Os impactos da Lei Geral de Proteção de Dados no Direito Coletivo do Trabalho

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Rayssa Steffany de Lira Santos – acadêmica em Direito na Universidade Tiradentes de Pernambuco.

Ariston Flávio Freitas da Costa – Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.

Resumo: O presente artigo se propõe a estudar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a sua implementação no contexto do emprego, com ênfase na relevância do direito coletivo do trabalho nesse processo. Para tanto, foi feita uma análise da Lei de dados em consonância com a normativa do Direito do Trabalho e, em especial, das previsões constitucionais acerca do direito sindical, além do direito comparado. Buscou-se levantar indagações sobre as principais problemáticas do tratamento dos dados do trabalhador durante a vigência do contrato de trabalho, bem como o papel desempenhado pelo instituto do consentimento no tratamento dos dados e a pertinência da atuação do encarregado nesse cenário. Ao final da pesquisa, foi possível concluir que a LGPD entrou em vigor numa conjuntura de atenuação do papel desempenhado pelas negociações coletivas. Esse aspecto associado ao fato de a LGPD não tratar especificamente da seara trabalhista, deixa lacunas, o que tende a gerar relações de emprego mais desiguais e a tolher um dos elementos mais importantes no que tange ao tratamento de dados, a saber, a manifestação do consentimento ou não pelo trabalhador, e a própria atuação do encarregado.

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Palavras-chave: Direito do Trabalho. Direito sindical. Lei Geral de Proteção de Dados. Direito coletivo do Trabalho. Convenção coletiva.

 

 Abstract: This article proposes a study of the General Data Protection Law (LGPD) and its implementation in the context of employment, with specialization in the quality of collective labor law in this process. To this end, an analysis of the Data Law was carried out in line with the Labor Law norms and, in particular, the constitutional rules on union law, beyond comparative law. We sought to raise questions about the main problems in the treatment of worker data during the term of the employment contract, as well as the role played by the consent institute in the treatment of data and the pertinence of the role of the person in charge in this scenario. At the end of the research, it was possible to conclude that the LGPD came into effect in a context of mitigating the role played by collective obligations. This aspect associated with the fact that an LGPD does not specifically deal with labor matters, leaves gaps, which tends to generate more unequal employment relationships and to hamper one of the most important elements in terms of data processing, a saber, a manifestation of consent whether or not by the worker, and the performance of the person in charge.

Keywords: Employment law. Trade union law. General data protection law. Colletive labor law. Collective agreement.

 

Sumário: Introdução. 1. Aspectos do direito coletivo do trabalho. 2. A Lei Geral de Proteção de Dados aplicada ao contrato de trabalho. 3. Lei Geral de Proteção de Dados e o Direito Coletivo. Conclusão. Referências.

 

Introdução

A lei 13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), dispõe sobre o tratamento de dados da pessoa natural realizado em todas as searas da sociedade. Uma das áreas em que mais encontra eco é nas relações de trabalho. Isso se dá porque para a execução dos contratos de trabalho é imprescindível que os dados do empregado sejam manejados constantemente. Nesse sentido, é fundamental avaliar os impactos da LGPD no âmbito justrabalhista, uma vez que nesse “terreno” a legislação de proteção de dados encontra ampla aplicabilidade. Dentre as questões passíveis de serem enfrentadas pelo direito do trabalho quanto aos termos da LGDP estão o consentimento do trabalhador e o peso que tal manifestação terá para autorizar o tratamento de seus dados; e a intervenção do encarregado que responda diretamente ao empregador, responsável por fazer uma conexão entre o empregado, o empregador controlador dos dados e a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Nesse sentido, o direito coletivo do trabalho cumpre um papel fundamental. O órgão representativo de classe é essencial para tornar as relações de trabalho menos desiguais, uma vez que atua como um terceiro intermediador entre empregado e empregador, impedindo que este imponha seus interesses de forma absoluta sobre aquele. Desse modo, o direito sindical possui o feitio de interferir para diminuir a assimetria intrínseca entre as partes do contrato de trabalho. Com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a sua aplicação à relação jus laboral nota-se a necessidade de que o direito coletivo se faça presente, uma vez que a LGPD não foi criada para as relações trabalhistas, fato que abre espaço para algumas lacunas. Tais aspectos foram discutidos na presente pesquisa afim de buscar compreender como esses sujeitos se relacionam no contexto do emprego e como o tratamento de dados do trabalhador poderá afetar o contrato de trabalho.

