a dignidade da pessoa humana como fundamento último da ordem jurídica.
A Constituição de 1988, novamente inspirada por ventos democráticos, ampliou os direitos fundamentais, e seguindo a tendência mundial, além dos direitos individuais e sociais, reconheceu os direitos de solidariedade (direitos fundamentais de terceira dimensão), como é o caso do direito a um meio ambiente equilibrado previsto no Art. 225.
Os valores consagrados pela nova Carta Política já se encontram, desde logo, condensados em seu preâmbulo e consagram o Estado Democrático que tem como finalidade “[…] assegurar os direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.
A dignidade da pessoa humana foi erigida a fundamento do Estado Democrático de Direito (Art.1º, inc. III), consistindo, em síntese, que a ordem jurídica deve primar pela observância de exaurir práticas e leis que possam tolher ou restringir a dignidade humana, fundamento último da ordem jurídica.[16]
Os direitos individuais foram consagrados pelo Art. 5º, que, muito embora, extenso, com setenta e oito incisos, não exclui “[…] outros decorrentes do regime e dos princípios por ela [Constituição] adotados, ou dos tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte” (§ 2º, Art. 5º). Denota-se, com isso, a preocupação do Legislador Constituinte em assegurar e constitucionalizar os direitos fundamentais do homem a fim de protegê-los dos arbítrios que ocorreram durante o Regime Militar.
A par dos direitos individuais, os direitos sociais foram classificados em capítulo próprio, inserido no título Dos Direitos e Garantias Fundamentais, merecendo, portanto, especial proteção do Estado e privados de alteração legislativa, ainda que constitucional, tendente a aboli-los.
Assim, o Art. 6º da Constituição de 1988 consagrou a “[…] educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados” como direitos sociais. Garantiu, também, aos trabalhadores, extenso rol de direitos consagrados nos trinta e quatro incisos do Art. 7º, assim como assegurou a liberdade para associação profissional ou sindical (Art. 8º).
Denota-se, assim, que a Constituição Cidadã buscou assegurar os direitos fundamentais do homem, erigindo-os à fundamentalidade. Ocorre, todavia, que, como já assinalado, não basta a consagração desses direitos. É necessário, em maior medida, que o Estado os concretize possibilitando à sociedade o gozo e a fruição dos direitos constitucionalmente assegurados, ou seja, dando consecução aos ideários constitucionais e a efetividade da Constituição.
2. A concretização dos direitos fundamentais
Dotadas que são de fundamentalidade, ganham relevo, dentre as normas constitucionais, as que prescrevem os direitos fundamentais em razão das mesmas possuírem uma alta carga de eficácia com a previsão, inclusive, de aplicabilidade imediata e vinculação direta dos entes públicos (Art. 5º, § 1º da Constituição Federal), bem como a impossibilidade de serem abolidas pelo constituinte derivado (Art. 60, § 4º, inc. IV, da Constituição Federal), fatores que as diferenciam das demais normas constitucionais e as agrupam num rol de direitos fundamentais com características extrínsecas e intrínsecas próprias.
Destarte, o conteúdo normativo dos direitos fundamentais e a preocupação constitucional em proteger e garantir os direitos inerentes ao ser humano, sejam eles de primeira, segunda ou terceira dimensão, conduz à interpretação no sentido de dar aplicabilidade imediata às disposições emergentes de forma expressa da Constituição, dos princípios constitucionais e dos tratados internacionais que veiculem normas relacionadas aos direitos fundamentais estejam ou não inseridas no Art. 5º.
A manifestação do poder originário regulamentou, no texto constitucional, os anseios sociais advindos com a luta pela redemocratização do Estado brasileiro. Nesta esteira, consagrou-se o Brasil como Estado Democrático de Direito fundamentado, dentre outros, no princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, inc. III, da Constituição Federal), com o objetivo de construir uma sociedade solidária, erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos (Art. 3º da Constituição Federal). Denota-se, com isso, que o Estado inaugurado com a Constituição Federal de 1988 pode ser considerado como um Estado Social e Democrático.
