Da Nova Lei de Licitações e seus Reflexos nas Relações Trabalhistas

Autor: Mauricio de Carvalho Salviano. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP, Professor de Direito do Trabalho na Universidade Paulista e Direito Civil na UniJales-SP. Advogado.

Resumo: Este artigo descreve a nova Lei de Licitações, nº 14.133, de 1º de abril de 2021, e seu alcance para a área trabalhista, no que tange à responsabilidade subsidiária do Estado, frente aos contratos administrativos elaborados por meio de licitações, no pagamento de dívidas trabalhistas. Houveram mudanças significativas na fiscalização do Estado sobre as empresas contratadas, além de regras de compliance, tudo para evitar a citada responsabilidade civil. Há uma análise também sobre a vigência da antiga Lei de Licitações (8.666/1993) que ainda persiste, e quais os efeitos da simultaneidade de duas normas tratando do mesmo objeto, para fins trabalhistas.

Palavras-chave: Licitações. Responsabilidade Subsidiária. Exclusividade. Vigência.

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Abstract: This article describes the new Public Bidding Law, No. 14,133, of April 1, 2021, and its reaching for the labor area, with respect to the State’s subsidiary responsibility, in view of the administrative contracts drawn up through public bids, in the payment of labor debts. There have been significant changes in the State’s inspection of contracted companies, in addition to compliance rules, all to avoid the aforementioned civil liability. There is also an analysis on the validity of the old Public Bidding Law (8,666 / 1993) that still persists, and what are the effects of the simultaneity of two rules dealing with the same object, for labor purposes.

Keywords: Public Bids. Subsidiary Liability. Exclusivity. Validity.

 

Sumário: Introdução. 1. Da nova lei de licitação. 2. da fiscalização que o estado deve promover. 3. Do ônus da prova. 4. Da dedicação exclusiva. 5. Como evitar a responsabilidade subsidiária. 6. Da exclusão das empresas públicas e sociedades de economia mista. 7. Da vigência da lei 14.133/2021. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

Uma nova norma surge no cenário jurídico trabalhista e, claro, gerando preocupação aos empregados, pois a tônica dos últimos cinco anos – desde a Reforma Trabalhista – é de que só há perdas aos trabalhadores.

Estamos escrevendo sobre a Lei 14.133/2021, que alterou as normas sobre licitação. A implicância desta sobre o Direito do Trabalho está ligado à terceirização, em especial, a responsabilidade subsidiária do Poder Público, quando o empregador deixa de pagar seus empregados.

Antes de adentrar nos meandros da norma – que são muitos – vale a pena lembrar a última análise do grupo de trabalhadores que é foco desta norma, pelo IBGE, ocorrido em 2015[1].

Pelas análises do estudo, encontramos a Tabela 1, que traz o número de Empresas, pessoal ocupado total e assalariado, salários e outras remunerações, salário médio, que possibilita encontrarmos a porcentagem das pessoas que serão atingidas pela nova norma.

Em 2015, pelo IBGE, o total do pessoal ocupado no Brasil era de 40.219.905 trabalhadores.

Desta tabela, selecionamos as atividades que mais compreendem empresas que costumeiramente terceirizam para a Administração Pública, como alimentação; informação e comunicação; técnicas; atividades administrativas e serviços complementares.

E estas atividades, somadas, produzem a quantidade de 8.900.826 de trabalhadores, ou seja, 22,13% da população ativa, empregada.

Não são poucos, portanto, os trabalhadores que serão afetados pela nova regra, que – em alguns momentos gera esclarecimentos importantes – mas continua com interpretação subjetiva em outros pontos, como será analisado ao longo deste artigo.

O ponto central desta análise é o fato frequente de muitas empresas de terceirização de mão-de-obra não quitarem os direitos trabalhistas de seus empregados, e, na Justiça do Trabalho, o Estado vem sendo “absolvido” do pagamento, em especial por conta de decisões do STF – Supremo Tribunal Federal sobre o caso, que serão relembradas durante este texto.

