A Lei nº. 9.455/1997 e o sistema prisional brasileiro

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Resumo: “Dos Delitos e Das Penas”, de autoria de Cesare Bonesana Beccaria, é um clássico para o estudo da seara penal do Direito. O autor dedica o capítulo XII da obra para o tratamento da recusa da tortura como instrumento de confissão. A obra de Beccaria marca o declínio da era institucional da tortura. Tendo por base a discussão de Beccaria acerca da tortura, o presente artigo pretende estudar tal prática, e a punição de sua ocorrência sobre a perspectiva da Lei 9455 de abril de 1997; além da perpetuação da prática da tortura no sistema prisional brasileiro e, em especial, no capixaba.


Palavras-chave: Tortura – Lei 9.455 – Prisões brasileiras – Carceragem capixaba. 


Sumário: 1. Breve histórico acerca da prática da tortura. 2. O declínio institucional da prática da tortura. 3. A prática da tortura no Brasil. 4. A Lei nº. 9.455 de abril de 1997. 5. A realidade do sistema carcerário brasileiro.


1. BREVE HISTÓRICO ACERCA DA PRÁTICA DA TORTURA


A prática da tortura, lamentavelmente, é crônica na história da humanidade. Como instrução que visa buscar a verdade no processo ou então como espécie de pena cruel imposta para determinados crimes, é utilizada desde a Antiguidade até a Contemporaneidade, cingindo a história com barbáries diversas.


Entende-se por tortura o uso de violência ou grave ameaça, que provoque intenso sofrimento físico ou mental, tendo por motivo obter informação, declaração ou confissão. Também pode ser vislumbrada como a aplicação de castigos ou como forma de intimidação daqueles que estão sob guarda, poder ou autoridade de quem pratica a violência ou ameaça. Acerca do entendimento do que vem a ser a tortura, salienta-se:


“[…] A tortura, forma extremada de violência, parece ter se entranhado no homem ao primeiro sinal de inteligência deste. Só o ser humano é capaz de prolongar o sofrimento de animal da mesma espécie ou de outra. […] O homem é diferente. O impulso de destruição o conduz à inflição de dores por prazer, por vingança ou para atender objetivos situados mais a diante […]”. [1]


Verri constata que o uso sistemático da tortura teve seu início a partir do século XI na Europa e atingiu seu ápice entre os séculos XIII e XVII, com o advento da Inquisição. A mitigação das penas e a condenação da tortura só vão ocorrer em finais do século XVIII e início do século XIX, com o surgimento do capitalismo industrial. É no século XVIII que se avultam as críticas à prática da tortura, sobretudo porque os ideais iluministas  a consideram como um desrespeito ao ser humano.


2. O DECLÍNIO INSTITUCIONAL DA PRÁTICA DA TORTURA


Vários são os eventos que contribuíram para o declínio institucional da tortura, contudo é salutar ressaltar a publicação da obra “Dos Delitos e Das Penas” de Cesare Beccaria, em 1764. A rejeição à tortura funda-se, segundo Beccaria e os Iluministas, na injustiça e na ineficácia de sua ação. Beccaria foi extremamente à frente do seu tempo, sendo defensor da reformulação da legislação penal vigente a sua época, além de estabelecer os conceitos fundamentais das legislações que se sucederam, inclusive a atual Lei 9.455/97 (Lei da Tortura).