Tendo o Poder Constituinte originário traçado tais perspectivas, tratou, ainda, de dirigir e limitar a atuação do poder legislativo, inclusive do próprio Poder Constituinte derivado.
Neste aspecto, impôs limitação material para a propositura de Emendas à Constituição que sejam tendentes a abolir “os direitos e garantias individuais” (Art. 60, § 4º, inc. IV, da Constituição Federal). Tal comando normativo dirige-se aos legitimados para o processo legislativo diferenciado de emenda constitucional e deve ser interpretado à luz do arcabouço jurídico-constitucional a fim de se evitar a probabilidade de supressão dos direitos fundamentais. Desta forma, ainda que o texto constitucional se refira, expressamente, aos direitos e garantias individuais, é necessária ampliação hermenêutica para proteção dos direitos fundamentais de forma mais abrangente.
Está, também, vinculado à observância dos direitos fundamentais, o legislador ordinário, incumbindo-lhe o dever de legislar, criando normas infraconstitucionais que permitam a concretização dos direitos fundamentais, bem como, vedando-lhe a revogação de leis que estabeleçam tais mecanismos sem que haja uma compensação normativa para a continuidade do exercício de direito fundamental. Desdobra-se, portanto, a vinculação em ativa e passiva.
Além de determinar ao legislador a tarefa de implementação normativa com a finalidade de permitir o pleno exercício dos direitos fundamentais, uma vez criada a norma jurídica estará o poder legislativo impedido de retirá-la do ordenamento jurídico sem que haja uma medida de compensação. Embora tal comando não esteja expresso na Constituição, sua constatação decorre da cláusula de vedação ao retrocesso dos direitos fundamentais, ou seja, uma vez implementados não se permite sua supressão, passando a constituir patrimônio intocável do cidadão.
Assim como o legislador está vinculado aos ditames dos direitos fundamentais, também o está o poder executivo. A vinculação, neste caso, consiste na adoção de políticas públicas implementadoras dos direitos fundamentais, sejam eles de primeira, segunda ou terceira dimensão, mediante a aplicação de recursos públicos condizentes com sua necessidade de concretização.
Embora se trate de obrigação prestacional, portanto de caráter positivo, que exige do poder executivo a adoção de políticas públicas, a exemplo do que ocorre com o poder legislativo, também vincula o executivo negativamente, ou seja, vedando a supressão de políticas públicas sem que outras medidas compensatórias sejam tomadas.
Tratando-se da necessidade de políticas públicas, a incumbência, portanto, recai ao administrador que deverá, no desempenho de sua função pública executiva, dar azo para que os direitos fundamentais sejam efetivados. No desenvolver de sua atividade, portanto, o administrador pode praticar atos que sejam ou não vinculados, cumprindo, ainda que de forma superficial, distingui-los.
Atos administrativos vinculados, explica Hely Lopes Meirelles, “[…] são aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização”, de tal forma que a imposição legislativa absorve, “[…] quase que por completo, a liberdade do administrador”.[17]
São atos, portanto, para os quais a lei determina, por inteiro, a forma e conteúdo do ato a ser praticado, deixando o administrador adstrito aos preceitos normativos. Decorrem do exercício do poder vinculado, ou seja, do poder que a lei “[…] confere à Administração Pública para a prática de ato de sua competência, determinando os elementos e requisitos necessários à sua formalização”.[18]
Estão, desta forma, fora da análise discricionária do administrador, não lhe sendo lícito deixar de praticar o ato por conveniência ou oportunidade.
