A responsabilidade penal da pessoa jurídica: uma análise crítica

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Resumo: O presente artigo destina-se a analisar, ainda que sucintamente, o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica, abordando seu histórico, sua inserção na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9605/98), apresentando as discussões doutrinárias e o grande paradoxo existente entre sua aplicabilidade no ordenamento jurídico pátrio.

Palavras-chave: Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Crimes ambientais. Teoria da Ficção. Teoria da Realidade

Sumário: Introdução; 1 Breve histórico; 2 As teorias da ficção e da realidade; 3 Fundamentos da responsabilidade penal da pessoa jurídica; 4 Uma análise ao instituto a partir da Constituição Federal de 1988; 5 A responsabilidade penal da pessoa jurídica à luz da Lei de crimes ambientais (Lei nº 9605/98); 6 As controvérsias doutrinárias; Considerações finais; Referências.

Introdução                                                                                                                                                                                                    

Partindo de uma máxima do direito que diz que “nada é absoluto”, o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica apresenta divergências e severas críticas quanto à aplicabilidade de sanções penais à pessoa jurídica. Duas grandes correntes mundiais se dividem: de um lado, os países anglo-saxões e outros tantos que receberam suas influências, admitem e defendem a aplicação de sanções penais à pessoa jurídica. Nestes países, vigora o princípio da common law (em português: lei comum) que nasceu da conjugação de 2 direitos: o Bárbaro e o Romano (com nítida predominância do primeiro), nas ilhas inglesas, entre os séculos X e XII, e forma a maior parte da lei de muitos Estados, aqueles ligados historicamente ao Reino Unido. Já de um lado oposto, os países de inspiração romano-germânica não conjugam do mesmo entendimento, vez que defendem que tal punibilidade às pessoas jurídicas não pode ser aplicada, defendendo apenas a aplicação de sanções civis e administrativas com base no princípio do societas delinquere non potest (em português: A sociedade não pode delinqüir). Neste cenário de divergências, mister faz-se destacar que os adeptos a primeira corrente vem ganhando espaço nos dias atuais: Holanda, França e Dinamarca são claros exemplos, tendo, portanto, em alguns países europeus, a previsão da responsabilidade penal da pessoa jurídica em suas legislações. A atual “criminalidade moderna” justifica a tendência ao “favoritismo” de tal corrente, visto que a sociedade tem experimentando novas formas de criminalidade, cujos efeitos no mais das vezes são devastadores e irreparáveis (crimes ambientais, crimes industriais, tráfico internacional de entorpecentes, dentre outros). Portanto, diante de tantas divergências, torna-se plausível a reflexão acerca de tal tema.

1 Breve Histórico

Na Roma antiga não existia a figura da pessoa jurídica, embora já existissem grupos de pessoas as quais se reconheciam alguns direitos e deveres (universitas) diferente dos direitos e deveres individuais (singuli) e essa distinção já pode ser vista como uma “raiz” ao instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica.

No início da Idade Média, as corporações passaram a ter maior relevância econômica e política, e a partir de então, mesmo ainda não existindo a pessoa jurídica de fato, a responsabilidade penal da pessoa jurídica entra em cena, isso porque o conceito de corporação era “a soma e unidade de membros titulares de direitos[1] sendo que a tese adotada era a de que os direitos das corporações eram, ao mesmo tempo, direitos de seus membros. Portanto, o avanço alcançado na idade Média foi o de reconhecer direitos às corporações e admissão de sua capacidade delitiva.

Já os canonistas, representando a concepção da Igreja, afirmavam que os direitos não pertenciam aos membros da igreja, mas única e exclusivamente a Deus. Houve, então, a distinção da capacidade da corporação, que tinha na Igreja sua representante de maior importância da capacidade de seus membros.

Nesta nova teoria canonista, passou-se a sustentar que os titulares dos direitos eclesiásticos não são os membros da igreja, mas Deus, que era o representante de todos. Essa concepção concretiza o conceito de instituição eclesiástica, distinto do conceito de corporação adotado anteriormente, concebendo-a como pessoa sujeito de direito. Há, a partir de então, a distinção entre o conceito jurídico de pessoa e conceito real de pessoa como ser humano que origina o conceito de pessoa jurídica que, por ficção jurídica, passa a ter capacidade jurídica, sendo qualificada de um ser sem alma.