Para Beccaria a tortura é vista como um meio de condenar o inocente e absolver o criminoso forte, pois ela se resume na mensuração da força física do pretenso culpado. É o inocente menos resistente aos suplícios que o verdadeiro culpado, por isso, aquele é facilmente constrangido a confessar uma culpa que não é sua, simplesmente para que se cessem os tormentos a ele infligidos. Neste sentido:


“[…] o inocente é colocado em pior situação que o culpado, posto que aquele, ao ser submetido aos tormentos, tem tudo a perder, porque para livrar-se do suplício, deve confessar um delito que não cometeu. Porém, mesmo resistindo à tortura e reconhecida sua inocência, sofreu uma reprimenda indevida. O verdadeiro autor do crime,ao contrario,pode ser favorecido pela tortura, pois, caso resista ao suplício será absolvido, culminando por receber uma pena menor.” [2]


Em consonância com o supracitado, escreve Verri que:


“[…] a tortura, com as dores, tende a reduzir o homem à traição de si próprio, a renunciar à sua autodefesa, a ofender e a perder a si mesmo. Isso por si só basta para mostrar, sem outras reflexões, que a tortura é intrinsecamente um meio injusto para buscar a verdade, e não seria licito utilizá-la, mesmo que com ela se encontrasse a verdade.” [3]


As críticas de Beccaria ganham corpo, os esforços para a erradicação da tortura se avolumam e alcançam plenitude no século XX. Formalmente a tortura é extinta, malgrado ela assume uma perspectiva extra-oficialmente, vigendo na clandestinidade.


3. A PRÁTICA DA TORTURA NO BRASIL


No Brasil, lamentavelmente, a prática da tortura mancha de horror e sofrimento o nosso passado bastante recente, sobretudo, nos períodos em que vigoraram as ditaduras de Getúlio Vargas (basta nos lembrarmos das perseguições aos opositores do Estado Novo, sendo destaque a história de perseguição sofrida por Luiz Carlos Prestes e sua esposa Olga Benário), e dos militares a partir de 1964. Infelizmente o que se vislumbra nestes períodos é a vigência de um governo que se utiliza de formas exacerbadas de poder para se impor sobre a sociedade. 


Em face de tais cenários a sociedade civil nunca foi inerte, sempre existiram movimentos – alguns de maior gradação que outros – que lutaram para trazer à tona a necessidade de se ter no país legislações que assegurassem aos cidadãos proteção em face ao aparelho repressivo estatal.  Nosso país, apesar de ser signatário de diversos tratados e convenções que dispusessem sobre o tema, como por exemplo, Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948); Carta das Nações Unidas (1945); carecia de garantias internas para a sociedade.


Neste sentido é o processo de abertura, em fins da década de 80, fundamental para que se vislumbrasse na sociedade brasileira a passagem de um estado ditatorial, pautado na repressão, para a constituição de um Estado Democrático de Direito. Assim, é a promulgação da nossa Constituição Federal de 1988 a consolidação da necessidade de se construir um Estado pautado na justiça social, na valoração da pessoa humana, de sua dignidade e de seus direitos fundamentais.  Há, portanto, a defesa do indivíduo perante o Estado, com a fixação de diretrizes limitadoras do poder estatal.


Desta maneira, conforme defende Miguel Reale Junior[4], a importância que o Estado Democrático de Direito atribui à Constituição, ocupando esta o topo de todo o ordenamento jurídico, de maneira que todos os demais ramos do direito se coadunem com seus ditames, atuando em consonância com estes para terem então autenticidade, legitimidade e legalidade. Nossa Constituição Federal propõe a proteção aos Direitos e Garantias Fundamentais, entre os quais estão elencados os direitos do individuo.


Entre tais garantias observa-se a preocupação do legislador de garantir aos indivíduos respaldo legal em face do Estado, de maneira que é claro no texto constitucional a repudia à tortura. Fato este comprovado, por exemplo, pelo inciso III do artigo 5º da Constituição que reza “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.Coaduna com tal idéia o entendimento da inaplicabilidade de penas cruéis, consoante a alínea e do inciso XLVII do mesmo artigo 5º anteriormente mencionado. 


Percebe-se que os constituintes demonstram preocupação em garantir à pessoa humana, os mínimos direitos para uma vida segura e saudável, de forma a integridade física e psíquica da pessoa humana.  A condenação no que diz respeito à prática da tortura encontra respaldo no Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, consagrado no artigo 1º, inciso III, da nossa Carta Magna.