 

  1. Aspectos do direito coletivo do trabalho

Em se tratando de um contrato de trabalho, em especial, na modalidade de emprego, é clara a relação assimétrica existente entre as partes que se relacionam por meio desse instrumento jurídico (FERREIRA, 2012) . Isso se dá porque o trabalhador possui como único bem disponível a sua força de trabalho e é a alienação desta que lhe permite garantir a sua sobrevivência, enquanto que o empregador é o detentor dos meios de produção. Ressalta-se que contrato de trabalho será utilizado aqui para referir-se à modalidade de contrato de emprego. Isso posto, a proteção dessa relação é assegurada mediante preceitos constitucionais. Destarte, a Constituição Federal Brasileira elenca dentre os direitos sociais o trabalho, estando este diretamente relacionado à dignidade da pessoa humana e figurando no rol dos fundamentos da República Federativa do Brasil, presente no art. 1º, IV, CF/88. Na seara dos direitos trabalhistas tutelados constitucionalmente está o reconhecimento dos acordos e convenções coletivas de trabalho que, segundo a própria carta magna, têm a importância de melhorar a condição social do trabalhador.

Ocorre que a mera positivação desses direitos não é capaz de assegurar a sua efetividade, pois a legalidade atribui aos sujeitos de direito uma igualdade apenas formal (MASCARO, 2019). Isso se dá, primariamente, porque quando as normas são extraídas para a realidade material elas encontram uma série de empecilhos para cumprirem com o objetivo que lhes foi, inicialmente, imputado, no caso do direito coletivo do trabalho a finalidade é a promoção da justiça social, conforme dispõe a carta magna. Tendo esse aspecto em vista, percebe-se a necessidade de elementos que permitam a aplicação das premissas estabelecidas na lei. Nesse sentido, o direito coletivo do trabalho atua como um componente capaz de diminuir a distância entre a norma positivada e a realidade a qual essa está inserida. Mormente quando apontado o objetivo de promoção da justiça social, tal qual estabelece a lei maior, a atuação dos sindicatos é peça chave para que essa seja atingida. Tal atribuição é reforçada quando a constituição determina, em seu art. 8º, que cabe ao sindicato a defesa dos interesses da classe trabalhadora, bem como que a participação dos sindicatos nas negociações coletivas é obrigatória. Considerando que o direito do trabalho é dotado de princípios que visam tutelar a relação jus trabalhista, de modo a conceder uma proteção diferenciada ao trabalhador por esse ser a parte hipossuficiente do elo, o direito coletivo do trabalho surgiu e se mantém com o escopo de contribuir para que a assimetria entre empregado e empregador seja minimizada.

Dentre os princípios que regem o direito sindical, a três será dado certa ênfase pela pertinência com as discussões traçadas aqui, a saber: o princípio da lealdade e transparência na negociação coletiva, da adequação setorial negociada e o da equivalência dos contratantes coletivos (DELGADO, 2012). A lealdade e a transparência na negociação coletiva são elementos sine qua non, visto que as partes precisam estabelecer clareza nos termos da negociação afim de assegurar que os direitos e obrigações acordados possam ser efetivados sem que haja margem para interpretações equivocadas do instrumento coletivo, que possam gerar prejuízo aos trabalhadores. O princípio da adequação setorial, por sua vez, impõe que as normas do acordo coletivo estejam em conformidade com o ordenamento jurídico, tratando-se de uma forma de propiciar que a indisponibilidade dos direitos trabalhistas seja respeitada. Retomando o aspecto da alteridade entre os sujeitos que figuram no contrato individual de trabalho, o princípio da equivalência dos contratantes coletivos nas negociações evidencia uma preocupação em salvaguardar os interesses dos trabalhadores envolvidos nessas. Posto que num acordo individual entre empregador e empregado, este eventualmente encontra dificuldade para estabelecer os termos que lhe são mais favoráveis, visto que hipossuficiente, o sindicato atua como um terceiro diretamente interessado e tem potencial para dar suporte ao trabalhador.

