Alguns teóricos do Direito constitucional afirmam que o constitucionalismo moderno começa a ser formado no processo que se inicia com a Magna Carta na Inglaterra em 1215. Entretanto ali não está presente a idéia de uma Assembléia Nacional Constituinte que, elaborando o texto de uma Constituição, dará início a uma nova realidade constitucional, fruto da vontade de um poder soberano e baseado na vontade popular. Temos portanto duas realidades constitucionais que hoje parecem, lentamente, gradualmente, se fundirem, mas que ainda são muito distintas.
Embora o Brasil tenha sofrido influência do Direito estadunidense a partir da Constituição de 1891, que copiou diversas instituições dos Estados Unidos da América como o federalismo, o presidencialismo, o seu modelo bicameral, o modelo de suprema corte e o modelo de controle difuso de constitucionalidade, nossa tradição constitucional é construída a partir do modelo continental europeu, transformando o nosso constitucionalismo em um dos mais ricos do mundo, pois promove a construção de um processo de síntese, ainda inicial, dos dois grandes sistemas jurídicos modernos, o que pode ser expresso no nosso controle misto de constitucionalidade das leis e na importante idéia de jurisdição constitucional difusa.
Entretanto, há algo em comum entre o modelo estadunidense e o europeu continental, não compartilhado pela Inglaterra: a existência de um poder constituinte originário, inicial, soberano e de primeiro grau capaz de romper com a ordem anterior e iniciar uma nova vida jurídica constitucional com a nova Constituição.
Vamos, pois, neste ensaio, desenvolver algumas reflexões sobre a teoria do poder constituinte, analisando os aspectos de sua natureza, titularidade e amplitude.
1- O Poder Constituinte
A diferenciação entre Poder Constituinte e Poder Legislativo ordinário ganhou ênfase e concretização na Revolução Francesa, quando os Estados Gerais, por solicitação do Terceiro Estado, se proclamaram como Assembléia Nacional Constituinte, sem nenhuma convocação formal.
Na França revolucionária (1789) foram superadas as velhas teorias que determinavam a origem divina do poder, afirmando a partir de então que a nação, o povo (seja diretamente ou através de uma assembléia representativa), era o titular da soberania, e, por isso, titular do Poder Constituinte. Entendia-se então que a Constituição deveria ser a expressão da vontade do povo nacional, a expressão da soberania popular. Idéias que podem parecer um pouco românticas ou artificiais em uma construção teórica transdisciplinar contemporânea. Podemos dizer que as dificuldades (ou impossibilidade) contemporâneas para afirmar a existência de uma (única) vontade popular, em sociedades de extrema complexidade, é bem maior hoje que no passado, entretanto, sempre estiveram presentes no Estado moderno. Por mais democrático que tenha sido qualquer poder constituinte vamos encontrar no complexo jogo de poder por traz da constituinte aqueles que tem a capacidade ou possibilidade de impor seus interesses com mais força do que outros.
Podemos dizer que a elaboração geral da teoria do Poder Constituinte nasceu, na cultura européia, com SIEYES, pensador e revolucionário francês do século XVIII. A concepção de soberania nacional na época assim como a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos como poderes derivados do primeiro é contribuição do pensador revolucionário.
SIEYES afirmava que objetivo ou o fim da Assembléia representativa de uma nação (a idéia de nação aí aparece como algo maior que o povo, diferente da idéia de povo como aqueles que se sentem parte do Estado nacional desenvolvida em outro momento) não pode ser outro do que aquele que ocorreria se a própria população pudesse se reunir e deliberar no mesmo lugar. Ele acreditava que não poderia haver tanta insensatez a ponto de alguém, ou um grupo, na Assembléia geral, afirmar que os que ali estão reunidos devem tratar dos assuntos particulares de uma pessoa ou de um determinado grupo.[1]
A escola clássica francesa entende a Constituição como um certificado da vontade política do povo nacional e, portanto, produto de uma Assembléia Constituinte representativa da vontade deste povo. Hans Kelsen se opõe a esta idéia afirmando que a Constituição provém de uma norma fundamental.[2] Importante ressaltar neste ponto que os conceitos dos diversos autores serão influenciados pela compreensão da natureza do Poder Constituinte: seja um poder de fato ou um poder de Direito.