A Constituição de 1988, por conseguinte, caracteriza-se como a grande responsável para que idéia de exaltação da pessoa humana e da sua dignidade, se consagrasse no sistema jurídico nacional.  Posteriormente a ela são diversos os diplomas legais que pretenderam abranger o tema. Neste sentido, cita-se como exemplo, a lei nº. 8.072/90, Lei dos Crimes Hediondos, trouxe em seu art. 2º, uma equiparação dos crimes tratados na lei e os crimes de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo.


A necessidade da incriminação da prática da tortura é assunto de deliberação pela Assembléia Geral das Nações Unidas,em 1984, que na Convenção contra a Tortura, define a mesma como:


“[…] qualquer ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de, nomeadamente, obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissões, a punir por um ato que ela ou uma terceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha cometido, intimidar ou pressionar essa ou uma terceira pessoa, ou por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminação, desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos por um agente público ou qualquer outra pessoa agindo a título oficial, a sua instigação ou com o seu consentimento expresso ou tácito […]”.[5]


Diversos paises ratificaram tal convenção e acordaram em incriminar a prática da tortura, entre eles, o Brasil. O artigo 5º, inciso III, já supracitado, é um exemplo da influência desta convenção na positivação de nosso texto constitucional. Ainda como reflexo do entendimento ilícito da tortura, temos em 1997, a promulgação da Lei nº. 9.455/97 que tipifica a punição para o crime de tortura e esclarece em seu artigo 1º, §6º que “o crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia”.


As garantias previstas por tal lei, contudo, são minimizadas a partir do momento que se constata que o sistema prisional brasileiro apresenta um cenário de maus tratos, denunciado usualmente por organismos de defesa dos direitos humanos. Fato é que a prática da tortura é corrente nas carceragens, penitenciárias e na atividade policial, o que implica em dizer que a eficácia desta lei é insipiente e limitada. Destaca Mário Coimbra:


“[…] a herança do autoritarismo fortemente impregnada na policia, a cobrança social, em relação ao acentuado índice de criminalidade fomentada, diuturnamente, pela imprensa, aliada à inércia governamental, quanto à necessidade de se realizar uma reestruturação acentuada na polícia, com destaque para a polícia judiciária, inclusive com investimentos na aquisição de aparatos modernos para a investigação policial, faz com que a tortura continue a ser aplicada impunemente nas unidades policiais.”[6]


Antes, entretanto, de adentrar na discussão acerca da perpetuação da prática da tortura nas carceragens brasileiras, é preciso se realizar um breve estudo acerca da Lei nº. 9.455/97.  Até 1997 não tínhamos no Brasil nenhuma lei específica sobre o assunto tortura. A chamada lei da tortura trouxe muitas novidades para nosso ordenamento jurídico, seja pela definição de crimes, ou pela regulação de aspectos processuais.


4. A LEI Nº. 9455 DE ABRIL DE 1997


A Lei nº. 9.455/97 veio para suprir a necessidade inserção no ordenamento jurídico nacional de um dispositivo legal que contemplasse a omissão do legislador brasileiro acerca dos crimes de tortura. Inicialmente, é preciso se destacar que tal lei define que:


“[…] Constitui crime de tortura:


I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:


a) com fim de obter informação, declaração ou confissão da vitima ou de terceira pessoa;


b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;


c) em razão de discriminação racial ou religiosa;


II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma ou medida de caráter preventivo. ”[7]


O inciso I define a caracterização de três tipos de tortura: a tortura-prova (relativa à alínea a), tortura como crime-meio (alínea b) e tortura racial ou discriminatória (alínea c). Importa destacar que nas três hipóteses há a ação dolosa do agente.  Nestas condições o crime de tortura consuma-se com o sofrimento físico ou mental, decorrente do constrangimento. Pouco importa qual a natureza do fato em torno do qual gira a pretendida declaração, confissão ou informação. Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo: tanto funcionário público como particular. Resulta daí a qualidade de ser um crime comum, posição defendida pelo entendimento de que tais delitos são suscetíveis de serem praticado por qualquer pessoa, independentemente de ostentarem a qualidade de agente público, ou não.


