A Revogação do artigo 290 do Código Penal Militar pelas Convenções Internacionais sobre Entorpecentes de Nova York (1961) e Viena (1971 e 1988) e a aplicação da Lei 11.343/06

Resumo: O artigo 290 do Código Penal Militar, que tipifica o porte/posse de substância entorpecente no âmbito da administração militar, não mais corresponde à Política Criminal vigente no País e a muito se encontra revogado tacitamente tanto por força da incorporação ao ordenamento jurídico interno das Convenções Internacionais de Nova York (1961) e Viena (1971 e 1988) quanto, posteriormente, pela promulgação Leis 6.368/1976 e 11.343/2006.

Palavras-chave: 290. Militar. Droga. Entorpecente. Revogação.

Abstract: The article 290 of the Military Penal Code, which criminalizes the possession of narcotic substance under the military administration, no longer corresponds to the Criminal Policy in force in the country and is very much impliedly repealed by virtue of incorporation into the domestic legal system of the International Conventions of New York (1961) and Vienna (1971 and 1988) and later by the enactment of laws 6.368/1976 and 11.343/2006.

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Keywords: 290. Military. Drugs. Numbing. Revocation.

Sumário: Introdução. Desenvolvimento. Conclusão

Introdução

O Código Penal Militar, instituído por Decreto pela Junta Militar que exercia o poder no país em 21/10/1969[1], apesar de ter introduzido à época institutos progressistas só posteriormente incorporados à legislação penal comum[2], possui excessiva severidade, estando com inúmeros dispositivos não recepcionados pela nova ordem jurídica criada pela Constituição Federal de 1988.

Entretanto, em virtude do esquecimento pela sociedade da existência de tal arcabouço jurídico militar, nossos legisladores, impulsionados pelo processo de evolução e transformação social, ao criar novas leis alteradoras do sistema penal comum, deixam de mencionar o seu correlato no Código Penal Castrense.

Tal situação deixa a entender, erroneamente, em alguns intérpretes da lei, que tais correlatos, não revogados expressamente, ainda estariam em vigor. Contudo, nenhum dispositivo pode ser analisado individualmente, sendo que a interpretação da norma deve-se levar em conta todo o sistema jurídico a qual ela se insere.

Desenvolvimento

Um exemplo desta celeuma jurídica é a interpretação dada ao art. 290 do referido Codex Militar, que tipifica a posse de substância entorpecente, tratando com o mesmo rigor o usuário e o traficante de drogas.

Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar

Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, até cinco anos.”

Claro está que tal tipo penal não mais corresponde à Política Criminal vigente no País. Além disso, a muito se encontra revogado tacitamente tanto por força da incorporação das Convenções Internacionais sobre Entorpecentes de Nova York (1961) e Viena (1971 e 1988) ao ordenamento jurídico interno quanto, posteriormente, pela promulgação Leis 6.368/1976 e 11.343/2006.

Com efeito, na edição do Código Penal de 1941, a conduta de posse de substância entorpecente para o consumo próprio não era considerado infração penal. Somente com o advento do Decreto-Lei 365/1968 o legislador a erigiu à qualidade de crime.

Porém, observou-se que, juntamente com a criminalização, o delito de posse de drogas para uso próprio passou a ser reprimida com pena idêntica ao tráfico de substâncias entorpecentes (1 a 5 anos de reclusão). Confira-se o inciso III do §1º do art. 281 do Código Penal, na redação conferida pelo mencionado Decreto-Lei 365/1968:

“Art. 281. Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor a venda, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou de desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de um a cinco ano, e multa de 10 a 50 vêzes o maior salário-mínimo vigente no país.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem ilegalmente: […]

III – traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.”

Esta forma de tratamento conferida ao porte e tráfico de drogas, que correspondia aos anseios da Política Criminal vigente à época (1968), fora transportada também ao Código Penal Militar (CPM), publicado no ano seguinte (1969).

Nesse sentido, a reprimenda contida do art. 290 do CPM ficou a mesma do tipo previsto no art. 281 do Decreto-Lei nº 385/1968. Nada mais natural, dado que o legislador, à época, não percebia a diferença do impacto social e da gravidade da conduta do usuário e traficante.

Contudo, o amadurecimento quanto à questão do problema relacionado às drogas, decorrentes de aprofundados estudos patrocinados pela Organização Mundial de Saúde em relação aos efeitos destas substâncias no indivíduo, deram início a definição de novas políticas públicas.

