Ari Timóteo dos Reis Júnior – Procurador da Fazenda Nacional. Professor de Direito. Mestrando em Direito
Resumo: O estudo desenvolve conceitos relativos à relação Estado e religião, laicidade e liberdade religiosa, a partir de uma análise crítica da ADI nº 4439 julgada pelo STF. Noções como laicidade, laicismo, neutralidade e tolerância são aprofundadas, bem como tratados textos normativos internacionais e jurisprudência comparada, de forma a permitir uma melhor compreensão e contextualização da posição da corte constitucional brasileira sobre o ensino religioso em escolas públicas.
Palavras-chave: laicidade; laicismo; liberdade religiosa; neutralidade; ensino religioso.
Abstract: The study develops concepts related to the relationship between State and religion, secularism and religious freedom, based on a critical analysis of ADI nº 4439 judged by the STF. Notions such as secularism, secularism, neutrality and tolerance are deepened, as well as international normative texts and comparative jurisprudence treaties, in order to allow a better understanding and contextualization of the position of the Brazilian constitutional court on religious education in public schools.
Keywords: secularity; secularism; religious freedom; neutrality; religious education
Sumário: Introdução. 1. A norma constitucional padrão da liberdade religiosa no Brasil e o propósito da ADI 4439; 2 do voto vencido; 3 da jurisprudência do tribunal; 4. A liberdade religiosa para além do julgado do STF; 4.1. Modelos de relação Estado-Igreja e secularismo; 4.2. A intrincada questão da neutralidade; 4.3. Direito fundamental à liberdade religiosa e seus reflexos sobre a relação Estado-Igreja; 4.4. Ensino religioso em escolas públicas; Conclusão; Bibliografia.
INTRODUÇÃO
O objeto do presente estudo é o desenvolvimento de conceitos referentes à relação entre Estado e Igreja, laicidade e liberdade religiosa, partindo da análise crítica do entendimento jurisprudencial advindo da ADI nº 4439, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 27/09/2017, que diz respeito à compatibilidade do ensino religioso em escola pública com às exigências da liberdade religiosa e da laicidade do Estado, conforme regramento previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
O ensino religioso é oferecido nas escolas públicas brasileiras por força de previsão da constituição brasileira (art. 210, § 1º), regulamentada pela da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e também nos termos do art. 11, § 1º do Acordo Brasil-Santa Sé, promulgado pelo Decreto nº 7.107/2010, que expressamente diz que o ensino será católico e de outras confissões religiosas. Tal ensino religioso é de matrícula facultativa e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Ademais, possui natureza confessional, sendo vinculado às diversas crenças religiosas, com admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas, embora a legislação vede o proselistismo ao mesmo tempo em que exige que seja assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do país. No processo de controle de constitucionalidade citado acima, impugna-se a possibilidade de ensino religioso confessional em escolas públicas, admitindo-se apenas o não confessional, tendo em vista as exigências da liberdade religiosa e da laicidade do Estado que, sob essa ótica, impõe uma postura neutra do Estado em relação às diferentes orientações diante do fenômeno religioso e determina o respeito à liberdade e à igualdade do indivíduo no aspecto religioso, que ficariam comprometidos, especialmente por se estar diante de crianças, que não seriam tratadas com igual respeito e consideração, haja vista que privilegiar-se-ia as crenças majoritárias, que acabariam por prevalecer, sem uma real liberdade concreta de fazer escolhas, num processo educacional que se mostraria excludente e estigmatizante.
Por 6 votos à 5, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o texto constitucional prevê o ensino religioso de natureza confessional. Essa conclusão não foi considerada incompatível com a laicidade do Estado ou à liberdade religiosa (inclusive a de não seguir nenhuma religião – agnósticos e ateus), mas em conformidade com elas, que foram interpretadas como a impossibilidade do Estado adotar, privilegiar, perseguir ou fundamentar seus atos em uma religião, bem como interferir, obstar ou dificultar a opção das pessoas em relação ao fenômeno religioso. Houve a concretização da dimensão jurídica desses preceitos, assentando-se, em apertada síntese, que não significam um Estado laicista ou antireligioso, mas um Estado que reconhece o espaço religioso numa perspectiva pluralista, que aceita o convívio em sala de aula das diferentes perspectivas, sem imposição e sem dirigismo estatal, permitindo a manifestação religiosa em espaços públicos de tolerância e respeito mútuos, sem que se possa impor um ponto de vista contrário ou a favor das religiões ou tentar impedir aqueles que professem uma fé de exercê-la ou desenvolvê-la em espaços públicos, de modo que o ensino religioso facultativo, ministrado de acordo com a confissão do aluno, ao invés de ir contra, promove e constitui direito subjetivo individual inerente à liberdade religiosa.
Nos propomos a analisar criticamente esse entendimento jurisprudencial, desenvolvendo o tema em profundidade suficiente que nos permita uma tomada de posição quanto ao acerto ou desacerto da tese. Com isso, queremos dizer que atribuir a “última palavra” ao juiz não é o fim do raciocínio pertinente à questão, nem nosso ponto de chegada, mas se insere em um leque mais amplo. À nós, parece que, jutamente com o que diz NOEL STRUCHINER, “o direito não é meramente aquilo que os juízes decidem”[i] e que, talvez, devéssemos refletir se o Direito deva ser encarado como um receptáculo vazio a ser preenchido por qualquer conteúdo por parte de acadêmicos e juízes. Seguem as palavras do autor:
“Um típico argumento cético em relação às regras jurídicas é armado da seguinte forma: como em qualquer sistema jurídico desenvolvido, existe um órgão judicial cujo poder de decisão é supremo (a decisão tomada por ele será a decisão final), então, mesmo que essa corte suprema não recorra às regras jurídicas estabelecidas, nada poderá ser feito, e as decisões desses órgãos vão vigorar ainda assim. A conclusão dos realistas que adotam esse argumento é a de que as regras jurídicas não têm um papel fundamental no processo decisório, e que o direito é na verdade aquilo que os juízes determinam como sendo o direito. Para os realistas, se o direito é aquilo que os juízes determinam como sendo o direito, se todo ato decisório é um ato de criação do direito, então não faz sentido afirmar que eles são falíveis.
…
Apesar de o juiz ter a palavra final, podemos afirmar que ele está errado. Não é porque a sua palavra é a palavra final que ele será infalível. O simples fato de podermos afirmar que o juiz está errado demonstra que o direito não é meramente aquilo que os juízes decidem. A melhor explicação para a nossa capacidade de reconhecer o erro é a de que a linguagem do direito possui um significado compartilhado e podemos, em um grande número de casos, afirmar que ele não está sendo observado”[ii]
Como ensinava HART, ao trazer uma analogia entre regras jurídicas e decisões judiciais de um lado e, de outro lado, as regras do críquete e o “jogo da discricionariedade do marcador”, os provimentos jurisdicionais, apesar de sua autoridade, podem estar descolados do Direito e, se assim for, não teríamos mais uma aplicação jurídico-normativa, mas a imposição da vontade do próprio julgador. Confira-se:
“Podemos distinguir um jogo normal de um jogo de “discricionariedade do marcador” simplesmente porque a regra de pontuação, embora tenha, como outras regras, a sua área de textura aberta em que o marcador deve exercer uma escolha, possui contudo um núcleo de significado estabelecido. É deste núcleo que o marcador não é livre de afastar-se e que, enquanto se mantém, constitui o padrão de pontuação correta e incorreta, quer para o jogador, ao fazer as suas declarações não-oficiais quanto ao resultado, quer para o marcador nas suas determinações oficiais. É isto que torna verdadeiro dizer que as determinações do marcador não são infalíveis, embora seja, definitivas. O mesmo é verdade quanto ao direito.
Até um certo ponto, o fato de que certas determinações dadas por um marcador são claramente erradas não é incoerente com a continuação do jogo: contam tanto com o as determinações que são obviamente corretas; mas há um limite quanto à medida em que a tolerância face às decisões incorretas é compatível com a existência continuada do mesmo jogo e isto tem uma importante analogia jurídica. O fato de as aberrações oficiais ou excepcionais serem toleradas não significa que o jogo de críquete ou de basebol já não esteja a jogar-se. Por outro lado, se estas aberrações forem frequentes ou se o marcador repudiar a regra de pontuação, há de chegar a um ponto em que, ou os jogadores não aceitam já as determinações aberrantes do marcador ou, se o fazem, o jogo vem a alterar-se; já não é críquete ou basebol mas “discricionariedade do marcador”; porque um aspecto definidor destes outros jogos é que, em geral, os seus resultados sejam determinados da forma exigida pelo significado simples da regra, seja qual for a latitude que a sua textura aberta possa deixar ao marcador. Em certas condições imagináveis, deveríamos dizer que, na verdade, o jogo que estava a disputar-se era o da “discricionariedade do marcador”, mas o fato de em todos os jogos as determinações deste serem definitivas não significa que isto constitua tudo aquilo que os jogos são.” [iii]
1. A NORMA CONSTITUCIONAL PADRÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL E O PROPÓSITO DA ADI Nº 4439
Os dispositivos normativos envolvidos são: o art. 33 da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e art. 11, § 1º do Acordo Brasil-Santa Sé (Decreto nº 7.107/2010), que são o objeto do controle de constitucionalidade; perante o art. 210, § 1º, c/c art. 5º, V, c/c art. 19, I, todos da CF/88, que funcionam como parâmetro para o controle de constitucionalidade. Os preceitos constitucionais estão redigidos nos seguintes termos:
“Art. 5º. VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
Art. 210. § 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.”
Desses dispositivos constitucionais é que deve ser extraída a norma nuclear para as relações Igreja-Estado e para a liberdade religiosa no Brasil. Observe que, ao contrário de constituições como a portuguesa[iv], embora não diga expressamente que religião e Estado estão separados, isso decorre da exigência de não manter relações de dependência ou aliança com representantes das confissões religiosas, mesmo que ressalvada a colaboração de interesse público, ressalva esta determinante e que dará toda a tônica para o modo de interação entre religião e poder temporal no ordenamento jurídico brasileiro.
Os objetos de controle de constitucionalidade são os seguintes:
“Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
- 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
- 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. (Lei nº 9394/96)
Art. 11. §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação. (Acordo Brasil-Santa Sé)”
Em uma primeira aproximação, já é fácil concluir que o ensino religioso deve estar presente na escola pública, porque foi previsto em uma norma constitucional originária que, por esse motivo, não se sujeita à controle de constitucionalidade. Com toda certeza, esse fato não impede a problematização e o debate acerca de como deveria ser o regramento do assunto com vistas à conformação da sociedade que pretendemos no Brasil, das consequências de um modo de relação entre poder religioso e poder político implicado no assunto e seus reflexos para os indivíduos, mas esta seria uma discussão de lege ferenda. Então, de lege lata, o que pode ocorrer é uma discussão acerca de como essa expressão “ensino religioso” deve ser interpretada à luz do sistema constitucional como um todo e é exatamente essa a discussão travada na ADI nº 4439: estaria previsto o ensino confessional, portanto, dos dogmas de fé, ou o referente seria um ensino não confessional, no sentido que parece coincidir com ciência da religião, história das religiões, filosofia das religiões etc., não envolvendo a transmissão dos dogmas, mas a análise externa das religiões?
A previsão de ensino religioso no texto constitucional brasileiro já é uma tradição que vem sendo seguida pelas diversas constituições do país. A Constituição brasileira de 1934 já estabelecia em seu art. 153 que o ensino religioso seria de frequência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis, e constituiria matéria dos horários nas escolas públicas primárias, secundárias, profissionais ou normais. A Constituição de 1937, art. 133, estatuia que “o ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de frequência compulsória por parte dos alunos”. Por sua vez, a Constituição de 1946, art. 168, V: “O ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, e de matrícula faculativa, e será ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal, ou responsável”. A Constituição de 1967, em seu art. 168 prescrevia que o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio[v].
Na verdade, parece ser de clareza mediana que o sentido da expressão “ensino religioso” utilizado pela CF/88 seja realmente de um ensino religioso confessional, mesmo porque, de outro modo, não teria sentido que fosse facultativo, e foi exatamente nesse sentido que foi editada tanto o art. 33 da Lei nº 9.394/96 como, sem sombras de dúvidas, o Acordo Brasil-Santa Sé. Logo, admitimos que se possa dizer que não se concorda que exista o ensino religioso confessional nas escolas públicas, mas não se pode dizer que não tenha sido previsto tanto pela constituição como pela legislação infraconstitucional.
É preciso ter clareza nesse ponto ao se confrontar a ADI nº 4439 para fins de análise jurídico-normativa. Honestamente, essa ação não foi proposta com o objetivo puro e simples de realização de controle de constitucionalidade da Lei nº 9.394/96 e do Acordo Brasil-Santa Sé frente ao que já se encontrava previamente estabelecido pela CF/88, mas com o propósito de proceder à uma mudança da norma[vi] constitucional através da via judicial, especificamente mediante uma reinterpretação do art. 210, § 1º, CF/88, no que se denominada “mutação constitucional”. Portanto, o sentido da ADI nº 4439 é buscar um ativismo judicial por parte do Supremo Tribunal Federal para que, ao invés de se submeter a alteração da disciplina do assunto ao crivo do Congresso Nacional, atingir esse objetivo em uma ação judicial que, conquanto possa e deva ter essa dimensão, não pode descambar para o excesso e para o arbítrio, nem pode, como advertiu HART na lição transcrita acima, substituir as regras do jogo pelas regras da vontade do próprio julgador.
Não colocaremos em debate a questão do papel, legitimidade e limites do Poder Judiciário nas democracias atuais, porque o presente estudo não comportaria tal aprofundamento e nem é esse o escopo proposto, razão pela qual o fizemos brevemente apenas por entender necessário que sempre se deve ter em conta o contexto externo e as perspectivas da decisão judicial a ser analisada.
