A seletividade do sistema penal brasileiro

Resumo: O presente artigo trata como problemática de investigação, a seletividade do Sistema Penal brasileiro, para tanto buscou-se juntar considerações importantes sobre esse sistema, bem como sobre seu discurso (des)legitimador e sobre as principais teorias que criticam o modus operandi da máquina coercitiva. Pretende-se, assim, ressaltar os pontos onde pode-se verificar claramente o fracasso do sistema penal. São eles: a sua estrutura, o seu discurso, as suas funções e o tratamento.[1]


Palavras-chave: Sistema Penal Brasileiro. Seletividade. Prevenção. Etiquetamento.


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1. Sistema Penal: Conceito e Estrutura


Trata-se de um controle social punitivo institucionalizado que atua desde a ocorrência (ou suspeita de ocorrência) de um delito até a execução da pena. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p. 69)


Basicamente o Sistema Penal divide-se em três segmentos: policial, judicial e executivo. Segundo Nilo Batista (2007, p. 25), o Sistema Penal compõe-se pela instituição policial, instituição judiciária e instituição penitenciária, esse grupo de instituições seria o responsável pela materialização do Direito Penal, ainda, seguindo o raciocínio do autor, essas instituições se revelam em três nítidos estágios: a polícia como responsável pela investigação dos crimes, o Promotor representando a Justiça Pública, o Juiz no papel de “aplicador da lei”, e no último estágio, se condenado o réu a uma medida privativa de liberdade, a instituição penitenciária.


Em que pese normalmente esses grupos dividirem-se por etapas, não obedecem necessariamente uma ordem cronológica, nem são totalmente independentes entre si, eis que podem atuar e/ou interferir em diversos momentos uns nos outros. Assim, conforme explicam Zaffaroni e Pierangeli “o judicial pode controlar a execução, o executivo ter a seu cargo a custódia do preso durante o processo, o policial ocupar-se das transferências de presos condenados” (2011, p. 70-71).


Zaffaroni e Pierangeli irão incluir também, como componentes desse sistema, os legisladores e o público. Os legisladores atuando na configuração do sistema e o público com a faculdade de colocá-lo em funcionamento através da delação (2011, p. 71).


Ainda quanto à divisão do Sistema Penal, a partir dessa visão mais ampla, alguns autores irão falar em Sistema Penal Informal e Sistema Penal Formal. O primeiro tem como agentes a família, a escola, a opinião pública, entre outras, já o segundo seria a divisão básica mencionada no início do capítulo (policial, judicial e executivo). Molina (2002, p. 134) trata dessa divisão:


“Os agentes de controle social informal tratam de condicionar o indivíduo, de discipliná-lo através de um largo e sutil processo […] Quando as instancias informais do controle social fracassam, entram em funcionamento as instâncias formais, que atuam de modo coercitivo e impõem sanções qualitativamente distintas das sanções sociais: são sanções estigmatizantes que atribuem ao infrator um singular status (de desviados, perigoso ou delinqüente)”


Em resumo, o Sistema Penal é composto pelas instâncias informais e formais, as informais são a família, a escola, a opinião pública, entre outras e as formais são os legisladores, os policiais, o Poder Judiciário, o Ministério Público, e as instituições penitenciárias.


2. Discurso e Operacionalidade


Analisando o Sistema Penal brasileiro, conforme apresentam os autores, pode-se, num primeiro momento, ter-se a idéia de um sistema de controle social justo e eficaz. Assim vejamos: um indivíduo comete um ilícito, é investigado, a investigação é formalizada iniciando-se pelo inquérito policial, revestida de provas e depoimentos de testemunhas, o inquérito é encaminhado à Promotoria de Justiça, a denúncia é ofertada ao Juiz, o processo é instaurado, resguardados todos os direitos ao acusado, inclusive a ampla defesa e o contraditório, o réu é julgado e condenado, da sentença é possível recurso e quando fixada a pena, se privativa de liberdade, o réu será encaminhado a uma instituição penitenciária, e enquanto sob a tutela estatal todos os seus direitos serão garantidos, de lá o indivíduo regressa à sociedade, devidamente ressocializado e pronto para ter uma vida digna como qualquer outro cidadão, concluindo-se, dessa forma, um ciclo sistemático.


