A Lei 12.403/11 impediu a decretação “ex officio” de cautelares pelo Juiz no curso da investigação. Inobstante isso, não deixou de respeitar ao Princípio da Judicialidade das cautelares, de forma que o único operador a deter legitimidade para sua decretação é o Juiz, não o podendo fazer a Autoridade Policial e nem o Ministério Público. A Autoridade Policial poderá representar pelas medidas no curso da investigação (fase preprocessual) e o Ministério Público poderá requerê-las tanto na investigação como no processo.
Este é o entendimento de Muccio:
“A autoridade Policial não tem legitimidade para decretar as medidas cautelares, mas poderá representar com essa finalidade, porém, apenas no curso da investigação criminal (na fase do inquérito policial). Superada a fase da investigação, cessa a atribuição da autoridade policial, não podendo postular em juízo (CPP, art. 282, § 2º.)”. [1]
Há na doutrina quem entenda que a Autoridade Policial, na realidade, por não possuir “jus postulandi in juditio”, na verdade apenas faz uma manifestação que, para poder prosperar precisa de um posicionamento favorável do Ministério Público. Isso tendo em vista o artigo 129, I, CF, que atribui ao Ministério Público a titularidade exclusiva da ação penal. Dessa forma, entende-se que acaso o Juiz acate a representação da Autoridade Policial sem ouvir o Ministério Público ou contra sua manifestação negativa estaria, na realidade, atuando “ex officio”, o que lhe é vedado. Sendo o Ministério Público o titular da ação penal, somente ele poderia deliberar sobre a oportunidade das cautelares, pois só a ele caberia inclusive avaliar se haveria a ação principal (Processo Penal), sabendo-se da característica da acessoriedade comum às cautelares. Ademais, sendo a Autoridade Policial não dotada de direito de postular em juízo, suas manifestações não teriam o condão de servir à legitimação da atuação do judiciário. Para isso o pedido deveria partir de um ator processual dotado de “jus postulandi”, sob pena de nulidade da decisão judicial correlata. Nessa linha de pensamento a atuação da Autoridade Policial deve se ater tão somente à investigação e coleta de elementos para a formação da convicção ministerial, nada além disso. [2]
Ousa-se discordar, embora a argumentação acima mencionada seja construída com aparente coerência e de forma, sem dúvida, bem concatenada.
Realmente não há como negar que a partir da Constituição Federal de 1988 (artigo 129, I, CF) o Ministério Público é o titular da ação penal pública. Também é irrefutável o fato de que o Delegado de Polícia não possui direito de postular em juízo, tanto isso é fato que a lei não se refere à Autoridade Policial formulando “requerimentos” e sim “representações”. Além disso, é verdade que em caso de negativa de sua representação pelo Juiz, o Delegado não tem capacidade postulatória a fim de impetrar qualquer espécie recursal. Acontece que nada disso é suficiente para elidir o fato de que a lei atribui claramente ao Delegado de Polícia o poder de representar independentemente por cautelares (inclusive prisionais), jamais mencionando qualquer subordinação dessa Autoridade ao Ministério Público ou a qualquer outro órgão estatal para esse fim (v.g. artigos 282, § 2º.; 311; 322, CPP; artigo 2º., da Lei 7960/89; artigo 3º., I, da Lei 9296/96, dentre outros).
Aliás, o direito de postular em juízo, comum ao Ministério Público, Defensoria Pública, Procuradorias e Advogados é uma regra que comporta algumas exceções. Não se trata de algo de caráter absoluto. Estão a demonstrar cristalinamente isso o Habeas Corpus (artigo 654, CPP) e a Revisão Criminal (artigo 623, CPP). Também na Legislação Especial encontra-se, por exemplo, a exceção do pedido de medidas protetivas de urgência diretamente pela vítima de violência doméstica e familiar na Lei 11.340/06, independentemente de advogado ou de atuação do Ministério Público (artigo 12, III c/c 18, I a III e 19, “in fine”, da Lei Maria da Penha). Ou seja, há sim casos de pessoas não dotadas de capacidade postulatória em juízo, mas que podem pleitear certas medidas excepcionalmente de acordo com a previsão legal. Nesse passo a possibilidade de representação da Autoridade Policial, tão tradicional em nosso Processo Penal, constitui nada mais do que uma dessas exceções totalmente admissíveis e com as quais pode perfeitamente conviver o Sistema Acusatório e a titularidade do Ministério Público sobre a ação penal pública.