Cientes de que ainda haverá muito a ser pesquisado e debatido sobre o aspecto jurídico-normativo da relação entre Estado e religião nas sociedades atuais e suas perspectivas futuras, seguem nossas considerações.´
2. DO VOTO VENCIDO
Dialética é um método cujo foco é a contraposição e contradição de ideias que levam a outras ideias, havendo um embate entre perspectivas diferentes sobre o mesmo tema com o objetivo de estabelecer um raciocínio mais apurado e uma conclusão mais sólida. Nesse sentido, embora o voto vencido não forme jurisprudência, é importante diretriz para compreensão e esclarecimento da ratio decidendi que prevaleceu no tribunal. Ademais, a correção do entendimento condutor do acórdão pode perfeitamente se buscada na inadequação da posição antagônica ou, em sentido contrário, pode ser infirmada pela solidez e justeza do voto vencido.
A posição que ficou vencida no STF está bem representada pelo voto do Min. Luís Roberto Barroso, que concluiu que a conciliação entre laicidade e ensino religioso somente seria possível se afastada a possibilidade de ensino confessional em escolas públicas.
Para essa conclusão, constrói-se uma noção de laicidade a partir do art. 19, I, CF/88 e, a partir dela, extrai-se três corolários ou decorrências. A primeira seria a exigência de separação formal entre Estado e Igreja que, segundo a ótica eleita, não seria observada diante da existência de ensino religioso em escolas públicas. Não há um desenvolvimento teórico mais aprofundado ou maiores explicações, sendo simplesmente utilizado o raciocínio de que a seperação entre Estado e Igreja não admite o ensino religioso confessional[vii]. Ora, essa conclusão não é uma decorrência lógica que prescinda de maiores fundamentações, de modo que, na forma como foi apresentada, aparenta-se mais como uma pressuposição do que uma conclusão perfeitamente fundamentada.
A segunda decorrência extraída da laicidade seria uma noção de neutralidade que, na perspectiva adotada, se identificaria tanto com a necessidade de tratamento igualitário às diversas confissões religiosas, como também com a exigência de não interferência no sentido de não embaraçar as religiões e, ainda, com a necessidade do Estado não atuar com base em critérios religiosos. Essa noção um pouco confusa de neutralidade, que parece estar embaraçada com outros conceitos distintos, serve para que se diga que “quando o Estado permite que se realize a iniciação ou o aprofundamento dos alunos de escolas públicas em determinada religião, ainda que sem ônus aos cofres públicos, tem-se por quebrada qualquer possibilidade de neutralidade”. Ocorre que, a adequada compreensão da neutralidade, que ficará mais clara adiante quando formos tratar do conceito de neutralidade de forma mais abrangente e não do conceito construído no voto, não traz a consequência afirmada. Além disso, é bem controverso, para não se dizer equivocada, que o ensino religioso em escolas públicas constituiria necessariamente um favorecimento, perseguição, embaraço às religiões[viii] ou adoção de critérios religiosos para atuação do Estado, como se demosntrará mais à frente do presente articulado.
Por fim, mesmo reconhecendo a liberdade religiosa como direito autônomo, ela também é colocada como decorrência da laicidade. Da dimensão objetiva da liberdade religiosa, corretamente (do ponto de vista adotado nesse estudo) foi extraído o dever do Estado de promover a tolerância e o respeito mútuo entre os adeptos de diferentes concepções religiosas e não religiosas, de modo a prevenir a discriminação e assegurar o pluralismo religioso. No entanto, a partir daí, e então se inicia o equívoco do voto vencido, parece ser incorreto dizer que o ensino religioso confessional em escolas públicas constituiria uma ofensa à liberdade religiosa porque: (a) existiriam crenças não representadas nas aulas; (b) existiria um estímulo às confissões religiosas majoritárias; (c) que os adeptos de confissões minoritárias ficariam excluídos e estigmatizados; e que (d) potencializaria um sentimento da minoria pela necessidade de aceitação da maioria religiosa, o que esbarraria no livre exercício da escolha espiritual[ix]. Todas essas preocupações e conjecturas (pois são isso que elas são), se eventualmente ocorrerem, parecem não estar propriamente ligadas à existência de ensino religioso confessional nas escolas públicas em sua relação com a laicidade, a liberdade religiosa e a separação Estado-Igreja (se o ensino religioso é juridicamente previsto e válido, em termos jurídicos), mas à outras circunstâncias que não decorrem diretamente e imediatamente do modelo jurídico adotado.
O voto vencido parece tendencialmente alinhado com à perspectiva do iluminismo racionalista acerca do fenômeno religioso, especialmente na sua vertente francesa oitocentista de separação entre Estado e igreja, o que traz diversos problemas à liberdade religiosa incompatíveis com o modelo que se pretende ter atualmente. Outrossim, conquanto tenha tratado coerentemente de alguns conceitos e ideias ligadas à liberdade religiosa, notadamente quanto à tolerância, o pluralismo religioso e à não aversão estatal ao fenômeno religioso, ao descer às conclusões acaba trazendo consequências não permitidas e talvez opostas à tais conceitos, perdendo-se em problemas práticos referentes à implementação do ensino, acabando por se avizinhar, também na prática, ao laicismo.
Os problemas práticos realmente são preocupantes. Quando indica que o ensino pode ser ministrado de forma transversal pelo próprio professor da turma e não como disciplina específica; quando alerta que houve contratações de professores de ensino religioso por concurso público, remunerados pelo Estado, sendo reservadas a maioria das vagas às religiões majoritárias; quando informa que o resultado da disciplina pode ser considerado para promoção do aluno de série; quando considera que a carga horária do ensino religioso pode vir a ser computada na carga horária mínima exigida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação; quando aponta dificuldades em se assegurar o ensino das confissões minoritárias; quando relatada abusos e discriminação de cunho religioso para com as religiões minoritárias; quando ressalta a preocupação com a influência que a maioria exerceria sobre as crianças de opções religiosas minoritárias etc.; todas essas circunstâncias são de fato um problema relevante e podem ser ofensivas à liberdade religiosa. Todavia, o problema não reside na existência do ensino religioso nas escolas públicas, ou sua compatibilidade com a separação Estado-Igreja, laicidade e liberdade religiosa, mas, como o próprio voto menciona, com a sua implementação prática, o que é algo totalmente distinto. Em síntese, todos os problemas apontados no voto não são do ensino religioso, mas de acontecimentos que se verificam em torno dele e que com ele não se identificam.
Destarte, a solução não está em confinar a religião à privacidade ou vida privada do indivíduo, eliminando-a do espaço público para se evitar problemas, porquanto a religião não é algo que se sujeite à mera tolerância do Estado, pelo contrário, o Estado tem, não uma permissão, mas sim o dever de assegurá-la, mormente em razão da dimensão objetiva do direito fundamental à liberdade religiosa. Logo, considerando que os problemas não residem no ensino religioso em si, não faz sentido eliminá-lo para que não sobrevenham complexidades e desafios decorrentes da sua necessária implementação. Isso seria o mesmo que sacrificar um direito para que não haja dificuldades na implementação desse mesmo direito, o que, diga-se, é um contrassenso em termos jurídicos.
Se o ensino religioso transversal é problemático, e ele realmente é, deve ser vedada esta forma de ministrar a disciplina religiosa; se tem havido casos de abusos e discriminações, que se punam os responsáveis, suspendam da escola, expulsem ou encaminhe à questão ao Poder Judiciário para os processos legais; se o modo de seleção dos professores representa favorecimento à determinadas confissões, que se altere o modo de seleção; se o ensino religioso tem sido considerado para carga horária mínima ou para promoção de série pelo aluno, que se deixe claro que assim não pode ser etc. No entanto, esses desvios na implementação não são inerente e nem servem de fundamento para proibir-se o ensino religioso. Apontar-se nisso um óbice seria, como dito acima, o mesmo que sacrificar-se um direito porque sua implementação é custosa. Pois bem, pode até ser custosa, mas é um direito e, como tal, deve ser implementado e não abandonado.
Ademais, a questão da pressão da identidade cultural da maioria sobre a minoria não é um problema apenas de religião, mas pertinente à todos os aspectos da vida em sociedade e inerente à ela. Onde quer que exista uma sociedade plural, ela existirá, e não é proibindo a manifestação da maioria que se resolverá o problema. A coexistência entre maioria e minorias é próprio da vida em sociedade e o adequado é que haja o convívio entre ambas, mormente nos espaços públicos. O exercício da religião majoritária pode gerar desconforto naqueles que seguem uma confissão minoritária e o recíproco também pode acontecer, mas terá que se conviver com tal desconforto, tendo em vista que faz parte das exigências de uma sociedade plural. Nesse sentido, o que se mostra inadequado é corroborar um argumento que, simplificando, seria o mesmo que dizer “exerça a sua religião na sua casa e não na minha frente”, porque a pessoa se sente desconfortável, constrangida ou ache a convicção religiosa uma idiotice. Esse problema da posição vencida fica bem evidente nas palavras do Min. Luís Roberto Barroso que, ao rebater o voto vencedor, diz: “A minha convicção é a de que a religião é um espaço da vida privada e, portanto, não deve ter um locus no espaço público”. A se seguir essa perspectiva, a necessária tolerância no espaço público, para usar o linguajar popular, “foi para o espaço”.
Haverá que surgir uma solução para o convívio, para que tal desconforto ou constrangimento subjetivo se faça dentro de limites sadios, mas nunca se poderia eliminar a convivência do espaço público para que não existam dificuldades, e o nome disso é falado aos quatro ventos: tolerância, que deve existir tanto por parte da maioria em relação à minoria, como da minoria em relação à maioria.
Portanto, no voto vencido, os maiores problemas do ensino religioso nas escolas públicas foram identificado nas circunstâncias fáticas de sua implementação, não tanto na sua conformação jurídica. Ademais, em relação à tese jurídica, conquanto expostos adequadamente alguns conceitos in abstrato, a maneira como foram aplicados parece pender para um laicismo não expressamente declarado, fruto de um exagerado apego ao humanismo racionalista.
3. DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL
A jurisprudência do tribunal teve no voto condutor do Min. Alexandre de Moares os seus principais fundamentos, exarado no sentido de que o regime jurídico-constitucional da relação Estado-Igreja vigente na CF/88 baseia-se em uma interdependência e complementariedade entre o Estado laico e a liberdade religiosa, e, além disso, que o problema constitucional apontado na demanda também diz respeito à liberdade de expressão do pensamento à luz da tolerância e da diversidade de opiniões.
De fato, laicidade e liberdade religiosa estão relacionadas porque um Estado confessional traz problemas à livre escolha e exercício da religião, contudo, não se está a dizer muita coisa com isso, porque é uma regra de índole geral a exigir densificação, enquanto que o importante para o deslinde da questão proposta é bem mais específico e consiste em saber e como construir as consequências dessa linha de raciocínio para a possibilidade do ensino religioso em escolas públicas. Essa questão, com toda certeza, se insere em um espectro mais amplo pertinente ao papel do Estado diante do fenômeno religioso, que alcança não apenas o ensino religioso, como também diversas outras possibilidades, atuais e/ou futuras, que deverão seguir o mesmo fio de raciocínio.
Em relação à liberdade de expressão do pensamento, entende-se que ela já está ínsita à liberdade religiosa, pois a liberdade religiosa ficaria comprometida onde não houvesse a possibilidade de sua expressão. Nesse ponto, insta registrar a existência de debate concernente à identificação, precedência ou distinção entre liberdade de consciência e liberdade religiosa[x], que são essenciais e prévias à liberdade de expressão. De qualquer forma, não é necessário chegarmos à tal ponto de análise, eis que a liberdade religiosa está inevitavelmente ligada à liberdade de expressão do pensamento em relação ao entendimento religioso da pessoa, de modo que a censura com esse perfil certamente constitui ofensa à liberdade religiosa.
Dito isso, interessante compreender melhor o voto vencedor com vistas à, no item seguinte, discutir a liberdade religiosa e a relação Estado-Igreja para além da decisão do Supremo Tribunal Federal do Brasil, com o que poderemos nos posicionar diante dela e, mais do que isso, estabelecer um entendimento sobre esse tão importante tema jurídico-constitucional, filosófico, estrutural e até mesmo existencial.
O tribunal, em sua maioria, entendeu que o texto constitucional prevê no art. 213, § 1º, CF/88 o ensino religioso de natureza confessional. Isto está bem demonstrado no transcorrer do voto e embasado no exame dos trabalhos da Assembléia Constituinte, na tradição das constituições brasileiras, em entendimentos doutrinários, em diferenciação entre o ensino religioso e outras disciplinas, bem como na repulsa ao retalho dos dogmas da fé de cada uma das religiões como forma de obter-se uma suposta neutralidade.
Mesmo assim, através do ativismo judicial, o dispositivo constitucional poderia ter sido reinterpretado, de forma inovadora e normativamente inaugural[xi], como feito pelo voto vencido, para que fosse tomado como previsão de um ensino não confessional. Entretanto, não foi isso que ocorreu. A intervenção judicial foi negada[xii] e os motivos para tanto é o que há de mais importante no acórdão para o estudo que nos propomos.
O principal motivo pelo qual não houve mutação constitucional está em que o tribunal, em sua maioria, considerou adequado o ensino religioso confessional em relação à separação entre Estado e igreja, laicidade e liberdade religiosa. O objetivo pretendido na ADI nº 4.439 foi visto como tentativa de censura da expressão religiosa e de limitação do direito do aluno e/ou seus pais de matricular-se no ensino religioso de sua própria confissão, configurando-se uma restrição à liberdade religiosa. Observe, assim, como foi importante aclarar os objetivos da demanda, tal como fizemos no item 2 do presente estudo.