Neste particular, cabe ressaltar o estudo organizado e publicado pela Organização Mundial de Saúde, intitulado de “Neurociências: consumo e dependência de substâncias psicoativas”, que teve como objeto central os mecanismos cerebrais envolvidos no consumo de drogas, considerando, ainda, os fatores sociais e ambientais relacionados ao problema que, por sua gravidade e consequências, demandaria a intervenção do Estado em todo o mundo.

Nesta pesquisa, concluiu-se que é produto de consenso da comunidade científica internacional, o entendimento de que o consumo e a dependência de drogas lícitas e ilícitas dependem de fatores de natureza biológica e genética, e não constitui “uma simples falta de vontade ou de desejo de se libertar”. Outro ponto unívoco reconhece que “o preconceito associado ao consumo e à dependência de substâncias psicoativas pode impedir procura de tratamento assim como a implementação de políticas adequadas relacionadas com prevenção e tratamento” (OMS, p. 7). Ainda restou evidenciado que:

“A dependência de substâncias não foi reconhecida previamente como um transtorno do cérebro da mesma maneira que as doenças psiquiátricas e mentais também não o foram. Contudo, com os progressos recentes em neurociências, é evidente que tal dependência é um transtorno cerebral tanto quanto como qualquer doença neurológica ou psiquiátrica. Novas tecnologias de investigação permitem visualizar e medir alterações na função cerebral desde o nível molecular e celular a alterações em processos cognitivos complexos que ocorrem com o consumo de substâncias a curto e a longo prazo.” (grifo nosso).

Nesse compasso, baseado nos novos estudos que surgiam no meio científico, novas políticas públicas para o combate ao uso de drogas começaram a ser discutidas no âmbito da “Convenção Única sobre Entorpecentes”, assinada em Nova York em 30 de março de 1961, ratificada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 05/1964 e com obrigatoriedade de execução interna formalizada pelo Decreto 54.216/1964.

Já no preâmbulo da referida Convenção, ficou consignado que “as medidas contra o uso indébito de entorpecentes, para serem eficazes, exigem uma ação conjunta e universal”. Também se reconheceu expressamente “a competência das Nações Unidas em matéria de controle de entorpecentes”, conferida tal atribuição à “Comissão de Entorpecentes do Conselho Econômico e Social” e ao “Órgão Internacional de Fiscalização de Entorpecentes” (art. 5º).

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Quanto às disposições penais, verificou-se que o artigo 36, item 1, daquela Convenção, priorizara a criminalização apenas das “infrações graves”. De modo que, quanto às situações envolvendo o uso de drogas, no seu artigo 38, recomendou-se, taxativamente, o “Tratamento de Toxicômanosin verbis:

“1. As Partes darão especial atenção à concessão de facilidades para o tratamento médico, o cuidado e a reabilitação dos toxicômanos.” (grifo nosso)

Enfatize-se, desde logo, que as convenções subsequentes não só mantiveram esta linha de orientação como também evoluíram para a priorização da assistência médica no caso de usuários. Vejam-se a propósito seus contextos:

“Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas – Viena – 21.02.1971 – Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 90, de 05.12.1972 – Vigência pelo Decreto nº 79.388, de 14.03.1977.

Artigo 20 – Medidas contra o abuso de substâncias psicotrópicas

1. As partes tomarão todas as medidas viáveis para impedir o abuso de substâncias psicotrópicas e para a pronta identificação, tratamento, pós-tratamento, educação, reabilitação e reintegração social das pessoas envolvidas, e deverão coordenar seus esforços para tais fins.”

“Convenção contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas – Viena – 20.12.1988 – Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 162, de 14.06.1991 – Vigência pelo Decreto nº 154, de 26.06.1991.

Artigo 14 – Medidas para erradicar o cultivo ilícito de plantas das quais se extraem entorpecentes e para eliminar a demanda ilícita de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas

4. As Partes adotarão medidas adequadas que tenderão a suprimir ou reduzir a demanda ilícita de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas com vistas a diminuir o sofrimento humano e eliminar incentivos financeiros ao tráfico ilícito. Aquelas medidas poderão fundamentar-se, inter alia, em recomendações das Nações Unidas, tais como a Organização Mundial da Saúde e outras organizações internacionais competentes e no Plano Amplo Multidisciplinário aprovado pela Conferência Internacional sobre o Uso Indevido e o Tráfico Ilícito de Drogas, celebrado em 1987, na medida em que se relacione com os esforços das organizações governamentais e não governamentais e de entidades privadas no âmbito da prevenção, tratamento e reabilitação”(grifo nosso).