Atos discricionários, ao contrário, “[…] são os que a Administração pode praticar com liberdade de escolha do seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização”,[19] o que não significa a inexistência de lei, visto que a administração se pauta pelo princípio da legalidade, mas que a lei permite ao administrador que a prática do ato se dê “[…] pela maneira e nas condições que repute mais convenientes ao interesse público”.[20]
Decorre desta diferenciação importante racionalização quanto à fiscalização jurisdicional do ato administrativo. A fiscalização judiciária, ou judicial, exercida pelo Poder Judiciário, é adstrita à análise da legalidade e legitimidade do ato, ou seja, na análise do ato quanto à conformação com a norma jurídica que o rege e da observância dos princípios que regem a administração pública. Não está, assim, sujeito ao controle judicial, o mérito do ato administrativo, ou seja, não incumbe ao Judiciário a análise dos requisitos de oportunidade e conveniência. Insta dizer que os atos administrativos discricionários, portanto, somente são suscetíveis de análise quanto a sua conformação com a lei, no tocante à competência, finalidade e forma do ato, não incumbindo ao Poder Judiciário pronunciar-se sobre o mérito administrativo. Neste sentido, afirma Hely Lopes Meirelles que:
“Ao Poder Judiciário é permitido perquirir todos os aspectos de legalidade e legitimidade para descobrir e pronunciar a nulidade do ato administrativo onde ela se encontre, e seja qual for o artifício que a encubra. O que não se permite ao Judiciário é pronunciar-se sobre o mérito administrativo, ou seja, sobre a conveniência, oportunidade, eficiência ou justiça do ato, porque, se assim agisse, estaria emitindo pronunciamento de administração, e não de jurisdição judicial.”[21]
Importa assim reconhecer que o Poder Judiciário exerce importante papel na fiscalização dos atos administrativos a fim de adequá-los aos preceitos legais e aos princípios da administração pública, com a observância do Art. 37 da Constituição.
O que impende considerar, porém, é se os atos administrativos que tenham conteúdo ligado a direitos fundamentais são vinculados ou discricionários, ou seja, se há espaço para que a administração pública analise critérios de oportunidade e conveniência para a concretização de direitos fundamentais, ou se, ao contrário, as normas constitucionais relativas a tais direitos têm conteúdo vinculante em relação à administração pública.
A interpretação que melhor se compatibiliza com as finalidades de um Estado Social e Democrático de direito, crê-se, é aquela que reconhece aos direitos fundamentais a normatização vinculativa, ou seja, que reconhece a vinculação do Poder Executivo para a concretização de seus ditames. Este, aliás, o entendimento ventilado em Acórdão relatado pelo Ministro Celso de Mello, ao analisar e julgar o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 410715/SP,[22] cuja ementa assegura o direito à educação como norma vinculante dirigida ao poder público que não pode se desincumbir do ditame constitucional por simples juízo de oportunidade ou análise de conveniência, sob pena de se negar aludido direito, de eminente índole social. Colhe-se do corpo do v. acórdão:
“É preciso assinalar, neste ponto, por relevante, que o direito à educação […] qualifica-se como um dos direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se à noção dos direitos de segunda geração, cujo adimplemento impõe, ao Poder Público, a satisfação de um dever de prestação positiva, consistente num ‘facere’, pois o Estado dele só se desincumbirá criando condições objetivas que propiciem, aos titulares desse mesmo direito, o acesso pleno ao sistema educacional.”
Apoiado no magistério de Luiza Cristina Fonseca Frishceisen para quem “[…] o administrador está vinculado à Constituição e às normas infraconstitucionais para a implementação de políticas públicas relativas à ordem social constitucional” não tendo, portanto, “[…] discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional”, conclui o Ilustre Ministro que:
“[…] os Municípios […] não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Carta Política, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções […] não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.”[23]
Conclui-se, assim, que os direitos fundamentais não se compatibilizam com a análise de oportunidade e conveniência por parte de administração pública. São, portanto, mandamentos vinculativos que exigem do poder público a atuação na busca pela sua efetividade, sendo que a omissão pode ensejar a atuação judicial para a observância da ordem jurídica, especialmente através da jurisdição constitucional.