Em síntese, a liberdade religiosa e laicidade foram interpretadas como a impossibilidade do Estado adotar, privilegiar, perseguir ou fundamentar seus atos em uma religião, bem como interferir, obstar ou dificultar a opção das pessoas em relação ao fenômeno religioso. Houve concretização da dimensão jurídica desses preceitos, que não significariam um Estado laicista ou antireligioso, mas um Estado que reconhece o espaço religioso numa perspectiva pluralista, que aceita o convívio em sala de aula das diferentes perspectivas, sem imposição e sem dirigismo estatal, permitindo a manifestação religiosa em espaços públicos de tolerância e respeito mútuos, sem que se possa impor um ponto de vista contrário ou a favor das religiões ou tentar impedir aqueles que professem uma fé de exercê-la ou desenvolvê-la em espaços públicos, de modo que o ensino religioso facultativo, ministrado de acordo com a confissão do aluno, ao invés de ir contra, promove e constitui direito subjetivo individual inerente à liberdade religiosa.
Podemos sintetizar as posições jurídicas estabelecidas da seguinte forma:
- a) a constituição brasileira reconhece a laicidade e a liberdade religiosa em uma relação de complementariedade, sendo que sua previsão constitucional não prejudica a colaboração do Poder Público com entidadas religiosas, desde que respeitados certos parâmtros, o que está bem claro no voto[xiii];
- b) a liberdade religiosa e a vedação ao proselitismo são respeitadas diante da facultatividade do ensino e sua pluralidade (franqueado à todas as religiões)
- c) o Estado laico pode garantir, em igualdade de condições, o ensino religioso em escolas públicas, para aqueles que queiram, não havendo que se confundir isso com um Estado confessional, principalmente porque é vedado ao Estado impor, optar ou ser conivente com uma única e determinada crença, em detrimento das demais;
- d) o ensino religioso em escolas públicas constitui direito subjetivo constitucional dos alunos e dos pais e não um dever imposto ao Estado;
- e) afirmou-se a necessidade de tolerância em relação à diversidade religiosa na escola, o que se opõe à eliminação da expressão religiosa no ambiente escolar. A tolerância é reconhecida como algo defendido pela Corte em diversas ocasiões pretéritas e inclui a diversidade de opiniões em sala de aula, alcançando a diversidade de expressões religiosas na disciplina de ensino religioso facultativo;
- f) apontou-se para o chamamento público e preferencialmente sem ônus para o Estado como forma de consecução do ensino religioso nas escolas públicas;
4. A LIBERDADE RELIGIOSA PARA ALÉM DO JULGADO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Já tendo sido analiticamente apresentado o entendimento do Supremo Tribunal Federal do Brasil, no presente tópico se buscará desenvolver conceitos ligados à liberdade religiosa como forma de construir noções que nos permitam tomar partido acerca do entendimento jurisprudencial.
4.1. Modelos de relação Estado-Igreja e secularismo
Quando se fala em separação Estado-Igreja está-se a referir ao modelo adotado por determinada sociedade quanto à relação que deve existir entre Estado e Igreja[xiv]. Em nível estrutural, existem modelos que vão desde a completa unidade à completa separação, mas insta registrar que os extremos são modelos ideais, uma vez que há uma inevitável mistura entre religião e governo. Os modelos em que existe uma identificação são chamados de monistas[xv] e podem assumir a forma teocrática ou cesarista[xvi]. Na forma teocrática a religião controla o Estado, concebendo-se um governo pela divindade, no qual os governantes representam o divino, direta e imediatamente, de modo que a religião é suprema e o Estado existe para promover os interesses religiosos. De outro lado, no cesarismo o Estado controla a religião, que é usada para promover a política estatal.
Os modelos em que não há identificação entre o poder político e religioso são chamados de dualistas. A primeira afirmação histórica da liberdade religiosa deve-se ao cristianismo na antiguidade (dualismo cristão, que assenta bases para dissolução do poder totalitário, uma vez que afirma que nenhuma autoridade humana disporia de poder absoluto sobre o indivíduo), porque pressupunha um Deus transcendente ao mundo que fundamenta a subtração do âmbito religioso ao poder político, com a separação entre autoridade política e autoridade religiosa. A própria noção de dividir a religião da política encontra sua origem no cristianismo, começando com o ensinamento de Jesus de “dar a César o que é de César”, passando pelas duas cidades de Agostinho, até os “dois reinos” de Lutero[xvii]. Como ensina Paulo Pulido Adragão, a afirmação do dualismo é simultaneamente, fundamento imprescindível para limitação jurídica do poder político, razão de ser do Direito público, haja vista que compreende que a comunidade política não é a única, devendo conviver e relacionar-se com outras, designadamente com as comunidades religiosas.[xviii]
O dualismo seguiu uma perspectiva gelasiana[xix] durante a idade média, embora tenha conhecido desvios práticos importantes no hierocratismo medieval[xx] até chegar ao regalismo moderno[xxi], indicando a ascendência do poder religioso sobre o político e vice-versa, embora pressuposta a sua não identificação.
O sec. XVI trouxe a reforma protestante, que contribuiu com o reconhecimento de paridade entre confissões religiosas e, a partir da Paz de Westfalia (1648) passando pelas revoluções americana (1776) e francesa (1789), a tolerância religiosa deixou de ser vista como uma contingência negativa, derivada da divisão religiosa, para ser vista como virtude, advindo mais do que uma distinção, uma separação entre Estado e religião.
A primeira proclamação da liberdade religiosa em um catálogo de direitos foi feita pelo art. 16[xxii] da Declaração de Direitos da Virgínia (1776), seguindo-se ao art. 10[xxiii] da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), valendo registrar que a visão da liberdade religiosa de ambas é diferente[xxiv] (estadunidente e do liberalismo europeu continental). Nesse sentido, enquanto a experiência americana conduziu à separação entre Igreja e Estado, inserindo-se num avanço prático no sentido do livre exercício da religião que levará à ideia de pluralismo religioso, a francesa sustentou-se no ceticismo religioso com matiz ideológica anti-religiosa, havendo uma convivência contraditória entre práticas regalistas e a oposição relativa do Estado à religião.
O liberalismo continental europeu oitocentista acabou seguindo uma perspectiva negadora da liberdade religiosa em razão de fundamentos filosóficos e ideológicos, frutos da ideia central do iluminismo de considerar a razão como única fonte de conhecimento, o que levou à rejeição de toda a autoridade que não se pudesse jusiticar perante o senso comum do pensador individual[xxv], sendo que isso explica a denominada questão religiosa no século XIX (luta dos Estados liberais da Europa continental contra a Igreja Católica). Portanto, suas bases em relação ao direito à liberdade religiosa eram o ateísmo, o indiferentismo e o agnocitismo, pois via-se todas religiões como falsas ou se entendia que não era possível aferir qual a verdadeira, configurando uma atitude hostil à religião. Assim surge o jurisdicionalismo liberal do século XIX, no qual o Estado não abre mão dos instrumentos para controlar as manifestações organizadas da vida religiosa, embora use deles com uma finalidade diferente, numa atitude de oposição relativa à religião. Assim, ao invês de limitar-se a separar o Estado da religião e tutelar a liberdade religiosa, prosseguiu também com uma política religiosa própria, com intenção de condicionar ou mesmo reprimir as entidades religiosas.
Esse sistema evoluirá de forma lenta e complexa até à concepção do tratamento do fator religioso própria das democracias pluralistas. A atenuação da carga ideológica do Estado liberal europeu, no sec. XX permitiu a superação da questão religiosa e, com ela, do jurisdicionalismo.
Nesse contexto de afirmação de um modelo específico de relação entre o Estado e a Igreja, surge a figura do chamado Estado secular, que é um conceito não isento de dificuldades e tem sido definido de vários modos, estando implicado na demarcação Estado-Igreja, portanto, num separacionismo, em que o governo está limitado ao saeculum ou reino temporal. Nesse sentido, o Estado é independente da religião institucional ou do controle eclesiástico e, por sua vez, a religião é independente do controle estatal ou político, podendo ser apontadas duas razões contrastantes para separação, uma política e outra teológica: numa perspectiva estrutural, a separação institucional funciona tanto para proteger o Estado da potência, imprevisibilidade e divisão da religião quanto, inversamente, para proteger a religião das intrusões e corrupções dos governantes temporais.[xxvi]
O secularismo denota uma filosofia política[xxvii] (ou aglomerado de filosofias), que nega a existência ou relevância de uma dimensão transcendental ou divina aos assuntos públicos, podendo ser identificadas duas versões: (a) secularismo hostil ou programático; (b) secularismo benevolente. A respeito do secularismo benevolente, calham as palavras de Rex Ahdar e Ian Leigh:
“O secularismo do tipo benevolente (ou suave, moderado, negativo, procedimental ou passivo) é uma filosofia que obriga o Estado a abster-se de adotar e impor quaisquer crenças estabelecidas – sejam elas convencionais crenças religiosas ou não religiosas (ateístas) sobre seus cidadãos. O secularismo benevolente contempla um Estado não confessional; sugerindo a possibilidade de uma ordem secular não estabelecida, que respeite igualmente os religiosos e não-religiosos. Aceita que a religião não se limita apenas a indivíduos e, portanto, reconhece associações e comunidades religiosas. Confera à religião, individual ou comunitária, a devida posição de participação igualitária na praça pública. Permite, como a Suprema Corte do Canadá esclareceu, que vozes religiosas sejam ouvidas em praça pública, embora não deva ser permitido abafar todas as outras. A religião não deve ser desprezada como inerentemnete perigosa. Essa visão solidária foi exposta em 2007 pelo (então) presidente francês Nicolas Sarkozy, que adotou o termo laicité positivo para um secularismo aberto, um convite ao diálogo, à tolerância e ao respeito.”[xxviii]
Observe que, nessa linha de pensamento, temos um Estado não confessional que respeita igualmente não religiosos e religiosos de todas as religiões, uma vez que todas são tomadas como iguais e dignas de igual respeito (tratamento imparcial das visões de mundo religiosas e seculares), o que já impede o tratamento privilegiado de qualquer confissão. A religião não deve ser desprezada como inerentemente perigosa, podendo participar da esfera pública (permite a participação e contribuição pública da religião). A unidade da sociedade não requer unidade de fé.
Por sua vez, o secularismo programático (hostil, duro ou assertivo) é uma defesa ideológica da causa secular, buscando uma sociedade baseada na razão, ou seja, dá à incredulidade uma posição privilegiada. O secularismo programático parece impor ao invés de desenvolver consenso, assemelhando-se à uma visão de mundo completa, que diz que aquele que lhe oponha resistência é irracional ou está nas garras do auto-engano. Com isso, o pensamento e a razão religiosos não têm lugar na esfera pública ou política, reservando-se à tais esferas o domínio exclusivo da razão e da racionalidade, a chamada razão pública[xxix]. Sobre o secularismo programático, Rowan Williams explica que:
“assume que qualquer sistema religioso ou ideológico que exija uma audiência na esfera pública tem como objetivo tomar o controle da esfera política e anular convicções opostas. Acha inquietantes as visões do bem humano fora de uma explicação mínima de segurança material e relativa estabilidade social, e conclui que elas precisam ser relegadas à esfera puramente privada. Assume-se que a expressão pública de uma convicção específica é automaticamente ofensiva para pessoas de outra (ou nenhuma) convicção. Assim, o apoio ou subsídio público direcionado a qualquer grupo em particular é um conluio com elementos que subvertem a harmonia da sociedade com um todo.
…
O secularismo programático, como abreviação para a negação da legitimidade pública do compromisso religioso como parceiro na conversa política, sempre carregará as sementes, não de totalitarismo no sentido óbvio, mas daquele espírito “totalizante” que sufoca a crítica silenciando o outro. (negrito nosso)”[xxx]
Neste diapasão, são apontadas como parte de suas características: (a) religião como algo potencialmente perigoso e irracional; (b) religião deve ser colocada em quarentena na esfera privada (não permite a participação e contribuição pública da religião); (c) razões e argumentos religiosos devem ser excluídos da formulação de políticas públicas; (d) símbolos e práticas religiosas são relíquias de épocas passadas que permanecem a exercer um poder coercitivo, devendo ser vencidos; etc.
Portanto, percebe-se que a relação entre Estado e Igreja guarda complexidades que vão muito além da simples afirmação de que as respectivas esferas se encontram separadas, conectadas ou identificadas ou se o Estado é laico ou não. A relação que se estabelece tem influência direta e decisiva na conformação do modelo de Estado, de política e de sociedade, notadamente na questão relativa à liberdade religiosa, que parece ser um bem jurídico protegido pela separação entre as esferas secular e religiosa[xxxi]. Por sua vez, se dessa seperação resulta um secularismo que será benevolente ou programático, isto dependerá da natureza e extensão da secularização da nação, o que mostra depender de uma contingência histórica.
4.2. A intrincada questão da neutralidade
É um argumento comum dizer que o Estado deve ser neutro em relação ao fenômeno religioso, que deveria manter uma posição equidistante, que a neutralidade seria uma característica dos Estados democráticos contemporâneos[xxxii], e que isso somaria-se à laicidade como forma de tutela da liberdade religiosa e promoveria uma sociedade plural inclusiva, mas é sintomático obsevar que diante de casos concretos chega-se à conclusões muito díspares acerca de como funcionaria essa neutralidade[xxxiii]. Dizer que a neutralidade situaria-se na ausência de preferências estatais é manifestamente insuficiente, porque é pacífico dizer que não se pode privilegiar ou perseguir em razão da opção religiosa da pessoa, mas não se expõe de que forma isso se concretizaria, ignorando o fenômeno religioso nas decisões políticas ou considerando-o de forma a se poder nivelar as possibilidades religiosas das pessoas para que possam ter uma decisão realmente livre? Os seus contornos são difíceis de estabelecer na prática e dificilmente chegaríamos à um consenso[xxxiv] sobre quando estaria sendo observada ou não, e se isso acontece não é sem motivo, chegando alguns autores a dizer que a neutralidade religiosa do Estado é impossível, pois o silêncio sobre a religião, na prática, redunda em posição contra a religisão[xxxv].