 

Para além desses princípios, a premissa da coletividade é um alicerce do direito sindical que visa, como já mencionado, a proteção dos interesses de uma categoria de forma geral, ademais a tutela no âmbito individual. É certo que cada trabalhador possui a sua singularidade, mas as demandas de uma classe costumam ser as mesmas, especialmente quando considerado o contexto de generalidade do capitalismo global. Nesse sentido, não é suficiente uma atuação pontual dos sindicatos, é preciso que haja trabalho de base com os trabalhadores para ressaltar a importância da construção coletiva dos direitos. Todavia, o movimento sindical no Brasil tem enfrentado uma série de dificuldades nos últimos anos, sobretudo após a entrada em vigor da lei 13.467/17, conhecida como reforma trabalhista. Dentre as inúmeras mudanças apresentadas pela reforma trabalhista, algumas se destacam por terem impulsionado a fragilização dos sindicatos. A prevalência do negociado sobre o legislado e o fim da contribuição sindical obrigatória, por exemplo, significaram uma supressão do papel que os sindicatos possuem nas negociações de trabalho (KREIN, 2017).

 

Para o professor José Dari Krein, a fragilização dos sindicatos não foi desencadeada pela reforma, todavia “há um contexto econômico, político e ideológico desfavorável à ação coletiva no capitalismo contemporâneo que colocou os sindicatos na defensiva e estes perderam força na sociedade” (KREIN, 2017). Tal cenário não é uma singularidade do Brasil, mas faz parte de uma tendência global em que mudanças na dinâmica da acumulação capitalista, novas formas de reestruturação produtiva e políticas neoliberais levaram a uma diminuição no número de trabalhadores sindicalizados no mundo (MATTOS, 2019, p. 95). Uma manifestação disso em âmbito nacional foi a crescente diminuição do número de trabalhadores sindicalizados desde o ano de 2017, conforme aponta a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNDA) divulgada junto ao IBGE (IBGE, 2020). Os dados indicam que entre 2018 e 2019 houve queda de 951 mil trabalhadores sindicalizados. Em 2019, do total de 94.642 milhões de trabalhadores ocupados acima de 14 anos, 11,2% eram associados ao sindicato, enquanto em 2018 esse percentual era de 12,5%. O fim da obrigatoriedade do imposto sindical contribuiu para a extenuação dos sindicatos. A contribuição sindical, outra fonte de renda dessas instituições, caiu 90% entre 2017 e 2018 (OLIVEIRA; FIGUEIRAS; KREINK, 2019, p. 214).

 

A professora Andréia Galvão (Oliveira; Figueiras; Krein, 2019, p. 216) aponta que devido ao fim da obrigatoriedade do imposto sindical, a mensalidade e a taxa negocial­, sendo essa dependente da autorização patronal para figurar na convenção coletiva de trabalho, passaram a representar a principal fonte de renda dos sindicatos. Isso não implica dizer que o retorno da obrigatoriedade do imposto sindical, necessariamente, resolveria o problema na queda de receita e no enfraquecimento financeiro do sindicato, de modo que tal questão demanda uma outra discussão mais aprofundada. Essas informações são sintomáticas, pois apontam, de maneira geral, para o enfraquecimento do direito coletivo do trabalho. Isso se dá num contexto de fortalecimento da narrativa neoliberal, de individualismo e, no recorte do contrato de trabalho, da possibilidade de que as partes, formalmente iguais e livres para manifestar sua vontade, possam acordar entre si os melhores termos. Na contramão dos esforços do trabalho de base para estruturar o direito coletivo, a retórica das liberdades individuais, apoiada na ideia de uma igualdade ficta entre as partes que constituem a relação jus laboral, tende a fortalecer o imobilismo e a manutenção do status quo, uma vez compreendida a desigualdade material intrínseca ao contrato de trabalho.

 

Feitos os devidos apontamentos acerca da relevância do direito coletivo do trabalho, fica demonstrada a necessidade da intervenção dos sindicatos no cumprimento do contrato jus laboral para fazer frente à flexibilização gradativa das legislações e assegurar que a indisponibilidade dos direitos do trabalhador seja respeitada. Nesse cenário de enfraquecimento do direito coletivo e da atuação dos sindicatos, a lei 13.709/18, Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), apesar de não ter sido pensada especialmente para o âmbito do direito do trabalho, tem o potencial para gerar mudanças sem precedentes nas relações trabalhistas.