Faremos um estudo tendo por base a interpretação sistemática da nova norma, e depois de forma comparativa com decisões do STF, Súmula do TST – Tribunal Superior do Trabalho, e por fim, axiológica, tendo por base a eticidade presente no Código Civil e LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

 

  1. DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES

Antes de adentrar nos meandros da Lei 14.133, importante destacar que nossa Constituição Federal tem regra geral de responsabilidade civil da Administração Pública, prevista no artigo 37, § 6º, verbis:

 

  • 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

 

Em comentário a este artigo (BANDEIRA DE MELLO, 1999, pág. 690) declara “após estabelecer que “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros (…)”, o art. 37, § 6º, conclui: “(…)assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Há, pois, expressa previsão de retorno da pessoa de Direito Público ou de Direito Privado prestadora de serviço público contra o agente causador do dano uma vez ocorrentes os seguintes requisitos: a) tenham sido condenadas a indenizar terceiro por ato lesivo do agente; b) o agente responsável haja se comportado com dolo ou culpa”.

Deste modo, vamos analisar a nova lei de licitações, começando pelo artigo 121 e seu parágrafo primeiro. Vejamos:

“Art. 121. Somente o contratado será responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.

  • 1º A inadimplência do contratado em relação aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transferirá à Administração a responsabilidade pelo seu pagamento e não poderá onerar o objeto do contrato nem restringir a regularização e o uso das obras e das edificações, inclusive perante o registro de imóveis, ressalvada a hipótese prevista no § 2º deste artigo”.

Tais dispositivos trazem a regra geral de que só o contratado responde pelas dívidas trabalhistas, em casos de terceirização, sendo que a Administração Pública não sofrerá responsabilidades em decorrência de mora trabalhista daquele.

Mas há exceções, como dispõe o seu §2º, abaixo descrito:

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“§ 2º Exclusivamente nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, a Administração responderá solidariamente pelos encargos previdenciários e subsidiariamente pelos encargos trabalhistas se comprovada falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado”.

Logo, a tônica é a comprovação da falha na fiscalização, que está em consonância com o que a jurisprudência já nos informava como do STF (ADC 16).

Em notícia do site do STF, temos a explicação – breve – sobre o que restou decidido:

“Por votação majoritária, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou, nesta quarta-feira (24), a constitucionalidade do artigo 71, parágrafo 1º, da Lei 8.666, de 1993, a chamada Lei de Licitações. O dispositivo prevê que a inadimplência de contratado pelo Poder Público em relação a encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem pode onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.

Segundo o presidente do STF, isso “não impedirá o TST de reconhecer a responsabilidade, com base nos fatos de cada causa”. “O STF não pode impedir o TST de, à base de outras normas, dependendo das causas, reconhecer a responsabilidade do poder público”, observou o presidente do Supremo. Ainda conforme o ministro, o que o TST tem reconhecido é que a omissão culposa da administração em relação à fiscalização – se a empresa contratada é ou não idônea, se paga ou não encargos sociais – gera responsabilidade da União”[2].

Também, por paradigma, no leading case do Recurso Extraordinário número 760931 do STF, que se tornou no tema 246, da mesma Excelsa Corte.

Por fim, o TST, por meio do item V de sua Súmula 331, que declara: “Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada”.

Como dito alhures, a nova Lei de Licitações mantém o que a jurisprudência já trazia, ou seja, em regra, a administração pública não responde – subsidiariamente – nas contratações terceirizadas, salvo quando fique evidenciada sua culpa, sua negligência para com a fiscalização contratual.

