A Inconstitucionalidade da Modalidade de Contrato Verde e Amarelo à Luz da Teoria da Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais Trabalhistas

Diego Carneiro Costa – Mestrando na Universidade Federal da Bahia – UFBA. Pós Graduado em Direito do Trabalho pela Universidade Anhanguera (Rede LFG). Analista Judiciário no TRT da 5ª Região. e-mail: [email protected].

Resumo: O artigo propõe analisar a modalidade denominada de contrato verde e amarelo sob a ótica do direito constitucional, notadamente à luz da teoria da eficácia dos direitos fundamentais. Defender-se-á a sua inconstitucionalidade, partindo-se do pressuposto que a mudança procedida pelo Poder Executivo através de medida provisória encontra óbice no projeto idealizado pelo Poder Constituinte Originário em 1988. Além disso, o Direito do Trabalho está inserido num sistema aberto de regras e princípios, constituído, inicialmente, pela própria Constituição Federal, motivo pela qual a MPV 905/19 não pode ser interpretada de forma isolada. Utilizar-se-á o método hipotético-dedutivo, através da revisão bibliográfica, como forma de delimitar o problema e compreender adequadamente o cenário social existente.

Palavras-chave: Contrato Verde e Amarelo. Direito do trabalho. Constituição Federal. Direitos Fundamentais.

 

Resumen:  El artículo propone analizar la modalidad llamada contrato verde y amarillo desde la perspectiva del derecho constitucional, especialmente a la luz de la teoría de la efectividad de los derechos fundamentales. Se defenderá su inconstitucionalidad, suponiendo que el cambio realizado por el Poder Ejecutivo a través de una medida provisional encuentra un obstáculo en el proyecto idealizado por el Poder Constituyente Original en 1988. Además, el Derecho Laboral es parte de un sistema abierto de reglas y principios, inicialmente constituido por la Constitución Federal, por lo que el MPV 905/19 no puede interpretarse de manera aislada. El método hipotético-deductivo será utilizado, a través de la revisión bibliográfica, como una forma de delimitar el problema y comprender adecuadamente el escenario social existente.

Palabras-clave:  Contrato Verde y Amarillo. Derecho laboral. Constitución Federal. Derechos Fundamentales.

 

Sumário: Introdução. 1. A racionalidade neoliberal e a crise do trabalho 2. A MPV 905/19 e a inconstitucionalidade formal 3. A inconstitucionalidade da modalidade de contrato verde e amarelo à luz da teoria da dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Conclusão. Referências.

 

Introdução

O presente artigo pretende demonstrar que a MPV 905/19, que trouxe a nova modalidade de contratação denominada contrato verde e amarelo e trouxe diversas outras alterações na legislação trabalhista, não se coaduna com o projeto social idealizado pela Constituição Federal de 1988.

Pretende-se abordar a questão principalmente a partir da teoria dos direitos fundamentais, defendendo a hipótese de que a ordem jurídico-trabalhista contida na Carta Maior vincula os Poderes Públicos a editarem normas que ampliem o patamar de direitos sociais já existentes.

Para tanto, no primeiro capítulo, tentar-se-á demonstrar, em síntese, que o Estado brasileiro, guiado por uma “racionalidade neoliberal” contrária ao espírito constituinte, vem adotando a precarização do trabalho e a fragilidade da proteção social como solução ao desemprego atual.

No segundo capítulo, defender-se-á a tese de que a MPV 905/19 é formalmente inconstitucional, pois não observa os requisitos básicos para edição das medidas provisórias.

No terceiro capítulo, abordaremos a tese de de que o contrato de trabalho verde e amarelo é inconstitucional sob o prisma da teoria da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e suas principais vertentes, sobretudo a eficácia irradiante, os deveres ativos de proteção do Estado e o princípio da proporcionalidade.

Para tanto, utilizar-se-á o método hipotético-dedutivo, através do procedimento da pesquisa bibliográfica.

 

1. A racionalidade neoliberal e a crise do trabalho

O atual momento histórico do trabalho no Brasil acompanha a tendência mundial de restruturação produtiva e incremento de novas tecnologias ao labor, ocasionando a diminuição massiva de postos de trabalho e levando, consequentemente, milhares de trabalhadores ao desemprego.

