A Institucionalização Do Crime Organizado: Da Milícia Privada

Autor: FILHO. Nery Severiano da Silva. E-mail: [email protected]. Acadêmico do curso de Direito na Universidade Unirg; Gurupi – TO.

Orientador: FELLER² Thiago de Almeida. E-mail: [email protected]. Professor orientador Esp. do curso de Direito na Universidade Unirg; Gurupi – TO.

Resumo: O Crime organizado é assunto recorrente no âmbito da segurança pública no Brasil. Caracterizado como a formação de um grupo de indivíduos que tem como foco institucionalizar o crime, essa ação vem sendo a base governamental para implantação de medidas de prevenção e combate ao crime. Dentre os variados tipos desse grupo, a milícia privada se destaca em razão da sua atuação cada vez mais presente na sociedade, principalmente nas áreas onde há menos contato com a Segurança Pública, como no caso das favelas. Por esse fato, este estudo tem como escopo discorrer sobre a formalização da milícia privada, apresentando os seus desdobramentos no campo jurídico e social no Brasil. Cabe mencionar que essa prática se encontra inserida na Lei nº 12.720/12 que introduziu o artigo 288-A e os aumentos de pena previstos nos artigos 121, §6 e 129 § 7º do Código Penal Brasileiro. A metodologia empregada é a da pesquisa bibliográfica, baseada em livros, artigos científicos e na legislação brasileira. Nos resultados encontrados foi possível verificar que a institucionalização da milícia privada fez crescer o número de homicídios nos grandes centros urbanos e que seu impacto atinge diretamente a camada mais pobre e vulnerável da sociedade.

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Palavras-chave: Crime Organizado. Milícia. Institucionalização. Legislação.

 

Abstract: Organized crime recurring issues in the field of public security in Brazil. Characterized as the formation of a group of individuals whose focus is to institutionalize crime, this action has been the governmental basis for implementing measures to prevent and combat crime. Among the various types of this group, the private militia stands out due to its role increasingly present in society, especially in areas where there is less contact with Public Security, as in the case of the favelas. For this reason, this study aims to discuss the formalization of the private militia, presenting its developments in the legal and social field in Brazil. It is worth mentioning that this practice is included in Law nº. 12,720/12, which introduced article 288-A and the penalty increases provided for in articles 121, §6 and 129 §7 of the Brazilian Penal Code. The methodology used is that of bibliographic research, based on books, scientific articles and Brazilian legislation. In the results found, it was possible to verify that the institutionalization of the private militia increased the number of homicides in large urban centers and that its impact directly affects the poorest and most vulnerable strata of society.

Keywords: Organized crime. Militia. Institutionalization. Legislation.

 

Sumário: Introdução. Metodologia. 1. A Situação Atual Da Segurança Pública No Brasil. 1.1. Do Crime Organizado. 2. Da Milícia Privada. 2.1. A Milícia Privada Frente A Legislação Brasileira. 3. Das Consequências Sociais. Considerações Finais. Referências Bibliográficas

 

INTRODUÇÃO

Assuntos relacionados à Segurança Pública são bastante delicados, principalmente no Brasil, onde a criminalidade está ocupando um espaço cada vez maior e adentrando nos lares brasileiros, fazendo inúmeras vítimas. Tráfico de drogas, homicídios, assaltos, sequestros, dentre vários outros crimes, são ações que se encontram presentes no dia a dia da comunidade brasileira.

Diante desse fato, é imperioso observar o quanto a realidade brasileira está distante da propagada pela sua legislação, principalmente no texto constitucional. Em seu conteúdo, a Carta Magna expressa em seu art. 5º que o Estado, além de outras atribuições, tem o encargo de incumbir-se da segurança da população. Além disso, ela tem de ser exercida para garantir a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio.

A segurança é o direito à proteção, sensação de estar seguro, protegido da violência e das ameaças pessoais, sendo uma ferramenta indispensável para alcançar o estado legal de direito.

O risco de ser vítima de um crime acaba por gerar uma insegurança à sociedade se tornando uma das maiores preocupações da população. No intuito de sanar essa preocupação, busca-se sempre o aumento do policiamento, haja vista que a criminalidade vem aumentando a cada ano. Apesar disso, independente de qual seja o motivo, a força policial não vem sendo efetiva, deixando algumas lacunas na segurança pública (BORGES, 2017).

Dentro do contexto de Segurança Pública existe o crime organizado ou organização criminosa que são termos que caracterizam grupos transnacionais, nacionais ou locais altamente centralizados e geridos por criminosos, que pretendem se envolver em atividades ilegais, geralmente com o objetivo de lucro monetário (ANSELMO, 2017).

É nesse cenário que surge a formação da segurança ilegal, que entre outras coisas, são formadas por grupos de extermínio e milícias privadas. As ações dessas organizações criminosas são fontes de violação dos direitos humanos e de ameaça ao estado de direito no país. Devido a isso, foi promulgada a Lei nº 12.720/12 que introduziu o artigo 288-A e os aumentos de pena previstos nos artigos 121, §6 e 129 § 7º do Código Penal.

A supracitada lei possui a finalidade de coibir as ações de extermínio e milícia que não possuíam tipificação penal até o momento. Frente a isso, o presente estudo pretende como objetivo geral, identificar os riscos à segurança pública, causados pela prática dos crimes de milícia privada e a (in) aplicabilidade da legislação penal. Além disso, cabe a seguinte indagação: quais os riscos gerados pela prática dos crimes de milícia privada à segurança pública? Discute-se com esse tema a institucionalização do crime organizado, em especial no que se refere à milícia privada. Para isso, apresentam-se os resultados negativos para a área da Segurança e para a sociedade, além dos prejuízos financeiros. Por fim, como já citado, discute-se como a legislação brasileira se posiciona frente a essa situação.