Por fim, o iluminismo e o Direito natural reduziram a importância do autoritarismo do Estado e da influência das corporações, modificando o modo de pensar.

A Revolução Francesa, através das conquistas democráticas, tornou incompatível a responsabilidade coletiva com a liberdade e autodeterminação do indivíduo. Essa mudança filosófica de concepção do indivíduo, do Estado e da sociedade conduzia, necessariamente, à aceitação única da responsabilidade individual, em detrimento da responsabilidade coletiva.

2 As teorias da ficção e da realidade

Duas foram as teorias criadas para definir os efeitos da responsabilidade penal da pessoa jurídica. A primeira foi a teoria da ficção, de Savigny, segundo a qual, as pessoas jurídicas têm existência fictícia, irreal ou de pura abstração – devido a um privilégio da autoridade soberana – sendo, portanto, incapazes de delinqüir (carecem de vontade e de ação). Desse modo, para a teoria da ficção, só o homem é capaz de ser sujeito de direitos. Não obstante as críticas, a posição doutrinária majoritária encontra fundamento na teoria da ficção. Segue esta teoria o mestre Damásio de Jesus:

“[…] a personalidade natural não é uma criação do direito, sendo que este a recebe das mãos da natureza, já formada, e limita-se a reconhecê-la. A personalidade jurídica, ao contrário, somente existe por determinação de lei e dentro dos limites por esta fixada. Faltam-lhe os requisitos psíquicos da imputabilidade. Não tem consciência e vontade própria. É uma ficção legal […]”[2]   

Por não haver livre arbítrio e vontade própria, os fatos por ela praticados são atípicos.

Já, a segunda teoria, a da realidade, de Otto Gierke, leciona que a pessoa moral não é um ser artificial criado pelo Estado, mas sim, um ente real (vivo e ativo), independente dos indivíduos que a compõem. Do mesmo modo que uma pessoa física, “atua como o indivíduo, ainda que mediante procedimentos diferentes e pode, por conseguinte, atuar mal, delinqüir e ser punida.”[3]

Quanto à teoria da realidade, segue a melhor doutrina: Vê na pessoa jurídica um ser real, um verdadeiro organismo, tendo vontade que não é, simplesmente, a soma de vontade dos associados, nem o querer dos administradores.”[4]. Esta corrente adapta-se aos princípios gerais do direito, pois, a partir dela, vislumbramos que a pessoa jurídica possui vontade própria, distinta dos seus associados, e, por conseqüência, tem capacidade para delinqüir.

3 Fundamentos da responsabilidade penal da pessoa jurídica

Vários são os requisitos para que se possa fundamentar a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Para identificar estes requisitos, necessário se faz o estudo da função do Direito Penal que é a proteção aos cidadãos contra atos delituosos e conseqüentes punições aos infratores, sejam eles pessoas jurídicas ou físicas. Este é o entendimento de Fernando Capez:

  Descumprindo o seu papel social e produzindo um dano a interesse da coletividade, visando a necessária defesa do bem agredido, a pessoa jurídica deverá integrar o pólo passivo do processo criminal e, de acordo com suas características, ser condenada a receber uma pena adaptada as suas condições.[5]

É bem verdade que a pessoa jurídica não pode ser punida com pena privativa de liberdade, entretanto, o Código Penal disciplina diversos outros meio de punição, tais como a multa, penas alternativas, interdições e etc.

A partir de então, possível é estudar tais requisitos. O primeiro diz respeito ao animus da infração, que deve ser praticado em interesse da pessoa jurídica com o objetivo de ser útil à finalidade do ser coletivo. A infração tem que estar, ainda, na esfera da atividade da empresa, portanto, estarão excluídas as que estiverem além do domínio normal da atividade da empresa (Aquelas que somente as pessoas físicas podem praticar – Ex. Homicídio, Estupro).

Haveria, portanto, uma restrição no leque de infrações que podem ser praticadas pela pessoa coletiva, pois “a exigência precípua passa a ser a de que esteja dentro do domínio normal de atividade da empresa.”[6]

E ainda, outro requisito diz respeito à abrangência, isto é, a prática deve ter o auxílio dos administradores que exercem cargos de poder da pessoa jurídica.