Um outro aspecto que devemos estudar sobre o Poder Constituinte é relativo a sua amplitude. Alguns autores entendem que o poder constituinte se limita a criação originária do Direito enquanto outros compreendem que este poder constituinte é bem mais amplo incluindo uma criação derivada do Direito através da reforma do texto constitucional, adaptando-o aos processos de mudança sociocultural[3], e ainda o poder constituinte decorrente, característica essencial de uma federação, quando os entes federados recebem (ou permanecem com) parcelas de soberania expressas na competência legislativa constitucional.
Finalmente, um terceiro aspecto a ser estudado, e sobre o qual também existem divergências, diz respeito à titularidade do Poder Constituinte.
Para uma melhor compreensão desta matéria e de sua diversas compreensões, é necessário estudar separadamente cada um destes elementos. Não se pode vincular, como pretenderam alguns, o posicionamento com relação à natureza do Poder Constituinte com a sua amplitude, e mesmo com sua titularidade em determinados casos.
2 – A amplitude do Poder Constituinte
Vamos encontrar em diversas obras clássicas do constitucionalismo nacional e estrangeiro como por exemplo em PINTO FERREIRA, a afirmativa de que o Poder Constituinte é o poder de criar, emendar e revisar a Constituição.[4] Entre muitos clássicos podemos destacar WALTER DODD, KELSEN, HAURIOU e REW BARBOSA entre muitos, os que concordam com a afirmativa anterior. Entre os que discordam, afirmando que o Poder constituinte será apenas aquele que cria a Constituição encontramos SCHMITT, HELLER, RECASÉNS SICHES, CARL FRIEDRICH e DNEZ.
A importância desta discussão teórica, aparentemente de menor valor, reside no fato das fundamentações teóricas da força do poder de reforma (através de emenda e revisão), para o qual alguns admitem força igual ao poder originário, em algumas circunstâncias, fazendo com que os limites materiais, circunstanciais, formais e temporais, praticamente desapareçam. O problema central desta discussão é a segurança que a Constituição deve oferecer as relações jurídicas, e se admitirmos a compreensão de que o poder de reforma pode tudo, chegaríamos a uma situação de insegurança grande, pois maiorias qualificadas no parlamento poderiam quase tudo. É obvio que o simples fato de chamarmos o poder de reforma de poder constituinte derivado, não é o bastante para lhe oferecer tal força, mas é importante que isto fique bem claro, e para isto enfrentamos esta questão para posteriormente discutirmos o mais importante: os limites necessários ao poder de reforma, seja através de emendas ou seja através de revisão.
Retornamos pois a antiga discussão para compreendermos o perigo que reside por detrás dos rótulos, que são teorias que ao oferecer muita força ao legislativo ordinário para mudar a Constituição, pode retirar o que de há de essencial no constitucionalismo moderno, ou seja, a busca da segurança, inclusive contra maiorias qualificadas no parlamento, que podem estabelecer uma espécie de absolutismo da maioria, ou ditadura da maioria, que como um rolo compressor desmonta a Constituição. Esta discussão é ainda especialmente importante quando assistimos os problemas vividos pela democracia representativa, onde o financiamento privado de campanha, o poder econômico concentrado, inclusive na mídia, além de outros mecanismo de controle, constroem maiorias parlamentares que muitas vezes defendem interesses de poucos, em detrimento de muitos, mas que se legitimam através da aparente democracia representativa.
Importante notar que muitos dos autores clássicos acima citados, ao negar a amplitude maior do poder constituinte, incluindo o poder de reforma como poder constituinte derivado, não tinham sempre a intenção de preservar a Constituição preservando com isto a segurança jurídica e os direitos fundamentais diante de maiorias autoritárias ou sem limites. Entretanto esta é a questão central que nos interessa.