 

METODOLOGIA

Para a realização da pesquisa foi feita uma revisão de literatura, constituído de estudo bibliográfico e documental. A pesquisa bibliográfica foi realizada por meio de leituras das leis, da Constituição Federal, de revistas jurídicas, de livros e artigos vinculados à análise da institucionalização do crime organizado por meio da milícia privada e de outras doutrinas disponíveis relacionadas ao tema. A presente pesquisa foi realizada mediante avaliação documental. Assim,

a coleta de dados é resultado de uma busca feita em várias fontes como, por exemplo, Scielo; Google, dentre outros, entre os dias 09 a 13 de fevereiro de 2020. Os descritores foram: Legislação Brasileira. Milícia Privada. Institucionalização.

A abordagem qualitativa de investigação foi utilizada neste trabalho, pois é a forma mais adequada para se entender a natureza de um fenômeno, sem técnicas estatísticas. O método da pesquisa utilizada no trabalho se pautou no indutivo, em que, a partir de premissa expressa pelos atores pertencentes à formação da milícia privada e infere-se uma terceira premissa (GIL, 2010).

 

1  A SITUAÇÃO ATUAL DA SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL

Antes de se adentrar no tema central dessa pesquisa é preciso inicialmente discorrer sobre um assunto geral: a situação atual da Segurança Pública no Brasil. É importante destacar esse tema porque ele está diretamente ligado à formação das milícias privadas (ANSELMO, 2017).

Para melhor entendimento sobre esse assunto é preciso definir alguns pontos. O primeiro deles é entender o que seja segurança pública. Nos dizeres de Gomes (2019, p. 02) a segurança pública é “a garantia da proteção aos direitos individuais de cada cidadão, fazendo com que possam exercer seu direito de cidadania em segurança, como trabalhar, conviver em sociedade e se divertir”.

O segundo ponto é apresentar quem de fato é responsável pela segurança pública no Brasil. Nesse sentido, a principal norma do país – a Constituição Federal de 1998 – traz em seu bojo, artigos que tratam diretamente sobre essa matéria. A respeito dessa responsabilização, cabe citar:

 

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“Art. 144. […] a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

 

No mesmo texto constitucional, foram estipuladas as atribuições de cada órgão policial acima descrito. Com isso, a Polícia Federal, Rodoviária Federal e Ferroviária Federal são organizadas e mantidas pela União. A Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros militar são forças auxiliares e reserva do Exército e, junto à Polícia Civil, são subordinados aos governadores (BRASIL, 1988).

Há também no âmbito ministerial, a Secretaria Nacional da Segurança Pública, ao qual explica Faria (2018, p. 02) que é o “órgão do Ministério da Justiça que tem como competências principais e resumidas implementar, acompanhar e avaliar as políticas e programas nacionais voltados para a segurança pública”. Por fim, ainda na leitura do texto Constitucional, o policiamento das ruas e a manutenção da segurança são tradicionalmente conferidos à polícia militar.

O terceiro e último ponto é entender qual a real situação da segurança pública no Brasil nos dias de hoje. Conforme já expresso, a Constituição Federal de 1988 é a principal norma do país e traz em seu texto uma série de normas fundamentais que devem reger toda a sistemática normativa adiante. Dentre os seus preceitos está a previsão legal de que o Estado possui a obrigação de garantir segurança pública aos seus cidadãos. Apesar disso, o que ocorre na prática é uma flagrante situação de descaso por parte do Estado no que se refere a esse dever.

Nesse sentido:

“A nossa Carta Magna estabelece que a segurança pública é obrigação do Estado. Entretanto, é fato inquestionável que o poder público não cumpre satisfatoriamente este seu importante dever constitucional, pois se o fizesse, não teríamos uma taxa de homicídios vergonhosa, com quase sessenta mil assassinatos por ano, que só encontra paralelo com nações envolvidas em conflitos armados ou em guerra civil (FERREIRA, 2019, p. 03).”

 

Diversas pesquisas apontam ao longo dos últimos anos que o Brasil é um país ainda muito violento e de enorme criminalidade. Só por esse fato, já se vislumbra a ausência do Estado em garantir a normalidade cívica da população. Como apontou a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o 9°

país mais violento no ranking mundial, divulgado em 2018, pelo relatório anual da ONG (GOMES, 2019). Isso já mostra um cenário que se traduz que a segurança pública brasileira está em “crise”.

Essa crise é ainda mais evidente quando se observado o panorama nacional, divulgado a cada ano pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Nesse relatório, os crimes violentos letais e intencionais (CVLI) são o exemplo concreto de como está a situação da violência no país.

Os dados apontados no CVLI são preocupantes: em 2016, houve a morte violenta de cerca de 61.283 pessoas. No ano de 2017, esse dado resultou em

59.128 mortes violentas. Importante destacar que o FBSP consolida os dados do ano anterior somente no segundo semestre do ano corrente. Desse modo, fica evidente constatar que ano após ano, por volta de 60.000 pessoas perdem a vida de forma violenta no Brasil. Em 2018, o número foi um pouco menor, mas ainda alcançou a casa dos 51.589 assassinatos (FARIA, 2019).

Diante desse cenário alarmante a respeito da Segurança Pública no Brasil é evidente considerar que isso acaba por impactar a imagem que a população constrói sobre essa instituição. Essa imagem é traduzida na sensação de insegurança constante e a descrença na segurança estatal, o que piora um cenário já falido.