Ocorre que, em apenas uma análise superficial, logo nota-se que a realidade do Sistema Penal brasileiro não se encaixa aos moldes desse discurso. Como bem diz Zaffaroni “achamo-nos, em verdade, frente a um discurso que se desarma ao mais leve toque com a realidade” (2001, p. 12). Nilo Batista, também vai falar da falsa operacionalidade do sistema penal, referindo a seletividade, a repressividade e a estigmatização como características nucleares do Sistema Penal:


“[…] Assim, o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas […] O Sistema penal é também apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade […] quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais, legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana […] quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela. […]” (2007, p. 25-26)”


O discurso jurídico que pretende a legitimação do Sistema Penal apóia-se na retribuição e ressocialização, como bem observam Zaffaroni e Pierangeli “por um lado buscaria a ‘ressocialização’ do apenado e, por outro, advertiria aos demais sobre a inconveniência de imitar o delinquente” (2011, p. 72).


 Entretanto, devido à separação de funções entre os grupos que compõem a estrutura do Sistema Penal revela-se praticamente impossível que esse sistema funcione em sintonia.


“[…] a polícia atua ignorando o discurso judicial e a atividade que o justifica; a instrução, quando é judicial, ignora o discurso e a atividade sentenciadora; a segunda instância ignora as considerações da primeira que não coincidem com seu próprio discurso de maior isolamento; o discurso penitenciário ignora todo o resto. Cada um dos segmentos parece pretender apropriar-se de uma parte maior do sistema, menos o judicial, que vê retalhadas suas funções sem maior alarme” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p. 72)


Além disso, Zaffaroni e Pierangeli aduzem que a função social desempenhada pelo Sistema Penal é substancialmente simbólica, ou seja, que “a sustentação da estrutura do poder social por meio da via punitiva é fundamentalmente simbólica” (2011, p. 76).


Sendo assim, não é difícil inferir que o Sistema Penal de forma alguma alcançará com êxito suas principais funções oficiais quais sejam a prevenção e o tratamento do crime.


3. Prevenção


Uma das principais teorias legitimadoras do Sistema Penal é a prevenção do crime, em caráter geral ou especial.


A prevenção geral corresponde a uma ameaça abstrata de castigo, prevista na tipificação do crime. Nessa corrente a cominação da pena atua como uma forma de intimidar o cidadão que almeja cometer um crime. Para Feuerbach, (apud BITTENCOURT, 2011, p.107) “a pena é, efetivamente, uma ameaça da lei aos cidadãos para que se abstenham de cometer delito; é, pois, uma ‘coação psicológica’ com a qual se pretende evitar o fenômeno delitivo […]”.


“Esta forma de prevenir, através da intimidação abstrata do castigo nas normas penais que tipificam os fatos delitivos, se chama prevenção geral. O antigo princípio conforme o qual uma pessoa racional castiga o fato injusto cometido para evitar fatos similares no futuro compreende também, portanto, uma teoria preventivo-geral da pena. O delito futuro não só se pode esperar de quem já o tenha cometido alguma vez e que deve, por isso, ser ressocializado ou inoicuzado para evitar que volte a cometê-lo, mas também dos demais, sobre os quais deve incidir, para evitar que cheguem a cometê-lo […] (CONDE; HASSEMER, 2008, p. 234-235).”