 

  1. DA FISCALIZAÇÃO QUE O ESTADO DEVE PROMOVER

Interessante que a nova norma – Lei 14.133/2021 – traz requisitos objetivos para a fiscalização que o poder público deverá fazer. Em especial, o que vem disposto no artigo 50, abaixo transcrito:

“Art. 50. Nas contratações de serviços com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, o contratado deverá apresentar, quando solicitado pela Administração, sob pena de multa, comprovação do cumprimento das obrigações trabalhistas e com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) em relação aos empregados diretamente envolvidos na execução do contrato, em especial quanto ao:

I – registro de ponto;

II – recibo de pagamento de salários, adicionais, horas extras, repouso semanal remunerado e décimo terceiro salário;

III – comprovante de depósito do FGTS;

IV – recibo de concessão e pagamento de férias e do respectivo adicional;

V – recibo de quitação de obrigações trabalhistas e previdenciárias dos empregados dispensados até a data da extinção do contrato;

VI – recibo de pagamento de vale-transporte e vale-alimentação, na forma prevista em norma coletiva”.

Para um melhor entendimento, temos que fazer uma análise sistemática da nova Lei de Licitações, “costurando” este artigo 50 acima com o § 3º do já citado artigo 121, abaixo descrito:

“§ 3º Nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, para assegurar o cumprimento de obrigações trabalhistas pelo contratado, a Administração, mediante disposição em edital ou em contrato, poderá, entre outras medidas:

I – exigir caução, fiança bancária ou contratação de seguro-garantia com cobertura para verbas rescisórias inadimplidas;

II – condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas vencidas relativas ao contrato;

III – efetuar o depósito de valores em conta vinculada;

IV – em caso de inadimplemento, efetuar diretamente o pagamento das verbas trabalhistas, que serão deduzidas do pagamento devido ao contratado;

V – estabelecer que os valores destinados a férias, a décimo terceiro salário, a ausências legais e a verbas rescisórias dos empregados do contratado que participarem da execução dos serviços contratados serão pagos pelo contratante ao contratado somente na ocorrência do fato gerador”.

Com efeito, se antes a jurisprudência apenas declarava que a Administração Pública poderia ser responsabilizada, agora temos critérios objetivos para mensurar a falha desta. Se o Poder Público foi diligente, exigindo a documentação do contratado – periodicamente – nada mais pagará subsidiariamente. Agora, comprovado que nada se requereu ao longo do contrato, a título de comprovação de quitação de haveres trabalhistas, da empresa terceirizada, isto é, se for negligente, diante dos critérios objetivos acima alinhados, o Estado irá pagar, por força de lei agora, e não mais sobre interpretações de Súmulas do TST ou decisões da Suprema Corte.

 

  1. DO ÔNUS DA PROVA

Em uma demanda trabalhista, caso o empregado reclame a responsabilidade subsidiária do Poder Público, de quem será o ônus da prova de que houve negligência por parte da Administração Pública?

A resposta consta do informativo 224 do TST, onde na Subseção I especializada em Dissídios Individuais, restou a decidir que:

“Ente público. Terceirização. Responsabilidade subsidiária. Ônus da prova. Matéria infraconstitucional. Dever ordinário de fiscalização imposto à Administração Pública. Ratificação de entendimento da SDI-1 Plena. No julgamento do RE nº 760.931/DF, com repercussão geral reconhecida (Tema 246), o STF firmou a tese de que “o inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93”. A ratio decidendi da referida decisão permite concluir que a responsabilização do ente público apenas está autorizada quando comprovada a ausência sistemática de fiscalização quanto ao cumprimento das obrigações trabalhistas pela prestadora. Em duas sessões, a Subseção de Dissídios Individuais I do TST, em sua composição plena, firmou entendimento de que o Supremo Tribunal Federal não emitiu tese vinculante quanto à distribuição do ônus da prova relativa à fiscalização e, nessa esteira, concluiu que incumbe à Administração Pública o ônus da prova da fiscalização dos contratos de prestação de serviços, por se tratar de fato impeditivo da responsabilização subsidiária. Sob esses fundamentos, a SBDI-I, por unanimidade, conheceu dos embargos, por divergência jurisprudencial, e, no mérito, por maioria, deu-lhes provimento para restabelecer o acórdão do Tribunal Regional que, reputando não ter sido demonstrada a adoção de medidas capazes de impedir o inadimplemento das obrigações laborais pela empresa contratada, entendeu que o ente público reclamado não se desincumbiu do ônus que lhe cabia, devendo, portanto, ser responsabilizado subsidiariamente pelos débitos trabalhistas inadimplidos pela prestadora de serviços por ele contratada. Vencidos os Ministros Aloysio Corrêa da Veiga, Alexandre Luiz Ramos, Breno Medeiros e Maria Cristina Irigoyen Peduzzi. TST-E-ED-RR-62-40.2017.5.20.0009, SBDI-I, rel. Márcio Eurico Vitral Amaro, 10/9/2020”.