Rex Ahdar e Ian Leigh[xxxvi] expõem que não há posição verdadeiramente neutra em relação ao assunto, pois todos os modelos incorporam escolhas substantivas. A própria separação, por exemplo, é um julgamento carregado de valores no sentido de que certas áreas da condição humana se situam melhor dentro da esfera da religião, enquanto outras estão sob a autoridade do governo civil[xxxvii]. A este propósito, Carl Esbeck[xxxviii] nos diz que o separacionismo não é de forma alguma produto inevitável de uma razão objetiva não adulterada por um compromisso ideológico com algum ponto de referência mais elevado e que exigir que qualquer teoria das relações Igreja-Estado transcenda seus pressupostos e seja substanciamente neutra é pedir o impossível.
Sobre a questão da neutralidade do secularismo, Rex Ahdar e Ian Leigh entendem que nenhuma filosofia ou sistema de crenças coerente é neutro no sentido de que nenhum é indiferente ou imparcial em relação à sua própria natureza ou às suas doutrinas-chaves. O marxismo não é neutro em relação ao capitalismo, nem à reinvidicação do direito à propriedade privada. O catolicismo não é neutro ao protestantismo nem à doutrina protestante da sola Scriptura (somente as escrituras como padrão autoritário). O monarquismo que não insistisse em reis hereditários não seria monarquismo. Nenhuma filosofia, a menos que esteja satisfeita com sua própria destruição, é indiferente ou aceita princípios que contradizem diretamente ou minam suas próprias premissas centrais. E continuam:
“Não há dúvida de que uma linha de base secular é comumente admirada por muitos liberais como neutra e imparcial, mas isso depende interiamente do ponto de vista de cada um. Muitos religiosos questionam se o secularismo é realmente neutro, pelo menos em termos de seus efeitos. Eles discernem que o secularismo benevolente pode, com o tempo, deslizar infalivelmente e de forma alarmante para um secularismo hostil. Há um deslizamento do secularismo como separação para o secularismo-indiferença, [um que] é difícil de resistir.” [xxxix]
Jonathan Chaplin[xl] sugere uma razão para esse deslize, dizendo que onde a sociedade é amplamente secularizada – onde a vida pública e as instituições são principalmente governadas como se a autoridade religiosa fosse irrelevante – na prática, quase invariavelmente se inclinam para o secularismo programático, mesmo que apenas por padrão. Da mesma forma, em uma sociedade onde a vida pública e as instituições são principalmente governadas como se a autoridade bíblica fosse obrigatória, na prática quase inevitavelmente ela parecerá cristianizada, também por padrão.
Merece registro que a neutralidade é um termo ambíguo e que requer contextualização: neutro em qual sentido (propósito, efeito, oportunidade), de que forma (financiamento, isenção, proibição) e para quem (crentes, empregadores, funcionários do Estado)? Em termos de resposta do Estado, a neutralidade exige um desengajamento em relação à religião ou sua promoçao positiva e imparcial?
Nesse aspecto, apontam-se dois modelos para a neutralidade[xli]: formal e substancial. No modelo formal (chamado de cegueira religiosa) o Estado deve se relacionar com o crente sem levar em consideração a sua fé, de modo que a religião não deve ter tratamento diferente de qualquer outra coisa, o que faz com que o Estado não possa utilizar a religião como padrão para ação ou inação, seja para conferir benefício ou impor um ônus, porque ela não seria merecedora de benefícios especiais ou ônus especiais, já que é tomada em igual consideração aos seus análogos seculares[xlii]. Observe que, nessa perspectiva, desde que o objetivo governamental não seja favorecer ou desfavorecer a religião, o fato de as consequências poderem sobrecarregar uma prática religiosa específica não teria relevância, o que nos conduz à conclusão de que a igualdade formal admite uma desigualdade de efeitos. Por exemplo, para neutralidade formal, uma lei obrigando o uso de capacetes de segurança para todos motociclistas é aceita, apesar dos Sikhs não poderem colocar um. Tal abordagem cega à religião, em certas circunstâncias, acaba por impor pesados custos à fiéis de uma confissão específica, notadamente em casos nos quais sua fé exige uma conduta que uma lei geral proíbe.
A respeito de como medidas de ordem legal geral podem afetar o exercício religioso, J.T. Noonan e E. M. Gaffney[xliii] trazem o interessante caso dos Amish da Antiga Ordem, um ramo dos menonitas que estabeleceram uma comunidade eclesiástica rigorosa e que imigraram para a América entre 1720 e 1775, sendo caracterizada pelo rigoroso afastamento dos pecadores. Em Wisconsin vs. Yoder, 406 US 205 (1972)[xliv] o argumento central era que a frenquência dos filhos na escola pública ou privada, obrigatória em razão de lei, era contrária à religião e ao modo de vida Amish, constituindo um ambiente hostil às suas crenças. Os pais acreditavam que, ao enviar seus filhos para o ensino médio, eles não apenas se exporiam ao perigo da censura da comunidade da igreja, mas também colocariam em risco sua própria salvação e a de seus filhos. Neste caso, tinha-se como certo o impacto que a frequência obrigatória traria na sobrevivência das comunidades religiosas como existiam à época. Os Amish rejeitavam igrejas institucionalizadas e buscavam retornar à vida primitiva, simples e cristã, tirando ênfase do sucesso material, rejeitando o espírito competitivo e procurando isolar-se do mundo moderno. Como resultado, a salvação exigiria uma vida em uma comunidade eclesiástica separada do mundo e da influência mundana, sendo que esse conceito de vida distante do mundo e de seus valores é essencial para sua fé. O Supremo Tribunal de Wisconsin deu razão aos Amish por considerar que o Estado não havia feito demonstração adequada de que seu interesse em estabelecer e manter um sistema educacional se sobreporia ao direito ao livre exercício da religião, o que foi confirmado pela Suprema Corte dos EUA, que destacou o interesse fundamental dos pais na orientação do futuro religioso e na educação dos filhos, de acordo com forte tradição americana.
De outro lado, no modelo de neutralidade substantiva a preocupação reside nos efeitos da ação do Estado sobre a religião, possuindo duas vertentes: na primeira, o governo deve minimizar o grau em que interfere na religião (para o bem ou para o mal) e, na segunda, deve se esforçar para deixar a religião, na medida do possível, à escolha individual, o que desaconselha qualquer atitude que resulte em coerção ou persuasão. Também é chamada de neutralidade positiva porque nem sempre para obtê-la será suficiente uma abstenção do governo, exigindo-se uma atitude positiva em certas circunstâncias. No exemplo tratado anteriormente, a propósito do siquismo, o Estado poderia conferir uma isenção ao uso do capacete aos Sikhs, pois, agindo assim, não estará privilegiando, mas nivelando as coisas na medida em que assegura não estar tornando mais fácil ou difícil seguir os mandamentos de determinada religião. Pode parecer um tratamento especial, mas é apenas um corretivo à política governamental invasiva e indiscriminada que involuntariamente desencorajaria a prática religiosa.[xlv] Observe que o propósito da neutralidade substantiva, sob a ótica de seus defensores, é promover a liberdade religiosa, pois minimizar a influência do governo maximizaria a liberdade religiosa e a autonomia da escolha religiosa, embora o zero absoluto não seja atingível, pois a liberdade irrestrita de escolha religiosa é provavelmente inalcançável.
Assim, parece claro que a neutralidade estatal, embora por vezes apresentada acriticamente como algo passível de consenso, na verdade é um tema complexo[xlvi] e de difícil solução, pois os caminhos que se lhe apresentam para efetivação são tortuosos e com possível interferência na liberdade religiosa, qualquer que seja o viés que lhe queira conferir e por mais que não se tenha como propósito uma interferência.
É interessante observar os questinamentos que se fazem em relação à neutralidade, sendo dignas de nota as preocupações expostas no documento A Liberdade Religiosa para o bem de todos/2019, publicado pela Comissão Teológica Internacional[xlvii], no qual são tecidas críticas substanciais à ordem liberal, apontando-se por parte dessa uma obsessão de perfeita neutralidade de valor, que forma o que foi chamado de totalitarismo suave e que tornaria os indivíduos particularmente vulneráveis à difusão do niilismo ético na esfera pública. O documento rejeita a teocracia assim como o multiculturalismo agnóstico que priva a religião da sua função de mediação da sociedade civil. Confira-se alguns importantes trechos:
“A alegada neutralidade ideológica de uma cultura política que declara querer ser construída sobre a formação de regras de justiça meramente processuais, rejeitando qualquer justificação ética e inspiração religiosa, manifesta a tendência de elaborar uma ideologia da neutralidade, que, de fato, impõe a marginalização, se não a exclusão, da expressão religiosa da esfera pública[xlviii]. E, portanto, da total liberdade de participação na formação da cidadania democrática. Daqui fica clara a ambivalência de uma neutralidade da esfera pública, que é apenas aparente, e uma liberdade civil objetivamente discriminatória.
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O Estado tende a assumir a forma de uma ‘imitação laicista’ da concepção teocrática da religião, que decide a ortodoxia e a heresia da liberdade em nome de uma visão político-salvífica da sociedade ideal: decidindo a priori a sua identidade perfeitamente racional, perfeitamente civil, perfeitamente humana. O absolutismo e o relativismo dessa moralidade liberal entram em conflito, aqui, com efeitos de exclusão iliberal na esfera pública, dentro da suposta neutralidade liberal do Estado
A suposta neutralidade ideológica do Estado liberal, que exclui seletivamente a liberdade de um testemunho transparente da comunidade religiosa na esfera pública, abre caminho à dissimulada transcendência de uma ideologia oculta do poder.
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o Estado liberal parece para muitos igualmente objetável pelo motivo oposto: a sua proclamada neutralidade não parece capaz de evitar a tendência de considerar a fé professada e a pertença religiosa como um obstáculo para a plena admissão à cidadania cultural e política dos indivíduos. Uma forma de “totalitarismo moderado”, poder-se-ia dizer, que torna particularmente vulnerável à difusão do niilismo ético na esfera pública.”
É preciso ter atenção para que a palavra “neutralidade” parece ter sido estigmatizada pelo seu uso no discurso laicista[xlix]. As teses francesas de tendência laicizante e anticlerical, bem como as teses rawlsianas de orientação contratualista e formalista, parecem justificar o desconhecimento da dimensão social específica do fenômeno religioso pelo poder público. Ora, a neutralidade não pode atracar nessas ideias, mesmo porque a serparação entre Estado-Igreja não se relaciona com tais premissas, porque não tem subjacente qualquer hostilidade perante a religião, nem pretende substituí-la por qualquer outra ordem de valores totalizantes. A limitação do Estado ao bem comum temporal não quer dizer que o Estado seja ateu, irreligioso ou anti-religioso. A laicidade republicana não é uma laicidade contra a religião, mas uma laicidade estruturante da juridicidade estatal democrática, com separação entre o “Reino de Deus” e o espaço público estatal.
Por outro lado, o fenômeno religioso também pode ser visto como fenômeno socialmente benéfico, de maneira que a neutralidade também pode ser vista como uma neutralidade positiva, que se caracteriza por uma atitude positiva perante a religião, o que afasta o indiferentismo estatal por parte dos poderes públicos, na esteira do que ensina Javier Martínez-Torrón[l], para quem a neutralidade não implica indiferença aos resultados do exercício da liberdade de religião, podendo ser considerados os efeitos sociais ou efeitos previsíveis das doutrinas morais religiosas.
Encontramos interessante desenvolvimento da neutralidade feito por Marcelo Sampaio Siqueira e Natercia Sampaio Siqueira que, partindo de Dworkin e Rawls, encontram seu fundamento na igualdade característica de uma sociedade onde não há hierarquia entre os diversos modelos de vida e que se realiza na igual consideração e dignidade de cada indivíduo[li]. Para alcançar esse desiderato, exige-se tanto abstenções (ex. não promover determinada concepção de bem) como atuações estatais positivas (a neutralidade não é mera abstenção) no propósito de assegurar igual respeito e consideração às pessoas, o que envolve atuações para que as pessoas tenham acesso a um background material que lhes permitam ser consideradas e considerar a si mesmas e aos demais como iguais em dignidade[lii]. Deste modo, a neutralidade é instrumental (não é um fim em si mesma) e deve ser analisada pelo viés da igual dignidade das individualidades que, por sua vez, deve ser direcionada à igual possibilidade de exercício. Em síntese, em considração à neutralidade, o Estado deve criar condições equitativas para que cada qual possa se desenvolver dentro de seu projeto de vida, abstendo-se de estabelecer ou promover concepções apriorísticas de bem. A neutralidade, portanto, se realiza pela oportunidade equitativa conferida a cada qual para se desenvolver em sua individualidade e rejeita condições arbitrárias de promoção de determinada concepção específica.
Não obstante, também encontramos quem sustente que o ideal de neutralidade é uma ficção política e jurídica, e sua defesa se transformaria em um discurso ideológico cua principal finalidade é atribuir um critério duvidoso de racionalidade que não se pode mais sustentar[liii]. Nessa ótica, a noção de neutralidade, mesmo em si própria, não seria possível de ser manejada, porquanto decorreria de uma epistemologia moderna superada, que não resiste diante da crítica à tese antropolótica do sujeito como autônomo, livre e racional, tendo em vista que a natureza humana é dialógica, a sociedade não é atomista e há impossibilidade de se distinguir estados do sujeito e estados do objeto, o que leva à inevitável intersecção com valores subjetivos. Isso significa que a neutralidade não existe porque não há como separar-se de questões de valor.
