Resumo: Uma crise da jurisdição é observada no atual sistema jurídico. Entre os motivos destaca-se a morosidade, o distanciamento do Poder Judiciário da população em geral, o processo ser traumatizante, entre outros. Com o objetivo de mudar essa realidade, foi criada a lei 9.099/95, dispondo sobre os Juizados Especiais, com o intuito de aplicar um modelo de justiça fundada no consenso. O presente artigo tem como objetivo demonstrar como a jurisdição penal do consenso presente nos Juizados Especiais Criminais pode funcionar como um contraponto a crise da jurisdição. Acerca da metodologia, foi empregado o método indutivo por meio da pesquisa bibliográfica. Dos resultados obtidos com a pesquisa, entendeu-se que por mais que não solucione a crise, a jurisdição penal do consenso, se aplicada da forma adequada, pode consistir em uma ferramenta que auxilia a trazer mudanças para o processo, buscando uma maior eficiência processual, satisfação dos envolvidos e recuperação do bem jurídico.
Palavras-chave: Crise da Jurisdição. Juizados Especiais. Jurisdição Penal do Consenso.
Abstract: A jurisdiction crisis in the current legal system is observed. Within the reasons are the slowness, the distance of the Judiciary of the general population the process being traumatizing, among others. In order to change this reality, the law 9.099/95 was created, disposing about the Special Courts, in order to apply a model of justice founded on consensus. This article aims to demonstrate how the criminal jurisdiction of this consensus in the Special Criminal Courts can function as a counterpoint to the crisis of jurisdiction. About the methodology, it was employed the inductive method through bibliography research. From the results obtained from the research, it was understood that while it not solve the crisis, the consensus criminal jurisdiction, if applied appropriately, can consist of a tool that helps to bring changes to the process, seeking a greater procedural efficiency, satisfaction of those involved and recovery of the legal benefit.
Keywords: Jurisdiction Crisis. Special Courts. Consensual Crime Jurisdiction.
Sumário: Introdução. 1. A Crise da Jurisdição. .2 Os Juizados Especiais Criminais e a Jurisdição Penal do Consenso. Considerações Finais. Referência das Fontes Citadas.
Introdução
O sistema jurídico processual da atualidade passa por uma crise. Entre os diversos motivos destaca-se a morosidade, as marcas traumáticas causadas nos envolvidos e a distância que existe entre o Poder Judiciário e a população em geral.
Além disso, tratando-se da área criminal, a crise é maior ainda, pois o sistema é baseado em uma lógica que dá ênfase para a repressão e a pena de prisão, com alto número de tipificações penais. Porém, esse sistema não resolveu o problema de violência social, que no geral só cresce[1].
O sistema de punição deveria estar baseado em uma lógica de reabilitação do criminoso, porém, ao ir para a prisão, o efeito é contrário, pois consiste em um ambiente que muita vezes é precário, não correspondendo ao que diz a lei e não havendo um respeito aos direitos humanos e fundamentais do indivíduo, além da influência negativa de se estar em contato com outros criminosos.
Ao sair, o problema continua, pois por ser um ex-presidiário sofre preconceitos e tem dificuldade de arranjar emprego, sendo que os problemas sociais que levem boa porte dos indivíduos ao cometimento de crimes continua existindo.
O objetivo do presente artigo é demonstrar como a jurisdição penal do consenso presente nos Juizados Especiais Criminais pode ser uma forma de contraponto a crise da jurisdição, não somente como forma procedimental de diminuição de processos, mas, em seus aspectos qualitativos, apresenta uma proposta mais compromissada com a justiça, buscando valorizar a vítima, a ressocialização do autor dos fatos e a recuperação do bem jurídico lesionado.
1 A crise da jurisdição
O Direito, a partir do Renascimento, perde progressivamente seu caráter sagrado, ocorrendo a tecnicização do saber jurídico e a equivalente perde de seu caráter ético que a era Medieval cultuava e conservava. O Direito é reconstruído usando a razão como base[2].