O ponto chave que caracteriza as infrações cometidas por pessoas jurídicas é o poder oculto, que provoca, na infração da pessoa coletiva, um volume e intensidade superior a qualquer infração da criminalidade tradicional. A vítima, em regra, não é uma pessoa singularmente considerada, pois o dano é difuso, isto é, atinge a própria sociedade.

Só é possível o cometimento de crime por pessoas jurídicas através da utilização dos esforços de várias pessoas, agrupadas sob um mesmo objetivo e utilizando-se de toda uma infra-estrutura e regras da empresa. Sem esse cenário, o cometimento do crime, no mais das vezes, não seria possível. Através das palavras de SHEICARA é possível aprofundar tal tese: 

“É o poder, que se oculta por detrás da pessoa jurídica, e a concentração de forças econômicas do agrupamento que nos permitem dizer que tais infrações tenham uma robustez e força orgânica impensáveis em uma pessoa física.”[7]

Adentra-se, agora, o âmbito processual, onde não há obstáculos para a não responsabilização, pois a comunicação dos atos processuais e a participação no processo podem se dar mediante representante legal. Ressalte-se que fundamental é entender que para fins processuais, o que interessa é a representação no momento do processo e não à época do fato.

Destaque-se que somente com a liquidação da empresa é que cessam as responsabilidades penais, pois apenas a dissolução, fusão, incorporação ou meras alterações estatutárias não ensejam essa responsabilidade, apesar de limitarem as possibilidades.

Por fim, a falta de previsões específicas seria suprida pela adoção, no que couber, do procedimento ordinário previsto.

A partir da exposição dos critérios e requisitos que a doutrina arrola como necessários à responsabilização penal da pessoa jurídica, vislumbra-se o porquê de tantas divergências, pois o Direito penal clássico não se constitui suficiente para o combate a este tipo de criminalidade.

4 Uma análise ao instituto a partir da Constituição Federal de 1988

Na Constituição Federal de 1988 constata-se nos artigos 173, § 5º e 225, § 3º, a previsão de responsabilização penal da pessoa jurídica, opinião essa, de parte da doutrina nacional.

JOSÉ AFONSO DA SILVA, afirma, taxativamente, que

(…)o disposto no artigo 173, § 5º, que prevê a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas, independente da responsabilidade de seus dirigentes, sujeitando-as às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica que tem como um de seus princípios a defesa do meio ambiente.[8]

Os dispositivos constantes da Constituição Federal de 1988 são estes:

“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em Lei. § 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados, aplicando-se relativamente os crimes contra o meio ambiente, o disposto no art. 202, parágrafo 5º.”

Apesar disso, muitos ainda comungam a idéia da limitação da responsabilidade penal à responsabilidade subjetiva e individual, a despeito da previsão constitucional.

Na própria Constituição Federal de 1988 os doutrinadores encontraram brechas para reforçar a contrariedade à responsabilização penal da pessoa jurídica no § 5º do artigo 173, da Constituição Federal, que afirma que as punições a que estão sujeitas as pessoas jurídicas serão compatíveis com sua natureza e responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica.

Diante deste cenário, observa-se que a Constituição condicionou a responsabilidade da pessoa jurídica à sanções compatíveis com a sua natureza (civil e administrativa), deixando a sanção penal excluída e, ainda, ressaltou que a responsabilidade pessoal dos dirigentes não se confunde com a responsabilidade da pessoa jurídica.

Em um outro aspecto, resta prejudicada a eficácia da penalização das pessoas jurídicas, pois a dificuldade probatória e as chamadas “empresas de fachada” alimentam o argumento. As pessoas jurídicas seriam punidas (aparentemente formais) e os verdadeiros responsáveis ficariam impunes.

Somente quando se puder identificar e individualizar quem são os autores físicos dos fatos típicos, antijurídicos e culpáveis, praticados em nome de uma pessoa jurídica, é que esses deverão ser responsabilizados penalmente.

Não deve haver rigidez a ponto de defender a idéia de que o Estado deve permanecer inerte diante de abusos cometidos pelas pessoas jurídicas, porém as sanções devem ser adequadas à natureza destes entes, isto significa dizer que as sanções civis e administrativas são muito mais eficazes do que uma mera sanção penal.