Tal cenário desfavorável, segundo Graça Druck (2001, p.41) é apoiado num projeto econômico e político de cunho neoliberal que se concretizou essencialmente através de uma restruturação intensa e longa da produção e do trabalho.

Destaca-se que a crise do trabalho no mundo se insere no contexto do que David Harvey (1995, p.140) denominou de acumulação flexível, modelo que se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo.

Explicando o modo de produção da acumulação flexível, destaca-se Bourdieu (1998):

“[…] se instaura o reino absoluto da flexibilidade, com os recrutamentos por intermédio de contratos de duração determinada ou as interinidades e os “planos sociais” de treinamento, e a instauração, no próprio seio da empresa, da concorrência entre filiais autônomas, entre equipes, obrigadas à polivalência, e, enfim, entre indivíduos, através da individuação da relação salarial: fixação de objetivos individuais; práticas de entrevistas individuais de avaliação; altas individualizadas dos salários ou atribuição de promoções em função da competência e do mérito individuais; carreiras individualizadas; estratégias de “responsabilização” tendendo a garantir a auto exploração de certos quadros que, sendo simples assalariados sob forte dependência hierárquica, são ao mesmo tempo considerados responsáveis por suas vendas, seus produtos, sua sucursal, sua loja etc., à maneira dos “por conta própria”, exigência do “autocontrole”, que estende o envolvimento dos assalariados, segundo as técnicas do “manegement participativo”, bem além das atribuições características dos gerentes; eis algumas técnicas de submissão racional que, ao exigir o sobre investimento no trabalho, e não apenas nos postos de responsabilidade, e o trabalho de urgência, concorrem para enfraquecer ou abolir referencias e as solidariedades coletivas. (BOURDIEU, 1998, p. 35)”

Por sua vez, o modo de acumulação flexível vem acompanhado de uma “racionalidade neoliberal”, que pode ser conceituada como a ideia de que o neoliberalismo não é apenas uma ideologia ou política econômica, mas uma racionalidade que tem como característica principal a “generalização da concorrência como norma de conduta e a empresa como modelo de subjetivação”. (DARDOT e LAVAL, 2016, p.17).

Sobre o tema

No Brasil, a racionalidade neoliberal tem ganhado força por meio das ações de empresas, sindicatos patronais e principalmente do próprio Estado – através de seus agentes políticos- que frequentemente reproduzem nos meios de comunicação o discurso de que é necessária, para a geração de empregos, a implementação de uma série de reformas que visam reduzir o “custo do trabalho”, tornando menos onerosa a contratação.

Percebe-se, então, que a ideologia neoliberal tem apoio total do Estado brasileiro, que passa a desempenhar um papel cada vez mais de “gestor dos negócios da burguesia” (DRUCK, 2011, p.42), agindo abertamente em defesa da desregulamentação dos mercados, especialmente o financeiro e do trabalho.

É interessante ainda observar que atualmente o mito do “custo do trabalho” ecoa ainda mais forte no Brasil do que em alguns países centrais do capitalismo, principalmente em razão do desemprego estrutural, que faz gerar um “exército de reserva” formado por desempregados. A existência dessa legião de desempregados faz com que os trabalhadores já empregados aceitem laborar em condições precárias pelo temor da perda do posto de trabalho. Desta forma, os direitos laborais vão sendo trocados, pouco a pouco, pela simples permanência do vínculo empregatício.

Como destaca Mauro Menezes (2019), um dos argumentos mais efetivos trazidos à discussão pela vertente reformista do direito do trabalho reside na afirmação de que as garantias de valorização do vínculo empregatício devem dar lugar a modalidades de contrato menos rígidas, dotadas de menor padrão protetivo, que sejam capazes de estimular a empregabilidade, como é o caso do contrato de trabalho verde e amarelo, instituído pela MPV 905/19.

Nesse contexto, adverte-se que o Estado brasileiro está em vias de desmontar boa parte da proteção social construída desde 1943, ano da edição da CLT, e fortalecida após o advento da Constituição Federal de 1988. A desconstrução dos direitos trabalhista se iniciou com a edição das Leis 13.429/2017 (alterações no trabalho temporário e na terceirização), 13.467/2017 (reforma trabalhista), 13.847/2019 (“declaração de direitos de liberdade econômica”) e, mais recentemente, a MPV 905/19.