 

  1. A Lei Geral de Proteção de Dados aplicada ao contrato de trabalho

O direito do trabalho é ramo da justiça especial, possuindo normas e organização muito específicas. Tal aspecto, contudo, não torna esse campo apartado do ordenamento jurídico de modo geral, que sofre influência direta dos outros ramos, como é o caso dos institutos do direito civil, que atuam de forma subsidiária ou supletiva, no que couber e não for abarcado pelas legislações trabalhistas. Nesse sentido, a lei de nº 13.709/18, ou Lei Geral de Proteção de Dados, não foi criada especialmente para ser aplicada na seara trabalhista, porém é nas relações de trabalho que os dispositivos da LGPD encontram ampla utilização.

 

Como ressaltado anteriormente, a LGPD não foi feita de maneira exclusiva para o direito do trabalho e esse aspecto abre margem para algumas lacunas quando a legislação passa a ser pensada para a relação trabalhista. Em contrapartida à tal peculiaridade da lei de proteção de dados brasileira, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) da União Europeia possui um artigo para tratar do processamento dos dados na relação de emprego. Nesse dispositivo, há a determinação para que os Estados-Membros regulem o tratamento de dados na seara trabalhista por meio de leis ou de convenções coletivas. O art. 88 da RGPD estabelece que as convenções coletivas devem servir como ferramenta para “garantir a proteção dos direitos e liberdades no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais dos trabalhadores no contexto do trabalho” (UE, 2016). A lei brasileira teve influência direta da RGPD, contudo não houve naquela a mesma preocupação em especificar a tutela do tratamento de dados na conjuntura trabalhista.

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Assim sendo, em termos gerais, a LGPD tem como objetivo regular o tratamento de dados da pessoa natural feito por pessoas jurídicas ou naturais de direito público ou privado. Dessa forma, qualquer ação de tratamento de dados nesses moldes, inclusive quando feito por pessoa de direito público ou privado que tenha sede em outro país ou, até mesmo cujo os dados tratados estejam no exterior, desde que o tratamento seja realizado no Brasil, estará sujeita à essa legislação. O tratamento de dados está conceituado na própria norma, em seu art. 5, X, que o define como toda manipulação de dados pessoais que envolva “coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração” (BRASIL, 2018). Esse tratamento pode ser feito com dados pessoais, relacionados à pessoa e que a tornem identificada ou identificável; e com dados pessoais sensíveis que, ipsis litteris são concernentes à “origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico” (BRASIL, 2018). Tanto o dado pessoal quanto o dado pessoal sensível tratados devem ser, obrigatoriamente, da pessoa natural.

 

Além desses conceitos, essenciais para compreender o que exatamente a LGPD tutela, há outros elementos centrais para entender em que nível essa legislação é aplicável ao direito do trabalho, que são as partes envolvidas no tratamento de dados. A acepção dos sujeitos envoltos no tratamento de dados e de outros componentes relativos a esse processo está presente no art. 5 da LGPD. Quanto às partes envolvidas no tratamento de dados tem-se a figura do titular, que é a pessoa natural a quem os dados pessoais pertencem; do controlador e do operador, ambas pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado, sendo este quem efetivamente realiza o tratamento dos dados em nome daquele, que toma as decisões acerca dos dados pessoais do titular. Juntos, esses dois sujeitos são denominados de agentes de tratamento. Outro componente fundamental para perceber a dinâmica do tratamento de dados é o encarregado, sujeito indicado pelos agentes de tratamento para intermediar a comunicação entre o controlador, o titular e a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), sendo essa responsável por fiscalizar e regular a aplicação da LGPD.

 

No contexto do contrato de trabalho, é o empregador quem exerce a função de controlador, enquanto que o titular é o empregado, que tem seus dados pessoais cedidos àquele. Ressalta-se que o tratamento de dados na relação jus laboral não é estrita ao momento da execução do contrato, verificando-se também na fase pré-contratual, como nos processos de seleção, e posteriormente, ao fim do vínculo empregatício, visto que os dados do trabalhador tendem a continuar sob a posse do empregador (a LGPD dispõe sobre o procedimento da eliminação dos dados). Para as finalidades aqui propostas, o momento da vigência do contrato de trabalho será o objeto central. Dessa forma, ao refletir sobre o papel que cada indivíduo que figura na relação trabalhista desempenhará quanto ao tratamento de dados, destaca-se a função do encarregado e a importância que esse sujeito terá dentro do contrato de trabalho, o que suscita algumas indagações. A primeira delas é sobre quem será apto a exercer tal função, outro empregado ou um terceiro que não responda ao empregador (CARLOTO, 2020, p.66). E, ainda, quais seriam as implicações de uma ou outra hipótese que não aquelas sendo posta em prática.