Afirmar que o Juiz fica adstrito à manifestação ministerial em caso de pedido de cautelares mediante representação da Autoridade Policial equivale a manietar a atuação do Judiciário, aí sim, afetando gravemente o Sistema Acusatório. Ora, se, por exemplo, em matéria de provas, o Juiz não fica vinculado ao laudo pericial (artigo 182, CPP), mesmo sendo o perito detentor de conhecimentos que o magistrado não tem, o que dizer da questão da manifestação ministerial, versando sobre matéria de Direito na qual tanto Promotor, como Juiz ou Delegado de Polícia são pessoas com a mesma formação técnica? Por que o magistrado deveria ficar adstrito à manifestação ministerial? Se ele não fica preso ao laudo do perito, que detém conhecimentos estranhos ao Bacharel em Direito, é porque caso contrário o mister de julgar acabaria sendo passado sub-repticiamente aos peritos. O mesmo acontecerá se prosperar o entendimento de que o julgador fica atrelado ao parecer (mero parecer, simples opinião não dotada de carga decisória) do Ministério Público. Afinal, quem deve julgar, quem deve decidir, o Promotor ou o Juiz? Onde ficaria nesse quadro a característica da jurisdicionalidade das cautelares? Na verdade o magistrado se tornaria um “carimbador maluco”, homologador despersonalizado das “decisões” do Ministério Público e, neste caso, seria um ator absolutamente dispensável ao menos no bojo do procedimento cautelar. Como ficaria o Sistema Acusatório a partir do momento em que o titular da ação penal, justamente por isso, passasse a dar todas as cartas quanto às medidas cautelares, já que sua mera opinião, na verdade se transmudaria em manifestação com carga decisória a atrelar o suposto julgador?
A adoção de uma teoria ou solução para determinado problema deve passar também por suas consequências, as quais devem ser aferidas em seus reflexos práticos, de modo a evitar que a exacerbação ou aplicação indevida de uma garantia ou princípio acabe prejudicando a promoção de seu emprego razoável e proporcional (“Princípio da Consequencialidade”). [3] Admitir que o Juiz não possa deferir cautelares por representação direta da Autoridade Policial porque somente com o aval do Ministério Público isso pode ocorrer, justamente pelo fato de este ser o titular da ação penal e ser o único com legitimidade para aferir se haverá ou não ação penal, levaria, por via de consequência a deslegitimar também a avaliação judicial quanto ao cabimento ou não de uma ação penal. Será que o Juiz não poderia mais rejeitar uma denúncia? Não poderia mais indeferir uma cautelar encampada pelo Ministério Público partindo da Autoridade Policial ou requerida diretamente por aquele? Ora, se é o Ministério Público quem dá a palavra final sobre o futuro Processo Penal, sendo defeso ao magistrado qualquer atuação que o contrarie, tudo isso é consequência natural.