Através da organização racional da sociedade, da produção de uma engenharia social, o Estado moderno é o soberano, centralizador e burocrático, e o Direito passa a instrumentalizar tecnicamente o controle das relações sociais, tudo passando a ter um caráter normativo. Sendo assim, justifica-se a violência através da aplicação legal da norma jurídica e simultaneamente por sua legitimação através das instituições burocráticas do Estado[3].
Nesse cenário, o Direito foi sendo limitado à condição de mero organizador e aplicador de normas, distanciando-se das ações legítimas relacionadas com a justiça e seu caráter genuíno de Direito[4]. Como consequência, o Poder Judiciário hoje enfrenta uma crise em sua efetiva prestação jurisdicional.
O acesso à justiça tem se tornado arcaico em relação a sociedade contemporânea, o sistema jurídico não consegue acompanhar o desenvolvimento da sociedade, deixando lacunas na resolução de litígios bem como não satisfazendo os auspícios de uma prestação jurisdicional adequada e satisfatória[5].
Luis Alberto Warat escreve que no atual universo complexo do Direito vive-se um momento de impasses e retrocessos muito particular. Todos os avanços da desconstrução ideológica e de compreensão das funções ilusórias do Direito parecem estar sendo esquecidas pelas novas formas de reflexão da atualidade[6]. O autor afirma que vários ressurgimentos podem ser enumerados:
“[…] um novo dogmatismo jurídico, um neoconstitucionalismo que ameaça invadir todos os ramos do Direito, que ameaça constitucionalizar todos os campos do Direito, uma teoria da argumentação, despreocupada por revelar os mecanismos persuasivos da fundamentação jurídica e o caráter da verossimilitude retórica das verdades processuais passa a se ocupar como Alexy das formas de garantir uma objetividade racional para a fundamentação argumentativa do Direito[7].”.
Um dos grandes problemas que aflige o Poder Judiciário é a morosidade. Um processo eficiente que garante a efetividade do acesso à justiça só é passível por meio de uma solução de conflitos célere. Conforme diz o ditado popular “uma justiça tardia é uma injustiça”.
Entre as diversas causas da morosidade da justiça destacam-se o incremento das demandas; a precária estrutura do Poder Judiciário; o sistema legislativo processual brasileiro que consiste em um emaranhado de normas; o próprio poder público que possui agentes públicos que constantemente descumprem as normas, enorme número de execuções fiscais, além da enorme dificuldade do Legislativo de votar as reformas processuais[8]; o alto custo da prestação jurisdicional, o desconhecimento de seus direitos pelos cidadãos[9], dentre outros.
A excessiva quantidade de processos em trâmite no judiciário deriva de uma cultura judiciarista, uma cultura que resiste aos meios alternativos de solução de conflitos e assim fomenta a formação de processos judiciais. O Poder Judiciário não tem meios naturais, materiais e humanos para gerenciar toda essa enorme quantidade de ações judiciais[10].
A superabundância de produção legislativa dificulta o conhecimento das normas pela população em geral, se tornando um obstáculo à própria fiscalização quanto ao cumprimento delas, dando origem a um ordenamento de baixa efetividade e credibilidade social[11].
O poder público também é responsável pelo enorme número de processos por vários motivos. Um deles é o descumprimento de dispositivos constitucionais e legais pelos próprios agentes públicos que faz com que o particular recorra ao Judiciário para ver respeitados seus direitos[12].
O Legislativo também é um problema, pois muitas vezes se reconhecem as necessidades de mudança no sistema processual que tornariam o mesmo mais eficiente, porém os projetos de lei que propõem essas mudanças ficam travados nas votações das casas legislativas[13].
Spengler destaca ainda alguns pontos de ruptura que desencadeiam a crise da eficiência jurisdicional: primeiramente há uma crise estrutural ocasionada pelas dificuldades quanto à infra-estrutura de instalações, de pessoal, de equipamentos e de custos; posteriormente verifica-se uma crise objetiva, especialmente relacionada à uma linguagem técnico-formal utilizada nos procedimentos e rituais forenses, a burocratização, a lentidão dos procedimentos e o acúmulo das demandas[14].
Há ainda a crise subjetiva ou tecnológica que se verifica ante a incapacidade dos operadores jurídicos tradicionais de lidarem com as novas realidades fáticas que exigem reformulações legais e mudança de cultura e mentalidade, especialmente quanto ao mecanismo lógico-formal que não atende às respostas buscadas para os conflitos contemporâneos[15].