As causas para esse quadro são muitas, mas podem ser reconhecidas, dentre outros fatores, pelo aumento da criminalidade e por consequência a ausência de políticas públicas de amparo; o encarceramento em massa que resultou na superlotação dos presídios no país e principalmente no desenvolvimento e fortalecimento de facções criminosas (GOMES, 2019).

Em razão disso, Ferreira (2019, p. 04) explica que “a população se tornou menos tolerante aos fenômenos criminológicos, solicitando maior repressão e intervenção por parte do governo a estes episódios. No entanto, tais atitudes caem em um ciclo vicioso”.

Na seara da segurança pública, o surgimento de grupos organizados que possuem o intuito de cometer crimes diversos (homicídios, latrocínios, roubos, etc.) representam hoje o principal problema enfrentado nessa área, vide o fato de que muitos desses grupos são constituídos por indivíduos que possuem a obrigação de garantir a segurança, no caso, policiais ou ex-policiais.

Sem adentrar detalhadamente nos problemas enfrentados pela Segurança Pública, para fins desse estudo, foca-se somente no que se refere à formalização de facções criminosas e/ou grupos de extermínio.

 

1.1 DO CRIME ORGANIZADO

No tópico anterior foi demonstrado o quanto a segurança pública no Brasil ainda não é eficaz. Dados mostrados acima mostram que a criminalidade apresenta números altos e que o país está longe de solucionar esse problema.

Dentro desse cenário, um fato chama a atenção: o crime organizado. No âmbito da segurança pública no Brasil, o crime organizado tem chamado atenção pelo fato de que a sua formalização tem sido cada vez mais frequente, representando um dos fatores de maior incidência de crimes (ANSELMO, 2017). Num mundo onde a globalização é bastante presente, a sociedade tem enfrentado o crescimento tecnológico e aperfeiçoado a comunicação entre os pares. Do mesmo modo ocorreu com o crime organizado, que também se adaptou   as                  mudanças           sociais   e    tecnológicas   e    apresenta    hoje    uma especialização cada vez mais intensa “não só em relação às atividades criminosas praticadas pela organização, mas também referente à captação de membros especialistas em diversas áreas, como, por exemplo, em informática,

em transações comerciais etc.” (VALENTE, 2017, p. 03).

Conceitualmente o crime organizado (ou também denominado organização criminosa) é entendido como aquele em que se formam grupos transnacionais, nacionais ou locais centralizados e liderados por criminosos, onde se possui o objetivo de desenvolver atividades ilícitas e ilegais para no fim obter lucro monetário (VALENTE, 2017).

A principal norma brasileira que leciona sobre essa matéria é a Lei nº 12.850/2013. Na presente lei, encontra-se o seguinte conceito:

“Art. 1. […]

  • 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional. (BRASIL, 2013)”

 

Com base nesse conceito trazido pela norma, Anselmo (2017, p. 01) explica que a organização criminosa, “apresenta alguns elementos que lhe são característicos, aos quais se podem indicar: associação de pessoas; divisão de tarefas; objetivo econômico; e a prática de infrações graves”.

Do mesmo modo, em seu turno, Mingardi (1994) aponta como características das organizações criminosas: previsão de lucros, hierarquia, divisão de trabalho, ligação com órgãos estatais, planejamento das atividades e delimitação da área de atuação.

 

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Segundo o doutrinado Fernandes (1999) existem três correntes doutrinárias que buscam conceituar o crime organizado; a saber:

“A primeira, que tenta definir o conceito de organização criminosa e crime organizado seria todo aquele praticado por essa modalidade de organização; a segunda, que define os elementos essenciais do crime organizado, sem especificar os tipos penais; e a terceira, que estabelece um rol de tipos penais, qualificando-os como crime organizado (FERNANDES, 1999 apud ANSELMO, 2017, p. 02).”

 

De qualquer forma, num conceito mais abrangente e completo, apresentam-se as seguintes palavras:

“Uma organização criminosa de modo geral se revela por dotar-se de aparato operacional, o que significa ser uma instituição orgânica com atuação desviada, podendo ser informal ou até forma mas clandestina e ilícita nos objetivos e identificável como tal pelas marcas correspondentes. A organização criminosa pode também, eventualmente ou ordinariamente, exercer atividades lícitas com finalidade ilícita, apesar de revestir-se de forma e atuação formalmente regulares. Um estabelecimento bancário que realiza operações legais e lícitas em deliberado obséquio de atividades ilícitas de terceiro, é o exemplo que recomenda cuidado e atenção na compreensão de suas características. A principal delas é ser produto de uma associação, expressão que indica a afectio entre pessoas com propósitos comuns ou assemelhados em finalidade e objetivo. É essencial que haja afinidade associativa entre as pessoas (usualmente pessoas físicas, mas não é impossível a contribuição de pessoas jurídicas), ainda que cada uma tenha para si uma pretensão com motivação e objetos distintos das demais e justificativas individuais, todavia logicamente reunidas por intenção e vontade comum nos resultados (DIPP, 2015, p. 11).”

 

Baseado nos dizeres acima fica claro observar que se tem na figura da associação de pessoas o elemento básico para a constituição da organização criminosa, figura central do tipo penal.

Deve-se destacar que o Brasil ratificou diversos instrumentos nos últimos tempos que buscam coibir o crime organizado transnacional, como: a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Convenção de Viena), promulgada pelo Decreto 154, de 26 de julho de 1991; a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), promulgada pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004; e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), promulgada pelo Decreto 6.587, de 31 de janeiro de 2006.