Também é descabido afirmar que a atuação da Autoridade Policial no Inquérito deve reduzir-se a coletar informes para o Ministério Público (polo acusador). Isso é, infelizmente, um dos reflexos do pauperismo ou indigência do estudo do Inquérito Policial no Brasil. [4] Essa falta de conhecimento acerca da real abrangência da investigação criminal é responsável por uma visão deturpada porque reducionista e parcial desse importante instrumento da persecução criminal. O Inquérito Policial não é e jamais será instrumento a serviço do Ministério Público ou do Querelante somente, mas sim da busca da verdade processualmente possível de forma imparcial, dentro da legalidade. O Delegado de Polícia não deve produzir ou colher provas e indícios somente voltados para a acusação, mas sim de forma genérica, primando pela total apuração dos fatos, venha isso a beneficiar a defesa do suspeito ou a incriminá-lo. [5] E se os estudiosos nacionais costumam descurar do devido estudo da investigação criminal, apresentando normalmente uma visão simplista do Inquérito Policial, Roxin afirma que “a instrução preliminar deve estruturar-se de forma a possibilitar não somente a comprovação de culpabilidade do imputado, mas também a exoneração do inocente”. [6]Nesse passo, por mais que se considere a atuação escorreita dos membros do Ministério Público, primando por uma posição de fiscalização da legalidade (aliás, uma de suas funções institucionais), não é desejável que todo o poder de decisão acerca do cabimento ou não de uma cautelar fique concentrado nesse órgão que, quer se queira ou não, atuará eventualmente no polo acusador do futuro processo. Vedar a representação pela Autoridade Policial (uma Autoridade que pode e deve ser imparcial, exatamente porque jamais postulará ou sustentará defesa ou acusação em juízo) ou mesmo condicionar sua validade ao parecer ministerial é, isso sim, violar não somente o Sistema Acusatório, mas também de um só roldão a ampla defesa e a isonomia processual. É justamente o fato de ser o Ministério Público o titular da ação penal pública que indica que sua atuação deve ser sempre opinativa ou de requerimento e jamais deve subordinar de qualquer forma (positiva ou negativa) a decisão judicial. Aliás, “decisão” é somente a Judicial, cabe ao Ministério Público e demais atores processuais opinar e pedir. Não se podem confundir as funções jurisdicionais com as funções ministeriais. Ao Ministério Público cabe, nas palavras de Binder, a chamada “função requerente” e não a decisória. [7]
Outro equívoco em atrelar a representação da Autoridade Policial ao parecer ministerial consiste em uma confusão entre a titularidade da ação penal pelo órgão ministerial (Ministério Público) e a titularidade por parte de determinado membro da instituição (Promotor de Justiça). [8] O titular da ação penal pública é o órgão ministerial, não o Promotor X ou Y, de modo que pode perfeitamente ocorrer que determinado Promotor considere não haver elementos para a ação penal, enquanto o órgão venha a entender de forma diferente, podendo ser instado a isso pelo Juiz por força do artigo 28, CPP, caso em que será a denúncia ofertada pelo Procurador Geral de Justiça ou por outro membro do Ministério Público especialmente designado para agir em nome do Procurador. Então, o fato de que o Promotor X ou Y entenda que inexiste base para um Processo Penal futuro não significa a palavra final da instituição, de forma que isso jamais poderia ter o condão de influenciar de forma definitiva na decisão judicial de concessão ou não da cautelar a pedido do Delegado de Polícia. Inclusive há cautelares que são típicas de investigação, tais como as interceptações telefônicas, a busca e apreensão, a prisão temporária, dentre outras. Nesses casos a atuação do Ministério Público não pode ser referente à formulação ou não da acusação em juízo, mesmo porque as próprias medidas visam ainda apurar se existem ou não elementos para tanto. Ora, tirante os casos de investigações encetadas diretamente pelo Ministério Público [9], quem preside as investigações é o Delegado de Polícia, de modo que é a ele precipuamente que cabe a avaliação da necessidade ou não da representação pelas cautelares. Nada impede, até recomenda, que o Ministério Público opine, inclusive na condição de fiscal da lei e de controlador externo da