Destarte, não há como negar que o fenômeno religioso deve ser considerado pelo Estado que, por isso, não pode adotar uma postura de indiferentismo que desconsidere qualquer ponderação ou consideração da religião, logo, neutralidade não tem coincidência com a indiferença. Também não pode levar à eliminação do aspecto religioso do espaço público. No entanto, se a atitude hostil frente à religião está descartada, é igualmente importante que não seja critério para que se privilegie ou confira um tratamento desfavorável, o que conduz à considerações sobre igualdade em relação à qual ainda é difícil encontrar-se, na prática, um caminho seguro. Sua noção e contornos, na atual quadra, são cheios de complexidades. De qualquer forma, lançar luzes sobre o tema é um passo valioso para que não se perca em afirmações acriticamente lançadas sobre a neutralidade e que se baseiam em uma reprodução rasa de um discurso que não percebe as dificuldades inerentes ao assunto.
4.3. Direito fundamental à liberdade religiosa e seus reflexos sobre a relação Estado-Igreja
A ideia moderna de direitos fundamentais foi afirmada, no século XVIII, nos Estados Unidos e em França, não pela natureza das coisas ou das pessoas, mas por circunstâncias históricas bem conhecidas[liv], atualmente tendo se espalhado pelo mundo ocidental sob uma perspectiva de universalidade. A liberdade religiosa, tema que nos interessa aqui, está sempre presente em catálogos de direitos fundamentais, tanto nas constituições nacionais como em documentos internacionais, conquanto a sua interpretação e aplicação pelos tribunais, tanto nacionais como internacionais, possam encontrar diferenças.
A noção de liberdade religiosa refere-se ao espaço de autonomia da pessoa e das comunidades religiosas em relação ao Estado e à sociedade, ligando-se ao pluralismo, pois onde o pluralismo não é possivel fica comprometida e, da mesma forma, sem a liberdade religiosa não há condição para um sistema político pluralista. Sem plena liberdade religiosa não há plena liberdade cultural, nem plena liberdade política, o mesmo podendo se dizer da democracia, enquanto regime político da liberdade para as pessoas e para os grupos.
O direito à liberdade religiosa é um direito complexo, com dimensões individuais e coletivas, subjetivas e objetivas, positivas e negativas, institucionais e procedimentais; constitui tanto um direito como também uma liberdade e garantia, possuindo um amplo conteúdo. No aspecto individual refere-se à liberdade de crença (ter, não ter, mudar ou deixar de ter religião), liberdade de atuação segundo as próprias crenças, liberdade de divulgação das crenças (proselitismo), liberdade de culto, liberdade de reunião e associação religiosa, liberdade de ensino religioso, direito de educar os filhos de acordo com a sua religião, direito à privacidade religiosa, direito aos feriados religiosos, direito de comemorar publicamente as festividades da própria religião, liberdade em sentido amplo de manifestar a religião etc. No aspecto coletivo inclui o direito de autodeterminação das confissões religiosas, direito de auto-organização das confissões religiosas, não interfência estatal, não discriminação ou favorecimento, liberdade de construção e abertura de templos, liberdade de se ministrarem ensino religioso aos seus membros, pedirem e receberem contribuições voluntárias, fazerem proselitismo, publicarem e difundirem publicações religiosas etc. Não é possível ser exaustivo, porquanto estamos diante de um direito fundamental, referindo-se a uma multiplicidade de comportamentos humanos concretos, mas nota-se que a visão é ampla, indo desde uma liberdade positiva como negativa, liberdade individual, das familias, das instituições religiosas, liberdade privada e pública.
Como direito fundamental, a dimensão negativa é inseparável da dimensão positiva[lv], sem o que não se teria uma liberdade real/efetiva. Enquanto a dimensão negativa impõe o dever ao Estado de não criar obstáculos ao livre exercício da liberdade religiosa, de não perseguir por motivos religiosos e não discriminar por motivos religiosos, a dimensão positiva exige prestações estatais positivas, valendo consignar, conforme desenvolvido acima, que a laicidade não exclui que o Estado tenha a função de garantir e de favorecer a efetivação de direitos fundamentais, em especial a liberdade religiosa.
De fato, a dimensão positiva justifica-se diante da constatação de que a liberdade religiosa depende das condições para o seu exercício efetivo. O entendimento dos direitos fundamentais como exigências apenas de uma respeitosa passividade do Estado já está superado, a compreensão atual conjuga a atitude de não interferência na esfera pessoal com a ativa criação de condições de exercício efetivo. Assim, requer do Estado não apenas uma pura atitude omissiva, uma abstenção, mas um facere traduzido num dever de assegurar ou propiciar o exercício da religião. A dimensão positiva[lvi] impele o Estado a propiciar um mínimo de condições fáticas e normativas para que a escolha religiosa dos seus cidadãos se possa exprimir em liberdade e igualdade.
Nessa perspectiva, entende-se que o princípio da laicidade, ou como se queira, a não confessionalidade (sinônimo), não exclui que o Estado tenha a função de garantir e de favorecer a efetivação de direitos fundamentais, entre os quais a liberdade religiosa, quer individual ou coletiva. Como exemplo disso no Brasil pode-se citar a assistência religiosa nas prisões e forças armadas[lvii]. Portanto, existem deveres estatais concernentes ao direito à liberdade religiosa.
Ademais, dentre as características dos direitos fundamentais está a sua eficácia horizontal, ou seja, os seus efeitos jurídicos também alcançam particulares e não apenas o Estado, porque representam valores fundamentais da sociedade, eixo axiológico constitucional que irradia a sua eficácia por todas as estruturas do ordenamento jurídico.
Nesse contexto, a liberdade religiosa implica deveres de terceiros, destacando-se a obrigação de tolerância, entendida como dever de respeito pela dignidade e pela personalidade dos outros, bem como pelas suas diferentes crenças e opções de consciência.[lviii]A tolerância funciona como princípio positivamente conformador do efeito externo ou horizontal do direito à liberdade religiosa, como magistralmente exposto pelo professor Paulo Pulido Adragão:
“O direito à liberdade religiosa corresponde, da parte de terceiros, um dever de respeito pela dignidade e pela personalidade do titular do direito, bem como pelas suas diferentes crenças e opções de consciência, uma obrigação de tolerância prática, na terminologia de VALUET e de JÓNATAS MACHADO, que conforma o efeito externo ou horizontal do direito fundamental em análise.”[lix]
Essa eficácia relativa à tolerância, pensamos, possui importância central para o tema discutido pelo STF na ADI nº 4439/DF. Ressalte-se que todos esses reflexos da liberdade religiosa casam tanto com a perspectiva da relação entre Estado-Igreja como de neutralidade adotados.
Fica claro que as perspectivas sobre o direito fundamental à liberdade religiosa dão a tônica para a relação Estado-Igreja e mesmo para a neutralidade que se pretenda estabelecer em determinada sociedade, eis que os efeitos apontados acima não são todos compatíveis com quasiquer das concepções que se queira adotar nessas searas. Tais efeitos decorrem da decisão política fundamental relativa aos direitos fundamentais que confere conformação política à sociedade e, enquanto valores essenciais do ordenamento jurídico (dimensão objetiva dos direitos fundamentais), funcionam perfeitamente como princípio fundamental das relações confissões religiosas e o Estado, de modo que o regime jurídico de tais relações deve partir da liberdade religiosa[lx].
Portanto, os modelos teocrático, cesarista, regalista, do republicanismo laicista, do jurisdicionalismo, de relaçao preferencial com a Igreja Católica ou que impliquem em hostilidade à religião são incompatíveis com o modelo democrático e republicano vigente no Brasil e inadmitidos pelos contornos do princípio da separação decorrente da liberdade religiosa conformada nesse referido sistema jurídico.[lxi]
Parece que isso indica que a noção de neutralidade não pode ser apenas formal, mas substancial, sendo bem interessante a perspectiva de Dworkin ao estabelecer a igualdade (exposta no tópico anterior) como fundamento da neutralidade estatal, porque de outra forma não se atingiria máxima efetividade do direito fundamental. A relação entre Estado e religião, bem como a esperada neutralidade, não podem servir como imposição de inércia, nem podem tolher à religião a sua participação no espaço público.
Existem dois grandes modelos de atuação do Estado direcionada ao fenômeno religioso[lxii]: (a) separação cooperativa (separação relativa), em que o Estado colabora com as atividades desenvolvidas pelas confissões religiosas; (b) separação neutral (separação absoluta), em que o Estado não intevém em atividades conjuntamente com as confissões religiosas. Tendo em vista as eficácias que a liberdade religiosa produz, fica indene de dúvidas que o modelo cooperativo se mostra mais consetâneo à liberdade religiosa e parece ser exatamente esse espectro que enseja o ensino religioso em escolas públicas, que tem como premissa uma valoração positiva do fenômeno religioso, de onde surge o compromisso em não remeter esse fenômeno exclusivamente para o plano privado e individual, permitindo seu acesso à esfera pública, sem que isso resvale em qualquer ofensa à liberdade de religião.
4.4. Ensino religioso em escolas públicas
A presença do ensino religioso em escolas públicas está envolta na controvérsia em torno da assunção de tarefas educativas pelo Estado e do argumento de não respeito da laicidade pelo Estado, à ausência de neutralidade ou inobservância da separação entre Estado e Igreja. Por tudo quanto foi exposto até aqui, parece que esses questionamentos não subsistem.
A tradição multi-secular de unidade teológico-política teve como consequência a conformação do ensino público de acordo com o princípio da coordenação entre a Igreja Católica e o Estado na afirmação de uma concepção confessional de verdade objetiva e na realização da ideia de bem comum que a mesma tem subjacente. O ensino da religião tinha um lugar central nesse sistema, haja vista que as instituições religiosas eram as únicas provedoras de educação, muito antes de o Estado assumir esse papel.[lxiii]
Nesse modelo pré-moderno, compreendia-se que os poderes públicos se corresponsabilizassem administrativa e financeiramente no ensino religioso nas escolas públicas. Ademais, o monopólio da coação era colocado a serviço dos interesses confessionais, tornando-se o ensino religioso obrigatório e sendo os professores pagos com dinheiro público. Estado e Igreja surgiam aos olhos do cidadão como entidades divinamente ordenadas para a prosecução de finalidades transpessoais e transcendentes.
O advento do iluminismo e dos Estados nacionais absolutistas arrostaram essa perspectiva, contexto no qual apareceu o laicismo, que se traduziu, em vários países europeus, num conjunto de medidas legislativas através das quais foram secularizados os serviços públicos, os municípios e, especialmente, o ensino, em relação ao qual procurou-se instituir um ensino laico, obrigatório e gratuito, como antídoto contra a influência restauracionista antiliberal do absolutismo clerical.[lxiv]
Todavia, laicismo não se confunde com laicidade, conforme expusemos acima. A laicidade, sinônima de não confessionalidade, não é avessa à religiosidade, mas permite que se reconheça como algo valioso ao ser humano e digna de proteção, podendo mesmo ser vista como um fenômeno socialmente benéfico. Ao mesmo tempo, é vedado o dirigismo ou a interferência estatal nos rumos religiosos do projeto de vida do indivíduo, tendo em vista que a neutralidade, no sentido adotado, se restringe em criar condições equitativas para que cada qual possa se desenvolver dentro de seu projeto de vida, abstendo-se de estabelecer ou promover concepções apriorísticas de bem[lxv]. Nessa linha de raciocínio, Marcelo Sampaio Siqueira e Natercia Sampaio Siqueira, concluem que o ensino religioso em escolas públicas não afronta a laicidade:
“Ela é uma liberdade especialmente relevante à dignidade e identidade da pessoa, pois integra o núcleo de valores que torna a vida de cada um relevante para si. Como toda liberdade que esteja especialmente relacionada à realização da pessoa, ela é passível de situações nas quais carece da atuação ou infraestrutura estatal, e não se lhe pode prejudicar essa proteção em razão de uma neutralidade em absoluto negativa que decorreria de uma leitura estrita da laicidade.
A laicidade, repita-se, serve à igualdade como ausência de hierarquia, cuja realização é informada pela justa oportunidade. Dessa feita, o definitivo sobre o tema consiste em se analisar se a prestação de ensino religioso em colégio público compatibiliza-se com a justa oportunidade, de maneira que não implique o estabelecimento de condições arbitrárias para o desenvolvimento de determinada concepção do bem.
Pois no presente artigo se conclui, em primeiro lugar, que a prestação do ensino religioso em colégios públicos seria medida adequada à justa oportunidade para desenvolver-se, em especial quando se compara a situação entre aqueles que podem pagar por colégio privado e, por conseguinte, direcionar seus filhos a uma educação religiosa, e os que não o podem fazer. Neste último caso, a laicidade, compreendida como o silêncio estatal, implicaria diferença de condições equitativas de desenvolvimento da pessoa – ainda que se considere que, preferencialmente, esteja-se a tratar da liberdade dos pais quanto à orientação religiosa dos filhos.
Em um segundo momento, conclui-se que da forma como se assegura a prestação do ensino religioso, não se está a criar condição arbitrária de desenvolvimento e promoção de determinada concepção do bem. As condições são suficientemente equânimes, e os argumentos favoráveis ao entendimento de que a possibilidade do ensino religioso fomentaria o risco do conflito compartilham a sua plausibilidade com os argumentos no sentido inverso, o que revela a sua fragilidade e falta de subsistência.”[lxvi]
Com efeito, sob a ótica de igual dignidade e liberdade para todos[lxvii] de perspectiva do constitucionalismo contemporâneo, a presença de religião nas escolas públicas deixa de referir-se à uma coligação entre Estado e Igreja e passa a ser vista à luz da igual liberdade religiosa de todos e o pluralismo religioso[lxviii], motivo pelo qual não vemos como se sustentar ofensa à não confessionalidade.