A prevenção especial alcança apenas o delinquente no caso concreto, visando, em suma, evitar a reincidência:


“A teoria da prevenção especial individual aduz, em sua vertente positiva, que a finalidade última das sanções penais, bem em sua forma de penas propriamente ditas, bem nas medidas de segurança e reabilitação, deve ser a reinserção social ou a ressocialização do delinqüente, evitando dessa forma que, uma vez cumprida sua pena, volte a delinqüir. Há também uma versão puramente negativa dessa teoria, segundo a qual a pena deve pretender a inocuização (incapacitação) do delinqüente […] (CONDE; HASSEMER, 2008, p. 179).”


Ocorre que há muito tempo essas teorias vêm sofrendo críticas acerca de sua legitimidade:


“A norma penal, embora pretenda dissuadir comportamentos delituosos (função de prevenção geral ou especial), não se presta, em verdade, a esse fim, pois ninguém se abstém de praticar crimes em atenção à possibilidade de sofrer a incidência do aparato repressivo, vale dizer, a norma penal não intervém no processo motivacional de formação da vontade de delinqüir, já que, quando alguém se abstém de praticar crime, assim o faz por motivo de outra ordem (moral, religioso, cultural etc.) que não o sistema penal. Já a prevenção especial é um mito, uma vez que a prisão – a mais característica sanção dos sistemas penais contemporâneos – não ressocializa nem redime o criminoso, antes o dessocializa, embrutece, estigmatiza (QUEIROZ, 2001, p. 62).”


Mesmo pressupondo que as teorias preventivas pudessem ser realmente eficazes, elas não encontram suporte nos segmentos do Sistema Penal. Em se tratando da prevenção geral, notória é a tendência que tem o legislador em direcionar a tipificação dos crimes para as condutas praticadas por determinadas classes, e, no que tange a prevenção especial, pelas condições subumanas do nosso sistema prisional, inviável falar-se em caráter ressocializador.


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“[…] a intervenção penal revela-se claramente inadequada, porque constitutiva de simples castigo, que nada resolve; antes agudiza um processo de exclusão e marginalização social, pois trabalha com falsas imagens da realidade e acaba por coisificar o conflito; desumanizando-o em nome de um sistema que, embora abstratamente possa parecer coerente e justo; concretamente se auto-deslegitima, por encerrar uma resposta maquinal a um problema demasiado humano, e para o qual desserve, simplesmente porque não se destina a máquinas, mas a homens; e o homem, e não o sistema ou a lei, há de ser sempre a medida de todas as coisas (Protágoras)! (QUEIROZ, 2008, p. 137).”


Dessa forma, em lugar de prevenir o crime, obviamente, o Sistema Penal é um sistema condicionante e reprodutor de violência.


A teoria do labbelling aproach, ou teoria do etiquetamento, aponta isso de forma bastante clara.


4. Teoria do Etiquetamento


A teoria do etiquetamento surgiu na década de 60, nos Estados Unidos, segundo HERRERO (apud AGUIAR, p. 2) “se trata de uma corrente criminológica próxima à criminologia radical de cunho marxista, mas sem compartilhar, ao menos necessariamente, o modelo de sociedade configurado por esta”, deslocando a atenção, que antes estava focada no criminoso, para o controle social.


MOLINA retrata bem esse deslocamento:


“Segundo esta perspectiva interacionista, não se pode compreender o crime prescindindo da própria reação social, do processo social de definição ou seleção de certas pessoas e condutas etiquetadas como criminosas. Crime e reação social são conceitos interdependentes, recíprocos, inseparáveis. A infração não é uma qualidade intrínseca da conduta, senão uma qualidade atribuída à mesma através de complexos processos de interação social, processos altamente seletivos e discriminatórios. O labelling approach, consequentemente, supera o paradigma etiológico tradicional, problematizando a própria definição da criminalidade. Esta – se diz – não é como um pedaço de ferro, um objeto físico, senão o resultado de um processo social de interação (definição e seleção): existe somente nos pressuposto normativos e valorativos, sempre circunstanciais, dos membros de uma sociedade. Não lhe interessam as causas da desviação (primária), senão os processos de criminalização e mantém que é o controle social o que cria a criminalidade. Por ele, o interesse da investigação se desloca do infrator e seu meio para aqueles que o definem como infrator, analisando-se fundamentalmente os mecanismos e funcionamento do controle social ou a gênesis da norma e não os déficits e carências do indivíduo. Este não é senão a vítima dos processos de definição e seleção, de acordo com os postulados do denominado paradigma do controle (apud AGUIAR, p. 3).”