Lembrando as palavras de IVO DANTAS:
“O Poder Constituinte interessa à sociologia, especificamente a sociologia do Direito e a Sociologia Política, em virtude de ser um Poder de Fato, e não um Poder de Direito, espécie em que se enquadram os poderes constituídos, inclusive o chamado Poder de Reforma, erroneamente denominado Poder constituinte derivado”.[5]
Seguindo esta linha de raciocínio, e buscando na sociologia elementos essenciais para a compreensão do fenômeno constituinte, podemos afirmar que embora o poder constituinte originário não tenha limites no ordenamento jurídico positivo com o qual ele está rompendo, este poder sofre, de maneira clara e inegável, limitações de caráter social, cultural e forte influência do jogo de forças econômicas, sociais e políticas no momento da elaboração da Constituição.
Talvez seja necessária neste ponto uma diferenciação importante: o que são os limites legítimos de ação da assembléia constituinte decorrentes das influências dos diversos grupos de interesse presentes numa sociedade complexa e que são elementos legitimadores e democráticos do processo constituinte desde que manifestos de forma livre e dialógica na relação entre sociedade e representantes constituintes, e os limites ilegítimos, não democráticos, decorrentes de influências do poder econômico no processo eleitoral de escolha dos representantes através do abuso do poder econômico e de pressão econômica ou outras formas não democráticas puramente corporativas sobre o processo de votação na assembléia constituinte. Entretanto estas formas ilegítimas sempre estiveram presentes nos Estados de economia capitalista com maior ou menor influência, pois são decorrentes da própria lógica do jogo capitalista, inerente a este sistema econômico. O que resta fazer é desenvolver mecanismos que permitam diminuir as influências que SIEYES já mencionava como ilegítimas (e improváveis) pois decorrentes de pequenos grupos egoístas que querem impor seus interesses perante a maioria e perante todos os outros grupos de interesse de maneira não equilibrada e ilegítima.
Temos então até aqui as seguintes conclusões:
a) o poder constituinte originário é o poder de criar a Constituição e logo uma nova ordem jurídica soberana;
b) este poder é soberano e não sofre limites no ordenamento jurídico positivo anterior com o qual ele esta rompendo;
c) embora não existam limites jurídico positivos no ordenamento anterior, existem limites de ordem social, cultural e econômicos que se constituem no próprio processo de legitimação democrática deste poder, desde que manifestos de forma democrática e dialógica, em um processo de comunicação entre representantes e os diversos grupos e campos de interesse da sociedade civil;
d) portanto a legitimação democrática do poder constituinte originário não se esgota na eleição dos membros da assembléia nacional constituinte ou de uma possível ratificação popular da Constituição através de um referendo;
e) existem entretanto pressões de pequenos grupos privilegiados (corporações, poder econômico concentrado) que de maneira diferenciada em sociedades diferentes exercem pressão ilegítima, pois desequilibra de forma não democrática o complexo processo de construção de um texto que represente e proteja a manifestação democrática dos diversos grupos presentes em uma sociedade democrática;
f) a amplitude do poder constituinte significa o reconhecimento de outras formas de poder constituinte além do poder de criar a constituição;
g) estas outras formas de poder constituinte seriam o poder de reforma chamado de poder constituinte derivado e o poder constituinte decorrente pertencente aos entes federados de um Estado federal, que no nosso caso são os Estados membros e os Municípios que podem elaborar suas próprias Constituições;
h) o poder constituinte originário é um poder soberano e sem limites no ordenamento jurídico positivo anterior enquanto o poder de reforma e o poder constituinte dos estados membros são sempre limitados pela força do poder originário, portanto de segundo grau e subordinados;
i) o reconhecimento do poder de reforma como poder constituinte derivado não é uma mera questão de rótulo, mas pode carregar a idéia de que este poder possa ser tão amplo, que seria capaz de alterar radicalmente a Constituição, trazendo com isto uma insegurança indesejável, pois destrói um dos elementos essenciais do constitucionalismo que é a segurança nas relações jurídicas;
j) o poder de reforma se divide em poder de revisão e de emenda, sendo que alguns juristas vêm defendendo a possibilidade de através de revisão alterar-se radicalmente a Constituição, o que traz insegurança, pois fortalece muito o legislativo ordinário contra a noção de um poder que envolva amplamente a sociedade no processo excepcional de elaboração de uma Constituição;
k) como vimos a democracia não se resume no simples processo de escolha de possíveis representantes, mesmo porque em grande parte estes representantes não representam a todos mas muitas vezes a pequenos grupos ou a si mesmos;
l) democracia é participação e comunicação entre representantes e as varias camadas da sociedade civil;
m) portanto, como conclusão parcial podemos dizer que, reconhecendo o caráter de poder constituinte derivado ao poder de reforma através de emenda e revisão, é fundamental que se ressalte o seu caráter de subordinação.