3. A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e o Mandado de Injunção (MI) para efetividade dos direitos fundamentais
Desde a promulgação da Constituição Federal foi previsto, inicialmente no Art. 102, parágrafo único, e, após a Emenda nº 03/93, renumerado para o parágrafo primeiro do mesmo artigo, a argüição de descumprimento de preceito fundamental como mecanismo constitucional de controle concentrado de constitucionalidade[24].
O importante mecanismo trazido pela Constituição ficou inerte por onze anos até a edição da lei regulamentadora, em 03 de dezembro de 1999, diante da pouca importância que foi dada pelo legislador e pelo próprio judiciário, ao entendimento de ser norma constitucional de eficácia limitada.
O novel mecanismo encontra similitudes no direito estrangeiro sendo possível verificar as semelhanças com a Verfassungsbeschwerde do direito alemão, a Beschwerde do direito austríaco e o Recurso de Amparo do direito espanhol.
A ADPF no direito pátrio foi regulamentada pela Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999, tendo por objeto “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público” (Art. 1º). Denota-se, da redação legal, que a argüição poderá ser na modalidade preventiva ou repressiva, sendo possível, portanto, o seu manejo, a fim de evitar conduta do Poder Público que possa colocar em risco os preceitos constitucionais fundamentais.
A doutrina tem dividido a argüição em duas formas: autônoma e incidental. A argüição autônoma tem a finalidade de fiscalizar a constitucionalidade de um ato do Poder Público lesivo a preceito constitucional fundamental, observada sua subsidiariedade aos demais mecanismos jurisdicionais de controle de constitucionalidade. “Nessa espécie de argüição o que se busca, essencialmente, é a defesa da ordem jurídica constitucional objetiva.”[25]
A argüição incidental, por sua vez, pressupõe a existência de um processo anterior, em qualquer juízo ou tribunal, onde se suscite uma questão constitucional, suspendendo a jurisdição ordinária até que o Tribunal decida a questão constitucional.
Diante do veto presidencial ao inc. II, Art. 2º da Lei, ficou obstado o acesso ao mecanismo constitucional de proteção dos preceitos fundamentais a todos os indivíduos, sendo os legítimos aqueles mesmos previstos para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, situação que se afasta da importância do instituto e dos instrumentos correlatos do direito estrangeiro, e que mereceu as construtivas críticas de Lenio Streck ao afirmar que a argüição deve ser interpretada conforme a Constituição, a fim de garantir a legitimidade ativa do cidadão, sendo essa a vontade da Constituição ao colocar a ADPF como mecanismo protetivo dos direitos fundamentais “[…] não como algo que distanciasse o cidadão do acesso à justiça, mas que o pusesse diretamente em contato com a justiça constitucional, encarregada de mediar os conflitos no Estado Democrático de Direito.[26]
Importante consignar, neste aspecto, que a argüição visa a controlar o descumprimento, ou seja, a inação do Poder Público violadora de um preceito fundamental.
A legislação não determinou o que se entende por preceito fundamental, cabendo a doutrina fixar tal entendimento. Neste sentido, Mandelli Júnior assinala que “preceito é termo genérico utilizado tanto para designar regra ou dispositivo, como para designar princípio, seja ele expresso ou implícito no texto constitucional”.[27] Observe-se, contudo, que o entendimento consagrado pelo Tribunal Superior não permite a confrontação para aferição de inconstitucionalidade com os princípios constitucionais.