O inciso II, por sua vez, faz-se menção à tortura-castigo, crime próprio que enseja para a sua concretização que o sujeito ativo seja, necessariamente, detentor da guarda da vitima ou capaz de exercer poder ou autoridade sobre ela. 


O artigo 1º traz, ainda, em seus parágrafos, estipulações acerca de situações especificas. Dita o parágrafo primeiro:


“Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei, ou não resultante de medida legal.”[8]


O dispositivo acima transcrito encontra apoio no texto constitucional quando o legislador define que “é assegurado ao preso o respeito à integridade física e moral.”[9]. O parágrafo em questão traz como sujeito passivo aquele que está preso ou sujeito a medida de segurança, independentemente do tipo de prisão. Destaca-se que nesta situação não é salutar o emprego de violência ou grave ameaça.


O parágrafo segundo é concordante com a parte final do inciso XLIII do artigo 5º da nossa Carta Magna, definindo a responsabilidade penal daquele que se omite em face da prática da tortura, tendo o dever de agir ao contrário. O parágrafo terceiro define causas especiais de aumento de pena, empregando o legislador a expressão ‘se resulta’ para se referir à ocorrência de lesão corporal grave ou gravíssima, assim como morte, em razão de tortura, o que indica que o autor responde por dolo na conduta antecedente.


No parágrafo quarto indica-se três causas de aumento de pena; são elas: quando o sujeito ativo é agente público; quando o agente passivo é criança, gestante, deficiente ou adolescente; e quando o crime é cometido mediante sequestro.


No parágrafo quinto tem-se os efeitos secundários da condenação por crime de tortura; tais efeitos são de caráter administrativo.  A perda do cargo institui o regime de impedimento legal para o exercício de função pública por tempo determinado a servidor que pratique tortura, sujeitando-se à interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. Desta maneira, o servidor público que pratica ato de tortura contra alguém não só deve perder o cargo como efeito imediato da condenação, como também fica impedido de exercer qualquer outra função pública por período duas vezes mais longo que a pena privativa de liberdade a ele aplicada.


O parágrafo sexto, conforme já mencionado neste artigo, cuida da impossibilidade de fiança para o crime de tortura. O parágrafo sétimo, finalmente, prevê a imposição inicial do regime prisional fechado. Não cabe a vedação da progressão de regime prisional, consoante a regulamentação dos crimes hediondos (Lei n.º.072/90, art. 2.º, § 1.º.). Isto porque apesar de o crime de tortura ser comumente aproximado dos crimes hediondos, não há a vetação expressa de impedimento de progressão de regime para a prática de tortura. Defender, pois, a impossibilidade de progressão para os crimes de tortura é violar o princípio da reserva legal, segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina, assim como a proibição de interpretar a lei penal para agravar a situação do réu (analogia in malla partem).


No artigo 2º o legislador brasileiro estende a aplicação da nossa lei a fatos ocorridos não somente no território nacional, desde que a vítima seja de nacionalidade brasileira (extraterritorialidade incondicionada), ou o agente encontre-se em local em que vige a jurisdição brasileira (extraterritorialidade condicionada).


Quanto à competência para processar e julgar os crimes definidos na Lei n.º. 9.455/97, ela cabe à Justiça Comum. O legislador finaliza, enunciando no artigo 4º que a Lei contra a tortura revoga o artigo 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual definia de forma muito vaga a punição para casos de tortura.