Por fim, Spengler afirma que há uma crise paradigmática que diz respeito aos métodos e conteúdos utilizados pelo Direito para buscar o tratamento pacífico dos conflitos partindo da atuação prática do direito aplicado ao caso concreto[16].
Spengler destaca ainda o problema da desconexão entre a realidade social, econômica e cultural da qual são advindos os conflitos e a realidade legal obsoleta e ultrapassada. Apesar da legislação mais moderna ser capaz de lidar com os conflitos, ela esbarra em uma cultura de profissionais do Direito que sofre um excessivo individualismo, que consiste na convicção de que os direitos individuais estão acima dos da comunidade, e formalismo, decorrente do apego a um conjunto de ritos e procedimentos burocratizados e impessoais, justificados em nome da segurança jurídica e da segurança do processo[17].
Mancuso também destaca algumas causas do acúmulo de processos judiciais, são elas:
a) a cultura demandista que induz a população a procurar a justiça estatal antes de tentar outros meios, auto e heterocompositivos;
b) a falta de uma política judiciária de divulgação popular das diversas alternativas disponibilizadas para a solução das pendências para além do processo judicial; e
c) o desvirtuamento da função judicial do Estado, cada vez mais usada pelos mesmos sujeitos: o próprio Poder Público, Bancos, INSS, empresas de telefonia, de planos de saúde, etc., como forma de postergação do cumprimento de suas obrigações, tudo em detrimento daqueles que raramente se envolvem em processos judiciais[18].
Os aspectos técnicos abordados até aqui não são os únicos fatores da crise da prestação jurisdicional, os aspectos psicológicos são igualmente importantes.
Luiz Guilherme Marinoni destaca o problema do distanciamento do Poder Judiciário da população em geral. O cidadão mais humilde se sente intimidado em relação a determinadas formas de poder, sente-se intimidado até mesmo em buscar um advogado, que presume ser uma relíquia distante. Parte desse problema deriva de experiências negativas anteriores com a justiça onde ficaram evidenciadas discriminações. Os cidadãos humildes temem represálias até mesmo da parte adversária[19].
Luis Alberto Warat afirma que no processo decisório o que mais afeta os envolvidos são as marcas traumáticas que toda decisão deixa em seus estados de consciência. A transformação do conflito em litígio exige o percurso de um processo que inevitavelmente traumatiza as partes[20].
Outra questão de grande é o problema da falta de confiança que se pode ter na decisão do juiz. Por mais que com o advento da modernidade se tenha consolidado o paradigma da racionalidade em que se busca um Juiz imparcial, neutro, “boca da lei”, na prática é impossível dissociar a subjetividade do juiz em seu julgamento.
Gabriel Divan, em sua obra Decisão Judicial nos Crimes Sexuais, aborda o mito que é a neutralidade do juiz por meio da psicanálise freudiana e da psicologia analítica de Jung. Essas teorias exploraram a influência do inconsciente, e de todos os outros mecanismos psicológicos associados a ele, na mente humana, “[…] o sujeito pensante igualmente “existe” onde sua Razão não exerce a consciência-de-si desse pensamento pensante.”[21].
Warat afirma ainda que nem sempre se interpreta uma lei para fundamentar racionalmente uma decisão, e nem sempre a fundamentação e a interpretação são anteriores à decisão. Em muitos casos primeiro se decide, depois se fundamenta e se interpreta[22].
O texto utilizado pelo juiz para fundamentar sua decisão pode servir de mero escopo psicológico para o julgador enfrentar e/ou sucumbir diante dos efeitos do desequilíbrio entre os elementos que constituem sua esfera psíquica[23].
Além disso, hoje cada vez mais ganham força as correntes de interpretação e aplicação do Direito baseadas em valores e princípios, como o Neoconstitucionalismo, e o ativismo judicial se propaga tanto na teoria quanto na prática. Essa forma de pensar o Direito acaba por promover ainda mais a subjetividade na decisão judicial, resultando em uma insegurança e dificuldade de prever qual será a decisão do julgador no processo.