Portanto, a premente necessidade de combate ao desemprego no país tem motivado precarização do trabalho e da proteção social como escopo central dos planos e programas do governo, inclusive no que concerne ao acesso ao mercado de trabalho e estímulo à contratação de jovens.

Acontece que o programa neoliberal de desregulamentação do Direito do Trabalho a partir da modificação da legislação infraconstitucional, sobretudo através de medida provisória, vai de encontro aos princípios que regem a Constituição Federal de 1988, conforme se verá a seguir.

 

2. A MPV 905/19 e a inconstitucionalidade formal

Antes de adentrar no tema central do nosso trabalho, que é a inconstitucionalidade da modalidade de contrato verde e amarelo, portanto, classificada como uma inconstitucionalidade material, faz-se mister salientar que a MPV 905/19 contém uma inconstitucionalidade formal difícil de ser superada.

Inicialmente, destaque-se que a medida provisória é um ato normativo elaborado e editado pelo Presidente da República com força de lei, sob o fundamento de relevância e urgência e que deve ser apreciado pelo Congresso Nacional em prazo de 60 dias prorrogáveis por mais 60 dias (FERNANDES, 2017, p.1079).

A edição de medidas provisórias está prevista no artigo 62 da CLT, que em seu caput, dispõe que “em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.” (BRASIL, 1988).

Como explica Bernardo Gonçalves Fernandes (2019, p.1089), a análise de relevância e urgência, ab initio, é um juízo discricionário do Presidente da República, pois é ele que tem que saber o que é ou não relevante e urgente para o país. Contudo, prossegue o autor afirmando que, para o STF, é perfeitamente cabível a inconstitucionalidade formal se ficar consubstanciado que o Presidente incorreu em desvio de finalidade ou abuso do poder de legislar. É exatamente o que ocorre no caso em tela.

Isto porque a MPV 905/19, além de instituir essa modalidade anômala de contratação, trouxe outras disposições que alteraram significativamente as relações de trabalho, razão pela qual vem sendo chamada de minirreforma trabalhista. Vejamos o que foi alterado, além da instituição do contrato verde e amarelo, que veremos em seguida: i) habilitação e reabilitação física e profissional, prevenção e redução de acidentes de trabalho; ii) alterações em processos de revisão de benefícios junto ao INSS; iii) arquivamento eletrônico de documentos; iv) os registros na CTPS; v) disciplina do trabalho aos domingos; vii) trabalho aos sábados em bancos e regras sobre jornada para os trabalhadores bancários; viii) regulação sobre pagamento de gorjetas; sobre processo administrativo para imposição de multas pela auditoria fiscal; ix) sobre repouso semanal remunerado; x) sobre juros de mora e correção monetária; xi) participação nos lucros e prêmios; xii) incidência de contribuição previdenciária sobre o seguro-desemprego.

Como se percebe, na sanha pela redução do “custo do trabalho”, o Poder Executivo, ao editar a medida, não respeitou os critérios de relevância e urgência previstos no artigo 62 da Constituição, já que o amplo rol das matérias previstas na norma deveria ter sido objeto de processo legislativo ordinário, precedido de amplo debate.

É flagrante o desvio de finalidade da MPV 905/19 que, sob o fito de instituir o contrato verde e amarelo, tratou de uma grande variedade de assuntos, sem que estes sequer tivessem relação entre si. Não há nenhuma relevância e urgência para que a MPV 905/19 tenha tratado de todos esses assuntos.