Rememorando que agora temos um elenco de itens que a Administração Pública necessita ficar cobrando das empresas que lhe prestam serviços, sob pena de ficar configurada sua culpa, e, com isso a responsabilidade subsidiária.

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Insta apontar, ainda, os deveres de boa-fé objetiva, e função social do contrato, que toda pessoa tem a cumprir, como se depreende dos artigos 1º, 113, 421 e 422, todos do Código Civil, quando se trata de negócios jurídicos.

Cabe, ainda, apontar que não podemos estar diante de um enriquecimento ilícito do Estado, que utilizou da mão-de-obra de pessoas humanas, e que sempre tenta se esquivar do pagamento alegando que a lei lhe protege da irresponsabilidade civil.

 

  1. DA DEDICAÇÃO EXCLUSIVA

Para que a Administração Pública seja condenada, subsidiariamente, necessário que a prestação de serviços pelo terceiro seja em regime de dedicação exclusiva de mão de obra, nas contratações de serviços contínuos, conforme §2º do art. 121 da Lei 14.133/2021, quando “comprovada falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado”.

Na citada norma será possível compreender o que sejam “dedicação exclusiva” e “serviços contínuos”, pelo disposto no artigo 6º, incisos XV a XVII, verbis:

“Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:

……………………………………………………….

XV – serviços e fornecimentos contínuos: serviços contratados e compras realizadas pela Administração Pública para a manutenção da atividade administrativa, decorrentes de necessidades permanentes ou prolongadas;

XVI – serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra: aqueles cujo modelo de execução contratual exige, entre outros requisitos, que:

  1. a) os empregados do contratado fiquem à disposição nas dependências do contratante para a prestação dos serviços;
  2. b) o contratado não compartilhe os recursos humanos e materiais disponíveis de uma contratação para execução simultânea de outros contratos;
  3. c) o contratado possibilite a fiscalização pelo contratante quanto à distribuição, controle e supervisão dos recursos humanos alocados aos seus contratos;

XVII – serviços não contínuos ou contratados por escopo: aqueles que impõem ao contratado o dever de realizar a prestação de um serviço específico em período predeterminado, podendo ser prorrogado, desde que justificadamente, pelo prazo necessário à conclusão do objeto”.

Pela redação, estamos diante daqueles serviços habituais, frequentes, necessários, em que o contratado tem que manter suas equipes diuturnamente à disposição da Administração Pública, pois fazem parte de uma atividade fim ou meio, essencial ao Poder Público, como limpeza, transporte, tecnologia da informação entre outros

Tais serviços não podem ser descontinuados pois a população deles necessitam ininterruptamente – bem como a máquina estatal – para manutenção de seus sistemas na internet, por exemplo.

No entanto, o preciosismo da norma foi além, exigindo exclusividade do contratado, isto é, (a) que seus empregados estejam à disposição do Estado, nas dependências de uma repartição pública de um Município, por exemplo; (b) que o contratado só preste serviços a um contratante, ficando a palavra “exclusivo” aqui mais apropriada, uma vez que há dedicação total do terceirizado ao Estado contratante; (c) o contratado permita que a Administração Pública venha exercer seu poder fiscalizatório quando “à distribuição, controle e supervisão dos recursos humanos” que forem disponibilizados para cumprirem o serviço contratado pelo Poder Público.