O doutrinador TIEDEMANN[9] relaciona cinco modelos diferentes de punir as pessoas jurídicas:

“a) responsabilidad civil (subsidiaria o cumulativa) de la persona jurídica moral por los delitos cometidos por sus empleados;

b) medidas de seguridad que forman parte del sistema moderno del derecho Penal sin negar su procedencia del Derecho Administrativo, incluso de policía;

c) sanciones administrativas (financieras y otras) impuestas por autoridades administrativas, pero profundamente reformadas recientemente em algunos países, bajo aspectos diversos para, en fin, formar un régimen "cuasi-penal";

d) verdadera responsabilidad criminal (re)introducida en Europa por varios Estados, y también conocida en Australia, en América del Norte y Japón, com la necesidad evidente de no desatender en derecho las diferencias de hecho que existen entre autor físico y persona jurídica;

e) medidas mixtas, de carácter penal, administrativo o civil, tales como la disolución de la agrupación o su colocación bajo curatela, medida conocida por ejemplo ya em derecho francés antes de la reciente reforma supramencionada, 1, y propuesta últimamente por movimientos de política criminal, por ejemplo en Alemania”.

Brilhante conclusão, neste mesmo sentido, é dada por MUÑOZ CONDE ao declarar que o Direito Penal dispõe de:

“[…] um arsenal de meios específicos de reação e controle jurídico-penal das pessoas jurídicas. Claro que estes meios devem ser adequados à própria atividade destas entidades. Não se pode falar de penas privativas de liberdade, mas de sanções pecuniárias; não se pode falar de inabilitações, mas sim de suspensão de atividades ou de dissolução de atividades, ou de intervenção pelo Estado. Não há, pois, porque se alarmar tanto, nem rasgar as próprias vestes quando se fale de responsabilidade das pessoas jurídicas: basta simplesmente ter consciência de que unicamente se deve escolher a via adequada para evitar os abusos que possam ser realizados.”[10]

5 A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica à luz da Lei de Crimes Ambientais (L nº 9605/98)

É certo que a Lei nº 9.605/98 trouxe grandes avanços para o Direito Ambiental no Brasil. As legislações anteriores acerca deste tema eram imperfeitas e sem nenhuma técnica, como leciona o professor LUIZ RÉGIS PRADO:

As Leis Penais Ambientais, mormente no Brasil, são, em sua maioria, excessivamente prolixas, casuísticas, tecnicamente imperfeitas, quase sempre inspiradas por especialistas do setor afetados, leigos em Direito, ou quando muito de formação jurídica não específica, o que as torna de difícil aplicação, tortuosas e complexas, em total descompasso com os vetores – técnico-científicos – que regem o Direito Penal Moderno.[11]

Esta nova lei editada em 1998 introduziu em nível de norma infraconstitucional a responsabilidade penal da pessoa jurídica no Direito brasileiro. Esta lei sofreu influência de legislações de outros países, como exemplo de Portugal e França.

Um dos maiores problemas encontrados nesta lei é que ela não distingue o tipo de pessoa jurídica que pode ser punida criminalmente pela prática de crimes previstos. Sendo assim, até mesmo as pessoas jurídicas de direito público podem ser responsabilizadas se incorrerem na pratica de algum dos delitos elencados na referida lei

A referida lei assim dispõe acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica, in verbis:

“Art. 3º – As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.

Parágrafo único – A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.”

Não obstante, ainda há a crítica de que a lei elencou mais de 40 tipos de figuras delituosas, quando se sabe, que sua maioria não passa de mera infração administrativa, ou, no máximo, uma contravenção penal.

Aliás, é a preocupação com a grande intervenção dos entes coletivos em atividades delituosas em certas áreas como a do meio ambiente, a do consumidor, a da economia, etc, que faz com que o ordenamento jurídico ofereça previsão para a efetiva aplicação de sanções extra penais (v.g. Lei 4.728/65, 4.729/65, Lei 7.492/86, Lei 5.197/67, Dec.-Lei 16/66, a própria Lei 9.605/98 e tantas outras). Basta aplicá-las adequadamente.

Conclusiva a opinião do Procurador da República do Rio de Janeiro Marcus Vinícius de Viveiros Dias:

Os crimes são cometidos pelos representantes legais, através da pessoa jurídica, mas não pela própria pessoa jurídica, tanto é verdade que mesmo aqueles que sustentam a viabilidade da pessoa jurídica praticar crimes ambientais, entendem que a hipótese seria de crime plurissubjetivo ou de concurso necessário, em conformidade com o artigo 3º, parágrafo único da Lei nº 9.605/98, o que somente corrobora a nossa tese, pois em verdade quem comete os delitos são as pessoas físicas, se utilizando de uma ficção jurídica que é a pessoa jurídica.[12]

 

Enfim, as modificações e as inovações nas ciências humanas não se revelam do dia para noite, pois se faz necessário traçar uma linha evolutiva e caminhar sobre ela para que daí possa surgir transformações que tutele, de fato, a sociedade.