O poder constituinte derivado, ou de reforma, portanto se divide em dois: o poder de emenda e o poder de revisão. Enquanto o poder originário pertence a uma assembléia eleita com finalidade de elaborar a Constituição, deixando de existir quando cumprida sua função, sendo um poder temporário, o poder de reforma é um poder latente, que pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e observados os seus limites materiais.
O poder de reforma por meio de emendas pode em geral se manifestar a qualquer tempo, sofrendo limites materiais, circunstanciais, formais e algumas vezes temporais. Este poder consiste em alterar pontualmente uma determinada matéria constitucional, adicionando, suprimindo, modificando alínea(s), inciso(s), artigo(s) da Constituição.
O poder de revisão em geral tem limites temporais, além dos limites circunstanciais, formais e materiais, ocorrendo, em algumas Constituições, sua manifestação periódica, como na Constituição portuguesa de 5 em 5 anos. Na nossa Constituição, houve a previsão de manifestação de poder uma única vez não podendo ocorrer de novo pois estava prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A revisão é mais ampla que a emenda, pois como sugere o nome trata-se de uma revisão sistêmica do texto, respeitados os limites. No Brasil entretanto, a nossa revisão foi atípica, se manifestando através de emendas. Entretanto, bem ou mal feita, o que ocorreu foi uma revisão, pois se deu, respeitados os aspectos formais processuais da revisão prevista no ADCT.
Devemos pois compreender o poder de reforma através de emendas e revisão e os seus limites materiais, circunstanciais, formais e temporais. Quanto aos limites podemos dizer o seguinte:
a) limites materiais: os limites materiais dizem respeito as matérias que não podem ser objeto de emenda expresso ou implícitos;
b) os limites materiais implícitos dizem respeito a própria essência do poder de reforma. Mesmo que não existam limites expressos, a segurança jurídica exige que o poder de reforma não se transforme, por falta de limites materiais, em um poder originário. O poder de reforma pode modificar mantendo a essência da Constituição, ou seja, os princípios fundantes e estruturantes da Constituição, pois reforma não é construir outro mas modificar mantendo a estrutura e os fundamentos;
c) são portanto limites materiais implícitos o respeito aos princípios fundamentais e estruturais da constituição, que só poderão ser modificados através de outra assembléia constituinte, ou seja, através de um outro poder constituinte originário;
d) o artigo 60 parágrafo 4 incisos I a IV da CF trazem os limites materiais expressos, dispondo que é vedada emenda tendente a abolir a forma federal, os direitos individuais e suas garantias, a separação de poderes e a democracia;
e) já estudamos a teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais e podemos afirmar com muita tranqüilidade que não podem existir emendas que venham de alguma forma limitar os direitos individuais, políticos, sociais e econômicos;
f) podem existir emendas sobre a separação de poderes, a democracia, os direitos individuais e suas garantias e o federalismo, desde que sejam para aperfeiçoar, jamais para restringir;
g) como já estudado no tomo II do Curso de Direito Constitucional, a proteção ao federalismo, significa a proteção ao processo de descentralização essencial ao nosso federalismo centrífugo;
h) além dos limites materiais expressos no artigo 60 parágrafo 4 da CF 88 encontramos limites circunstanciais, que proíbem emendas ou revisão durante situações de grave comprometimento da estabilidade democrática como o estado de sitio, estado de defesa e intervenção federal;
i) como afirmado acima, existem limites materiais implícitos que representam a própria essência do poder constituinte derivado;
j) o poder de reforma, como o nome sugere, diz respeito a alteração de elementos secundários de uma ordem jurídica, pois não é possível através de emenda ou revisão alterar os princípios fundamentais ou estruturais de uma ordem constitucional;