Nesse sentido, cumpre destacar decisão do STF na ADI n. 2213-MC, de relatoria do Ministro Celso de Mello, que declarou a possibilidade de controle jurisdicional dos pressupostos constitucionais que condicionam a edição de medidas provisória, como se infere:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – A QUESTÃO DO ABUSO PRESIDENCIAL NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS – (…) POSSIBILIDADE DE CONTROLE JURISDICIONAL DOS PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS (URGÊNCIA E RELEVÂNCIA) QUE CONDICIONAM A EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS. (…)U TILIZAÇÃO ABUSIVA DE MEDIDAS PROVISÓRIAS – INADMISSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – COMPETÊNCIA EXTRAORDINÁRIA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. – A CRESCENTE APROPRIAÇÃO INSTITUCIONAL DO PODER DE LEGISLAR, POR PARTE DOS SUCESSIVOS PRESIDENTES DA REPÚBLICA, TEM DESPERTADO GRAVES PREOCUPAÇÕES DE ORDEM JURÍDICA, EM RAZÃO DO FATO DE A UTILIZAÇÃO EXCESSIVA DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS CAUSAR PROFUNDAS DISTORÇÕES QUE SE PROJETAM NO PLANO DAS RELAÇÕES POLÍTICAS ENTRE OS PODERES EXECUTIVO E LEGISLATIVO. – Nada pode justificar a utilização abusiva de medidas provisórias, sob pena de o Executivo – quando ausentes razões constitucionais de urgência, necessidade e relevância material -, investir-se, ilegitimamente, na mais relevante função institucional que pertence ao Congresso Nacional, vindo a converter-se, no âmbito da comunidade estatal, em instância hegemônica de poder, afetando, desse modo, com grave prejuízo para o regime das liberdades públicas e sérios reflexos sobre o sistema de “checks and balances”, a relação de equilíbrio que necessariamente deve existir entre os Poderes da República(…)

Cabe, ao poder judiciário, no desempenho das funções que lhe são inerentes, impedir que o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória culmine por introduzir, no processo instiucional brasileiro, em matéria legislativa, verdadeiro cesarismo governamental, provocando, assim, graves distorções no modelo político e gerando sérias disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes. (…)” (ADI 2213 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 04/04/2002, DJ 23-04-2004 PP-00006 EMENT VOL-02148-02 PP-00296).

Demais disso, há de se ressaltar que, no que tange especificamente à modalidade de contrato verde e amarelo, a situação de desemprego justificada como necessidade de relevância e urgência da medida também pode ser questionada. Nesse sentido, cabe trazer trecho da sentença proferida pelo magistrado Germano Silveira, da 3ª Vara do Trabalho de Fortaleza, que incidentalmente julgou inconstitucional toda a MPV 905/19, in verbis:

“(…) No caso, levando em conta essas considerações e examinada a Exposição de Motivos da Medida Provisória 905, pode-se dizer que os requisitos constitucionais de urgência e relevância absolutamente não foram observados, comprometendo a sua integral eficácia.

Para bem explicar, dando concretude aos aspectos até aqui pontuados, tem-se que a Exposição de Motivos n.352/2019 NÃO CONSEGUE INDICAR a existência daquele tal ” estado de necessidade”, que reclama “(…) a adoção imediata de providências, de caráter legislativo, inalcançáveis segundo as regras ordinárias de legiferação (..)” de modo a evitar prejuízo para a sociedade, como exigido no ponto destacado na ADI 221, pelo Ministro Celso de Mello.

A bem da verdade, o que se encontra no texto justificador, em linhas gerais, é mera recapitulação de discurso político rotineiro (com palavras diferentes ) , formulado por vários partidos, de matizes distintas, há anos e anos, embora com soluções diferentes para a problemática, com promessas de incluir determinados segmentos em nichos de empregabilidade, dentro de políticas tais ou quais.

Por outro lado, os índices alarmantes de desemprego que ali são apontados (na faixa de 13 a 14 milhões e a perto de 30 milhões contando os desalentados) não são, infelizmente, novidade na cena brasileira e, ao contrário, são números que estão presentes e desde 2014, não caracterizando fato novo a motivar edição de Medida Provisória, sabendo-se , além do mais, que a realidade do desemprego, em qualquer país, não se equaciona por “decreto” ou MP, mas pela retomada da dinâmica da economia, cujos vetores não podem ser articulados ao custo da precarização do trabalho.

Vale lembrar que com esse mesmo discurso e com essa vocação de fazer o mais do mesmo da doutrina neoliberal (a máxima flexibilização de leis econômicas e trabalhistas), de 2016 até os dias de hoje as ideias acolhidas pelo Congresso, a pretexto de abrir postos de trabalho, não foram além de suprimir direitos, como se fez na reforma trabalhista no governo Temer, resultando as falsas promessas em completo fracasso.” (BRASIL, 2019).

Assim, é clara a hipótese de inconstitucionalidade formal da medida provisória que flagrantemente não observa os requisitos formais de relevância e urgência previstos na Constituição Federal. A MPV 905/19 reúne uma grande variedade de assuntos sem que estes apresentem os requisitos essenciais a justificar a atuação do Poder Executivo como legislador positivo.