 

As funções do encarregado estão definidas no art. 41, §2 da LGPD. Por figurar como, nos próprios termos da lei, um “canal de comunicação” (BRASIL, 2018) entre os agentes de tratamento e o titular, é dele a responsabilidade de receber reclamações e comunicações dos titulares, da autoridade nacional de proteção de dados, de orientar as empresas sobre os procedimentos adequados, bem como de tomar providências quanto ao eventual descumprimento da norma. Retomando o papel do encarregado no contexto do contrato empregatício, como dito anteriormente, não há uma determinação exata quanto há quem seria o sujeito ideal para cumprir essa função. Na hipótese de ser indicado para o posto um empregado com dever de atuação no local onde exerce seu expediente, surge a problemática da falta de autonomia do mesmo para estabelecer a comunicação adequada entre as partes da relação trabalhista, assim como para tomar medidas diante de lesão aos direitos do titular decorrente do tratamento de seus dados. Isso porque, por responder diretamente ao empregador, o encarregado teria dificuldades para confrontá-lo quando o mesmo agisse com abuso de poderes, coagindo o titular a consentir ao tratamento de dados ou não dispondo de informações claras sobre a finalidade desse tratamento, por exemplo. Por sua vez, sendo o encarregado um terceiro que não responda ao empregador, outra questão seria sobre até que ponto os trabalhadores se sentiriam confortáveis para levar suas reclamações até esse encarregado sem o temor de sofrer algum tipo de retaliação por parte do empregador.

 

Diante desse cenário, além das questões acerca do encarregado, outro ponto da Lei geral de proteção de dados pode vir a enfrentar problemas quando aplicado ao contrato de trabalho, a saber: o instituto do consentimento, uma das hipóteses que autorizam o tratamento dos dados. O rol de situações em que o tratamento de dados poderá ser feito está disposto no art. 7 da LGPD que, além da necessidade do consentimento do titular dos dados, pressupõe os casos em que o tratamento seja necessário ao cumprimento de obrigação legal ou regulatória por parte do controlador e para a execução do contrato ou procedimentos preliminares relacionados ao instrumento, desde que mediante solicitação do titular dos dados. Na legislação de proteção de dados europeia, a questão do consentimento tem importância tamanha que foi objeto de inúmeras discussões até que seus termos fossem pormenorizados afim de evitar equívocos que invalidem a sua manifestação. O Comitê Europeu para a Proteção de Dados, instituído pela RGPD, indicou diretrizes apontando para as formas de o consentimento se materializar livre de qualquer tipo de coação, devendo o tratamento de dados observar os direitos fundamentais do titular (CARLOTO, 2020, p. 86).

 

O consentimento tratado na legislação brasileira, fundamental para o tratamento de dados no contexto do emprego, é definido pela LGPD como “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada” (BRASIL, 2018). Para ser livre, é preciso que ao titular seja dada a opção de manifestar sua vontade sem receios, priorizando seus interesses. A informação é outro componente do consentimento válido, uma vez que, conforme a própria LGPD determina, o tratamento de dados deve ocorrer com finalidade determinada, sendo pleno direito do titular saber para qual propósito seus dados estão sendo manipulados e de que forma. Nesse sentido, o consentimento precisa ser concedido com base nas informações sobre quais serão os dados tratados e com quais objetivos. Assim, é fundamental que o titular possa escolher, de uma a uma, as finalidades específicas para as quais autoriza o tratamento de seus dados. Trata-se do instituto da granularidade, que permite que, de fato, o titular tenha acesso a cada operação que será realizada com suas informações.

 

Quanto à manifestação inequívoca, essa requer uma exteriorização positiva, ou seja, o consentimento não pode ser presumido, sendo as manifestações genéricas consideradas nulas, o que poderá invalidar o consentimento. Nessa perspectiva, aplicam-se os princípios do não repúdio e de prova da pessoalidade, que determinam que apenas o titular do dado é quem tem legitimidade para dar o devido consentimento. Pensando no consentimento na relação jus laboral, é possível que naturalmente surjam dúvidas sobre como o mesmo poderá se manifestar livremente. Isso porque uma das características da relação de emprego é a subordinação do empregado ao empregador e, ainda, a assimetria entre essas partes. Para que o consentimento seja considerado legítimo o titular (trabalhador) precisa ter liberdade para decidir se quer conceder seus dados, quais dados autoriza que sejam tratados ou se não tem interesse em aceitar o tratamento, sem o receio de sofrer represálias. O trabalhador não pode ser coagido a ceder seus dados para tratamento, em especial se esse processo for capaz de gerar prejuízos à execução do contrato de trabalho ou, até mesmo, de promover algum tipo de discriminação contra ele (o que iria de encontro ao princípio da não discriminação previsto na LGPD).