A laicidade não exclui que o Estado tenha função de garantir e favorecer a efetivação de direitos fundamentais, dentre os quais a liberdade religiosa. A consideração da religião como manifestação comunicativa transcendental no espaço público (e não apenas como questão privada) legitima esquemas de cooperação do Estado com as Igrejas desde que esta cooperação não viole os princípios da separação, da não confessionalidade e da neutralidade religiosa.[lxix] Ademais, e é preciso que isso fique bem claro, um dos colorários da liberdade religiosa positiva está em que a liberdade negativa de uns não pode ser exercida à custa da liberdade positiva de outros.[lxx]
Como se observa, o Estado confessional não se confunde com o Estado laico que propicie o ensino religioso em escolas públicas, pois isso apenas representa a cooperação concernente à vertente positiva da liberdade religiosa, que faz surgir a obrigação ativa de cooperar com os pais na educação dos filhos e o dever de proporcionar às confissões religiosas o ensinos na escolas públicas, em consequência também dos direitos dos pais[lxxi]. Não se pode confundi alhos com bugalhos, é preciso distinguir as coisas para que não pairem dúvidas. O ensino público é laico, é não confessional, o que decorre tanto da separação entre Estado-Igreja e da laicidade do Estado, como do direito de todos à escola pública, não podendo ela, portanto, identificar-se ou seguir qualquer orientação religiosa. Todavia, isso não significa que não possa haver ensino religioso no espaço público representado pela escola pública. Segundo Canotilho e Vital Moreira:
“O alcance da laicidade do ensino público consiste designadamente em: (a) vedar toda e qualquer orientação religiosa do ensino público: (b) excluir o ensino da religião como elemento integrante do ensino público (sem prejuízo do Estado poder facultar às igrejas, em pé de igualdade, a possibilidade de estas ministrarem ensino da religião nas escolas públicas). Constituirá, por isso, clara violação do princípio da não confessionalidade a introdução do ensino da religião moral e católica no ensino primário e secundário público, bem como a formação oficial de professores destinada ao mesmo ensino (cfr, porém, os criticáveis AcsTC nº 423/87 e 174/93). O ensino religioso nas escolas públicas deve ser inteiramente facultativo e da responsabilidade das próprias igrejas e confissões religiosas (incluindo quanto ao recrutamento e remuneração de docentes) cabendo às escolas somente disponibilizar os espaços e horários necessários”.[lxxii]
Nesse mesmo sentido, citando Jorge Miranda, o professor Paulo Pulido Adragão menciona que:
“não confessionalidade do ensino público do art. 43º, n. 2, da Constituição tem, para este autor, o sentido de não identificaçao com nenhuma religião em particular. Não impede assim, designadamente, que as religiões possam ter lugar no ensino público, desde que respeitem três grandes princípios: 1) possibilidade de acesso de todas as confissões religiosas, segundo a própria representatividade e sem discriminações; 2) liberdade de opção positiva dos alunos e seus pais; 3) definição pelas confissões religiosas dos programas e conteúdos.”[lxxiii]
Ao que se disse alie-se também o fundamento jurídico-positivo. O sec. XX se caracteriza pela interancionalização dos direitos humanos, merecendo citação: (a) art. 18 da Declaração de Direitos Humanos – ONU/1948 (caráter não vinculativo); (b) art. 9º da Convenção para Salvaguarda dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais/1950 (Convenção Europeia dos Direitos do Homem); (c) art. 18 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – ONU/1966; (d) art. 13 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – ONU/1966; (e) Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância ou de Discriminação Fundadas Sobre a Religião ou Convicção – ONU/1982 (caráter não vinculativo, mas foi o primeiro instrumento internacional especificamente direcionado à liberdade religiosa).
Desses dispositivos, ressalte-se que tanto o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos/1966, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais/1966 e o Protocolo Adicional nº 1/1952 à Convenção Europeia de Direitos do Homem – 1950, prevêem o ensino de educação religiosa segundo suas concepções dos pais, inclusive no ensino assumido pelo Estado:
“Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: Art. 18. (…) Os Estados-Signatários no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e dos tutores legais, se for o caso, de modo a garantir que os filhos recebam uma educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: Art. 13. 1. Os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa à educação. Concordam que a educação deve ser orientada até ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido da sua dignidade e deve fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam deste modo, que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efectivamente numa sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos e religiosos e promover as actividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
- Os Estados-Signatários no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais ou dos tutores legais, se for o caso, de escolher para os seus filhos ou pupilos escolas diferentes das criadas pelas autoridades públicas, sempre que aquelas satisfaçam as normas mínimas que o Estado estabeleça ou aprove em matéria de ensino, e permitam que os seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa ou moral de acordo com as suas próprias convicções.
Protocolo Adicional nº 1/1952 à Convenção Europeia de Direitos do Homem – 1950: Art. 2. A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas.”
Desta forma, há de ser reconhecido que há o dever do Estado de cooperar com os pais na educação dos filhos, sendo que aos pais se reconhece o direito de educar seus filhos segundo suas próprias convicções religiosas e filosóficas, o que enseja perfeitamente a possibilidade de ensino religioso nas escolas públicas.
No direito comparado, o Tribunal Constitucional Português teve oportunidade de avaliar este assunto e decidiu dois princípios neste dominio[lxxiv]: (a) o ensino religioso nas escolas públicas não viola o princípio da neutralidade religiosa do Estado, mas (b) não pode ser obrigatório, apenas se os alunos ou os seus pais declararem expressamente a vontade de ter essa disciplina. Em Espanha, tradicionalmente existe o ensino religioso confessional eletivo como parte do currículo ordinário, apontando-se, como fundamento jurídico, o direito à liberdade religiosa das confissões religiosas, o direito dos pais de garantir que seus filhos recebam a instrução religiosa e moral de acordo com suas crenças e a cooperação entre o Estado e as confissões religiosas. As regras básicas foram reconhecidas como constitucionais pela Suprema Corte Espanhola.[lxxv]
O problema não reside, assim, na laicidade, na neutralidade ou na separação entre Estado e Igreja, então poderia advir de outro fator, tal como da compatibilidade com o reconhecimento de que vivemos em uma comunidade plural, em que convivem maiorias e minorias culturais e religiosas. Nesse aspecto, entende-se que o princípio da concordância prática entre os vários direitos à religião deve aqui ser complementado pelo princípio da tolerância[lxxvi], devendo respeitar-se tanto quanto possível a liberdade religiosa de cada um. Nesse sentido relativo à pluralidade, merece destaque se dizer que essa realidade impõe uma necessária tarefa de ponderação e de concordância prática de forma a não transformar certas dimensões civilizacionais em direitos hiperinclusivos pertubadores da própria inclusividade.
Alegar-se que o que pluralismo implica que a religião não pode se imiscuir em aspectos da vida dos homens em sociedade, significa usar o pluralismo como meio de limitação da religião, abafando, assim, a própria essência do pluralismo, que reside na possibilidade de expressão da diversidade em todos os âmbitos sociais[lxxvii].
Em síntese conclusiva, portanto, concorda-se com os ensinamentos de Jónatas Eduardo Mendes Machado:
“Do ponto de vista jurídico-normativo, não existe hoje lugar para qualquer forma de coação ou discriminação no ensino religioso nas escolas públicas. Este deve ser estruturado de acordo com um princípio de facultatividade pura e alargado a todas as confissões religiosas. Além disso, ele deve ser colocado, tanto quanto possível, na dependência da iniciativa dos encarregados de educação, dos estudantes e das confissões religiosas, em vez de ser estruturado, administrado e financiado pelo Estado e integrado no currículo escolar. À luz do direito constitucional vigente, não existe lugar para as ideias de coordenação ou de parceria espiritual entre o Estado e as confissões religiosas, não se percebendo a corresponsabilização financeira do Estado na realização de uma finalidade estritamente religiosa como é o ensino de uma doutrina confessional. Isto, tanto mais quanto é certo que a mesma poderia ser facilmente realizada num regime de voluntariado, não havendo aqui a considerar qualquer obstáculos fáticos que tornem semelhante tarefa especialmente onerosa.”[lxxviii]
CONCLUSÃO
Pelo exposto, compreende-se que a liberdade religiosa deve ser tomada como princípio fundamental do regime jurídico da relação Igreja-Estado, o que daria ensejo a um Estado democrático de liberdade religiosa.
Assim, o Estado não deve ser neutro, nem estar absolutamente separado, nem ser estranho perante a religião, mas antes deve ser sensível à relevância social positiva do fenômeno religioso.
Deste modo, o modelo adequado é o da não identificação (separação) com cooperação, por somente ele satisfazer as exigências das diversas dimensões da liberdade religiosa. A cooperação é uma decorrência da liberdade religiosa. É um modelo de independência e cooperação, sem discriminação e sem coerção.
O modelo cooperativo enseja o ensino religioso em escolas públicas. Isso tem base em uma valoração positiva do fenômeno religioso, de onde surge o compromisso em não remeter esse fenômeno exclusivamente para o plano privado e individual, permitindo seu acesso à esfera pública, sem que isso resvale em qualquer ofensa à liberdade de religião.
A sociedade pluralista deve, necessariamente, ser uma sociedade tolerante com o diferente, inclusive na questão religiosa e mesmo dentro da escola, não sendo um caminho seguro se pretender eliminar a convivência entre os diferentes como forma de assegurar um pseudopluralismo.
Assim, conclui-se com uma análise coincidente com o acórdão do Supremo Tribunal Federal do Brasil na ADI nº 4439, haja vista que a mesma não leva à um estado arbitrário de promoção de determinado modelo de vida no aspecto religioso, mormente porque estabeleceu condições equitativas a todas as religiões e credos para serem lecionados na escola pública, sem exclusão, sem favorecimento e sem discriminação. A decisão promove a necessidade de tolerância, preserva a laicidade e a liberdade religiosa, sendo que a relação entre Estado e Igreja não resvala em qualquer promiscuidade, mantendo-se uma neutralidade sadia e colaborando para o Estado Democrático de Direito.
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[i] STRUCHINER, Noel. Indeterminação e objetividade. Quando o direito diz o que não queremos ouvir. Direito e interpretação: racionalidades e instituições. Ronaldo Porto Macedo Júnior; Catarina Helena Cortada Barbieri (orgs.). São Paulo: Saraiva, 2011, p. 130.
[ii] Idem, p. 129/130.
[iii] HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. (trad. A. Ribeiro Mendes), 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 157/158.
[iv] Constituição Portuguesa: “Art. 41. 4. As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.”
[v] CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1993.
[vi] Adota-se uma perspectiva de que norma e texto normativo não se confundem, de modo que o texto pode permanecer inalterado, mesmo quando a norma que dele é extraída se modifique.
[vii] Confira-se o texto do voto: “Os modelos confessionais e interconfessionais de ensino religioso são, no entanto, incompatíveis com a exigência de separação formal entre o Estado e as religiões. Quando se permite que alunos recebam instrução religiosa de uma ou de várias religiões dentro das escolas públicas, torna-se inevitável a identificação institucional entre o Estado, que oferece o espaço público da sala de aula durante o período letivo, e as confissões, que definem os conteúdos a serem transmitidos. A violação à separação formal fica ainda mais nítida nos casos em que se exige que os professores da disciplina sejam representantes religiosos ou pessoas credenciadas por Igrejas e, ao mesmo tempo, se admite que sejam remunerados pelo Estado, em contrariedade à vedação expressa do art. 19, I da Constituição.”
[viii] Quando se diz religiões, já queremos deixar implícitas as opções pelo ateísmo, agnoscitismo etc., sendo utilizado em sentido amplo como opção religiosa das pessoas.
[ix] Confira-se trecho do voto: “Entretanto, em ambos os cenários (ensino confessional e interconfessional), o Estado afeta a garantia de liberdade religiosa, ao criar um ambiente escolar incapaz de assegurar a liberdade religiosa dos alunos que professam as crenças não representadas nas aulas. (…) Crianças e adolescentes, ainda em fase de desenvolvimento de sua personalidade e autonomia, são especialmente influenciáveis por seus professores e colegas e querem sentir-se aceitos e integrados em suas turmas. A sensação de exclusão, por professarem crenças “diferentes” da maioria dos seus colegas, pode levá-los a não expressarem suas preferências religiosas, bem como produzir uma perniciosa diminuição de sua autoestima e estigmatização face à comunidade escolar.”
[x] ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 415/417.
[xi] Não se está a dizer que seria bom ou ruim essa reinterpretação, nem que seria juridicamente válida essa reinterpretação, mas apenas mencionando que o STF poderia fazê-lo, sem entrar no mérito se tal atitute encontraria amparo jurídico ou não.
[xii] Confira-se trecho importante do voto sobre este específico ponto: “Não me parece possível, que essa Corte substitua a legítima escolha que o legislador constituinte originário fez pelo ensino religioso de matrícula facultativa pelo ensino de filosofia, história ou ciência das religiões; sem, logicamente, a possibilidade de essas matérias serem ministradas paralelamente, com matrícula obrigatória.”
[xiii] Confira-se trechos representativos: “É nesse contexto que deve ser compreendida a previsão do ensino religioso: trata-se de aproveitar a estrutura física das escolas públicas – tal como amplamente existente no espaço público de hospitais e presídios, que já são utilizados em parcerias”; “É importante ressaltar que a separação entre Estado e as igrejas, proclamada no art. 19, inciso I, da vigente Constituição – tal como em todas as Cartas do período republicano -, não prejudica a colaboração do Poder Público com entidades religiosas, como aquele mesmo dispositivo ressalva. Citem-se, como exemplo, as parcerias do Poder Público nas áreas da saúde com as Santas Casas de Misericórdia (católicas) e com a Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, que tanto contribuem para a saúde no Brasil.”