6 As controvérsias doutrinárias

Como foi mencionado anteriormente, duas grandes correntes mundiais se formaram acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Uns são a favor da responsabilidade e outros, não. A seguir, analisam-se tais argumentos para que se possa, enfim, concluir acerca do tema.

Um dos maiores defensores da responsabilidade penal da pessoa jurídica é JOÃO MARCELO DE ARAÚJO JÚNIOR para quem a responsabilidade penal das pessoas jurídicas não pode ser entendida à luz da responsabilidade penal tradicional baseada na culpa, na responsabilidade individual, subjetiva, mas que deve ser entendida à luz de uma responsabilidade social.

A pessoa jurídica age e reage através de seus órgãos “cujas ações e omissões são consideradas como da própria pessoa jurídica.”[13].

A pessoa jurídica, criada para perseguir fins lícitos, previamente idealizados pelos seus membros pode, através de seus órgãos e no desempenho de seus fins institucionais, lesar bens jurídicos penais e, portanto, merecer atenção da ordem jurídica nacional.

O legislador brasileiro, atento a esta problemática e consciente da inadequação do sistema penal clássico para enfrentar determinadas espécies de criminalidade e, sobretudo, responsabilizar os principais agentes de sua prática, não apenas insculpiu os contornos jurídicos constitucionais da responsabilidade penal da pessoa jurídica como, também, conferiu-lhe aplicabilidade, através da instituição da Lei n.º 9.605/98.

Agora, após análise dos argumentos favoráveis à responsabilidade penal da pessoa jurídica, necessário se torna apontar os argumentos contrários.

Um dos principais doutrinadores contrários a responsabilidade penal da pessoa jurídica, René Ariel Dotti, discorre acerca dos argumentos que sustentam os seguidores deste entendimento, que serão abaixo sintetizados:

-A dificuldade em investigar e individualizar as condutas nos crimes de autoria coletiva situa-se na esfera processual, não na material;

-O princípio da isonomia seria violado porque a partir da identificação da pessoa jurídica como autora responsável, os partícipes, ou seja, os instigadores ou cúmplices poderiam ser beneficiados com o relaxamento dos trabalhos de investigação.

-O princípio da humanização das sanções seria violado, pois que a Constituição Federal trata da aplicação da pena. Refere-se sempre às pessoas, e também quando veda as penas cruéis.

-O princípio da personalização da pena seria violado porque referir-se-ia à pessoa, à conduta humana de cada pessoa.

-Direito de regresso. In verbis:

“A se aceitar a esdrúxula proposta da imputabilidade penal da pessoa jurídica, não poderia ela promover a ação de ressarcimento contra o preposto causador do dano, posto ser a co-responsável" pelo crime gerador do dever de indenizar. Faltar-lhe-ia legitimidade, pois um réu não pode promover contra o co-réu a ação de repa ração de danos oriunda do fato típico, ilícito e culpável que ambos cometeram .Corolário dessa conclusão é a regra do art. 270 do CPP: "O co-réu no mesmo processo não poderá intervir como assistente do Ministério Público”[14]

-O tempo do crime- quando o legislador definiu o momento do crime com base em uma ação humana, ou seja, uma atividade final peculiar às pessoas naturais.

-Nas formas concursais, quadrilha, os participantes se reúnem com este fim ilícito. Questiona se seria diferente na sociedade.

-O lugar do crime – não é possível estabelecer o local da atividade em relação às pessoas jurídicas que tem diretoria e administração em várias partes do território pátrio.Ainda que se pretendesse adotar a teoria da ubiqüidade, lugar do crime é o do dano haverá ainda intransponível dificuldade em definir onde foram praticados os atos de execução.

-Ofensa a princípios relativos à teoria do crime.

Considerações finais

Diante o exposto, conclui-se que o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica só pode ser inserido no sistema jurídico pátrio após este sistema passar por uma adaptação para recepcioná-la, pois o sistema penal pátrio está baseado apenas na responsabilidade penal da pessoa física.