k) os princípios fundamentais e estruturantes são a essência da Constituição e mesmo que não haja clausula expressa que proíba emenda ou revisão, a essência não pode ser alterada;
l) reforma significa alterar normas secundárias, as regras, mas, jamais, a estrutura, a essência, o fundamento de uma ordem jurídica;
m) reforma não significa a construção de novo;
n) outro limite implícito obvio diz respeito as regras constitucionais referentes ao funcionamento ao poder constituinte de reforma;
o) estas regras não podem ser objeto de emenda;
p) as regras de funcionamento do poder constituinte derivado, o poder de reforma, por motivos óbvios, não podem ser objeto de emenda ou revisão, pois, caso contrario estaríamos condenados a mais absoluta insegurança jurídica;
q) a proibição do funcionamento do poder de reforma (emendas ou revisão) durante estado de defesa, de sitio ou intervenção federal constituem limites circunstanciais como já mencionado;
r) os limites formais obrigam que a emenda de dê através de quorum de 3 quintos em dois turnos de votação em seção bicameral enquanto a revisão (contrariando a lógica doutrinaria que exigia processo mais qualificado) ocorreu em seção unicameral por maioria absoluta (50% mais um de todos os representantes);
s) quanto aos limites temporais a Constituição de 88 estabeleceu que a revisão ocorreria após cinco anos da promulgação da Constituição, não existindo limites temporais para a reforma por meio de emendas;
Esta discussão não é nova e encontramos no clássicos do Direito Constitucional nacional e estrangeiro varias referencias a amplitude do poder constituinte e o poder de reforma.
NELSON DE SOUZA SAMPAIO, afirmava que o poder reformador está abaixo do Poder Constituinte e jamais poderá ser ilimitado como este. Seja como se queira chamar este poder reformador, seja de Poder constituinte constituído como faz SANCHES AGESTA; poder constituinte derivado como faz PELAYO e BARACHO, ou poder constituinte instituído segundo BURDEAU, devemos encará-lo como faz PONTES de MIRANDA, como uma atividade constituidora diferida ou um poder constituinte de segundo grau como faz também ROSAH RUSSOMANO.[6]
Outro aspecto referente a amplitude do Poder Constituinte diz respeito ao Poder Constituinte decorrente, ou seja, o poder constituinte dos entes federados, no nosso caso, Estados membros e Municípios. Já estudamos no nosso livro Direito Constitucional, tomo II, da Editora Mandamentos, as características principais do Estado Federal. Naquele momento, deixamos claro que o que difere o Estado Federal de outras formas descentralizadas de organização territorial do Estado contemporâneo é a existência de um poder constituinte decorrente, ou seja, a descentralização de competências legislativas constitucionais, onde o ente federado elabora sua própria constituição e a promulga, sem que seja possível ou necessário uma intervenção ou a aprovação desta Constituição por outra esfera de poder federal. Isto caracteriza a essência da Federação, a inexistência de hierarquia entre os entes federados (União, Estado e Municípios no caso brasileiro), pois cada uma das esferas de poder federal nos três níveis brasileiros, participa da soberania, ou seja, detém parcelas de soberania, expressa na suas competências legislativa constitucional, ou seja, no exercício do poder constituinte derivado.
Não estamos afirmando que os estados membros, a União e os municípios são soberanos, pois soberano e o Estado Federal e a expressão unitária da soberania, ou seja, sua manifestação integral, só ocorre no Poder Constituinte Originário. O que afirmamos, é que no Estado Federal, além de uma repartição de competências legislativas ordinárias, administrativas e jurisdicionais, há também, e isto só ocorre no Estado Federal, uma repartição de competências legislativas constitucionais. Esta repartição de competências constitucionais implica na participação dos entes federados na soberania do Estado, que se fragmenta nas suas manifestações.