Logo, ficou de fora, para que houvesse a possibilidade de responsabilidade subsidiária do Estado, das dívidas trabalhistas, perante terceiros, os contratos de tempo de duração curtos, em períodos com termo inicial e final, de serviços específicos. Assim, a construção de uma ponte, sobre um rio, por uma empresa terceirizada, nunca ocorrerá a responsabilidade subsidiária das dívidas trabalhistas, pois é um serviço específico, dentro de um período predeterminado.

O que salta aos olhos foi a escolha do legislador para dizer o quê gerará ou não responsabilidade subsidiária do Estado, em relação aos prestadores de serviços da empresa privada, locadora de mão-de-obra. Qual a culpa dos empregados destas empresas, se é exclusiva ou não a contratação, para fins de retirar deste a possibilidade de se voltar contra o Estado que foi negligente na contratação e fiscalização da referida empresa?

Na nova norma de licitações, foi colocado um artigo sobre compliance (artigo 169), impondo à Administração Pública uma gestão de riscos e de controle preventivo de suas ações. Ora, em respeito ao art. 37, § 6º, da CF/88, citado anteriormente, quando o estado provoca danos a terceiros, deverá indenizar, o que está em consonância, com este artigo 169, senão, vejamos:

“Art. 169. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa”.

Tudo complementado pelo § 4º, do art. 25 da mesma norma licitatória, onde há a necessidade se montar um “programa de integridade”, que vai ao encontro da compliance acima referida, verbis:

“Art. 25. O edital deverá conter o objeto da licitação e as regras relativas à convocação, ao julgamento, à habilitação, aos recursos e às penalidades da licitação, à fiscalização e à gestão do contrato, à entrega do objeto e às condições de pagamento.

……………………………………………….

  • 4º Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento”.

O que se pretende alinhar, com este raciocínio lógico-sistemático é que a conjunção dos artigos 37 da CF/88, § 6º, cumulado com o art. 169 da Lei 14.133/2021, fazem com que se mantenha íntegro o entendimento da Súmula 331, item V, que declara haver responsabilidade subsidiária do Estado quando “caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações” da Lei de Licitações “especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora”.

Em razão dos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato, do não enriquecimento ilícito de uma das partes, não podemos criar uma hermenêutica de que a Lei 14.133/2021 será aplicada “a ferro e fogo”, ou com um positivismo puro kelseniano, onde só haverá responsabilidade subsidiária se houver um encaixe perfeito do caso prático descrito no artigo 121, da nova lei licitatória.

Em (Dworkin, 2005, p. 237), na sua teoria do romance em cadeia, ele lembra que o Direito, isto é, os julgados, não podem ter uma ruptura da história. A memória e a história que temos sobre terceirização com o Estado é de alta inadimplência trabalhista e nenhuma fiscalização do Estado.

Há que se ter um encadeamento das normas e suas interpretações no Judiciário, como prega o citado autor. Não podemos esconder “o sol com a peneira”, ou seja, que uma lei – doravante – irá determinar que o Estado vai ter que fiscalizar, sob pena de pagar subsidiariamente débitos trabalhistas, mas só em contratos exclusivos e de longo termo.

Assim, quando a Lei 14133/2021 cria um impedimento para a responsabilidade subsidiária do Estado, frente a contratos empresariais de prestação de serviços, que vinham tendo na jurisprudência do TST uma linha diferente de raciocínio, surge a teoria de Dworkin para nos avisar que se for criada uma ruptura no “romance”, teremos decisões injustas e incoerentes – de novo – não para o Capital (Estado e Empresários), mas sim para o trabalhador.

Como já alinhou (MASAGÃO, 1960, pág. 205), “a execução dos serviços públicos depende da atividade humana”.