[xiv] É preciso perquirir o modelo de relação entre Estado-Igreja diante de um dado e específico ordenamento, pois, embora os instrumentos internacionais de defesa da liberdade religiosa e a interpretação que deles vem sendo feita por instituições internacionais apontem no sentido de uma crescente uniformidade dos modelos nacionais, a verdade é que as opções constitucionais e infraconstitucionais de cada tempo e lugar permitem diferenciar orientações distintas. A este respeito: RAIMUNDO, Miguel Assis, “Direito Administrativo da Religião”, in OTERO, P. e GONÇALVES, P. (Org.), Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. VI, Livraria Almedina, Coimbra, 2012, p. 267.
[xv] Nas etapas mais primitivas da humanidade, o homem viveu encerrado em círculos pequenos, dentro dos quais reinava uma uniformidade absoluta: uma mesma raça, um mesmo espaço vital, os mesmos interesses coletivos e a mesma religião. Dentro de cada círculo não havia oposição entre ordem religiosa e a ordem temporal.
[xvi] A doutrina aponta como sinônimo de erastianismo e cesaropapismo.
[xvii] AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 93.
[xviii] ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 35.
[xix] O dualismo gelasiano, ao final do sec. V, foi a formulação do Papa Gelásio I sobre o dualismo cristão, que pode ser sintetizado em 8 pontos: (a) existem dois poderes diferentes para o governo do mundo, a “sagrada autoridade dos pontífices” e o “poder real”; (b) ambos são de ordem divina; (c) são independentes em suas respectivas ordens de competência; (d) nenhum está submetido ao outro; (e) submissão dos titulares de um poder ao outro quanto às funções próprias daquele; (f) a vida espiritual rege-se pelo poder do papa e dos bispos; (g) este poder merece maior reverência pois a dignidade da vida religiosa é superior à vida temporal; (h) essa maior reverência não se traduz num poder do Papa sobre o imperador. Esses princípios possuem um caráter prudencial, designando um difícil equilíbrio entre poder político e religião. Essa concepção gelasiana foi aceita enquanto os países da Europa continuaram a ser católicos. (ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 41/42)
[xx] Também conhecido como clericalismo. As teses hierocráticas baseiam-se numa deformação medieval da doutrina de S AGOSTINHO, o chamado agostinianismo político, que reflecte uma evolução do pensamento sobre as relações entre os poderes espiritual e temporal que, a partir das formulações gelasianas, há-de chegar às posições que se redonduzem aos textos do Direito canônimo clássico. O seu núcleo doutrinal encontra-se na consideração da superioridade do poder espiritual sobre o temporal que leva a submeter o poder dos príncipes à jurisdição da Igreja porque é ao poder eclesiástico que compete julgar acerca dos pecados e absolvê-los. As bases do hierocratismo encontram-se assim no entendimento excessivamente amplo da competência em razão de pecado, como veículo de intervenção na substância das questões políticas; a isto acresce a atribuição de consequências políticas à excomunão dos príncipes, o que implicava a libertação do dever de fidelidade ao soberano. (ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 44)
[xxi] Também são expressões que designam essa realidade o galicanismo, jurisdicionalismo, febroanismo e josefinismo. Por regalia, apontada origem etimolígica de regalismo, designavam-se certos direitos úteis ou honoríficos dos Reis de França em algumas igrejas no tempo de vacância dos Bispados, consistente no recebimento de rendas, proposiçao de candidatos à ofícios eclesiásticos ou mesmo designação direta, o que deu origem à abusos. O regalismo consiste em um conjunto de técnicas de intervenção do monarca absoluto na parcela da Igreja presente em seu país, assentando-se no princípio da soberania dos Estados sobre todas as instituições existentes em seu território, inclusive a igreja. Portanto, há uma limitação da liberdade da Igreja e uma ingerência do Estado em questões religiosas. Ocorreu na sequência histórica da centralizaçao do poder político, a partir do séc. XVI, notadamente em países católicos. Instituições típicas do regalismo são: o padroado régio, e beneplático régio, o recurso à coroa e o controle do tribunal da Inquisição.
[xxii] “Art. 16. Só a razão e a convicção, não a forma ou a violência, podem prescrever a religião e as obrigações para com o Criador e a forma de as cumprir; e, por conseguinte, todos os homens têm igualmente direito ao livro culto da religião, de acordo com os ditames de sua consciência; e é dever de todos praticar a indulgência cristã, o amor e a caridade uns para com os outros.”
[xxiii] “Art. 10.º – Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.”
[xxiv] “A revolução americana é uma revolução tendencialmente pragmática, fruto do descontentamento perante a impossibilidade da expansão dos colonos ingleses para o Ocidente, em consequência do entendimento anglo-francês no final da Guerra dos Sete Anos (…) A revolução francesa tem, pelo contrário, um cunho acentuadamente ideológico. (ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 69).
[xxv] ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 75.
[xxvi] AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 94, tradução livre.
[xxvii] Um conjunto de crenças sobre a natureza e base do Estado e seu ordenamento correto em relação à religião.
[xxviii] AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 95, tradução livre.
[xxix] Não obstante, a tentadora ideia de que sempre exista uma definição adequada do que todos reconhecem como argumento público e razoável precisa ser encarada com atenção, não para restabelecer algum discurso dominante religioso ou ideológico que seja incontestável, mas para focalizar a questão de como uma sociedade lida com a variedade real e potencial colisão de entendimento do que é propriamente humano. Um debate, por exemplo, sobre o embrião, à eutanásia ou o casamento inevitavelmente trará argumentos que não se restringem à considerações pragmáticas de benefício individual ou do grupo. Nesse sentido: WILLIAMS, Rowan. Secularism, Faith and Freedom. Palestra proferida na Pontifícia Academia de Ciências Sociais. Roma, 2006. Disponível em: https://virtueonline-org.translate.goog/vatican-city-secularism-faith-and-freedom-rowan-williams?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-PT&_x_tr_pto=sc. Acesso em: 21/04/2022.
[xxx] WILLIAMS, Rowan. “Secularism, Faith and Freedom”. Palestra proferida na Pontifícia Academia de Ciências Sociais. Roma, 2006. Disponível em: https://virtueonline-org.translate.goog/vatican-city-secularism-faith-and-freedom-rowan-williams?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-PT&_x_tr_pto=sc. Acesso em: 21/04/2022.
[xxxi] De fato, em razão da separação o Estado não se identifica com qualquer confissão religiosa, abstendo-se de interferir nesse domínio de sentido último da vida, para poder ser casa comum de todos os cidadãos, diferentemente dos Estados totalitários ou naqueles em que se verifica uma união com a religião.
[xxxii] Insta registrar, porém, que os diversos regimes políticos delineiam, cada qual, uma noção de neutralidade para chamar de sua. O liberalismo, o socialismo/comunismo, o republicanismo, o comunitarismo e até mesmo o nacional-socialismo elaboraram noções de neutralidade que, apesar de diversas, têm como fundamento uma única preocupação: o estreitamento ou afastamento entre política e ética, a influência dos juízos de valor sobre decisões políticas. (GONDIM, Larissa Cristine Daniel. O conceito de neutralidade: aspectos políticos e jurídicos. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=798e5a5dc5f4a19a, acesso em: 24/04/2022).
[xxxiii] A esse propósito, Bruno Martelo bem reconhece que a neutralidade não se assume como princípio constitucional uniforme aplicável a todo espaço europeu, antes cabendo a cada Estado definir por que forma vai relacionar-se com a religião, tratando-se, sobretudo, de uma opção política, influenciada pela tradição histórica e pelas características morais, sociais e culturais de cada país. (MARTELO, Bruno. Neutralidade e liberdade religiosa: a porta que Achbita abriu e que Bougnaoui não fechou. Comentários ao Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Seção) de 14 de março de 2017)
[xxxiv] Ingo Sarlet ilustra bem a controvéria com a controvérsia da colocação de símbolos religiosos em escolas e repartições públicas (v.g. crucifixo), concluindo que não se trata de necessariamente de uma única resposta correta, mas de uma resposta mais ou menos constitucionalmente adequada. (SARLET, Ingo Wolfgang. Liberdade religiosa e dever de neutralidade estatal na Constituição Federal de 1988. Consultor Jurídico, 10/07/2015, disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jul-10/direitos-fundamentais-liberdade-religiosa-dever-neutralidade-estatal-constituicao-federal-1988. Acesso em:22/04/2022)
[xxxv] MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, p. 427, apud ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002, p. 435.
[xxxvi] AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 87, tradução livre.
[xxxvii] No Brasil, THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI já observava que a laicidade absoluta é uma forma de intervenção do Estado nas consciências, porque contribui para formação do espírito leigo, hostil a qualquer manifestação de natureza religiosa. (CAVALCANTI, Themistocles Brandão. A Constituição Federal Comentada, 3ª. ed., J. Konfino – Editor, 1959, p. 101)
[xxxviii] ESBECK, Carl. “A Constitucional Case for Governmeental Cooperation with Faith-Based Social Service Providers,” 1997, p. 46, apud AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 87/88, tradução livre.
[xxxix] AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 97, tradução livre. Apontam-se as conclusões de referidos autores: “O modelo do Estado laico traz consigo certos perigos. O separacionismo em um sentido puramente estrutural, onde o Estado e os corpos religiosos enquanto instituições são mantidos separados, não é tão problemático. O “muro” pode servir bem à religião, protegendo-a dos tentáculos da interferência estatal. O separacionismo em sua forma ideológica – uma estrita quarentena de ideias e influências religiosas de todas as instituições públicas e vida política é uma questão diferente (…) Embora seja concebível que o secularismo possa assumir formas benignas e imparciais que acolhem contribuições religiosas para a esfera pública, a tendência mais prevalente, na prática, é que o secularismo seja hostil à religião. O secularismo raramente permanece por muito tempo como uma recusa direta do Estado em se alinhar ou estabelecer uma fé particular; em vez disso, a experiência sugere que ela inexoravelmente desenvolve um compromisso de buscar ativamente uma política de incredulidade estabelecida. Uma completa privatização da religião pelo Estado, agravada pelo endosso oficial de crenças seculares, nega a muitas confissões o testemunho público que desejam, e de fato são obrigados a dar.” (p. 123, tradução livre)
[xl] CHAPLIN, Jonathan. Talking God: The legitimacy of Religious Public Reasoning. London: Theos, 2008, ch 1, 23.
[xli] AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 112/119.
[xlii] Todavia, isso nem sempre é fácil. Por exemplo, se a polícia se recusar a permitir que os policiais usem barba, a comparação apropriada seria daqueles que desejem usar chapéus ou joias ou daqueles que, por razões médicas, não podem se barbear devido à sensibilidade da pele?
[xliii] NOONAN, JR., JohnvT./GAFFNEY, Edward Mcglynn G., Jr., Religious Freedom: History, Cases, and Other Materials on the Interaction of Religion and Government. 3ª ed. New York: Foundation Press, 2011, p. 798/809, tradução livre.
[xliv] Wisconsin vs Yoder foi o caso em que a Suprema Corte dos EUA concluiu que as crianças Amish não podiam ser submetidas à educação obrigatória após a 8ª série.
[xlv] AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 116.
[xlvi] A própria natureza supostamente neutra da neutralidade também é de ser pensada, pois como adverte Jónatas Machado: “os valores do Estado Constitucional, incluindo os valores da dignidade, da liberdade, igualdade, democracia, da imparcialidade e do respeito mútuo, não nasceram num vácuo histórico, religioso e cultural, antes podem reclamar para si um pedigree com uma matriz filosófica e religiosa bem identificada. Os mesmos estão longe de constituir uma evidência, como bem demonstra a história das ideias e das instituições políticas. Neste sentido, a própria neutralidade do Estado Constitucional é sempre relativa, na medida em que o próprio tem subjacentes decisões de valor (Wertentscheidungen) que, em última análise, não são inteiramente neutras nas suas pressuposições fundamentais.” (MACHADO, Jónatas. “A jurisprudência constitucional portuguesa diante das ameaças à liberdade religiosa”. in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 82 (2006).
[xlvii] O documento atualiza a Declaração Dignitatis humanae/1965, decorrente do Concílio Vaticano II. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20190426_liberta-religiosa_po.html. Acesso em: 23/04/2022.