Indiscutível que a pessoa jurídica que comete atos infracionais deva sofrer punições, porém, essas punições (que devem ser severas e exemplares) devem ficar restritas às administrativas e civis, que são as que melhores se encaixam na estrutura organizacional do Estado e atendem aos anseios da sociedade que é a principal vítima de todo e qualquer crime praticado pelas pessoas jurídicas, principalmente a partir da chamada “nova criminalidade”.

Deve-se continuar aplicando o Direito Penal como ultima ratio, isto é, em último caso, o que não é desejável na solução desses conflitos de massa provocados pelas pessoas coletivas.

A exemplo da França, se o legislador deseja realmente prever sanções penais, deve primeiro “preparar” o sistema já posto que é único e exclusivamente construído para a pessoa física.

Enfim, a previsão da responsabilidade penal da pessoa jurídica na Constituição Federal de 1988 e da lei n.º 9605/98 são de cunho administrativo, isso porque não se adaptam à dogmática penal quanto à culpabilidade e aplicação das penas.

Partindo para o plano prático da questão, a responsabilidade da pessoa jurídica já encontra previsão civil e administrativa que se mostra mais eficaz do que o Direito Penal, principalmente, porque a responsabilidade das pessoas físicas que ensejaram o fato, já está prevista no ordenamento jurídico penal.

 

Referências
ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello e SANTOS, Marino Barbero. A reforma penal: ilícitos penais econômicos. Rio de Janeiro : Forense, 1987.
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, in Coleção Temas Atuais de Direito Criminal, v. 2, São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 1999.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. v. 1. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
CONDE, Muñoz; GARCIA, Arán. Derecho Penal, Valência, 1996, p.16, apud BITTENCOURT, Cezar Roberto. Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, in Coleção Temas Atuais de Direito Criminal, v.2, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
DIAS, Marcus Vinicius de Viveiros. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: Avanço ou retrocesso?. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br> Acesso em 18 out. 2006.
DOTTI, René Ariel. A incapacidade criminal da pessoa jurídica, in Cadernos de Ciências Criminais nº.11, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
GIERKE, Otto, apud PRADO, Luiz Régis. Direito Penal Ambiental, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992.
JESUS, Damásio de. Direito Penal, v. 1, 23 º ed., São Paulo: Saraiva, 1999.
PRADO, Luiz Regis.  Direito Penal Ambiental (Problemas Fundamentais), São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 2005.
TIEDMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas em Derecho Comparado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 11, 1995.
 
Notas:
[1] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: Coleção Temas atuais de Direito Criminal, v. 2, São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 1999.

[2] JESUS, Damásio de. E. de. Direito Penal, v. 1, 23  ed., São Paulo: Saraiva, 1999 p. 168.

[3] 4GIERKE, Otto, apud PRADO, Luiz Régis. Direito Penal Ambiental.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992, p. 81.

[4] JESUS, Damásio de, op. cit., p. 168

[5] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. v. 1. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2001 p. 129

[6] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p.100.

[7] SHECAIRA, Sérgio Salomão, op., cit.,  p.101.

[8] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 2005,  p. 718.

[9] SHECAIRA, Sérgio Salomão, op., cit.,  p.101.

[10] MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCIA, Arán. Derecho Penal, Valência, 1996, p.16, apud BITTENCOURT, Cezar Roberto,.Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: Coleção Temas Atuais de Direito Criminal, v.2, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 69-70

[11] PRADO, Luiz Regis.  Direito Penal Ambiental (Problemas Fundamentais), São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992, p.40

[12] DIAS, Marcus Vinicius de Viveiros. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: Avanço ou retrocesso? Disponível em: < http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 18 out. 06

[13] ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello;  SANTOS, Marino Barbero. A reforma penal: ilícitos penais econômicos. Rio de Janeiro: Forense, 1987.ps.57-58

[14] DOTTI, René Ariel. A incapacidade criminal da pessoa jurídica. In: Cadernos de Ciências Criminais nº.11, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.ps.185/207


Informações Sobre o Autor

Anny Ramos Viana

Advogada Professora do Curso de Graduação em Direito da Faculdade Santo Antônio de Pádua RJ; Mestranda em Ciências da Educação pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia de Lisboa PT Pós Graduada em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Iguaçu Unig RJ; Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Campos RJ


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