 

3. A inconstitucionalidade da modalidade de contrato verde e amarelo à luz da teoria da dimensão objetiva dos direitos fundamentais

A Constituição Federal de 1988 reconheceu a relação de emprego celetista como o patamar mais elevado e seguro de contratação, visando a melhoria da condição social do trabalhador e o estabelecimento de um mínimo existencial como forma de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana, matriz ética do Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, destaca-se a função central do Direito do Trabalho, que é fortalecido na relação celetista, já que a CLT traz um extenso rol de proteção social, capaz de aumentar o padrão jurídico e econômico dos empregados, fornecendo-lhes os meios materiais para uma vida plena, além de contribuir para a distribuição de riquezas e o aquecimento da economia através do incremento do mercado interno.

Destaca-se também que a Carta Social elevou os direitos sociais dos trabalhadores à condição de verdadeiros direitos fundamentais. Como destaca Ingo W. Sarlet (2015, p. 289), faz-se necessária a constatação de que os direitos sociais são inequivocamente autênticos direitos fundamentais, constituindo, pois, direito imediatamente aplicável, nos termos do disposto no artigo 5º, §1º da CF88.

Como direitos fundamentais, os direitos trabalhistas não se limitam a gerar uma pretensão individual (subjetiva) do trabalhador em caso de desrespeito aos direitos constantes dos artigos 7º a 11 da CF88, mas traz também no seu bojo a ideia de obrigação de respeito e promoção dos direitos pelos poderes públicos e pelos particulares, denominada de dimensão objetiva.

Apesar de originária do direito alemão, especificamente no paradigmático caso Luth, em 1958, a teoria da dimensão objetiva dos direitos fundamentais desenvolveu-se no Brasil após a Constituição Federal de 1988.

Trata-se, fundamentalmente, da ideia de que determinados valores objetivos fundamentais devem ter sua eficácia valorada não só sob o ângulo individualista, isto é, com base no ponto de vista da pessoa individual e sua posição perante o Estado, mas também sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade na sua totalidade, já que se cuida de valores e fins que esta deve respeitar e concretizar (SARLET, 2015, p.151).

Explica Sarlet:“os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos executivos, legislativos e judiciários” (SARLET, 2015, p.149).

Nesse sentido, da doutrina alemã se extraem alguns desdobramentos teóricos da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais no Brasil, do qual citamos as duas principais: i) eficácia irradiante (Ausstrahlungswirkung)no sentido de que os direitos fundamentais, como direitos objetivos, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional; ii) deveres de proteção do Estado (Schutzpflichten)que é a obrigação do Estado de zelar, inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos, o que desemboca na obrigação de adoção de medidas positivas com o objetivo de proteger de forma efetiva o exercício de direitos fundamentais.

Destarte, com base na teoria da eficácia irradiante, os direitos trabalhistas forneceriam impulsos e diretrizes para aplicação e interpretação de todo o direito infraconstitucional, incluídas as medidas provisórias. Já com base no dever de proteção estatal faria com que todos os poderes públicos zelassem pela efetividade das normas constitucionais trabalhistas, inclusive o Poder Executivo na sua função atípica de legislar.

Isso quer dizer que, com base nestes dois desdobramentos da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, podemos afirmar que todos os poderes constituídos estão proibidos de atuar de forma contrária à máxima proteção dos direitos trabalhistas, instituída pela Constituição.

Sob esse prisma, Sarlet (2015, p. 159) diz que “hoje não há mais falar em direitos fundamentais na medida da lei, mas sim, em leis apenas na medida dos direitos fundamentais”, o que importaria para quem legisla uma limitação material de sua liberdade de conformação no âmbito de sua atividade de criação de leis.

Assim, por exemplo, Poder Executivo na sua função atípica de legislar, além de somente poder editar atos no sentido de concretizar o direito do trabalho, também se encontra proibido de editar normas que atente contra o sentido e a finalidade do direito do trabalho, como fez a MPV 905/19.

A instituição desta uma modalidade atípica de contrato, denominado verde-amarelo traz em seu bojo uma clara redução de direitos trabalhistas se comparada ao padrão de direitos previstos na CLT, tais como a redução da alíquota mensal relativa à contribuição do FGTS de 8% para 2% (artigo 6º, §2º da MPV 905/19) e o pagamento da multa fundiária, que para os celetistas é de 40% e para os jovens trabalhadores será de 20% (artigo 6º, §1º da MPV 905/19).