Uma vez que a LGPD determina os termos nos quais o tratamento de dados deverá ocorrer, mas não trata de situações possíveis na seara jus trabalhista, não é difícil que, na prática, haja coação para que o trabalhador disponha de seus dados ao empregador, que exerce o poder de mando sobre aquele. Prevendo a possibilidade de situações como essa, a RGPD ,da União Europeia, informa que o consentimento, quando se tratar de contrato de trabalho, não é válido para autorizar o tratamento de dados, justamente por haver uma relação desigual entre as partes, o que limitaria a liberdade do trabalhador para fazer escolhas. Como tratado anteriormente, a igualdade jurídica entre empregado e empregador é meramente formal, tanto que o direito do trabalho tem como uma de suas premissas a busca da verdade real acima dos aspectos contratuais ou legalistas, pois esses não são capazes de refletir, por si só, a veracidade dos fatos. Nesse sentido, a LGPD deixa lacunas quando aplicada às relações de trabalho, já que quando se confrontam os requisitos para o consentimento válido com a realidade material as contradições ficam evidentes. Ainda, no que diz respeito ao encarregado, em especial se este estiver diretamente subordinado ao empregador, a lei de dados brasileira não tratou da alteridade inerente ao contrato de trabalho, já que essa não é sua finalidade, e em como esse aspecto, consequentemente, prejudicará a comunicação com as autoridades competentes e o combate ao descumprimento das suas disposições legais. Nesse prisma, é preciso pensar em formas de preencher as lacunas.

 

  1. Lei Geral de Proteção de Dados e o Direito Coletivo

Uma vez estabelecidos os principais aspectos da LGPD atinentes ao direito do trabalho, bem como as problemáticas em torno da aplicação do consentimento e da figura do encarregado ao contrato de trabalho, resta patente que a execução da Lei Geral de Proteção de Dados demanda por regulamentação especial. Essa normatização poderá vir por meio de uma legislação que imponha diretrizes para que a LGPD possa ser aplicada adequadamente ao contexto empregatício, estabelecendo os termos do consentimento, mecanismos de fiscalização do tratamento dos dados do trabalhador e formas de assegurar autonomia funcional ao encarregado empregado. A questão, todavia, é urgente e demanda por ações rápidas, embora uma lei especial seja também imprescindível. Nesse sentido, o direito coletivo do trabalho poderá atuar para que as lacunas resultantes da falta de disposições na lei de dados sobre a situação dos trabalhadores sejam preenchidas.

 

Por esse ângulo, um dos princípios que regem o tratamento de dados é o da prevenção. Previsto no art.6, VIII, in verbis, esse determina a “adoção de medidas para prevenir a ocorrência de danos em virtude do tratamento de dados pessoais” (BRASIL, 2018). Dessa forma, a LGPD indica que eventualidades no tratamento dos dados que possam vir a gerar danos aos envolvidos nessa operação devam ser antecipadas e prevenidas. Análogo a esse princípio, o Direito do Trabalho também resguarda a prevenção como um de seus pilares, prevendo a aplicação de medidas acautelatórias para assegurar um ambiente de trabalho seguro, com a finalidade de mitigar danos.

 

Assim sendo, uma das formas de evitar que o trabalhador sofra algum prejuízo decorrente do tratamento de seus dados por parte do empregador é por meio da fiscalização. Sob essa perspectiva, o sindicato tem o potencial para representar os interesses do trabalhador e atuar como um agente fiscalizador dos termos nos quais o tratamento de dados será executado. Os acordos e convenções coletivas têm um papel central aqui, pois partem do pressuposto de que o trato firmado entre empregado e empregador será mais justo e pendente para a parte hipossuficiente do vínculo. Isso porque, para a realização de acordos e convenções coletivas, a presença do sindicato da classe diretamente envolvida é imprescindível, pois dificulta a imposição ostensiva da vontade do empregador em benefício próprio. Essa atuação porá em prática o respeito ao princípio da prevenção, tanto o abarcado na legislação trabalhista, quanto na Lei Geral de Proteção de Dados, uma vez que os sindicatos irão operar, justamente, para evitar danos ao trabalhador no tratamento de seus dados.