Entretanto, este poder constituinte decorrente, embora represente a manifestação de parcela de soberania, não é soberano, e por este motivo deve ser um poder com limites jurídicos bem claros, limites estes que podem ser materiais, formais, temporais e circunstanciais. No caso da Constituição de 1988, esta estabelece limites materiais expressos e obviamente implícitos, deixando para o poder constituinte decorrente, que é temporário (assim como o originário), prever o seu funcionamento, e o funcionamento do seu próprio poder de reforma e seus limites formais, materiais, circunstanciais e temporais. O poder constituinte decorrente é segundo grau (se dos Estados membros) e terceiro grau (se dos municípios), subordinados a vontade do poder constituinte originário, expressa na Constituição Federal. A repartição de competências no nosso Estado federal ocorre da seguinte forma:
a) o Estado federal é composto de três círculos não hierarquizados: União, Estados membros e Distrito Federal e os Municípios;
b) a Constituição Federal é a manifestação integral da soberania do Estado Federal;
c) a União detém competências legislativas ordinárias, administrativas, jurisdicionais e o poder constituinte derivado de reforma através de emendas e revisão a Constituição do Estado Federal, através do Legislativo da União;
d) os Estados membros detém competência legislativas ordinárias, jurisdicionais, administrativas e o poder constituinte decorrente, de elaborar suas próprias constituições, além é claro, do poder de reforma de suas constituições;
e) os municípios detém competências legislativas ordinárias, administrativas ( não detém competências jurisdicionais) e competências legislativas constitucionais, ou seja o poder constituinte decorrente de elaborar suas constituições (chamadas de leis orgânicas) e lógico o poder derivado de reforma de suas constituições;
f) o Distrito Federal também se tornou ente federado a partir de 1988 mas com características diferenciadas. O D.F. detém competências legislativas ordinárias e administrativas, que podem ser organizadas pelo seu poder constituinte decorrente (competência legislativa constitucional própria), e possui o seu próprio Judiciário e Ministério Público, que entretanto não poderão ser organizados por sua constituinte, mas serão organizados pela União para o Distrito Federal, por razão de segurança nacional. Detém, também, é claro, o poder de reformar sua Constituição (chamada também de Lei Orgânica, o que não muda a sua natureza de poder constituinte decorrente, portanto de Constituição.
Quanto aos limites do poder constituinte decorrente encontramos em vários momentos na constituição Federal e são limites materiais expressos e implícitos. Os limites expressos ocorrem todo momento que a Constituição distribui competências e normatiza condutas dos entes federados. Quanto aos limites implícitos, estes são os princípios estruturantes e fundamentais da República, que se impõem a todos os entes federados como por exemplo, a democracia, a separação de poderes, os direitos humanos, a redução das desigualdades sociais e regionais, a dignidade humana, entre outros.
Alguns entendem que a Constituição Federal deve ser quase que copiada pelos entes federados o que no nosso entendimento é anti-federal. Se a Constituição federal expressamente não mencionou mandamentos aos entes federados, está livre o constituinte dos Estados e Municípios para dispor, desde que respeitados os princípios que estruturam e fundamentam a ordem constitucional federal. Por exemplo: se a Constituição Federal prevê o quorum de três quintos em dois turno para emenda a Constituição Federal, como norma regulamentadora do funcionamento do poder constituinte derivado federal, nada impede que o Estado Membro ou o Município estabeleçam quorum diferente, desde que respeitados o princípio da rigidez constitucional que caracteriza sua supremacia em relação as leis ordinárias e complementares e respeitado o princípio da separação de poderes.