Inserido no contexto de entendimento sobre o crime organizado, atualmente há uma nova roupagem sobre a sua conceituação: a figura do “crime institucionalizado”. Para muitos autores, essa figura é ainda mais perigosa do que uma simples organização criminosa. Isso porque esse tipo de grupo se apresenta com uma estrutura criminosa que se confunde com a própria estrutura do Estado (ANSELMO, 2017).

Nesse sentido, “as grandes decisões do Estado se confundem com as decisões do grupo criminoso, que tem como objetivo primordial maximizar seus ganhos” (GODOY, 2016, p. 12).

No crime institucionalizado, o armamento é substituído pelo diário oficial. As decisões que são realizadas no país não são feitas para ajudar a sociedade ou que sejam motivadas pelas políticas públicas, mas sim em razão de obedecer aos interesses econômicos e políticos do grupo (BORGES, 2017).

Nesse tipo de grupo criminoso, não se encontra um líder absoluto, como é visto pelas organizações criminosas comuns, mas uma estrutura em forma de teia, colaborativa, em absoluta simbiose (BORGES, 2017).

Diante disso, o crime organizado se aperfeiçoou, se estabelecendo e se institucionalizando, a ponto de que as práticas investigativas existentes hoje já não são suficientes para alcançar essa modalidade de estrutura.

Segundo Pontes (2017, p. 03) essa estrutura “não lança mão de atividades escancaradamente ilegais, como o tráfico de drogas, de armas, a prostituição, o jogo ilegal e etc., o que torna a atividade infinitamente mais lucrativa e segura que qualquer negócio ilegal convencional colocado em prática por organizações do tipo máfia”.

Um exemplo claro de crime institucionalizado é a milícia privada, tema central desse estudo e que será abordado nos tópicos seguintes.

 

2  DA MILÍCIA PRIVADA

Para entender a milícia privada é preciso entender o seu contexto histórico. A milícia privada emergiu durante a época militar. Nesse cenário, era comum a execução sumária de presos (CORNELIUS, 2015). Após o fim desse período, as execuções dos presos ainda eram praticadas através dos grupos de extermínio e esquadrões da morte. Esses grupos tinham treinamentos de policiais, traficantes e de seguranças privadas (CORNELIUS, 2015) .

Uma vez que foram treinados por policiais ou por seguranças particulares, além de traficantes, os grupos acabaram por serem admitidos pelos comerciantes, para trazer a segurança desses estabelecimentos. Todavia, buscando expandir suas atividades, esses grupos começaram a liderar redes de tráfico e sequestro (BRASIL, 1989).

A partir dessas ações criminosas pôde-se observar uma formação de grupos que possuíam características semelhantes que tencionavam comandar determinadas áreas populacionais a fim de instaurar uma onda de crimes. É nesse terreno que começa a surgir as milícias privadas.

Importante mencionar, no que se refere às milícias privadas, a Resolução 44/162 da Assembleia Geral das Nações Unidas, do qual preceitua:

“Os governos proibirão por lei todas as execuções extralegais, arbitrárias ou sumárias e zelarão para que todas essas execuções se tipifiquem como delitos em seu direito penal e sejam sancionáveis com penas adequadas que levem em conta a gravidade de tais delitos. Não poderão ser invocadas, para justificar essas execuções, circunstâncias excepcionais, como, por exemplo, o estado de guerra ou o risco de guerra, a instabilidade política interna, nem nenhuma outra emergência pública. Essas execuções não se efetuarão em nenhuma circunstância, nem sequer em situações de conflito interno armado, abuso ou uso ilegal da força por parte de um funcionário público ou de outra pessoa que atue em caráter oficial ou de uma pessoa que promova a investigação, ou com o consentimento ou aquiescência daquela, nem tampouco em situações nas quais a morte ocorra na prisão. Esta proibição prevalecerá sobre os decretos promulgados pela autoridade executiva (BRASIL, 1989).”

 

Não existe um conceito único para a milícia privada. Greco (2015, p. 20) explica que “existe, na verdade, uma dificuldade na tradução do termo milícia”.

 

Essa dificuldade foi externada no Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (Resolução nº 433/2008) do qual diz:

“Desde que grupos de agentes do Estado, utilizando-se de métodos violentos passaram a dominar comunidades inteiras nas regiões mais carentes do município do Rio, exercendo à margem da Lei o papel de polícia e juiz, o conceito de milícia consagrado nos dicionários foi superado. A expressão milícias se incorporou ao vocabulário da segurança pública no Estado do Rio e começou a ser usada frequentemente por órgãos de imprensa quando as mesmas tiveram vertiginoso aumento, a partir de 2004. Ficou ainda mais consolidado após os atentados ocorridos no final de dezembro de 2006, tidos como uma ação de represália de facções de narcotraficantes à propagação de milícias na cidade (BRASIL, 2008).”

 

Atualmente as milícias privadas podem ser entendidas como:

“[…] as milícias particulares são caracterizadas pela reunião de civis e também agentes públicos armados, que justificam suas ações violentas pelo serviço de segurança prestado à determinada região, afastando os “criminosos” e possíveis delinquentes. Entretanto o que acaba ocorrendo é a coação da comunidade, que pela violência e ameaça é obrigada aderir o sistema de segurança. Com o domínio do setor de segurança nas comunidades mais carentes as milícias tomaram conta de diversos outros serviços, tais como, TV, internet e transporte (CORNELIUS, 2015, p. 35).”