Assim, o legislador pátrio, ciente da necessidade de compatibilização das normas internas com os citados diplomas internacionais, editou a Lei 6.368/76, passando a culminar penas diferentes para o usuário e traficante.

Posteriormente, a Lei 11.343/06 manteve o mesmo caráter ideológico introduzido pela Lei 6.368/76, passando a prever tão-somente penas restritivas de direito ao usuário e agravando ainda mais a sanção a ser aplicada ao traficante (pena de 5 a 15 anos de reclusão).

Vale ressaltar que tais convenções internacionais integraram o nosso ordenamento jurídico interno com força de lei ou, conforme novo entendimento consolidado na Suprema Corte, status de norma supralegal.

De fato, as referidas leis 6.368/76 e 11.343/06 só surgiram no sentido de regulamentar situação já consolidada, visto que, desde a assinatura dos mencionados tratados, a parte relativa aos usuários, correspondente aos arts. 281 do CP e 290 do CPM, já estavam tacitamente revogadas.

Todas estas modificações foram reflexos dos anseios da sociedade hodierna, que reconheceu a vulnerabilidade do usuário e uma maior gravidade na conduta praticada pelo traficante. Outrossim, as atualizações legislativas foram necessárias e, por assim dizer, compulsórias, pois, caso contrário, sujeitaria o Estado Brasileiro às devidas sanções perante a Ordem Internacional, em face das regras impostas pelas Convenções de Direito Internacional.

Assim, a revogação do mencionado dispositivo do Código Penal Militar é produto de dedução sistemática, especialmente na parte em que penaliza as ações de porte e uso de drogas para o consumo próprio. Insistir na aplicação de pena privativa de liberdade em tais casos é negar a adesão à ordem internacional, ou pior, permanecer no obscurantismo injustificável de negação da evolução da ciência, condenando doentes ao cárcere[3].

O porte de droga por um dependente químico é inevitável, uma vez que o seu uso diário corresponde a uma necessidade fisiológica. Seria uma incoerência criminalizar uma conduta em que o sujeito não possui vontade livre para evitá-la.

Ressalte-se, ainda, que o delito de porte/posse de drogas está inserido dentro do capítulo referente aos “Crimes contra a Saúde” no CPM. Por tal razão, tendo em vista que o objeto jurídico tutelado pela referida norma penal é a “saúde” e a “incolumidade pública”, o próprio Código Penal Castrense editado em 1969 já tratava o sujeito ativo do crime como possível enfermo.

Por outro lado, mesmo para os defensores de que o simples fato de porte de drogas dentro do estabelecimento prisional já configuraria infração, o caso deveria ser resolvido na seara do Direito Administrativo Militar, o que preservaria, in totum, os princípios basilares das Forças Armadas (hierarquia e disciplina), uma vez que a sanção administrativa já se mostraria razoável para o fato praticado pelo Acusado.

De fato, considerando o toxicômano portador de enfermidade, ele deve ser considerado inapto para o serviço militar obrigatório e, por conseguinte, excluído das fileiras das Forças Armadas e encaminhado para o devido tratamento da saúde, conforme as disposições do art. 138, “2”, combinado com o art. 140, “6”, todos da Lei 57.654/66 (Regulamento da Lei do Serviço Militar), os quais deveriam ser aplicados integralmente ao caso em tela:

“Art. 138. O serviço ativo das Forças Armadas, será interrompido:

2) pela desincorporação;

Art. 140. A desincorporação ocorrerá:

6) por moléstia ou acidente, que torne o incorporado temporàriamente incapaz para o Serviço Militar, só podendo ser recuperado a longo prazo.

§ 6º No caso do número 6 deste artigo em que o incorporado fôr julgado "Incapaz B-2", será êle desincorporado e excluído, fazendo jus ao Certificado de Dispensa de Incorporação, com inclusão prévia no excesso do contingente, ou ao Certificado de Reservista, de acôrdo com o grau de instrução alcançado. Terá aplicação, no que fôr cabível, o disposto no parágrafo 2°, dêste artigo.”

Conforme se vê do texto supratranscrito, emerge um dever legal para a autoridade militar de providenciar a constante verificação da capacidade mental e física dos seus subordinados. Simultaneamente, advém um direito impostergável do militar em ser avaliado em tais condições e ser encaminhado para o tratamento, se for o caso, nas situações do militar estável dependente químico, da mesma forma que aconteceria com um alcoólatra.