3. A natureza do Poder Constituinte
Alguns autores entendem que o poder constituinte originário é o momento de passagem do poder ao Direito. É inegável que o poder constituinte originário é o momento maior de ruptura da ordem constitucional, onde o poder de fato que se instala, forte o suficiente para romper com a ordem estabelecida, é capaz de construir uma nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual está rompendo. Se entendermos o Direito como sendo sinônimo de lei positiva, posto pelo Estado, o poder constituinte originário será apenas um poder de fato. E é justamente neste ponto que reside sua força. É claro que não reduzimos o Direito nesta perspectiva positivista já ultrapassada, que reduz o Direito à regra, transformando construção do Direito em uma simples aplicação da receita pronta da lei ao caso concreto. Entretanto isto será objeto de estudo mais adiante. O que nos interessa agora é entender a força do poder constituinte originário como poder de fato, capaz de romper com a ordem vigente, e, portanto, um poder ilegal e inconstitucional em relação a ordem com a qual rompe, e pela qual não se limita. Esta afirmativa contém a essência da segurança que busca o constitucionalismo moderno: a Constituição na sua essência deve ser tão forte e perene que nenhum poder constituinte pode romper com seus fundamentos e estrutura, mas somente um poder social tão forte, que nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo pois é o poder de transformação social da própria história. Neste recurso do Direito Constitucional ao poder social, ao poder de fato, transformador e histórico, reside sua própria segurança, contra maiorias temporárias parlamentares que queiram transformar toda a Constituição, escrevendo uma nova, procurando se legitimar no voto que elegeu os representantes. A proteção contra o autoritarismo da maioria reside na exigência de poder social irresistível, única justificativa para a ruptura constitucional. Defensores de tese contraria procuram desenvolver mecanismos meramente representativos e consultivos (plebiscitos e referendos) para legitimar uma alteração radical do texto constitucional, que afete seus princípios fundamentais, criando na verdade uma nova Constituição. Estes mecanismos são verdadeiros golpes contra a segurança jurídica, que como disse, só pode ser rompida pela força social irresistível que não se expressa em meras representações, pois quinhentos não podem o que só milhões poderão. Pode-se afirmar entretanto que estes milhões podem ser ouvidos em plebiscitos, mas como proteger estes milhões da força de manipulação da propaganda na construção de uma falsa vontade popular. Por isto nada pode substituir a mobilização popular, única justificativa para rupturas constitucionais profundas.
Retornando a discussão inicial, podemos dizer, ao contrário, que, se entendermos entretanto que o Direito não se resume ao direito positivo, mas que está essencialmente ligado a idéia do justo, do correto, do direito, estaremos no campo das várias correntes do pensamento do Direito natural. Neste sentido o Direito é sinônimo de justo, e logo a lei positiva pode ou não conter o Direito, pois só será Direito se conter uma norma justa. O conceito do que é justo muda em cada corrente do Direito natural, mas o que há em comum nas varias teorias é a compreensão de que Direito é diferente de lei. Seguindo esta hipótese, o poder constituinte originário será um poder de Direito se representar o justo, o correto, o direito, e ao contrário, será um mero poder fato, ilegítimo, contra o Direito, se não representar a idéia do justo, do correto, do direito.
Não nos filiamos ao pensamento do Direito natural por considerarmos elitista, no sentido que ao se reconhecer que existe um direito justo anterior e superior ao direito produzido pelo Estado, quem será a pessoa ou pessoas que dirão o justo. Quem terá o discurso legitimado. Se o justo está na vontade divina, quem será o interprete desta vontade. Se o justo está na razão do filósofo, qual será o filosofo que nos dirá o justo.
Por este motivo entendemos que só processos democráticos dialógicos com ampla mobilização popular pode justificar uma ruptura, que sendo fato irresistível se afirma com força, mas não de forma ilimitada. O Direito não se encontra apenas no texto positivado, ou na decisão judicial, mas latente na idéia de justiça dialógicamente compartilhada em processos democráticos de transformação social, e será esta compreensão dialógicamente compartilhada, em uma sociedade, em um determinado momento histórico, que legitimará o Direito, sua compreensão democrática e sua transformação democrática, inclusive as rupturas constitucionais. O Poder constituinte originário só será legitimo se sustentado por amplo processo democrático dialógico que ultrapasse os estreitos limites da representação parlamentar e penetre nos diversos fluxos comunicativos da complexa sociedade nacional.
Portanto podemos concluir que este poder de fato será também de Direito, se efetivamente democrático, entendendo-se democrático, como um processo dialógico amplo que envolva o debate dos mais variados interesses e valores da sociedade nacional.
4. A titularidade do poder constituinte
Acredito que a resposta para a pergunta sobre quem deve ser o titular do poder constituinte já ficou clara no tópico anterior. Entretanto devemos responder a pergunta sobre quem é o titular deste poder nas suas várias manifestações históricas.
Retornando a visão (talvez um pouco romântica) dos ´clássicos` da teoria constitucional, encontramos no revolucionário SIÈYES a afirmação de que ´a nação existe antes de tudo – é a origem de tudo. Sua vontade é invariavelmente legal – é a própria lei`. Uma visão idealista importante como construção do discurso do estado constitucional mas que obviamente não resiste a uma análise histórica. Podemos mesmo perceber que a construção conceitual da idéia de nação para SIÉYES se constitui numa forma de legitimar a vontade do grupo no poder que atua em nome da vontade da nação. De forma diferente, a idéia de nação como estudada no Tomo II, constitui-se em numa construção histórica recente e não algo que existe antes de tudo, mas uma criação do próprio absolutismo.