 

  1. COMO EVITAR A RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA

Ficou claro, pela Lei 14.133/21, que a responsabilidade subsidiária estatal sobre as dívidas trabalhistas das empresas privadas, contratadas, só ocorrerá se o contrato é de cunho permanente e exclusivo, sendo este último tópico interpretado pela norma acima como:

1 – passível de fiscalização pelo Poder Público sobre a contratada;

2 – os funcionários da contratada estejam trabalhando dentro de ambientes do próprio Estado;

3 – e o contratado prestando serviços apenas ao Estado contratante.

Agora, mesmo nesta situação, o Estado pode se precaver e evitar o pagamento de direitos trabalhistas, diante desta responsabilidade subsidiária se, conforme artigo 121, § 3º, da Lei 14.133/2021, no Edital da licitação ou no contrato assinado pelas partes, forem tomadas as seguintes medidas:

“I – exigir caução, fiança bancária ou contratação de seguro-garantia com cobertura para verbas rescisórias inadimplidas;

II – condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas vencidas relativas ao contrato;

III – efetuar o depósito de valores em conta vinculada;

IV – em caso de inadimplemento, efetuar diretamente o pagamento das verbas trabalhistas, que serão deduzidas do pagamento devido ao contratado;

V – estabelecer que os valores destinados a férias, a décimo terceiro salário, a ausências legais e a verbas rescisórias dos empregados do contratado que participarem da execução dos serviços contratados serão pagos pelo contratante ao contratado somente na ocorrência do fato gerador”.

Como o Estado pode fiscalizar o contratado, tornando-o diligente nesta relação tripartite entre Poder Público, trabalhador e locador da mão de obra, verificará que os empregados deste estão sem receber salários, por exemplo, e, neste caso, o Estado – ao invés de quitar o contrato para com a empresa privada, poderá pagar as remunerações diretamente aos trabalhadores daquela, como esclarece o inciso IV, do §3º, do art. 121, da Lei 14.133/2021.

Se há suspeitas de que a empresa contratada está lesando seus empregados, a Administração Pública poderá “condicionar o pagamento” com a respectiva comprovação de que os haveres trabalhistas estão sendo pagos corretamente, sem mora aos trabalhadores.

Um detalhe importante está na possibilidade do Poder Público pagar a empresa contratada por meio de uma “conta vinculada”, conforme inciso III deste §3º, sendo que os valores lá depositados serão impenhoráveis, pois têm natureza trabalhista, conforme §4º, também do artigo 121.

Ainda sobre fiscalização, interessante notar que os artigos 62 e 63 da Lei 14.133/21 determinam que na fase de habilitação, que “é a fase da licitação em que se verifica o conjunto de informações e documentos necessários e suficientes para demonstrar a capacidade do licitante de realizar o objeto da licitação” terá preocupação nos aspetos jurídicos; técnicos; fiscal, social e trabalhista; e econômico-financeira.

Neste sentido (MEIRELLES, 1996, pág. 270) que acrescenta dizendo:

“Diante dessa realidade, é lícito à Administração verificar não só a capacidade técnica teórica do licitante como a sua capacidade técnica efetiva de execução, que se convencionou chamar capacidade operacional real. Grande parte dos insucessos na execução dos contratos administrativos decorre da falta de capacidade operativa real, não verificada pela Administração na fase de habilitação dos proponentes”.

Além de, conforme o artigo 63, seja demonstrada idoneidade trabalhista, na participação do certame, conforme seu § 1º, abaixo descrito:

“§ 1º Constará do edital de licitação cláusula que exija dos licitantes, sob pena de desclassificação, declaração de que suas propostas econômicas compreendem a integralidade dos custos para atendimento dos direitos trabalhistas assegurados na Constituição Federal, nas leis trabalhistas, nas normas infralegais, nas convenções coletivas de trabalho e nos termos de ajustamento de conduta vigentes na data de entrega das propostas”.