Para Lenio Streck o sentido que se deve atribuir à “[…] expressão preceitos fundamentais caminha na direção de que tais direitos são aqueles reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado”.[28]
No dizer de Mandelli Júnior, preceito fundamental não faz remissão à qualquer dispositivo constitucional mas “somente [à] aqueles preceitos […] que caracterizam a essência da Constituição, isto é, opções políticas fundamentais adotadas pelo constituinte”,[29] das quais, exemplifica o autor, os princípios fundamentais insculpidos nos Arts. 1º a 4º da Constituição, bem como as cláusulas pétreas previstas no Art. 60, § 4º. No mesmo sentido se posiciona Lenio Streck.[30]
Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior admoestam que os preceitos fundamentais equivalem às normas materialmente Constitucionais, ou seja, àquelas “indispensáveis à configuração de uma Constituição enquanto tal”, identificando-as como: (a) as que identificam a forma e a estrutura do Estado, (b) o sistema de governo, (c) a divisão dos poderes, (d) os princípios e direitos fundamentais e (f) a ordem econômica e social.[31]
Observe-se, ainda, que a argüição de descumprimento de preceito fundamental é instrumento subsidiário de controle concentrado de constitucionalidade, tem campo residual em relação à ação direta e declaratória de inconstitucionalidade, porém, como advertiu o Ministro Celso de Mello, a mera possibilidade de utilização de outros meios processuais não é óbice para a utilização da argüição, devendo, a fim de afastar a incidência deste instituto ser “[…] essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se aptos a sanar, de modo eficaz e real, a situação de neutralidade que se busca neutralizar” através da argüição de descumprimento de preceito fundamental.[32]
Neste diapasão, adverte Cunha Júnior, que “o conceito de descumprimento […] é consideravelmente mais amplo do que o conceito de ‘inconstitucionalidade’’, sendo que:
“[…] enquanto a inconstitucionalidade no controle concentrado, limita-se à lei e aos atos normativos, o ‘descumprimento’ da Constituição pode resultar tanto em razão da elaboração de uma lei ou de um ato normativo (incluindo os infralegais, como, v.g., os regulamentos), como em decorrência da expedição ou da prática de um ato não normativo (atos jurídicos concretos ou individuais e os fatos materiais) e de decisões judiciais […]”.[33]
Denota-se, portanto, que os direitos fundamentais, incluindo os prestacionais, podem se constituir objeto de argüição quando houver descumprimento omissivo do Poder Público, consistente na ausência de normatividade ou na inércia quanto à adoção de políticas públicas necessárias para a concretização dos direitos fundamentais, são objetos sindicáveis através da ADPF.
O Mandado de Injunção, por seu turno, é mecanismo jurisdicional que não encontra similitude no direito alienígena, a exemplo do que ocorre com o Mandado de Segurança, embora já se tenha afirmado ser semelhante à equity do direito inglês, ao writ of injunction do direito-norte americano ou ao Verfassungsbeschwerde do direito alemão, e foi estabelecido pela Constituição brasileira no Art. 5º, inc. LXXI:
“Art. 5º: […].
LXXI – Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.”
Observa-se, da norma constitucional, que o mandamus injuntivo tem como finalidade suprir a ausência normativa a fim de garantir a eficácia imediata dos direitos e liberdades constitucionais, conforme preconizado pelo Art. 5º, § 1º da Constituição Federal, e constitui, ele mesmo, direito fundamental.
Importa considerar que, embora se assemelhe com a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por omissão, o Mandado de Injunção tem finalidade distinta. Enquanto aquela é “útil para a obtenção da declaração de inconstitucionalidade da inércia, o que implica existência de omissão inconstitucional[34] […] esse pressuposto nem sempre é necessário”[35] para o manejo do Mandado de Injunção.
O entendimento acerca da norma regulamentadora também não deve ficar adstrito a ineficácia exclusivamente legiferante, mas, ao contrário, deve comportar uma interpretação extensiva a fim de permitir a adoção “de toda e qualquer medida necessária para tornar efetiva norma constitucional”,[36] não compreendendo, porém, os atos administrativos concretos.[37] Assim, a ausência de vagas em escolas ou a prestação deficitária de serviços de saúde por serem decorrentes de falta de providências materiais não são suscetíveis de controle através do Mandado de Injunção, existindo, contudo, outros mecanismos aptos a tutela desses direitos.