 A Lei nº. 9.455 surge a partir da constante observação e escândalo da sociedade brasileira em face das atrocidades vislumbradas em nosso país, notadamente, no emprego do abuso de autoridade quando da resolução de conflitos, especialmente, nas periferias das regiões metropolitanas.  Observa Coimbra:


“[…] o Parlamento brasileiro somente se despertou da sua letargia para a análise da questão da tortura em março de 1997,quando policiais militares foram filmados na Favela Naval,na cidade de Diadema, estado de São Paulo, praticando inúmeros atos denotativos de abuso de poder contra cidadãos que por ali circulavam ,culminando com a morte de uma das vítimas, cujas cenas escandalizaram a sociedade brasileira […]” [10]


Lamentavelmente, precisa-se atentar para o fato de que o Brasil, apesar de ter ratificado e ser signatário de vários tratados e convenções, levou quase 50 anos para tipificar a conduta criminosa da prática de tortura, desde que se tornou signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Mais lamentável ainda é o fato de que apesar de vigente, tal lei é ainda pouco utilizada.


5. A REALIDADE DO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO


A tortura permanece como um problema sério no Brasil, sendo utilizada de maneira sistemática nas prisões brasileiras. O sistema nacional de detenção está corroído pela tortura física e psicológica dos presos. Há nas delegacias policiais e instituições penais do Brasil nítido desrespeito aos direitos daqueles que estão sobre a custódia do Estado brasileiro. Reza o artigo 38 do Código Penal pátrio: “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”; o que se observa, contudo, é uma realidade muito diversa. Vislumbra-se que, de fato, o que tem marcado historicamente as prisões brasileiras são as condições desumanas, o emprego da violência e a superlotação, o que representa um dos principais problemas de direitos humanos do país. Neste sentido, a Anistia Internacional traça um vergonhoso perfil das cadeias brasileiras, afirmando que as mesmas caracterizam-se como:


“[…] um meio ambiente insalubre, ausência de assistência médica, aplicação arbitrária de punição, inexistência de programas educativos, recreativos e profissionalizantes e falta de consideração pela dignidade e integridade dos internos são elementos que, considerados em conjunto, constituem condições equivalentes a tratamento cruel, desumano ou degradante. A vida nessas instituições penais é insalubre, indigna e precária […]”. [11]


 Além da deplorável situação supracitada, também constituem fatores que ratificam a perpetuação do crime de tortura no país, a corrupção policial e o abuso de autoridade inerente aos organismos policias. Corriqueiro, por exemplo, é o emprego da tortura na fase de investigação policial, como maneira de incitar o acusado a confessar o crime.


 Salienta-se, ainda, o fato de que a violência policial contra detentos é do conhecimento da sociedade e do Estado brasileiro, contudo, poucas são as ações efetivadas para que tal situação seja desmontada. Isto porque, apesar de implícita, vigora ainda em nossa sociedade a idéia de que Brasil é a terra das desigualdades. A preconceituosa visão de que como bandido o indivíduo perde todos os seus direitos à dignidade e civilidade é, sem sombra de dúvidas, desencadeadora da horrível condição pessoal em que se encontram os detentos de nosso país, desrespeitos em seus direitos fundamentais.


Certamente, um dos fatores que justificam as atitudes descabidas das autoridades policiais para com os detentos é o fato de se ter enraizado na sociedade a visão preconceituosa supracitada. O pensamento de que a prisão é um local de ressocialização não impera, posto que é incabível se imaginar a reintegração por meio do uso da violência. Não pode a sociedade ser inocente a ponto de crer que um ser humano castrado de seus direitos fundamentais consegue vislumbrar a necessidade de readequação de sua conduta, de maneira que possa se reintegrar com a sociedade; sociedade esta que lhe imprime condições inóspitas de sobrevivência. Dalmo Dallari em prefácio à obra “Observações sobre a Tortura”, de Pietro Verri esclarece que acerca da prática da tortura:


“[…] foi dado um passo de extrema importância para sua efetiva abolição, com a figura legal da tortura, que passou a ser definida como crime. Resta, entretanto, conscientizar os governantes e os agentes policiais viciados na violência e no arbítrio, alertando-se também as autoridades fundamentais para que não sejam coniventes com a prática desse crime […]”.[12]


Não raros são os casos de suspeita de mortes de detentos devido à imperícia policial (espancamentos, tortura, maus-tratos), além de precárias condições de atendimento médico quando necessário. Estes são fatores que ceifam a vida de muitos detentos nas instituições presidiárias de nosso país. Há, pois, violações diárias dos direitos humanos fundamentais que tornam o pessoal carcerário e os policiais insensíveis às condições subumanas vividas pelos internos. 