Tais entendimentos expostos até aqui são corroborados por Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel:

“Por tal razão é que pensamos também (embora não seja este o objetivo do presente artigo) que o delito de porte de drogas capitulado no art. 290 do CPM foi tacitamente revogado pelo art. 28, caput, da Lei 11.343/06. O delito do artigo 290 do CPM está em total dissonância com a política legislativa atual, referente ao usuário de drogas. Aquele que coloca em perigo o bem jurídico, saúde pública, mas na condição de usuário e/ou dependente (não de traficante), é sancionado com medidas preventivas e educativas (art. 28, I a III da Lei de Drogas), não com pena de prisão.” (GOMES, Luiz Flávio. MACIEL, Silvio, 2010)

E ainda, para elucidar melhor a questão, transcreve-se a lição do professor Esdras dos Santos Carvalho:

“O que nos interessa, de imediato, no tocante a legislação penal e processual penal militar, é o artigo 40, inciso III da novel legis. Este inciso determina a aplicação expressa das disposições penais e processuais da nova legislação na esfera da Justiça Militar, ad litteram:

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:

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I – (omissis);

II – (omissis);

III – a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;

Ora, se a nova legislação determina, expressamente, a aplicação do aumento de pena de um sexto a dois terços para os delitos praticados nas dependências ou imediações de unidades militares ou policiais é porque quis o legislador, expressa e enfaticamente, que as regras da mencionada norma também se aplicassem àquelas Instituições, por terem tratamento mais benéfico e estarem em consonância com os anseios sociais, em respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, valores estes consagrados no texto constitucional.

Dessa forma, vislumbramos apenas, no momento, dois posicionamento a serem firmado pela Justiça Militar. O primeiro, que não é o mais coerente com a sistemática processual, é a recusa a aplicabilidade da nova legislação na Justiça Militar, no entanto, esta atitude leva à incompetência absoluta desta Justiça em relação aos delitos relacionados com o tráfico e uso de entorpecentes. Isto porque a lei em comento foi enfática ao afirmar a aplicabilidade, inclusive com aumento de pena, para os delitos praticados no seio das Instituições policiais e militares. Assim, recusando-se em aplicar a nova lei, ocorrendo a prática das condutas descritas na legislação de entorpecentes, em debate, deverão os autos ser remetidos às Justiças Comuns.

O segundo posicionamento, é pela aplicabilidade plena da novel legis de tóxico na seara militar, adaptando, contudo, o rito processual às disposições da Justiça Militar, como veremos adiante. (CARVALHO, Esdras dos Santos)” (grifo nosso)

Registre-se, ainda, a aplicação do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, uma vez que a Lei nº. 11.343/2006 dispôs de maneira mais benéfica no que tange ao delito de porte de drogas.

O Supremo Tribunal Federal também já decidiu neste sentido, onde o Ministro Eros Grau, ao relatar o Habeas Corpus nº 94524/DF, admitiu a aplicabilidade do Princípio da Insignificância e da Lei 11.343/06, in casu, ao proceder à confrontação do princípio da especialidade da lei penal militar, com o princípio da dignidade da pessoa humana, arrolado na Constituição do Brasil como princípio fundamental, in verbis:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. USO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA MILITAR. ART. 1º, III DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 1. Paciente, militar, preso em flagrante dentro da unidade militar, quando fumava um cigarro de maconha e tinha consigo outros três. 2. Condenação por posse e uso de entorpecentes. Não-aplicação do princípio da insignificância, em prol da saúde, disciplina e hierarquia militares. 3. A mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica constituem os requisitos de ordem objetiva autorizadores da aplicação do princípio da insignificância. 4. A Lei n. 11.343/2006 — nova Lei de Drogas — veda a prisão do usuário. Prevê, contra ele, apenas a lavratura de termo circunstanciado. Preocupação, do Estado, em mudar a visão que se tem em relação aos usuários de drogas. 5. Punição severa e exemplar deve ser reservada aos traficantes, não alcançando os usuários. A estes devem ser oferecidas políticas sociais eficientes para recuperá-los do vício. 6. O Superior Tribunal Militar não cogitou da aplicação da Lei n. 11.343/2006. Não obstante, cabe a esta Corte fazê-lo, incumbindo-lhe confrontar o princípio da especialidade da lei penal militar, óbice à aplicação da nova Lei de Drogas, com o princípio da dignidade humana, arrolado na Constituição do Brasil de modo destacado, incisivo, vigoroso, como princípio fundamental (art. 1º, III). 7. Paciente jovem, sem antecedentes criminais, com futuro comprometido por condenação penal militar quando há lei que, em vez de apenar — Lei n. 11.343/2006 — possibilita a recuperação do civil que praticou a mesma conduta. 8. Exclusão das fileiras do Aeronáutica: punição suficiente para que restem preservadas a disciplina e hierarquia militares, indispensáveis ao regular funcionamento de qualquer instituição militar. 9. A aplicação do princípio da insignificância no caso se impõe, a uma, porque presentes seus requisitos, de natureza objetiva; a duas, em virtude da dignidade da pessoa humana. Ordem concedida” (grifo nosso).