Como vimos, foi com SIEYES que surge a idéia de poder constituinte, diferenciando este poder constituído, que não pode, na sua ação autônoma, atingir as leis fundamentais contidas na Constituição, criada por um poder constituinte, que, por sua vez, é produto da vontade da nação.
No Direito Constitucional brasileiro um autor importante é PINTO FERREIRA, que afirma que somente o povo tem a competência para exercer os poderes de soberania. Quando analisa os termos `Convenção Constitucional´ ,´Assembléia Constituinte´ e ´Convenção Nacional Constituinte´ afirma que a assembléia constituinte é o corpo representativo escolhido a fim de criar a Constituição. Existem para o autor dois tipos principais de organização do poder constituinte. Um será o modelo da convenção constitucional, que é o tipo primitivo onde existe uma assembléia eleita pelo povo para elaborar a Constituição, e não há necessidade de ratificação popular. O segundo modelo é o sistema popular direto, onde a Constituição é votada pela convenção nacional e posteriormente é submetida à aprovação popular através do referendo. Para o autor, este segundo modelo está mais próximo do espírito democrático. [7]
Na história do Estado constitucional, o sujeito do poder constituinte, o seu titular, pode ser individual ou coletivo, capacitado para criar ou revisar a Constituição. Desta forma encontramos na história distorções graves da teoria democrática, onde o titular é um Rei, um ditador, uma classe, um grupo (o que obvio está por detrás do titular individual), todos em nome do povo ou legitimados por poderes outros que o poder que efetivamente os sustenta. O discurso esconde a real fonte do poder, ou mais, o discurso constitui uma fonte do poder ao disfarçar, encobrir sua origem. Entretanto encontramos também, exemplos que poderes constituintes que de forma diferentes, em graus diferentes, expressam a vontade de parcelas expressivas do povo nacional.
Não há dúvida que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos, que permitam que o processo de elaboração da constituição assim como de sua reforma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os representantes eleitos, mas através de legitima pressão da sociedade civil organizada.
Este poder será democrático na medida em que o processo constituinte sirva como arena privilegiada de demonstração dos grandes temas nacionais, para que, a partir daí, seja possível que as manifestações do jogo de forças sociais seja legitimamente exercido. É fundamental para isto que o poder de manipulação do marketing político, da propaganda, o poder de pressão econômica seja minado ao máximo. Não pode uma minoria nos bastidores se sobrepor a vontade presente nas ruas e no campo.
Finalmente um triste fato reportado pela imprensa nacional levou ao questionamento da legitimidade da Constituição de 1988. O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, declarou publicamente que artigos da nossa Constituição foram inseridos no texto sem a observância do processo legislativo adequado. Diante deste fato estranho, principalmente pelo fato de um Ministro confessar publicamente um grave desrespeito ao cidadão brasileiro, devemos nos questionar a importância do processo constituinte, ou melhor, a importância da forma, para a legitimação da Constituição. Entretanto voltamos a pergunta inicial: como fica a legitimidade das constituição diante dos fatos expostos, ou, em outras palavras, qual a relação entre forma, conteúdo e legitimidade democrática. Sem dúvida os fatos relatados pelo Ministro não deslegitimam a Constituição uma vez que a Constituição não é só texto mas sim a leitura que se faz do texto pela sociedade. Nossa Constituição já foi incorporada pela sociedade e foi responsável por grandes transformações democráticas. Isto demonstra sua legitimação diária como instrumento de resistência democrática ás forças neo-conservadoras que querem deslegitimá-la, seja atacando seu processo formal de elaboração sendo acusando seu caráter social e democrático de impedir o desenvolvimento econômico, afirmativa sem fundamento e equivocada.
Informações Sobre o Autor
José Luiz Quadros de Magalhães
Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG Professor da graduação, mestrado e doutorado da PUC-MINAS e UFMG.