Infelizmente o quadro de descaso com o sistema penitenciário é uma realidade verificada em todo o Brasil. Assim, não é o nosso estado uma exceção a esta lamentável e questionável regra. No Espírito Santo corrente são as denúncias da realidade nefasta vivida nas carceragens. Presentes foram nos noticiários, local e nacional do corrente ano, as violações dos direitos humanos no sistema penitenciário capixaba; tortura e esquartejamento de presos são algumas das situações mais criticáveis.


Irregularidades, desrespeito aos direitos humanos, além da construção de presídios utilizando contêineres são motivos que levaram ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) a pedir intervenção federal no Espírito Santo diante dos problemas verificados nos presídios. [13]


O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) investiga a crise no sistema carcerário capixaba. Tal crise perdura no estado há, pelo menos, uma década posto que:


 “Nos primeiros três meses de 1998, segundo informações, 15 presos foram assassinados no Espírito Santo. Nenhuma das mortes foi plenamente investigada. […] No dia anterior à visita da Anistia Internacional à Casa de Detenção de Vila Velha, em março de 1998, o corpo de um presidiário fora encontrado no monturo existente atrás do presídio. Os internos circulavam por todas as dependências e havia apenas um guarda de serviço. Nenhuma das celas tinha porta […]”. [14]


Dalmo Abreu Dallari, jurista brasileiro e integrante do Conselho Nacional de Direitos Humanos em face da degradante situação vislumbrada no sistema penitenciário do Espírito Santo defende que:


“A perda da liberdade não pode significar a perda da dignidade, a perda de todos os valores inerentes à condição humana, que incluem a integridade física e mental. O que está acontecendo nos presídios do Espírito Santo é uma soma de ilegalidades e por isso, o pedido de intervenção federal”. [15]


Continua, afirmando que criticável é a postura das autoridades capixabas que parecem inertes em relação ao grave problema vivenciado pelas penitenciárias do Estado. Assim, a crítica de Dallari, após a observação o relatório acerca dos presídios capixabas elaborado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), funda-se no fato de que:


“O que percebemos no Espírito Santo é que as autoridades locais só apresentam desculpas para acabar com a superlotação, como se esse fosse o único problema. Não há iniciativa para mudar. Construir presídios é uma desculpa, um pretexto, que não melhora a situação do tratamento extremamente violento dispensado aos presos no Espírito Santo”. [16]


Destaca, ainda, Dallari que é inquestionável o fato de que as irregularidades vivenciadas nas carceragens capixabas são de inteira responsabilidade do Estado, pois, completa dizendo que “do ponto de vista jurídico, não há como defender que esses crimes não são de responsabilidade do Estado. Se o Estado mantém alguma pessoa presa, ele é responsável por sua integridade”.[17]


Finalmente, pode-se falar, com muito lástima, que apesar de a legislação brasileira contemplar uma discussão acerca da tortura e impor-lhe sanções, infelizmente tais medidas não são plenamente aplicáveis.


No que diz respeito ao sistema carcerário brasileiro (destacando-se o capixaba), podemos dizer que a tortura de detentos é uma realidade nos estados brasileiros, com o registro de várias formas de desrespeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.


 


Referências bibliográficas:

ALMEIDA, Gevan de Carvalho. . Modernos movimentos de política criminal e seus reflexos na legislação brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

ANISTIA INTERNACIONAL. Brasil: “aqui ninguém dorme sossegado”: violações dos direitos humanos contra detentos. Porto Alegre: Anistia Internacional, 1999.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2003.