atividade policial. Mas, não se pode admitir que esse órgão se imiscua de forma decisiva no deferimento ou não da medida, usurpando ao mesmo tempo funções policiais e judiciais. Se há indiscutivelmente uma titularidade da ação penal pública pelo Ministério Público, também há de forma inarredável uma titularidade da condução e presidência do Inquérito Policial por parte do Delegado de Polícia, a quem incumbe o exercício das funções de Polícia Judiciária (artigo 144, CF). Isso é bem visível ao verificar-se que quando há alguma omissão ou irregularidade no Inquérito Policial a Autoridade que é chamada a prestar contas (criminal, administrativa e civilmente) é o Delegado de Polícia e ninguém mais, nem o Juiz, muito menos o Promotor de Justiça. Nessa hora ninguém se arvora a assumir as responsabilidades, muito embora, diga-se de passagem, todo Inquérito Policial seja continuamente controlado tanto pelo Judiciário como pelo Ministério Público (v.g. pedidos de prazo, correições, visitas mensais do Ministério Público na função de controle externo etc.). Ao que se saiba, sempre corresponde a um poder, um dever, uma obrigação, em suma, uma responsabilidade. Mas, parece que se pretende muitas vezes angariar poderes sem os ônus dos deveres e responsabilidades. Infelizmente isso tem sido comum na sociedade em geral e até mesmo nas suas mais conceituadas instituições. Como bem aduz Bruckner, a legalidade não se sustenta quanto se transforma em “sinônimo de dispensa”, configurando-se como uma “máquina de multiplicar direitos, eterna e principalmente sem contrapartida”. [10]
Finalmente é destacável que a ligação entre a titularidade da ação penal pelo Ministério Público e a impossibilidade de deferimento de cautelares por representação policial sem sua oitiva ou concordância é totalmente artificiosa porque parte de um falso pressuposto que contraria mesmo a natureza das medidas cautelares. Afirma-se inclusive que a acessoriedade, enquanto característica insofismável das cautelares estaria a impedir seu deferimento sem a anuência daquele que detém a titularidade da ação principal. É realmente inegável a acessoriedade das cautelares, mas sua ligação com a ação principal não é de certeza, mas de mera probabilidade. Nem o deferimento de uma cautelar, inclusive com concordância ou a pedido ministerial torna necessária e inafastável a ação penal futura; nem o indeferimento torna impraticável essa mesma ação. As cautelares são acessórias a uma ação penal principal em perspectiva, dentro de um critério de “probabilidade hipotética” e não de certeza. Por isso é espúria qualquer ligação que condicione o deferimento cautelar a uma situação de convicção prévia do órgão ministerial em forma de certeza quanto ao intentar futuro da ação penal. Além disso, conforme já destacado, há muitas medidas cautelares que são deferidas exatamente para buscar provas e indícios para a formação do convencimento quanto à existência ou inexistência de elementos suficientes para o intentar de uma ação penal que por hora é vista tão somente em perspectiva hipotética provável. Usando uma expressão popular, condicionar o deferimento da cautelar a uma manifestação do Ministério Público na qualidade de titular da futura ação penal, exigindo para isso a formulação de um juízo de certeza da postulação em perspectiva é “colocar o carro na frente dos bois”, simplesmente porque esse não é o momento nem a circunstância adequada para esse tipo de manifestação.
Por todas essas razões, embora respeitando o entendimento diverso, considera-se que o Juiz pode sim deferir cautelares mediante representação direta da Autoridade Policial quando a lei assim o prevê, ainda que sem ouvir o Ministério Público ou mesmo contra sua manifestação. Não se pode perder de vista a função de decisão que somente cabe ao Juiz de forma indelegável e isenta de influências externas por mais bem intencionadas que sejam. Acaso o Promotor discorde da decisão Judicial lhe cabe a via recursal para reformar o “decisum”. No entanto, jamais poderá o órgão ministerial e nem mesmo a lei ter a pretensão de “conduzir” o Juiz tal qual um cego ou transformar-lhe não em um ator destacado do processo penal, mas em um simples figurante. Um figurante que interpreta o personagem de uma Rainha da Inglaterra de Toga. [11]
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.