 

Apesar disso, o conceito de milícia é consequência da realidade social brasileira que frente ao avanço da criminalidade e seus desdobramentos, constituiu em um novo tipo de ação delituosa. Vindo principalmente de lugares de baixa renda e de situação social precária, as milícias sempre tiveram apoio da população dos lugares onde imperava. É o que se destaca:

“[…] pelo fato de se identificarem como mantenedoras da ordem local, as milícias privadas não agiam com tanta agressividade como os grupos de traficantes que dominavam determinadas áreas. Desde a origem das organizações, inclusive pela participação de militares, os grupos visavam combater os crimes mais violentos, repudiados e temidos pela população. Assumindo essa postura, recebiam o apoio de alguns moradores da área (ZALUAR; CONCEIÇÃO, 2007, p. 81).”

 

Os indivíduos pertencentes às milícias se definiam “como empresas de prestação de serviço de segurança privada, que era organizada em turnos de revezamento e utilizavam armamento, ou seja, estrutura similar a militar” (CORNELIUS, 2015, p. 28). Algumas milícias não tinham regulamentação, mas outras tinham uma estrutura efetivamente constituídas e regulamentadas, usando “empresas privadas” apenas como disfarce.

Em relação aos seus objetivos, Fonseca (2019, p. 01) explica que a função das milícias é “ter ganhos políticos, econômicos, sociais e culturais. São esses ganhos que distinguem a milícia de grupos de extermínio. Pode-se dizer que as milícias são a restruturação desses grupos de extermínio”.

Conforme foram expandindo, as milícias acabavam por influenciar na rotina da população de lugares carentes, a ponto de que os moradores eram obrigados a apenas contratar os serviços dos milicianos. Essa medida era imposta através de coerção e ações violentas (FONSECA, 2019).

Essas imposições aos quais os milicianos editam ainda é muito presente na realidade social brasileira. Em milhares de favelas nos grandes centros urbanos do país é notório encontrar diversas regras impostas por milicianos no

 

controle de territórios. As suas atividades são financiadas pelos próprios moradores e que podem ser resumidas da seguinte forma:

“Cobrança da taxa de proteção: marcando com símbolos as casas dos moradores que a pagam e, assim, oferecendo proteção contra quaisquer crimes, seja um roubo ou a venda de drogas;

Exploração clandestina: ao cobrar e centralizar serviços de gás, televisão a cabo, máquinas caça-níqueis, cocos verdes, crédito pessoal, imóveis e transporte alternativo;

Oposição aos narcotraficantes e ao domínio territorial de facções; Segurança alternativa: provida por policiais, bombeiros, vigilantes, agentes  penitenciários  e  militares,  fora  de  serviço  ou ativos,  como integrantes da milícia.”

(FERRO; CHAGAS, 2018, p. 02)

 

Ainda em solo brasileiro, Ferro; Chagas (2018) entendem que a milícia é como uma organização ou grupo de pessoas que busca efetivar patrulhas contra narcotraficantes. Eles se agrupam e crescem em lugares onde o Estado não alcança, onde não consegue realizar serviços básicos a população, incluindo a própria segurança pública.

Dessa forma, pode-se verificar que a ausência do Estado em várias regiões faz crescer os mais variados tipos de ações criminosas, como no caso das milícias. Em setores mais pobres dos centros urbanos, onde falta o mais básico para a população, a milícia surgiu como forma de domínio e controle.

Nos estudos coletados para esse estudo, foi possível encontrar autores que afirmam que as milícias atuam como “juízes” diante de conflitos sociais nos territórios em que comandam. São considerados como uma justiça paralela, pois supre o abandono social de um Estado mal-sucedido em políticas públicas (FERRO; CHAGAS, 2018).

No entanto, há na doutrina autores que entendem que não exista uma justiça paralela e sim a ausência intencional do Estado. Nesse sentido, cabe citar:

“As milícias só existem por haver uma intenção do Estado de manter esses grupos. Muitos falam em poder paralelo, mas isso é uma grande farsa, o próprio Estado é o poder. As ilicitudes são organizações ‘permitidas’ pelo Estado para manter as classes dominantes. O Estado estar ausente é uma mentira; na verdade, ele opta por estar por fora, sendo conivente com o que se passa (ALVES, 2019 apud FONSECA, 2019, p. 01).”

 

De qualquer forma, a concepção do que significa uma milícia se deu pela entrada da Lei nº 12.720/2012 que tipificou as ações dos grupos de extermínio e das milícias privadas. A respeito dessa lei e sua interpretação doutrinária, será mais bem explanada no tópico seguinte.

 

2.1 A MILÍCIA PRIVADA FRENTE A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Com o aumento das milícias nos grandes centros urbanos, a legislação brasileira não poderia se ausentar dessa realidade. Assim, em 2007, foi criado o Projeto de Lei nº 370 da Câmara dos Deputados, que trazia a definição detalhada do crime de extermínio de seres humanos.

No período de sua tramitação, foi apensado ao Projeto de Lei nº 370/2007 outro Projeto de Lei nº 3.550/2008, que continha algumas emendas efetuadas pelo Senado. Como ensina Capez (2014), a origem desses projetos legislativos se deu por meio da CPI dos grupos de extermínio, ocorrida no Nordeste, no início

 

dos anos 2000, pelo qual se analisou as ações criminosas de milícia privada e grupos de extermínio naquela região e no restante do país. Para o retro autor, as propostas tinham três objetivos:

“a) resgatar o compromisso internacional do Brasil com a Resolução n.44/162, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1989;

  1. compatibilizar o combate ao extermínio de seres humanos com a tutela à vida ratificada pelo Brasil nos Decretos n. 678/1992 (Pacto de San José da Costa Rica) e n. 4.388/2002 (Estatuto de Roma);
  2. deslocar a competência do julgamento do crime de extermínio de seres humanos para a esfera federal, a fim de serem evitadas pressões políticas de integrantes das milícias sobre os agentes públicos estaduais (CAPEZ, 2014, p. 337).”