A ausência de políticas públicas, por si só, portanto, não permite a ordem injuntiva. Assim, se, embora a existência de norma constitucional de eficácia plena ou de norma infraconstitucional regulamentadora de direitos fundamentais, recusa-se o administrador em aplicar o comando normativo, tal fato não é permissivo do writ visto que não há ausência de norma, possibilitando, porém, o manejo de Mandado de Segurança.
Por longos anos, a doutrina debateu sobre os efeitos decorrentes da decisão judicial no Mandado de Injunção, consagrando-se três possibilidades distintas: (i) a procedência do MI é permissiva para que o Poder Judiciário elabore a norma faltante; (ii) o Poder Judiciário deve, tão somente, comunicar ao órgão competente a omissão; e, (iii) reconhecida a ausência de norma regulamentadora, é dever do Poder Judiciário garantir o exercício imediato do direito fundamental frustrado em face da omissão.
O Mandado de Injunção não tem por finalidade a elaboração de norma faltante. Ademais, assentir que o Judiciário pudesse legislar seria negar o sistema constitucional de organização funcional do poder e vilipendiar com o princípio da separação de poderes. Assim, insustentável ficou a primeira possibilidade construída pela doutrina.
Embora o Mandado de Injunção se mostre como importante mecanismo para a efetividade dos direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal praticamente esvaziou seu conteúdo ao firmar, no passado, entendimento de que o Mandado de Injunção é:
“[…] ação que se propõe contra o Poder, órgão, entidade ou autoridade omissos quanto à norma regulamentadora necessária à viabilização do exercício dos direitos, garantias e prerrogativas a que alude o Art. 5º, inc. LXXI, da Constituição, e que se destina a obter sentença que declare a ocorrência da omissão constitucional, com a finalidade de que se dê ciência ao omisso dessa declaração, para que se adotem as providências necessárias, à semelhança do que ocorre com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (Art. 103, § 2º, da Carta Magna) com a determinação, se for o caso, da suspensão de processos judiciais ou administrativos, se tratar de direito constitucional oponível ao Estado, mas cujo exercício está inviabilizado por omissão deste”.[38]
No mesmo sentido colhe-se o entendimento ventilado em outras decisões do Pretório Excelso:
“Esta Corte, ao julgar a ADIN 4, entendeu, por maioria de votos, que o disposto no § 3º do Art. 192 da Constituição Federal não era auto-aplicável, razão por que necessita de regulamentação. Passados mais de doze anos da promulgação da Constituição, sem que o Congresso Nacional haja regulamentado o referido dispositivo constitucional, e sendo certo que a simples tramitação de projetos nesse sentido não é capaz de elidir a mora legislativa, não há dúvida de que esta, no caso, ocorre. Mandado de injunção deferido em parte, para que se comunique ao Poder Legislativo a mora em que se encontra, a fim de que adote as providências necessárias para suprir a omissão, deixando-se de fixar prazo para o suprimento dessa omissão constitucional em face da orientação firmada por esta Corte (MI 361).”[39]
“O mandado de injunção nem autoriza o Judiciário a suprir a omissão legislativa ou regulamentar, editando o ato normativo omitido, nem, menos ainda, lhe permite ordenar, de imediato, ato concreto de satisfação do direito reclamado: mas, no pedido, posto que de atendimento impossível, para que o Tribunal o faça, se contém o pedido de atendimento possível para a declaração de inconstitucionalidade da omissão normativa, com ciência ao órgão competente para que a supra”.[40]
“Ocorrência, no caso, em face do disposto no Art. 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação daquele preceito constitucional. Mandado de injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se impõem para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do Art. 195, § 7º, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra, passar o requerente a gozar da imunidade requerida.”[41]
Observa-se, assim, que o Mandado de Injunção sempre foi vazio de conteúdo por força da própria opção de quem deveria manter a guarda da Constituição. Com tal posicionamento, a Corte Suprema negou a este importante mecanismo jurisdicional o efeito que dele se esperava, restringindo-se a admitir seus efeitos à comunicação da ausência normativa ao órgão competente, permanecendo, desta forma, ineficiente o instituto em termos de garantia de efetividade dos direitos fundamentais.