 

  1. DA EXCLUSÃO DAS EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA

O Art. 1º, §1º da nova Lei de Licitações excluiu as empresas públicas, e também as sociedade de economia mista, da aplicação das regras ora em comento. Declara-se que será aplicada a elas a Lei 13.303/16, cujo artigo 77, e seu § 1º, excluem a responsabilidade, no que tange às dívidas trabalhistas de terceiros. Vejam:

“Art. 77. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.

  • 1º A inadimplência do contratado quanto aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à empresa pública ou à sociedade de economia mista a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis”.

Com efeito, acredita-se que nada será alterado, em termos de responsabilidade subsidiária, uma vez que o STF já determinou que sejam aplicadas a ambas (empresas públicas e sociedade de economia mista) as regras de fiscalização ora abordadas, como se vê da Tese 246, em caso de negligência, como restou decidido no Recurso Extraordinário 760931.

 

  1. DA VIGÊNCIA DA LEI 14.133/2021

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos revoga a Lei 8.666/1993, como determina o artigo 193, inciso II. O detalhe é que a Lei nº 8.666 só deixará de vigorar “após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei” (a Lei 14.1333, de 1º de abril de 2021).

Curioso é que o artigo 194 determina que “esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”, isto é, não há uma vacatio legis superior a um dia sequer, já que a norma (Lei 14.133/2021) já está produzindo efeitos.

Então, em uma situação inusitada, estamos com duas normas de licitação em vigor, a Lei 8.666/93, que só irá desaparecer do ordenamento jurídico em dois anos (art. 193), e a Lei 14.133/2021 que já está em vigor (art. 194).

A LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, no artigo 2º, e em seu §1º, determina que:

“Art. 2o  Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

  • 1oA lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

Todavia, o legislador de 2021, no artigo 191, esclareceu que a Administração Pública opte, ou seja, escolha – dentro destes dois anos – qual lei será utilizada em uma licitação nos dias de hoje, isto é, se a Lei nº 8.666 ou a Lei nº 14.133. É uma discricionariedade administrativa. Vejamos o texto legal:

“Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.

Parágrafo único. Na hipótese do caput deste artigo, se a Administração optar por licitar de acordo com as leis citadas no inciso II do caput do art. 193 desta Lei, o contrato respectivo será regido pelas regras nelas previstas durante toda a sua vigência”.

Importante citar (DI PIETRO, 2001, pág. 231) que explica:

“Ainda que a lei não use expressamente a expressão interesse público, sabe-se que, em toda a atividade administrativa, deve ele ser observado. Quando a atividade é vinculada, o legislador já definiu, na norma jurídica, os meios de ação aptos ao atendimento adequado daquele objetivo. Porém, quando o legislador não faz essa opção, cabe à Administração Pública fazê-lo diante do caso concreto; a sua liberdade, nesse caso, nunca é total na escolha dos meios de ação, pois estará limitada não apenas por normas legais sobre competência, finalidade e forma, como também pelos princípios da razoabilidade, moralidade, motivação, que a sua escolha atende a este ou àquele interesse público. A discricionariedade que, aparentemente, é ampla, pode reduzir-se sensivelmente diante do caso concreto”.

Qual a consequência dessa “opção” na seara trabalhista? Ora, se o Poder Público optar pela Lei 8.666/93, daí não poderá a Administração se afastar da responsabilidade subsidiária em qualquer caso, isto é, não poderá o Estado argumentar se a atividade prestada pelo terceiro era exclusiva ou não, nem com relação à duração do contrato, para fins de afastar a responsabilidade trabalhista. E isto porque estas previsões só constam da nova norma, ou seja, do artigo 121 da Lei 14.133/2021.

 

CONCLUSÃO

A responsabilidade trabalhista advinda de contratos públicos fruto de licitações, entre trabalhadores ligado a empresas privadas, com contratos junto ao Estado, ainda pode existir, como bem define o artigo 121, § 2º, da Lei 14.133/2021.