 

Essa concepção atual se deu pela entrada da Lei nº 12.720/2012 que tipificou as ações dos grupos de extermínio e das milícias privadas. Através desta lei foi disposto o artigo 288-A e as novas causas de aumento de pena nos artigos 121 §6º e 129 §7º do Código Penal (CORNELIUS, 2015).

Assim, o artigo 288-A possui o seguinte texto:

“Art. 288-A. Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos.”

(BRASIL, 2012)

 

Diferente do delito de associação criminosa, para a configuração da Milícia Privada, basta a reunião de pessoas para o cometimento de um único delito. No entanto, a reunião tem de ter caráter permanente e não somente ocasional (CAPEZ, 2014).

Nas palavras de Bitencourt (2014, p. 471) na milícia privada, o “sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, em número mínimo de três, tratando-se, por conseguinte, de crime de concurso necessário, a exemplo do que ocorre com o similar associação criminosa”.

Segundo Greco (2015, p. 10) as principais características da Milícia Privada são a “matança de pessoas, após aqueles serem recrutados ou contratados por pessoas do comércio e outras empresas. Assim, são profissionais do crime que não possuem, em primeiro plano, uma relação de desafeto com as vítimas”.

Para melhor ilustrar a milícia privada, apresenta-se abaixo um julgado do Superior Tribunal de Justiça. O presente julgado analisa a aplicação da novatio in mellius ao impetrante, e aplicação da pena estabelecida em instância ordinária pela prática de constituição de milícia privada (artigo 288-A do Código Penal). A saber:

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. LAVAGEM DE DINHEIRO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. FATOS ANTERIORES ÀS LEIS N.º 12.683/12 E N.º 12.850/13. ATIPICIDADE. RECONHECIMENTO. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. CONSTITUIÇÃO DE MILÍCIA PRIVADA. ART. 288-A DO CÓDIGO PENAL. CONDENAÇÃO BASEADA EM PROVAS PRODUZIDAS NA FASE JUDICIAL, ALÉM DE ELEMENTOS INFORMATIVOS COLHIDOS EXTRAJUDICIALMENTE. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. QUALIFICADORA PREVISTA NO ART. 8º DA LEI Nº 8.072/90. INCIDÊNCIA NA FORMAÇÃO DA QUADRILHA PARA A PRÁTICA DE CRIMES HEDIONDOS. DOSIMETRIA. FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO NÃO ATACADOS. SÚMULA 284/STF. FIXAÇÃO DA PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL

 

COM AMPARO EM ELEMENTOS CONCRETOS DOS AUTOS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO.

[…]

  1. Para a incidência da qualificadora prevista no artigo 8º da Lei nº 8.072/90 é bastante a demonstração de que a associação criminosa concretizou-se para a prática de crimes hediondos, o que, conforme consignado pela Corte local, competente pelo exame do acervo fático-probatório dos autos, restou devidamente evidenciado no caso dos
  2. Se nas razões do recurso especial o recorrente deixa de refutar os fundamentos utilizados pelo aresto recorrido aplica-se, por analogia, o disposto na Súmula 284 do Excelso Pretório.
  3. Não há falar em ilegalidade na majoração da pena-base, quanto ao delito de constituição de milícia privada (art. 288-A do Código Penal), amparada em fundamentação concreta, consistente na formação de um grupo armado de cerca de 100 (cem) milicianos que, por mais de 15 (quinze) anos, impuseram “verdadeiro regime de terror entre moradores e comerciantes” da comunidade, tendo o recorrente, como líder do grupo, praticado todos os verbos do tipo penal em tela.
  4. Recurso especial provido em parte para, com amparo na jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal, absolver o recorrente Cristiano Girão Matias no tocante ao delito previsto no artigo 1.º, inciso VII, da Lei n.º 9.613/98, mantida sua condenação à pena de 8 (oito) anos de reclusão como incurso no artigo 288-A do Código Penal, no regime inicial fechado. Extensão dos efeitos do julgado à corré Solange Ferreira Vieira, nos termos do artigo 580 do Código de Processo Penal (BRASIL, 2015).

(Recurso Especial nº 1.497.490, Órgão julgador: Sexta Turma, Publicação: 20/06/2015 Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura). (grifo nosso)”

 

No que se refere ao bem jurídico tutelado, há uma divergência doutrinária. Para Estefam (2015, p. 25) o bem jurídico tutelado é a ‘paz pública’, que representa “o sentimento de tranquilidade e segurança de toda a coletividade, assim como, a vida, a integridade física e o patrimônio que são atingidos pelas atividades dos grupos criminosos”.

No entanto, para Bitencourt (2014) o bem jurídico protegido não se restringe apenas a paz pública. Contieri (1961 apud BITENCOURT, 2014, p. 473) afirma que “bem jurídico objeto desses crimes é o sentimento coletivo de segurança de um desenvolvimento regular da vida social, de acordo com as leis”. No que tange aos sujeitos do crime, o sujeito ativo pode ser qualquer indivíduo, compondo um número mínimo de quatro (mais de três), resultando assim, no crime de concurso necessário, assim como ocorre com a quadrilha ou bando. Em relação aos inimputáveis (doentes mentais e menores de 18 anos), os mesmo não se inserem nessa figura típica, pois para a constituição de milícia privada é necessário “indivíduos penalmente responsáveis, isto é, aquelas pessoas que podem ser destinatárias das sanções penais” (BITENCOURT,

2013, p. 473).