Sobre o tema, cumpre destacar que o Conselho Federal da OAB emitiu nota técnica (2019, p.47), afirmando que embora o contrato de trabalho verde e amarelo seja uma modalidade de contratação destinada à criação de novos postos de trabalho para pessoas entre 18 (dezoito) e 29 (vinte e nove) anos, o texto da medida inclui uma exceção importante e ampla o suficiente para colocar em risco a integridade dos contratos de um modo geral. Trata-se da seguinte passagem da MPV 905/19:

“Art. 2º. (…) § 5º. Fica assegurado às empresas que, em outubro de 2019, apurarem quantitativo de empregados inferior em, no mínimo, trinta por cento em relação ao total de empregados registrados em outubro de 2018, o direito de contratar na modalidade Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, observado o limite previsto no § 1º e independentemente do disposto no caput.” (BRASIL, 2019).

Para o Conselho Federal da OAB (2019, p. 48), a especificidade do “Contrato de Trabalho Verde e Amarelo” aos jovens entre 18 (dezoito) e 29 (vinte e nove) anos de idade, com o propósito de registro do primeiro emprego em Carteira de Trabalho torna-se bastante prejudicada, causando fundado receio de ampliação desmedida e progressiva do seu regime menos protetivo ao conjunto de trabalhadores, a médio e longo prazos.

Além disso, observa-se que o artigo 3º da MPV 905/19 prevê que o salário-base mensal do empregado nessa modalidade não poder ser superior a 1,5 salário mínimo nacional, o que atualmente dá algo em torno de R$ 1.567,50. Acontece que a Constituição Federal, no seu artigo 7º, XXX, proíbe qualquer distinção de salários por motivo de idade, o que tornaria inconstitucional a medida por violar norma que consagra o princípio da isonomia salarial e proíbe a discriminação por critério etário.

Outrossim, verifica-se que há no texto da norma a previsão de contratação de empregados para a substituição transitória de pessoal permanente (art. 5º, §1º), o que não se coaduna com o conceito de “novos postos de trabalho” contido na MPV 905/19.

Verifica-se, assim, que esta nova modalidade de contratação colide frontalmente com o projeto instituído pelo Constituinte de 1988 de valorização do trabalho humano através da melhoria da condição social do trabalhador, estampada no logo no caput do artigo 7º. Trata-se tal artigo de regra jurídica com natureza de princípio, que funciona como uma cláusula de abertura a direitos, sendo identificado por parte da doutrina como sendo a positivação do princípio do não retrocesso social.

Para Sayonara Grillo e Carlos Henrique Horn (2008, p.201) cada vez se reconhece mais que há um princípio da vedação ao retrocesso, utilizável sobretudo para preservar os direitos sociais (embora não somente), e que tal princípio visa projetar a segurança necessária a uma vida digna das pessoas também para o futuro, pois não são suficientes as medidas de proteção contra atos retroativos. Segundo os autores: “No âmbito de um constitucionalismo social, em que direitos fundamentais sociais são assegurados e que os trabalhadores são sujeitos de direito constitucional reconhecidos como titulares de um direito subjetivo à proteção com vistas à melhoria de sua condição social, o princípio da proteção do direito do trabalho se articula com a cláusula pétrea de vedação ao retrocesso social.

A crise do direito do trabalho não reside na afirmação da proteção como princípio constitutivo e sim na perda de apelo e de aceitação da idéia necessária de proteção social, que além de um princípio jurídico específico é causa e fundamento de todo o Direito do Trabalho. (GRILLO e HORN, 2008, p. 201).”

É importante destacar, ainda, que o Brasil ratificou diversas normas internacionais no âmbito da ONU, OIT e OEA, dentre elas o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matérias de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (denominado também de Protocolo de San Salvador), firmado no âmbito da OEA. Tal documento prevê, expressamente, a progressividade dos direitos sociais, o chamado efeito cliquet, que nada mais é do que o próprio princípio de vedação ao retrocesso social.