No que diz respeito ao consentimento, a intervenção dos sindicatos é fundamental, visto que, como já discutido, há grandes chances de haver vício na sua manifestação. Esse aspecto se deve, essencialmente, à subordinação inerente à relação de emprego, que condiciona o trabalhador a aceitar uma série de demandas temendo ser prejudicado ou, até mesmo, ter seu contrato rescindido. Esse fenômeno é tão patente que a lei de proteção de dados europeia direciona seu entendimento para o fato de que o consentimento por si só não é suficiente para tornar o tratamento de dados do trabalhador válido. Nesse sentido, a RGPD abre margem para a atuação das entidades de representação de classe ao dispor, no supracitado art. 88, que os acordos coletivos devem ser parte do todo a ser observado pelos Estados-Membros na aplicação da norma. Seguindo esse raciocínio, é perfeitamente possível adotar a mesma postura no Brasil, conferindo aos sindicatos um papel de destaque na execução da LGPD na seara trabalhista brasileira. Uma das formas possíveis de atuação dos sindicatos é por meio de acordo ou de convenção coletiva que estabeleça os termos nos quais o consentimento deve se dar para ser ilibado de vício. Além dos requisitos da própria LGPD e já mencionados, a saber ser uma manifestação livre, inequívoca e informada, o consentimento deverá seguir os protocolos estabelecidos no acordo ou na convenção coletiva, bem como ser assistido de perto pelo sindicato, que deverá atentar para os termos nos quais o tratamento de dados estará sendo realizado. Ainda, por ser do encarregado a competência para receber eventuais reclamações dos titulares de dados, conforme as cláusulas da LGPD e, visto que a lei geral não fez ressalvas quanto ao contrato de trabalho, o sindicato poderá desempenhar a função de ser o terceiro responsável pelo intermédio entre os agentes de tratamento, os empregados e a Agência Nacional de Proteção de Dados. Em não sendo possível escolher dentre os membros do sindicato alguém para encarregar-se de tal incumbência, o sindicato poderá atuar junto ao encarregado no que for de interesse da classe cujo representa. No último caso, uma legislação especial poderá criar um novo sujeito para atuar como encarregado, de atuação sindical, para além dos determinados pela lei geral, e que seja específico para o ramo jus trabalhista.

Notadamente quanto ao encarregado no contexto do emprego, retoma-se o questionamento sobre a sua autonomia funcional caso esse seja indicado pelos agentes de tratamento dentre os próprios empregados. Sendo dispare a relação entre as partes do contrato de emprego, o empregado responde diretamente ao empregador e, por isso, atua vinculado aos seus interesses, correndo o risco de ser demitido sem justa causa, salvo nas hipóteses de estabilidade de emprego asseguradas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Uma das espécies de estabilidade prevista pela CLT é a do empregado eleito para cargo de direção em Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), prevista no art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Nos termos legais, o membro da CIPA tem como atribuição identificar os perigos envolvidos na execução do trabalho e elaborar um mapa de risco, com a participação do maior número de trabalhadores possível. Por desempenhar uma função que, eventualmente, poderá ir de encontro aos interesses do empregador, a forma que a legislação definiu para garantir que seu trabalho fosse realizado em prol dos interesses e da segurança dos outros trabalhadores, sem que isso prejudicasse o seu acesso ao emprego, foi a estabilidade provisória, sendo vedada a sua demissão até um ano após findo o seu mandato. Considerando a similaridade entre a atuação do membro diretor da CIPA e do encarregado empregado, a estabilidade provisória é plenamente cabível nesse caso, com o fundamento de certificar que o encarregado será capaz de efetivar suas atribuições sem sofrer interferências ou ser prejudicado.

 

Outro fundamento da Lei Geral de Proteção de Dados que poderá ser amplamente aplicado ao direito do trabalho é o da autodeterminação informativa, aplicação da granularidade citada anteriormente, previsto no art. 2, II da LGPD. Essa diz respeito á capacidade de o titular dos dados ser sujeito ativo na proteção de seus dados, ou seja, ter acesso a informações sobre os dados que serão tratados e para quais finalidades, afim de exercer o livre consentimento, bem como de revogá-lo a qualquer tempo (BRASIL, 2018). Concebendo os elementos acerca do consentimento e da atuação do encarregado empregado, elucidados até aqui, resta palpável a necessidade da atuação de um terceiro atinente ao tratamento de dados do trabalhador, inclusive como forma de propiciar a autodeterminação desse quanto aos dados que estiverem à disposição de seu empregador. Esse terceiro deverá ser o órgão de representação de classe, que precisará atuar em contrapartida à manifesta flexibilização das legislações trabalhistas e do lapso deixado pela LGPD.