O sujeito passivo é a coletividade em geral, não possuindo a determinação de pessoas. Em outras palavras, “o próprio Estado, que tem a obrigação de garantir a segurança e o bem estar de todos” (GRECO, 2015, p. 18). Insta salientar, que pode ocorrer, casuisticamente, o sujeito passivo o indivíduo sozinho ou mais sujeitos passivos.

No tipo objetivo, “a associação para delinquir é duradoura, permanente e estável, com o objetivo de praticar, indiscriminadamente, crimes indeterminados”

 

(BITENCOURT, 2013, p. 473). Ainda que haja uma lacuna neste artigo, por criar a modalidade de reunião de indivíduos para delinquir sem estabelecer o número mínimo de participantes, é unânime o entendimento de que no caso de Milícia privada o mínimo de indivíduos, para a sua configuração é de 3 (três) pessoas.

Em relação ao tipo subjetivo, o seu tipo é o dolo, ou seja, a vontade consciente de reunir-se para praticar o presente crime em análise, surgindo um vínculo associativo entre os participantes.

De forma mais completa, cita-se:

“Em síntese, para que determinado  indivíduo  possa  ser  considerado sujeito ativo do crime de constituição de milícia privada, isto é, para que responda por essa infração penal é indispensável que tenha consciência de que participa de uma “reunião de pessoas” que tem a finalidade de praticar crimes previstos no Código Penal. É insuficiente que, objetivamente, tenha servido ou realizado alguma atividade que possa estar abrangida pelos objetivos criminosos do grupo. Não respondem por esse crime, por exemplo, eventuais “laranjas”, que desconhecem a existência ou finalidade da milícia privada, apenas emprestando o nome sem qualquer proveito pessoal, ou determinados empregados que apenas cumprem ordem de seus superiores. Exige-se, ademais, o elemento subjetivo especial do tipo, caracterizado pelo especial fim de constituir milícia privada com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código, sob pena de não se implementar o tipo subjetivo, a exemplo do que se exige no crime de quadrilha ou bando (BITENCOURT, 2013, p. 474).”

 

Na consumação e tentativa, a primeira se configura com a mera associação de mais de três pessoas para a prática de crimes definidos pelo art. 288-A em análise, afetando assim, a paz pública. De modo que, “tratando-se de um crime tipicamente estável e permanente, a consumação se protrai até a cessação do estado antijurídico criado pela constituição de milícia privada” (FIGUEIREDO, 2013, p. 01).

Seguindo esta análise, a tentativa não é permitida, uma vez que este crime é abstrato, de mera atividade. Essa afirmação se deve pelo “fato de tratar-se de meros atos preparatórios, fase anterior ao ‘início da ação’, que é o elemento objetivo configurador da tentativa” (BITENCOURT, 2013, p. 474).

Na classificação doutrinária, pode ser elencada do seguinte modo:

“Crime comum: aquele que pode ser praticado por qualquer pessoa, não requerendo qualidade ou condição especial;

Formal: não exige para sua consumação a produção de nenhum resultado naturalístico;

De forma livre: pode ser praticado por qualquer meio que o agente escolher;

Comissivo: o verbo núcleo indica que somente pode ser cometido por ação

Permanente: sua consumação alonga-se no tempo, dependente da atividade do agente, que pode ou não cessá-la ou interrompê-la quando quiser não se confundindo, contudo, com crime de efeito permanente, pois neste a permanência é do resultado ou efeito (v. G., homicídio, furto etc.), e não depende da manutenção da atividade do agente;

De perigo comum abstrato: perigo comum que coloca um número indeterminado de pessoas em perigo; abstrato é perigo presumido, não precisando colocar efetivamente alguém em perigo;

Plurissubjetivo: trata-se de crime de concurso necessário, isto é, aquele que por sua estrutura típica exige o concurso de mais de uma pessoa, no caso, mais de três;

Unissubsistente: crime cuja conduta não admite fracionamento.”

 

(BITENCOURT, 2013, p. 475).

 

No que se refere à ação penal, a mesma é pública incondicionada, “não dependendo, por conseguinte, de qualquer manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal” (FIGUEIREDO, 2013, p. 01).

 

3 DAS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS

Como foi possível verificar até aqui, a milícia está assentada na legislação brasileira. O que não significa que com a sua criminalização tenha diminuído a sua prática. Os noticiários policiais mostram diariamente grupos de milicianos sendo presos ou ataques contra policiais e civis (ANSELMO, 2017).

Cidades como São Paulo, Recife, Salvador e Rio de Janeiro, que desde as décadas de 60, 70 e 80 já sofriam com ações de milicianos, atualmente ainda são palco de matanças feitas por grupos de extermínio ou de cidadãos que utilizavam meios ilegais para resolver conflitos, tendo seus serviços armados solicitados por moradores (FERRO; CHAGAS, 2018).

Como já descrito em tópicos anteriores, as milícias agem principalmente em favelas (comunidades carentes) com ações permanentes da polícia e desconsideradas pela mídia. Fonseca (2019, p. 01) explica que as milícias “são mais organizadas que os traficantes, por serem compostas por agentes ou ex- agentes públicos, que buscam se infiltrar na política, como forma de aumento de seu poder”.

A sua influência cresce cada vez mais nessas comunidades, exercendo um impacto social cada vez mais. Nesse caso:

“O poder das milícias está justamente em se estruturar em diferentes frentes. No início, os grupos de extermínio viviam à base de taxas para a segurança nas comunidades e execuções sumárias; a milícia veio para transformar esse jogo. Hoje, milicianos cobram moradores por segurança nas comunidades, vendem água, gás, cigarro, estão inseridos na política e até traficam drogas. Com isso, a milícia é a face mais sombria e violenta do Brasil atual, principalmente no Rio de Janeiro (FONSECA, 2019, p. 01).”