Se antes era nebulosa esta assertiva, ou seja, se o Estado poderia ser condenado subsidiariamente com o contratado, no pagamento de dívidas trabalhistas com os empregados deste, diante de posições jurisprudenciais advindas do TST (Súmula 331) e STF (Tema 246), agora está positivada esta situação na legislação.

No entanto, somente haverá esta responsabilização subsidiária se for comprovado que a licitação foi feita para um contrato de longo prazo e exclusivo, sendo este último considerado como trabalhadores lotados dentro das repartições públicas; com o contratado só podendo prestar serviços a um único ente administrativo; e ocorra uma livre fiscalização da empresa de locação de mão de obra.

Com efeito, contratos curtos e empresas prestadoras de serviços a mais de um cliente, transformarão seus empregados como pessoas discriminadas perante a lei, no que tange à responsabilidade subsidiária que o Estado poderia ter, frente aos empregados de contratos com cunho exclusivo e de duração longa.

Tal aspecto viola a Constituição Federal, em especial o art. 3º, inciso IV, que determina: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Conforme (VILHENA, 2002, pág. 100), que  já disse:

“O trabalho que se presta ao Estado, em qualquer de suas formas empregatícias ou de que espécie seja, é um trabalho humano. Envolve pessoalidade.

Situem-se em um dos pólos da relação de trabalho, ou o Estado ou uma empresa privada, e encontrar-se-á no pólo defronte um trabalhador, uma pessoa que concorre para formar-se essa relação jurídica”.

Se há uma esperança das normas refletirem algum ponto positivo ao trabalhador, uma proteção àquele que é a parte mais fraca no contrato, a classe desafortunada, esta Lei 14.133/2021 não se dispôs a isso.

No mais, a nova Lei de Licitações apontou que a antiga norma (8.666/93) ainda permanece em vigor, por dois anos, quando o Administrador Público poderá optar em fazer uma licitação em seus moldes. Desse modo, caso haja essa opção, daí a responsabilidade subsidiária do Estado estará garantida em todo e qualquer contrato, se exclusivo ou não, de longo ou curto prazo, uma vez que não há esta excludente na antiga lei licitatória.

Ainda, foi demonstrado que a responsabilidade subsidiária só advirá – frente à nova lei – se houver negligência do Estado na fiscalização do contratado. E, agora, esta conduta do Poder Público possui requisitos objetivos, como uma verificação se a empresa privada está pagando seus empregados, quitando FGTS, férias, entre outros direitos. Se não houver esta fiscalização, deverá ser condenada a pagar os direitos trabalhistas dos empregados terceirizados, por força do citado artigo 121, da Lei 14.133/2021.

Por fim, restou demonstrado que a finalidade da nova Lei de Licitações foi procurar determinar ao administrador público que venha a agir com compliance, sem negligência frente às empresas contratadas, que haja uma lisura nos processos de habilitação de prestadores de serviços, procurando o mais idôneo e capaz de assumir contratos sem lesar seus empregados. Ao mesmo tempo, deixou uma única forma de responsabilidade subsidiária estatal frente a créditos trabalhistas em momentos de terceirização, gerando uma preocupação com relação à boa-fé objetiva, à função social do contrato, e o enriquecimento ilícito da administração pública, que deverão ser sopesadas, em cada caso, quando ocorrerem ações judiciais, pois defender uma total irresponsabilidade do Estado violaria o § 6º do art. 37 da Constituição Federal.

 

REFERÊNCIAS

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 11 Ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2001.

 

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

 

MASAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Max Limonad, 1960.

 

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 21 Ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

 

VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Contrato de Trabalho como Estado. 2 Ed. São Paulo: LTr, 2002.

 

[1] https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/comercio/9068-demografia-das-empresas.html?=&t=resultados (acesso em 04/04/2021)

[2] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=166785 (acesso em 05/04/2021)

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