Contudo, embora tardiamente, a Corte Suprema começa a dar novo sentido a este importante instituto, passando a adotar o entendimento de que é dever jurisdicional remover os óbices oriundos da omissão e permitir a aplicação de outra norma jurídica capaz de assegurar o exercício dos direitos previstos no Art. 5º, LXXI da Constituição, assentindo, portanto, com a construção doutrinária que já reclamava tal postura.
Contudo, especialmente a partir do julgamento do MI 721-DF,[42] no qual atuou como Relator o Ministro Marco Aurélio, passou a Corte a, verificada a mora legislativa, aplicar, ao caso concreto, uma norma legal já existente. No caso específico, estava obstado o direito à aposentadoria do servidor público, tendo em vista a inexistência de norma regulamentadora de adicional de insalubridade, decidindo, então, a Suprema Corte, pela aplicação, in concreto, das normas que regem o respectivo adicional para os trabalhadores em geral.
Observa-se, do corpo do voto do Relator, importante mudança no tangente à finalidade do mandado injuntivo:
“A natureza da citada ação constitucional – mandado de injunção –, procedente a causa de pedir versada na inicial, leva o pronunciamento a ganhar contornos mandamentais, a ganhar eficácia maior, a ponto de viabilizar, consideradas as balizas subjetivas da impetração, o exercício do direito, da liberdade constitucional ou das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Eis que surgiu, no cenário normativo-constitucional, o instrumento capaz de revelar a lei fundamental como de concretude maior, abandonada visão simplesmente lírica.”
Verifica-se, então, que o Supremo, abandonando o entendimento até então prevalente, começa a assentir na possibilidade de aplicação concreta de legislação já existente, porém, de forma análoga.
Não se trata, desta forma, de estar o Poder Judiciário legislando, mas a determinar, via provimento jurisdicional, a aplicabilidade, ao caso concreto, de uma norma jurídica já existente, embora não relacionada, especificamente, ao caso sindicado. Clève, nesse sentido, afiança com o seguinte posicionamento:
“Neste caso, o órgão jurisdicional não irá propriamente exercer função normativa genérica, mas, sim, possibilitar ao impetrante, caso mereça procedência a sua pretensão, a fruição do direito não exercitado em face da falta da norma regulamentadora. A norma jurídica individual ‘criada’ pelo Judiciário não seria diferente das normas jurídicas concretas veiculadas por qualquer decisão judicial. O papel do Judiciário, então, não seria o de ‘legislar’, mas o de ‘aplicar’ o direito ao caso concreto, revelando a normatividade já inscrita no dispositivo constitucional, e removendo eventuais obstáculos à sua efetividade.”[43]
Foi, porém, com o julgamento conjunto de três Mandados de Injunção (670-ES, 708-DF e 712-PA),[44] proferido em 25 de outubro de 2007, todos com a finalidade de suprir a omissão legislativa referente à regulamentação do direito de greve dos servidores públicos, prevista no Art. 37, inc. VII da Constituição, que a Corte deu, realmente, uma guinada histórica nos rumos do mandado injuntivo.
Considerando o teor do relatório de lavra do Ministro Gilmar Mendes, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, por maioria, decidiu que, a se manter o entendimento até então predominante na Corte, de que o Mandado de Injunção tem sua função exaurida com a comunicação da mora legislativa, estaria a se negar efetivamente a prestação jurisdicional. Assim é que a Corte, passou, sem assumir compromisso com o exercício de uma típica função legislativa, a aceitar a possibilidade de uma regulação provisória pelo próprio Judiciário.
O quadro que se desenhou, desde então, revela que a Corte pode passar a não mais tolerar a omissão legislativa. Embora tardia, a nova postura que passa a delinear os julgamentos de Mandados de Injunção pelo Supremo Tribunal Federal pode consistir em dar ao instituto o valor que sempre mereceu, permitindo-se, então, a efetividade das normas constitucionais consagradoras de direitos fundamentais que dependiam, sempre, de vontade política para o pleno exercício, solapando o mandamento constitucional de imediata eficácia.