 

As milícias de todo modo acabam causando uma desordem social, fazendo como que a comunidade se transforme conforme a vontade de milicianos. Há comunidades onde milícias não permitem bailes de funk por exemplo. Em outras comunidades não aceitam entradas de pessoas de outras comunidades, ou seja, além de comandar aquele território ainda limitam a entrada de pessoas, causando um isolamento para aqueles moradores.

Soma-se a isso que com a milícia no poder há maiores chances de confrontos policiais e de bandidos, o que quase sempre resulta em mortes de vítimas. Famílias inteiras acabam por conta de balas perdidas trocadas por causa de confrontos de milicianos e bandidos ou com a própria polícia.

Na busca por uma solução, o até então Ministro de Segurança Pública (2019-2020), Sérgio Moro divulgou em 2019 um pacote anticrime. Nesse pacote, o então ministro busca reformular a lei de organização criminosa e formalizar a tipificação de milícia. Dentro do pacote há algumas medidas que alteram o critério no que tange ao réu.

Nesse caso, por exemplo, no âmbito da liberdade, o presente Ministro propõe que “o miliciano aguarde o julgamento privado de liberdade. Além disso, restringe-se o patrimônio, ou seja, o Estado pode confiscar o dinheiro do criminoso antes da sentença” (FONSECA, 2019, p. 01).

 

Apesar de o pacote trazer um maior rigor no tratamento relacionado às milícias, a maior discussão é em relação se há ou não uma solução para a milícia. Para responder essa questão, existe uma divergência: de um lado têm- se aqueles que entendem que a milícia não tem solução, pois está enraizada na sociedade de tal forma que é quase impossível retirá-la.

Nesse posicionamento, o antropólogo Paulo Storani (2019 apud FONSECA, 2019, p. 01) afirma que assim como o tráfico de drogas, não há uma solução para as milícias. Isso se dá porque ainda existe uma ausência de uma estrutura eficiente de “fiscalização e investigação, morosidade processual penal por parte do Estado, falta de penas duras e de um regime de execução penal que realmente mantenha os criminosos presos, qualquer perspectiva positiva se transforma em utopia”.

Por outro lado, existem os otimistas. Nesse ponto, destacam-se as palavras do sociólogo José Cláudio Souza Alves (2019 apud FONSECA, 2019, p. 01) ao qual defende a ideia de que a “polícia não pode ser homicida e suicida, precisa- se repensar a Polícia Militar. É preciso criar políticas sociais para jovens envolvidos com o tráfico, como incentivo à educação, cultura, mobilidade e esporte”.

Apesar de difícil ser sanado, esse estudo caminha juntamente com o entendimento de que é possível diminuir o crescimento da milícia. A partir do momento em que o Estado atue conjuntamente com a comunidade, por meio de políticas públicas visando a melhoria na qualidade de vida e incentivo social (cultura, esportes, educação, lazer, saúde, etc.) o poder influenciador das milícias serão cada vez menores.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos grandes males que causa preocupação à sociedade é o aumento significativo da violência e o da insegurança. E isso é preocupante sob todos os aspectos, uma vez que é dever do Estado garantir a segurança de todos os cidadãos. Entende-se por segurança, no sentido social do termo, aquela que concede proteção a todo indivíduo, de trazer a sensação de estar seguro, protegido da violência e das ameaças pessoais.

Um dos instrumentos utilizados pelo Estado para fazer valer essa garantia da segurança é o uso da força policial. Para a sociedade, o policiamento é fundamental para a manutenção da lei e da ordem. É por meio do seu trabalho que a segurança se instaura e traz a “paz” para a comunidade.

Apesar dessa prerrogativa, o que tem se verificado é que os agentes de segurança pública têm atuado de forma alheia ao que se encontra nos estatutos que versam sobre a Segurança Pública fazendo surgir a milícia privada, que tem o seu nascedouro decorrente da ausência do Estado em proteger os cidadãos nos lugares mais afastados dos grandes centros urbanos ou em lugares de baixa renda, como as favelas, por exemplo.

As milícias são basicamente grupos de extermínio que atacam os etiquetados como marginais ou perigosos. Muitos civis inocentes também são vítimas das suas ações. Em razão disso, essas ações são exemplo de desrespeito aos preceitos implantados pelos Direitos Humanos, que trazem no seu principal amuleto a Dignidade da pessoa humana. Frente a essa situação, o Brasil editou a Lei nº 12.720/12 que introduziu o artigo 288-A e os aumentos de pena previstos nos artigos 121, §6 e 129 § 7º do CP com o objetivo de coibir as ações de extermínio e milícia que não possuíam tipificação penal até o momento.

 

Há de se mencionar ainda o pacote anticrime propagado em 2019 ao qual busca reformular a lei  de  organização  criminosa  e  formalizar  a  tipificação de milícia. Dentro do pacote há algumas medidas que alteram o critério no que tange ao réu. Diante disso, é inegável que o estudo acerca da milícia privada seja de fundamental importância para aqueles que trabalham na área jurídica, na segurança pública e principalmente para a sociedade. Dessa forma, é justificável que diante do enorme problema que a milícia privada traz para a sociedade, a sua discussão e análise seja de extrema necessidade.

Em conformidade com o exposto acima, é importante que se debata o tema de forma imparcial, analisando todos os elementos e características, pois se trata de danos cujos elementos respingam não somente na matéria física, mas também na esfera emocional e psicológica do indivíduo e da comunidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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