Uma excelente descrição dessa realidade é a obra O Estrangeiro de Albert Camus, que retrata o julgamento de Meursault em que toda a discussão gira em torno não do crime cometido por ele, mas por seu comportamento nos dias que antecederam ao crime que não correspondiam a moral da sociedade[24].
Da mesma forma o filme Kramer vs. Kramer mostra um julgamento acerca de quem deveria ficar com a custódia do filho. Apesar de todas as provas demonstrarem que o pai teria melhores condições de criar o filho, o juiz decidiu a favor da mãe pelo simples entendimento que uma criança é sempre melhor criada pela mãe[25].
Algo que normalmente não se leva em consideração é que o conflito consiste em uma relação entre as partes, a lide é algo que os une. Muitas vezes a briga judicial é um conflito pessoal, sendo o objeto da lide apenas um pretexto.
O juiz quando julga uma causa é um terceiro alheio que não sente as partes, apenas os encaixa em um modelo normativo. Ele não leva em consideração o que as partes entendem como justo[26].
Apesar de todos esses elementos demonstrarem a crise da jurisdição, existe uma resistência por parte dos próprios processualistas que não buscam formas alternativas de resolução de conflitos, fato derivado de um “fetichismo” da sentença de mérito, em que há uma falsa percepção de que a função de conciliar é atividade menos nobre, sendo a função de sentenciar uma atribuição do juiz muito mais importante[27]. Porém, isso vem mudando, e a lei 9.099 de 1995 é uma prova disso, pois busca aplicar um modelo de justiça criminal baseado no consenso.
A jurisdição penal do consenso apresenta ferramentas com o intuito de proporcionar alternativas a jurisdição em crise. Seus procedimentos visam um processo mais célere que muitas vezes proporcionam a conciliação dos envolvidos e ressocialização do autor dos fatos, além de em diversos casos buscar a reparação do bem jurídico lesionado. É uma forma mais humanista de solução de conflitos, em que a repressão caracterizada por pensas severas é deixada de lado, mas o compromisso com a justiça é levado a sério.
2 Os juizados especiais criminais e a jurisdição penal do consenso
A jurisdição consensual vem ganhando força e apoio de diversos autores jurídicos[28]. Conforme Geraldo Prado, os argumentos utilizados para legitimar o uso de instrumentos conciliatórios são:
a) prisão é um problema;
b) celeridade;
c) modernização;
d) diminuição da população carcerária;
e) tutela efetiva dos interesses da vítima;
f) direcionamento da energia para os casos mais graves;
g) valorização dos envolvidos (MP, vítima, interessado e suspeito);
h) maximização dos resultados com menos esforço possível[29].
Como resposta aos argumentos elencados acima, foi criado a lei 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. A lei veio para responder ao direcionamento da Constituição da República Federativo do Brasil de 1988:
“Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; […]”.
A lei 9.099/05 buscou revolucionar a política criminal saindo da crença dissuasória da pena severa e testar uma nova via para os delitos de pequena e média gravidade, colocando em prática um dos mais avançados programas de despenalização do mundo[30]. Nas palavras de Luiz Flávio Gomes “A lei 9.099 compreende-se como uma forma nova e revolucionária de realizar o valor ‘justiça’.”[31].
No art. 62 da lei são estabelecidos os princípios que a regem:
“O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.”.
A oralidade tem por objetivo a valoração da palavra em detrimento da excessiva juntada de termos e outros instrumentos formalizadores do processo penal. Ocorre, assim, uma maior concentração dos elementos necessários para a composição da lide e não pela juntada excessiva de peças escritas aos autos[32].
A simplicidade e a informalidade são fundamentais no modelo dos Juizados, evitando a complexidade e as dificuldades comuns nos processos ordinários para a obtenção dos resultados preconizados na lei[33].
Sendo o processo oral, simples e informal já se estará obtendo a celeridade, uma vez que a lentidão da justiça deriva, sobretudo, da adoção de procedimentos escritos, complicados e excessivamente formais em um mundo que prima por simplicidade e rapidez[34].
A celeridade objetiva a rápida resolução dos casos penais sem comprometer a segurança. O procedimento sumaríssimo, com denúncia oral, a possibilidade de em um só dia ser realizada toda a instrução criminal seguida dos debates e julgamento, mostra o apego ao princípio da celeridade processual[35].