Por derradeiro, importante salientar que a Constituição da República do Brasil, em diversos dispositivos, traduziu a intenção do legislador constituinte de que a Política Criminal de combate às drogas deve ser diferenciada no que tange à ação dos traficantes e à conduta dos usuários e dependentes dessas substâncias danosas. Seguem transcritos os citados dispositivos constitucionais:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

LI – nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

II – prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 3º – O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

VII – programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.

Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.”

Em outras palavras, a Carta Magna de 1988 fez a clara opção no sentido de que a repressão penal deve recair tão-somente nas pessoas que praticam o crime de tráfico de drogas e não naquelas que se encontram classificadas como usuárias ou dependentes dessas substâncias. Neste caso, estas pessoas devem ser encaradas como um problema de saúde pública e não como criminosas, demonstrando-se, assim, que o Código Penal Militar, datado de 1969, não se coaduna mais com o sistema constitucional, instituído há mais de 20 anos.

Conclusão

Conclui-se, portanto, que o art. 290 do Código Penal Militar não faz a devida distinção entre a figura do usuário frente à do traficante, tratando condutas de gravidades diferentes com penas iguais. Assim, além de configurar uma visão ultrapassada de Política Criminal e uma violação do Princípio da Proporcionalidade das Penas, tal artigo foi revogado pela incorporação das Convenções Internacionais de Nova York e Viena ao ordenamento jurídico interno do país, posteriormente confirmadas pelas Leis nº 6368/76 e 11.343/06.

 

Referência:
ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Codigo Penal Militar: comentários, doutrina, jurisprudência dos tribunais militares e tribunais superiores. São Paulo: Juruá, 6ª Edição, 2010.
Organização Mundial da Saúde. Neurociências: consumo e dependência de substâncias psicoativas. Disponível em http://www.who.int/substance_abuse/publications/en/Neuroscience_P.pdf.
Convenção Única sobre Entorpecentes, assinada em Nova York, a 30 de março de 1961. Disponível em: http://www.unodc.org/pdf/brazil/Convencao%20Unica%20de%201961%20portugues.pdf
Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas – Viena – 21.02.1971. Disponível em: http://www.obid.senad.gov.br/portais/internacional/conteudo/index.php?id_conteudo=11247&rastro=ONU/Conven%C3%A7%C3%B5es
Convenção contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas – Viena – 20.12.1988. Disponível em: http://www.obid.senad.gov.br/portais/internacional/conteudo/index.php?id_conteudo=11247&rastro=ONU/Conven%C3%A7%C3%B5es
GOMES, Luiz Flávio. MACIEL, Silvio. "Porte de drogas no ambiente militar, princípio da insignificância e bem jurídico penal. Disponível em http://www.lfg.com.br – 22 de novembro de 2010
CARVALHO, Esdras dos Santos. Artigo: A Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006 – Nova Lei de Tóxico – revoga o artigo 290 – tráfico, uso e posse de entorpecente – do Código Penal Militar e repercute na Justiça Militar. Disponível em www.jurid.com.br

Notas:
[1] Logo após o AI 16 de 14.10.1969, que declarou vago os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República.
[2] Estado de Necessidade Esculpante (art. 39 do CPM), Sistema do Duplo Binário (art. 48 do CPM), Previsão expressa do Princípio da Insignificância (art. 240 e §§ do CPM), e a delação premiada (art. 152 do CPM)
[3] O Código Internacional de Doenças chegou até a criar disposição específica que fixa o diagnóstico da dependência química (CID-10), o que deixa claro que tal condição é considerada uma patologia que deve ser tratada e não combatida com prisão.


Informações Sobre o Autor

Lucio Ferreira Guedes

Defensor Público Federal, Titular do 2º Ofício Criminal Militar e Conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal.


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