CARDOSO,  Letícia – ‘Tudo é verdade’, diz Direitos Humanos sobre torturas em cadeias capixabas. In: http://gazetaonline.globo.com . Acessado em 21/05/ 2009 às 22h41min.

COIMBRA, Mário; PRADO, Luis Régis (Coord.). . Tratamento do injusto penal da tortura. São Paulo: R. dos Tribunais, 2002.

CNJ vai investigar crise do sistema carcerário do Espírito Santo. In: https://secure.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhejornal&id=61948&id_cliente=64814&c=5. Acessado dia 19/05/2009 às 13h43min.

FERNANDES, Paulo Sergio Leite.; FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer. Aspectos juridicos-penais da tortura. Belo Horizonte: Nova Alvorada Edições, 1996.

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l9455.htm.  Acessado dia 17/05/2009 às 11h 48 min.


Para Dallari, Espírito Santo comete “série de irregularidades” na questão prisional. In:https://secure.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhejornal&id=61949&id_cliente=64814&c=5. Acessado dia 19/05/2009 às 13h41min.

Por determinação da Justiça, presídio do Espírito Santo não pode receber mais presos.  In:

https://secure.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhejornal&id=62356&id_cliente=64814&c=5. Acessado dia 19/05/2009 às 13h47min.

REALE JUNIOR, Miguel. Constituição e direito penal: vinte anos em desarmonia. In: Revista de informação legislativa. Brasília a. 45 n. 179. jul./set.2008

VADE MECUM. 6 ed. atual. E ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.

VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

Notas:

[1] FERNANDES, Paulo Sergio Leite; FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer. Aspectos jurídicos-penais da tortura. Belo Horizonte: Nova Alvorada Edições, 1996.p.149.

[2]  COIMBRA, Mário; PRADO, Luis Régis (Coord.). . Tratamento do injusto penal da tortura. São Paulo: R. dos Tribunais, 2002. p.96

[3] VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 97-98.

[4] REALE JUNIOR, Miguel. Constituição e direito penal: vinte anos em desarmonia. In: Revista de informação legislativa. Brasília a. 45 n. 179. jul./set.2008. p. 333-342.

[5] Artigo 1º da Parte I da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

[6] COIMBRA, Mário; PRADO, Luis Régis (Coord.). . Tratamento do injusto penal da tortura. São Paulo: R. dos Tribunais, 2002. p.160.

[7] Caput e incisos I e II do artigo 1º da Lei nº.9.455/97.

[8] § 1º do artigo 1º da Lei nº. 9.455 de 7 de abril de 1997.

[9] Inciso XLIX do artigo 5º da Constituição Federal.

[10] COIMBRA, Mário; PRADO, Luis Régis (Coord.). . Tratamento do injusto penal da tortura. São Paulo: R. dos Tribunais, 2002. p.163.

[11] ANISTIA INTERNACIONAL. Brasil: “aqui ninguém dorme sossegado”: violações dos direitos humanos contra detentos. Porto Alegre: Anistia Internacional, 1999.p. 25-26.

[12] VERRI, Pietro. . Observações sobre a tortura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. XXIII.

[13] CARDOSO,  Letícia – ‘Tudo é verdade’, diz Direitos Humanos sobre torturas em cadeias capixabas. In: gazetaonline. globo.com.

[14] ANISTIA INTERNACIONAL. Brasil: “aqui ninguém dorme sossegado”: violações dos direitos humanos contra detentos. Porto Alegre: Anistia Internacional, 1999.p.13.

[15] Para Dallari, Espírito Santo comete “série de irregularidades” na questão prisional. In: secure.jurid.com.br.

[16] Idem

[17] Idem 


Informações Sobre o Autor

Anna Paula Cavalcante Gonçalves Figueiredo

Acadêmica de Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo


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