Buscando agilizar o trâmite, a lei prevê que a autoridade policial, tomando conhecimento da infração penal, deve lavrar termo circunstanciado, remetendo-o ao Juizado Especial Criminal[36].
O critério da economia processual preconiza o máximo resultado na atuação do direito com o mínimo emprego possível de atividades processuais. Sua aplicação na lei está presente em momentos como a dispensa do inquérito policial, a concentração dos atos em uma mesma oportunidade e a simplificação dos atos processuais[37].
Nessa lógica, a lei veio testar um novo modelo de justiça criminal fundada no consenso. Todas as convenções e crimes cuja pena máxima não excede a um ano (ou dois anos conforme lei 10.259/01) são da competência dos Juizados Criminais. Se o autor do fato vem a aceitar a pena proposta pelo Ministério Público, que não pode ser privativa de liberdade, encerra-se o caso imediatamente sem a necessidade da colheita de provas. Essa aplicação consensual da pena não gera reincidência nem antecedentes criminais[38].
Dessa forma, a lei propôs três medidas despenalizadoras baseadas no consenso: composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo.
No art. 72 da lei, é prevista uma audiência preliminar conciliatória, que poderá conduzir à autocomposição em matéria civil ou penal. A conciliação é usada para que as partes possam mais facilmente alcançar a autocomposição. O conciliar age como um instrumento de aconselhamento, mas quem põe fim à controvérsia são as próprias partes[39].
A composição consiste na possibilidade das partes negociarem a reparação do dano material ou moral sofrido pela vítima, o que pode ser na forma de pagamento ou de alguma outra contraprestação por parte do agressor diretamente à vítima[40].
Caso ocorra a composição dos danos, é previsto no art. 74, parágrafo único, que se tratando de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação.
A composição permite que as partes envolvidas resolvem seus problemas pessoalmente, valorizando a autonomia das pessoas e, em vez de simplesmente penalizar o acusado por seus atos, também permite que a vítima se sinta recompensada e até mesmo pode funcionar como uma forma de conciliação entre ambos.
Não ocorrendo a composição civil e havendo a representação da vítima ou sendo crime de ação penal pública incondicionada, o art. 76 apresenta a possibilidade da transação penal, em que o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.
A medida alternativa aceita não é juridicamente uma pena, pois não houve processo e, portanto, não houve condenação criminal. A transação aprovada pelo juiz e acatada pelo autor da infração, encerra-se o caso sem gerar nenhum efeito referente à condenação criminal[41], ou seja, o autor da infração permanece réu primário em possíveis futuros processos e não gera antecedentes criminais.
Importante destacar também a aplicação da transação penal nos crimes ambientais, prevista pela lei 9.605/98 em seu art. 27, que comina esse instituto com a composição do dano ambiental. Buscou-se nesse caso dar um maior valor para a recuperação do bem jurídico meio ambiente do que simplesmente buscar a punição do responsável, o que por si só não resolveria o problema do dano causado[42].
Além dessas possibilidades, previu-se ainda no art. 89 a suspensão condicional do processo. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo por dois a quatro anos.
Aceita a proposta, o juiz poderá suspender o processo submetendo o acusado a um período de prova sob as seguintes condições: reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; proibição de frequentar determinados lugares; proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz; comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades. Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade.
A suspensão condicional do processo permite a redução da burocracia da justiça criminal, permite a pronta resposta estatal ao delito, a imediata (dentro do possível) reparação dos danos à vítima, o fim das prescrições (que não correm durante a suspensão), a ressocialização do autor dos fatos, sua não reincidência, economia de papel e de tempo, etc.[43]
Essas três medidas constituem a justiça consensual dos Juizados Especiais Criminais, que se apresenta como um novo modelo de processo penal caracterizado por ser menos repressivo, estimular a participação, o diálogo, o acesso à justiça, e valorizar os interesses da vítima[44].