 

Quanto ao demais vácuos da LGPD referentes ao contexto do trabalho, o compliance trabalhista tende a ser uma ferramenta eficaz, visto tratar-se de uma busca pela adequação entre as normas legais e regulamentadoras, como também aos princípios constitucionais (OLIVEIRA; FIGUEIRAS; KREIN, 2019, p.139). Todavia, para que o compliance seja efetivamente proveitoso, faz-se necessário que haja normas regulamentadoras da LGPD no âmbito do trabalho, afim de que os princípios constitucionais, os fundamentos do direito do trabalho e as determinações da LGPD aplicáveis ao mundo do trabalho tenham um ponto de referência, para que a finalidade maior seja atingida, a saber: a proteção do trabalhador e o adequado e efetivo tratamento dos dados.

 

Conclusão

Conforme discutido ao longo dessa pesquisa, a Lei Geral de Proteção de Dados tem o potencial para promover mudanças sem precedentes no mundo do trabalho. O acesso aos dados do trabalhador por parte do empregador já era uma realidade, em especial, no que tange à execução do contrato de trabalho. Todavia, o tratamento desses dados somente passou a ser regulado a partir da LGDP que, embora não tenha sido pensada para as relações de trabalho, terá efeito extensivo no contexto empregatício. Isso porque para que o tratamento dos dados do trabalhador siga os trâmites legais, é preciso que respeite requisitos como o consentimento do titular e, ainda, que os sujeitos envolvidos no tratamento dos dados estejam bem definidos. Nesse sentido, a figura do encarregado alcança destaque devido ao impacto de sua atuação no tratamento de dados inserido no contexto da execução do contrato de trabalho.

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Justamente por não apresentar especificações quanto às relações de trabalho, a aplicação dos institutos da LGPD na seara jus trabalhista se defronta com alguns desafios. As lacunas restam manifestas quando são enumeradas algumas características intrínsecas das relações de trabalho, como a assimetria entre empregado e empregador e a subordinação daquele a esse, o que limita a sua recusa ao tratamento de dados ou à forma como esse é feito pelo empregador.

No contexto da entrada em vigor da LGPD, tem ocorrido o fortalecimento da narrativa neoliberal que privilegia as negociações individuais sob o argumento de que os sujeitos do contrato de trabalho são iguais, todavia essa paridade é apenas formal. Em contraparte, o enfraquecimento da atuação dos sindicatos nas relações trabalhistas gerou a diminuição do número de trabalhadores sindicalizados e, consequentemente, concebeu a perda de espaço dos acordos e negociações coletivas. Tal fato, no cenário da aplicação da LGPD, tende a deixar o trabalhador mais exposto a abusos por parte do empregador no tratamento de seus dados. Assim, para evitar que o trabalhador sofra algum tipo de prejuízo quando do tratamento de seus dados, faz-se necessário que o direito coletivo retome um lugar de destaque. Para tanto, é preciso desconstruir a retórica neoliberal que pondera pela igualdade formal como garantidora de que os interesses do trabalhador serão atingidos por meio de acordos individuais, e buscar a reconstrução do direito coletivo como imprescindível para assegurar a proteção dos trabalhadores.

Os eventuais acordos ou convenções coletivas de trabalho devem visar impedir que aspectos da organização interna das empresas atinentes ao tratamento dos dados gerem prejuízo ao empregado e ao cumprimento do contrato. Além desse aspecto, outros elementos do direito do trabalho são muito úteis para dirimir as contradições decorrentes da aplicação da LGDP às relações de trabalho. A garantia provisória de emprego ao encarregado empregado e a praticabilidade dos princípios do direito do trabalho são componentes importantes para assegurar a indisponibilidade dos direitos do trabalhador e a proteção dos seus interesses. Em contrapartida à flexibilização da legislação e dos vácuos da LGDP, a atuação dos sindicatos é indispensável para tornar as relações de emprego menos desiguais e o tratamento dos dados mais seguro.

 

 Referências

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