[xlviii] Sobre a esfera pública e razão pública: “no início do Estado Moderno, essa noção de neutralidade teve sua razão de ser, principalmente em face de conflitos religiosos. O neutralismo era o argumento que justificava a separação entre Estado e Igreja, de modo que Locke afirmava não caber ao magistrado o uso da força em questões de credo, pois a perseguição é um instrumento irracional para a conversão, já que não é capaz de gerar a verdadeira fé, e o magistrado não é autoridade legítima para julgar acerca da salvação das almas alheias, porque seu poder se impõe apenas sobre questões terrenas (LOCKE, 2007, p.57). Ocorre que, posteriormente, o argumento do neutralismo não intervencionista sofisticou-se e passou a abranger outras dimensões da vida humana, como a economia e a moral, dando origem a um Estado Mínimo em conteúdo, que encontra na neutralidade um fundamento de justiça e inclusão. A antiga divisão entre Estado e Igreja deu origem à distinção entre esfera pública e privada, e as decisões de fé ampliaram-se para as decisões acerca de concepções de vida boa e de bem, ou seja, concepções sobre valores em geral. Essa espécie de neutralidade deu origem, à sobrevalorização de sujeitos políticos neutros e racionais, que fundam a sociedade civil a partir de um pacto sobre princípios de justiça universais, como na teoria política de John Rawls (2002. p. 19). Em sua teoria, Rawls afirma que um conjunto de pessoas, submetidas a um véu da ignorância, utilizariam um procedimento eletivo sobre determinadas questões para, assim, chegar à formulação geral de princípios de justiça universais que regeriam a estrutura básica da sociedade. Uma característica importante desses princípios, além da sua suposta universalidade, é o fato de que eles representam esquemas procedimentais de justiça que independem de um conjunto de concepções de bem, ou de uma noção substancial do que seja uma ‘vida boa’, para serem articulados na vida política. A neutralidade é, portanto, uma garantia de justiça, tendo em vista que, em face do pluralismo, a ostentação pública de uma determinada concepção de bem poderia servir como meio de opressão e exclusão. E, para garantir que isso não aconteça, é necessário que seja feito um acordo racional sobre as regras que regem a discussão pública, ou seja, torna-se necessário o surgimento de um conceito de Razão Pública, como forma apropriada de discussão entre cidadãos iguais. É nesse cenário que o neutralismo influencia um segundo conjunto de teorias liberais, conhecidas como teorias deliberativas, que têm como fundamento regras do discurso e justificações internas que preveem não só a necessidade da participação, real ou possível, de todos os concernidos, mas que também se preocupam com a livre articulação dos atos da fala que, na esfera política, poderiam ser descritos como o direito de voz e voto. Acontece que, mesmo em teorias deliberativas, os acordos relativos à racionalidade pública têm como fundamento uma esfera pública neutra. Essa neutralidade é garantida pelas regras do jogo linguístico, que não possuem abertura suficiente para a aceitação de discursos tradicionais, fundamentados em valores comunitários e não em racionalidades instrumentais. Geralmente esses discursos são excluídos da esfera pública, por não serem considerado ‘razoáveis’.” (GONDIM, Larissa Cristine Daniel. O conceito de neutralidade: aspectos políticos e jurídicos. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=798e5a5dc5f4a19a, acesso em: 24/04/2022)
[xlix] Laicidade é sinônimo de não confessionalidade e não se confunde com laicismo. No contexto europeu, a doutrina costuma distingui-los: (a) laicidade pretende designar uma atitude de neutralidade benevolente por parte dos poderes públicos, respeitadora da do religioso nas suas diversas manifestações, nos termos da qual estes se abstêm de tomar posição sobre o problema da verdade religiosa. ; (b) laicismo designa uma verdadeira filosofia ou ideologia, no sentido de concepção global do mundo, da existência e da conduta moral, consistindo em um “dogma” antidogmático, de uma “metafísica” antimetafísica, de um racionalismo antropológico que exclui qualquer referência teológica a uma verdade transcendente alicerçada na revelação (MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 306, nota de rodapé nº 1011); nessa medida, traduz-se numa atitude de relativa hostilidade perante a religião, ao seu afastamento do espaço público e à promoçao deliberada de uma secularizada e indiferente perante a religião. Ressalte-se que, o pensamento laicista teve papel importante na consolidação jurídico-constitucional da igual liberdade religiosa das minorias e da separação das confissões religiosas do Estado. Muitos de seus excessos, devem-se, segundo aponta Jónatas Eduardo Mendes Machado, à obstinação com que as confissões religiosas dominantes procuravam conservar os seus privilégios tradicionais e as suas prerrogativas de direito público, bem como ao modo como esconjuravam toda a dissidência religiosa. Por isso, o clericalismo era visto como um inimigo a ser combatido. Do pensamento laicista o constitucionalismo deve reter a ênfase na liberdade de pensamento e de religião, bem como no princípio da neutralidade do Estado e dos espaços públicos. (MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 307/308). O laicismo é radicado no republicanismo europeu e pretendia estabelecer um corte radical com os modelos de unidade político-religiosos do antigo regime, substituindo-os por uma abordagem crítico-racional dos vários domínios da vida social. Fundamenta-se em pré-compreensões positivistas, racionalistas, cientificistas e anti-metafísicas, e à um método de verificação. As proposições religiosas são consideradas superstição e fruto da menoridade intelectual dos indivíduos. A razão e a ciência são aliadas ao progresso econômico, social e cultural, enquanto a fé é associada à estagnação e à ignorância.
[l] MARTÍNEZ-TORRÓN, Javier. Religion and Law in Spain. 2ª ed., Alphen aan den Rijn, Kluwer Law International B.V., 2018.
[li] “O que significa para o governo tratar os cidadãos como iguais? Essa questão, penso, é igual à questão do que significa para o governo tratar todos os cidadãos como livres, como independentes ou com igual dignidade. De qualquer modo, é uma questão que tem sido central para a teoria política desde Kant, pelo menos. Pode-se responder de duas maneiras fundamentalmente diferentes. A primeira considera que o governo deve ser neutro sobre o que se poderia chamar de questão de viver bem. A segunda supõe que o governo não pode ser neutro em tal questão porque não pode tratar os cidadãos como seres humanos iguais sem uma teoria do que os seres humanos são […] A primeira teoria da igualdade supõe que as decisões políticas devem ser, tanto quanto possível, independentes de qualquer concepção particular do que é viver bem, ou do que dá valor à vida. Como os cidadãos de uma sociedade divergem em suas concepções, o governo não os trata como iguais se prefere uma concepção à outra, seja porque as autoridades acreditam que uma é intrinsecamente superior, seja porque uma é sustentada pelo grupo mais numeroso ou mais poderoso. A segunda teoria afirma, pelo contrário, que o conteúdo do igual tratamento não pode ser independente de alguma teoria sobre o que é bom para o homem ou o bom da vida, pois tratar uma pessoa como igual significa tratá-la de maneira como a pessoa boa ou verdadeiramente sábia desejaria ser tratada. O bom governo consiste em tratar cada pessoa como se ela desejasse levar a vida que de fato é boa, pelo menos na medida do possível.” (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 285).
[lii] SIQUEIRA, Natercia Sampaio; SIQUEIRA, Marcelo Sampaio. Laicidade, neutralidade e igualdade: ensino religioso em escolas públicas. RJLB, Ano 6 (2020), nº 5, p. 1763. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/5/2020_05_1753_1779.pdf. Acesso em: 22/04/2022.
[liii] GONDIM, Larissa Cristine Daniel. O conceito de neutralidade: aspectos políticos e jurídicos. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=798e5a5dc5f4a19a, acesso em: 24/04/2022. Conquanto a autora trabalhe com a noção de neutralidade em um sentido mais amplo e não especificamente relacionado às questões religiosas ou à relação entre Estado e Igreja, seus fundamentos calham, porque os valores religiosos participam dos valores subjetivos que interferem na neutralidade, bem como parece bem interessante os problemas que a autora aponta em se defender a separação entre os espaços público e privado.
[liv] MIRANDA, Jorge. Direitos fundamentais. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 61.
[lv] “A liberdade de religião configura-se principalmente como uma liberdade negativa; pois, consistindo no direito de abraçar ou não uma religião e de mudar de religião, isto significa que ela é uma liberdade de defesa perante o Estado. O Estado não pode proibir religiões (salvo nas práticas incompatíveis com a dignidade humana), nem impor a ninguém qualquer religião, assim como não pode impedir ninguém de professar determinada religião. A dimensão negativa é ainda a dimensão dominante quanto ao cumprimento dos deveres pelos seguidores de uma determinada religião (em matéria de culto, família, ensino) sem prejuízo das dimensões prestacionais positivas do Estado no sentido de proporcionar as condições para o cumprimento desses deveres (por ex, reconhecimento dos casamentos religiosos, abertura das escolas públicas ao ensino da religião, condições de assitência religiosa nas instituições públicas, nomeadamente prisões, hospitais, forças armadas etc.). (CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol 1, 4ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 610)
[lvi] Sobre dimensão positiva dos direitos, confira: MIRANDA, Jorge. Direitos fundamentais. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 128
[lvii] De fato, são várias as indicações constitucionais a respeito da importância dada ao fenômeno religioso, o que determina que seja encarado com um viés positivo pelo Estado e pelo Direito. Portanto, uma vez mais se destaca o sentido que a separação deve ter para ser adequada, chegando alguns autores a diferenciar “separação” de “separatismo”. Nesse sentido: GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito, religião e sociedade no Estado Constitucional. Lisboa: IDILP, 2012, p. 32.
[lviii] ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 420.
[lix] ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 508.
[lx] Antunes Varela citado em: ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 434.
[lxi] “Os regimes de coincidência tanto podem ser de teocracia, com subordinação do poder civil ao religioso, como de cesaropapismo, regalismo ou jurisdicionalismo, formas estas às quais é comum a assunção pelo próprio Estado de poderes em matéria espiritual e de intervenção na vida das confissões religiosas: todos são afastados pelo princípio de separação.” (RAIMUNDO, Miguel Assis, “Direito Administrativo da Religião”, in OTERO, P. e GONÇALVES, P. (Org.), Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. VI, Livraria Almedina, Coimbra, 2012, p. 274)
[lxii] RAIMUNDO, Miguel Assis, “Direito Administrativo da Religião”, in OTERO, P. e GONÇALVES, P. (Org.), Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. VI, Livraria Almedina, Coimbra, 2012, p. 270.
[lxiii] AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p 251.
[lxiv] MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 307.
[lxv] A equidade, conforme já se ressaltou, muitas vezes demanda atuações estatais ou disponibilização da estrutura pública. Nesse tocante, a liberdade religiosa, como integrante do núcleo de valores que dá significado e importância à vida da pessoa, é passível de, em determinadas situações, demandar atuações públicas ou a disponibilização de estrutura pública para que tenha valor ao indivíduo. Negar à liberdade religiosa qualquer atuação ou disponibilização, mesmo que importante para a sua eficácia, pelo argumento da laicidade do Estado, é voltar aos termos do liberalismo clássico, em que a liberdade seria tão melhor e efetivamente vivenciada quanto maior fosse a abstenção e não intervenção do Estado. Nesse sentido: SIQUEIRA, Natercia Sampaio; SIQUEIRA, Marcelo Sampaio. Laicidade, neutralidade e igualdade: ensino religioso em escolas públicas. RJLB, Ano 6 (2020), nº 5. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/5/2020_05_1753_1779.pdf. Acesso em: 22/04/2022.
[lxvi] SIQUEIRA, Natercia Sampaio; SIQUEIRA, Marcelo Sampaio. Laicidade, neutralidade e igualdade: ensino religioso em escolas públicas. RJLB, Ano 6 (2020), nº 5. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/5/2020_05_1753_1779.pdf. Acesso em: 22/04/2022.
[lxvii] Importa considerar que a função promocional do Estado junto aos direitos de personalidade revela-se, tão e mais sensível, quando se foca na igualdade informada pela justa oportunidade: aos pais que podem custear ensino particular, é possível a opção por um colégio cuja grade curricular contenha o ensino de determinada religião; aos pais que não possuem condições de pagar por uma educação dessa natureza, não se lhe asseguraria ao filho o acesso à educação religiosa, ainda que fosse do seu gosto. Nesse sentido: SIQUEIRA, Natercia Sampaio; SIQUEIRA, Marcelo Sampaio, ob cit.
[lxviii] Alguns consideram que a disciplina do ensino religioso não deveria, pura e simplesmente, integrar o currículo escolar; sendo concebida, quando muito, como atividade extra-curricular, que a escola poderia acolher como acolhe outras atividades da sociedade civil. Porém, MIGUEL ASSIS RAIMENDO entende que há um valor e um sentido para a educação religiosa como parte da educação integral, mesmo em um Estado laico, que justifica a inclusão curricular. (RAIMUNDO, Miguel Assis, “Direito Administrativo da Religião”, in OTERO, P. e GONÇALVES, P. (Org.), Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. VI, Livraria Almedina, Coimbra, 2012 P. 367)
[lxix] CANOTILHO, MOREIA, ob. cit. p. 615.
[lxx] MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 342.
[lxxi] ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 508.
[lxxii] CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol 1, 4ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 627.
[lxxiii] ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 435.
[lxxiv] GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito, religião e sociedade no Estado Constitucional. Lisboa: IDILP, 2012, p. 331.
[lxxv] MARTÍNEZ-TORRÓN, Javier. Religion and Law in Spain. 2ª ed., Alphen aan den Rijn, Kluwer Law International B.V., 2018.
[lxxvi] A tolerância, para além de representar um ato de suportar algo desagradável, mesmo que se pudesse evitá-lo, está mais bem representada por uma perspectiva intersubjetiva, já que esse algo desagradável, na verdade, é um outro sujeito que exterioriza certa conduta. Assim, tolerância passa a corresponder a restrição recíproca de um desejo em si em face do desejo de outro, de forma que o sujeito tolerante restringe seu desejo e opera um duplo movimento negativo, em que se alheia e ao mesmo tempo se identifica com o sujeito tolerado, este que também realiza o mesmo movimento de forma recíproca. Assim, através do reconhecimento, ambas as partes, seja o tolerante ou o tolerado, podem realizar uma unidade em si e para si e, assim, estabelecerem-se reciprocamente como sujeitos. Para maior aprofundamento sobre a ideia de tolerância, confira: PORTO, Larissa Cristine Gondim. Uma teoria sobre tolerância: o conceito de tolerância na formação dialética da subjetividade. (Tese de doutorado apresentado à Universidade Federal de São Carlos), São Carlos, 2019, 289 págs., disponível em: https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/11777/Larissa%20C.%20G.%20Porto.%20Tese%20completa.%20Dep%c3%b3sito.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 26/04/2022.
[lxxvi] MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p 380.
[lxxvii] Nesse sentido: ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002, p. 441.
[lxxviii] MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p 380.