Além disso, a justiça consensual busca uma maior eficiência processual. A adoção de acordos entre acusação e defesa permite uma tentativa de contorno dos transtornos decorrentes do aumento da pequena e média criminalidade. Fato que ocasionou o uma sobrecarga para o aparato estatal encarregado de realizar a justiça. Os acordos permitem que a alguns delitos sejam resolvidos de maneira rápida e com custos menores para o sistema sem prejuízo para as partes[45].
O modelo penal do consenso permite ainda uma valorização maior do bem jurídico, pois busca em diversos momentos a reparação do bem jurídico lesionado ou aplicação de penas que tem relação com ele, afinal, toda a punibilidade surge devido a um dano a um bem jurídico, sendo assim a reparação dele deve ser buscada sempre que possível, caso contrário têm-se uma punição não relacionada, faltando uma pedagogia de que o autor da infração tem o compromisso de restaurar o dano que causou.
Os métodos aplicados pelos Juizados Especiais Criminais estabelecem um tratamento jurídico adaptado a um tipo específico de criminalidade, contribuindo para que a reação ao delito seja proporcional e adequada. Dessa forma incentiva um modelo de justiça que valoriza a participação e a busca por soluções que melhor atendam aos interesses da sociedade, da vítima e do autor do fato[46].
O modelo de justiça consensual tem ainda a função de contribuir para uma cultura de confiança dos jurisdicionados na realização da justiça, tornando acessíveis os meios legais de solucionar as pendências que perturbam o convívio na sociedade[47].
Tendo em vista a importância dessa nova forma de resolver conflitos, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ elaborou a Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, instituindo a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário.
A resolução afirma o dever dos órgãos do Poder Judiciário de oferecer mecanismos de solução de conflitos consensuais, bem como prestar atendimento e orientação ao cidadão. A resolução afirmou ainda que nas hipóteses em que esse atendimento de cidadania não fosse imediatamente implantado, deveria fazê-lo gradativamente em até 12 meses.
Determinou-se, ainda, a competência do CNJ de organizar programa com o objetivo de promover ações de incentivo à autocomposição de litígios e à pacificação social por meio da conciliação e da mediação.
Estabeleceu-se ainda a criação pelos Tribunais de Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos com o objetivo de desenvolver essa Política Judiciária Nacional e Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadanias, unidades do Poder Judiciário responsáveis pela realização das sessões e audiências de conciliação e mediação bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão.
Essa política demonstra a importância que a justiça consensual vem ganhando no Poder Judiciário, onde se objetivou não somente sua aplicação, mas também a conscientização do cidadão.
Conclusão
A jurisdição encontra-se em um momento de crise. Há diversos entraves que tornam o processo moroso, há um distanciamento do Poder Judiciário da população em geral, o processo é traumatizante para os envolvidos, existe uma grande insegurança acerca da decisão do juiz, além de que a solução do conflito é sempre posta em um terceiro, o juiz, que não tem conhecimento suficiente acerca dos detalhes que constituem o conflito entre as partes. Toda essa crise causa um sentimento de injustiça e ineficiência do processo.
Como forma de proporcionar uma alternativa a crise da jurisdição, foram elaborados os Juizados Especiais que apresentaram um modo de fazer justiça baseado no consenso e na celeridade processual. A composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo foram as três formas apresentadas pela lei dos juizados de se solucionar o conflito de forma consensual.
A justiça consensual trabalha com a ideia de que as próprias partes podem interagir para resolver o conflito, e penas alternativas podem ser aplicadas, dando origem a um processo mais ágil, menos traumático e que em determinados casos pode valorizar a vítima, ressocializar o autor do fato e recuperar o bem jurídico lesionado. É um sistema jurídico revolucionário, que corresponde a uma sociedade desenvolvida e comprometida com ideias humanistas.
Esse sistema não pode ser a solução para a crise da jurisdição, mas representa um passo, uma tentativa, em busca de uma melhoria da atual situação. É uma alternativa ao processo jurisdicional clássico em crise. A sociedade está em um constante processo de mudanças e os valores sociais e do ser humano ganham cada vez mais relevância. O Direito e suas práticas, como ferramentas de organização social, devem também passar pelos processos de mudança e acompanhar a nova realidade social.
Informações Sobre o Autor
João Henrique Pickcius Celant
Graduado em Direito e Mestrando no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Advogado