É de importância salientar que o provimento jurisdicional não substitui a obrigação legislativa, mas, é construção temporária para remover os óbices impeditivos do gozo dos direitos e liberdades fundamentais, e, também, das prerrogativas relacionadas à cidadania, nacionalidade e soberania. Desta forma, sobrevindo produção normativa que regulamente a matéria objeto do writ, não existirá mais omissão e, portanto, a decisão judicial deixará de viger para o caso concreto que passará a ser regulamentado por uma norma geral e abstrata.
O Supremo, desta forma, deu importante passo para a efetividade da Constituição e dos direitos fundamentais.
Toda e qualquer pessoa é legítima para a propositura do Mandado de Injunção, seja ela nacional ou estrangeira, física ou jurídica, capaz ou incapaz, desde que titular de direito fundamental não exercitável em decorrência de omissão legislativa. Também são legitimados os entes coletivos, como partidos políticos, organizações e associações para a defesa dos interesses de seus membros ou associados. Cuida-se, assim, de Mandado de Injunção coletivo. Quando se tratar de direito difuso ou coletivo, o Ministério Público goza de legitimidade para impetração do writ, conforme dispõe o Art. 129, inc. III, da Constituição Federal.
O Mandado de Injunção, assim, é importante mecanismo constitucional de defesa dos direitos fundamentais, e por ser de legitimidade aberta, se mostra mecanismo que permite a efetividade das normas constitucionais e o controle das omissões públicas.
A evolução paradigmática no posicionamento do Supremo Tribunal Federal, quanto ao mecanismo injuntivo, pode consistir na efetividade do instituto que por longos anos ficou aniquilado por uma postura jurisdicional que não permitiu a sua operacionalidade prática, permitindo aos jurisdicionados a supressão das omissões do poder público que impliquem o tolhimento injustificável do gozo dos direitos e liberdades constitucionais, inclusive, dos direitos sociais fundamentais.
Conclusões
A consagração dos direitos fundamentais evidencia a evolução da sociedade rumo à dignificação do ser humano. O Brasil, acompanhando a evolução social, desde a Constituição do Império, inseriu em seus textos constitucionais a preocupação com esses direitos.
A evolução histórica, contudo, com seu vai-e-vem de forças políticas, não privilegiou a sociedade brasileira com a efetividade dos direitos que, embora consagrados constitucionalmente, não asseguravam a consecução prática.
Tolhida que foi dos ideários democráticos por duas décadas, a sociedade brasileira viu renascer com a nova Constituição o caminho para a consolidação da democracia e dos direitos fundamentais, pilares de sustentabilidade do Estado Democrático de Direito.
Importantes que são, os direitos fundamentais, fundamento último da ordem jurídico-constitucional, não devem permanecer como letra morta a espera de vontade legislativa ou executiva para sua efetividade. Desta forma, a jurisdição constitucional, especialmente através do Mandado de Injunção e da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, se mostra importante mecanismo para garantir a efetividade das normas constitucionais.
A mudança de posicionamento do Supremo Tribunal Federal, admitindo, agora, ainda que tardiamente, a possibilidade de se exigir do Poder Público a atuação, seja no campo legislativo ou administrativo, com vistas a fomentar a efetividade dos direitos fundamentais, revela a importância política da Corte Suprema e se faz ouvir o clamor das vozes da sociedade na busca pela efetividade constitucional e pela consolidação da democracia, mecanismos que conduzirão à redução das desigualdades e à concretização das normas constitucionais fundamentais, fundamentos da República Federativa do Brasil.
Informações Sobre os Autores
Claudinei J. Göttems
Mestre em Direito Constitucional pela ITE/SP. Professor Universitário. Advogado.
Rodrigo Lanzi de Moraes Borges
Mestre em Direito Constitucional pela ITE/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Advogado