Sob esse prisma, Claudia Honório (2017, p.45), diz que a proibição do retrocesso social mira não apenas as medidas supressoras de direitos sociais, mas também aquelas que acarretem atrofia do patamar de efetividade já obtido, gerando a instrumentalização de direitos na órbita internacional através do controle de convencionalidade dos tratados internacionais.

Nesse ponto do trabalho, chegamos à conclusão que o arcabouço normativo previsto na Constituição de 1988, que consagra um sistema aberto de regras e princípios não podem ser simplesmente restringidos, sobretudo através de medida provisória.

Contudo, poder-se-ia argumentar, de maneira contrária a nosso entendimento, que os direitos fundamentais trabalhistas, mesmo estando previstos na Constituição, não são absolutos, podendo ser restringidos.

Tal assertiva é verdadeira, entretanto, por serem dotados de fundamentalidade, os direitos trabalhistas apenas poderão ser restringidos por expressa disposição constitucional, por reservas legais (simples ou qualificadas) e por força de colisões com outros direitos fundamentais, mas jamais através de medida provisória.

Ainda assim, mesmo nos casos acima citados, os direitos trabalhistas só poderão ser restringidos no liame das exigências do princípio da proporcionalidade, que assume aqui a função de “limite aos limites dos direitos fundamentais”

Cabe destacar então a relevância do princípio da proporcionalidade, que a doutrina alemã identifica como seu ponto de referência a estrutura basilar do próprio Estado Democrático de Direito, notadamente naquilo que veda as arbitrariedades estatais e o excesso de poder.

No Brasil, o princípio estaria contido no próprio artigo 1º da CF88, muito embora há quem entenda que a proporcionalidade guarda relação com o artigo 5º, inciso LIV da CF88, que assegura o devido processo legal substantivo, sendo esta uma tendência da Corte norte-americana e também do STF.

Sob esse prisma, é possível observar que o princípio da proporcionalidade possui uma dupla perspectiva. Se por um lado, possui uma face que proíbe os excessos (vedação da proibição de excesso), por outro traz a ideia de que o legislador, típico ou atípico, não pode atuar de modo insuficiente na proteção dos direitos fundamentais (proibição de proteção insuficiente).

Nesse sentido, o contrato verde e amarelo, indene de dúvidas, traz clara limitação aos direitos fundamentais trabalhistas, visto que esvazia o conteúdo protetivo do direito fundamental ao trabalho protegido (art.6º e 7º da CF88) e o seu valor social (art.1º, IV, 170 e 193) violando o princípio da proporcionalidade na vertente da proibição de proteção insuficiente.

 

Conclusão

O presente artigo buscou analisar, sob a ótica do direito constitucional e da teoria da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, as alterações realizadas pelo Poder Executivo através da MPV 905/19, sobretudo o contrato verde e amarelo, modalidade flagrantemente inconstitucional, por esvaziar o conteúdo da proteção social do trabalhador.

Mostrou-se que, na cortina de fumaça das reformas implementadas pelo Estado brasileiro há uma “racionalidade neoliberal” que utiliza do discurso de crescimento econômico para promover o desmonte de direitos dos trabalhadores, promovendo a total precarização das condições de trabalho.

Mostrou-se que o Poder Executivo, na sua função atípica de legislar, subtraiu o debate democrático inerente ao processo legislativo e editou norma que não contém os requisitos de relevância e urgência previstos no artigo 62 da CF88.

Observou-se que através da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais que os poderes públicos, no exercício da atividade legislativa, possuem o dever de aperfeiçoamento e concretização dos direitos fundamentais, em atenção à eficácia irradiante dos direitos fundamentais e aos deveres ativos de proteção.

Através da teoria da eficácia irradiante, mostrou-se que os direitos constitucionais trabalhistas fornecem impulsos e diretrizes que vinculam o legislador à concretização de tais direitos e não à sua desregulamentação, como se dá através das diversas alterações promovidas pela Lei 13.467/17 e pela MPV 905.

Já nos termos da teoria dos deveres ativos de proteção há verdadeira liberdade de conformação (tanto para o legislador típico quanto para o atípico) que impede a sua ação erosiva contra direitos fundamentais.

Por fim, ressaltou-se a importância do princípio do não-retrocesso social e da proporcionalidade, este último com sendo um dos principais limites às limitações dos direitos fundamentais, através da sua dupla faceta.

 

Referências

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HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Editora Loyola, 2003.

 

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