Próxima à criminologia de cunho marxista porque, para Marx, a delinquência não era um comportamento anterior a qualquer sistema de controle social ou jurídico, mas sim um produto desse sistema. Outrossim, as ideias de Marx contribuíram para a teoria do etiquetamento, especialmente pela crítica ao mito do Direito Penal como igualitário, demonstrando a impossibilidade de existir um direito (penal) que prega igualdade em uma sociedade extremamente desigual (CONDE; HASSEMER, 2008, p.107-109).


Segundo Alessandro Baratta,


‘[…] esta direção de pesquisa parte da consideração de que não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o status social de delinqüente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinqüência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade como “delinquente”. Nesse sentido, o labeling approach tem se ocupado principalmente com as reações das instâncias oficiais de controle social, consideradas na sua função constitutiva em face da criminalidade. Sob este ponto de vista tem estudado o efeito estigmatizante da atividade da polícia, dos órgãos de acusação pública e dos juízes (2002, p. 86).”


Resumidamente essa teoria sustenta que a criminalidade não é a qualidade de uma determinada conduta, mas o resultado de um determinado processo de estigmatização da conduta e daquele que a praticou (CONDE; HASSEMER, 2008, p.110-111).


Importante ressaltar que não são apenas as instâncias oficiais as responsáveis pelos processos de definição da criminalidade, porque o senso comum também produz definições. Alessandro Baratta (2002, p. 94) menciona a teoria defendida por Kitsuse, a qual consiste na sustentação de um processo de interpretação, definição e tratamento, em que alguns indivíduos pertencentes a determinada classe  interpretam uma conduta como desviante, definem as pessoas praticantes dessa mesma conduta como desviantes, e empregam um tratamento que entendem apropriado em face dessas pessoas.


Dessa forma, pode-se inferir que é a interpretação que define o criminoso e não sua conduta supostamente delituosa.


Existem duas correntes no labelling approach: uma radical e outra moderada. A radical considera a criminalidade unicamente como resultado do Direito Penal, enquanto que a moderada afirma que a justiça penal apenas integra uma mecânica formadora da criminalidade.


Conde e Hassemer tratam bem essa divisão:


“Segundo uma versão radical dessa teoria, a criminalidade é simplesmente a etiqueta que se aplica pelos policiais, pelos promotores de justiça e pelos tribunais penais, ou seja, pelas instâncias formais de controle social. Outros representantes desta teoria, menos radicais, reconhecem que os mecanismos do etiquetamento não se encontram somente no âmbito do controle social formal, mas também no informal […] A direção moderada do intervencionismo simbólico admite que a justiça penal se integra na mecânica do controle social geral da conduta desviada. Isso não constitui exculpação do fato da definição seletiva da criminalidade, mas comporta o reconhecimento de que o sistema penal não leva a cabo o processo de estigmatização à margem ou inclusive contrário aos processos gerais de controle social. Pelo contrário, a direção radical faz uma crítica muito mais devastadora da própria Administração da Justiça, sustentando que é o Direito Penal que faz o delinqüente, sem nenhum respeito pelo princípio da igualdade, pois recai mais fortemente sobre as camadas sociais mais baixas que sobre as demais (2008, p.111-112).”


Do que foi exposto, pode-se inferir que é considerada desviante apenas a conduta que a sociedade e seus órgãos punitivos decidem perseguir como tal. Consequentemente o indivíduo passa a ser criminoso a partir da etiqueta que lhe é colocada e não exatamente pelo ato por ele praticado.


Não se pode deixar também de tecer algumas considerações acerca da cifra oculta, de forma a revelar-se mais claramente a problemática que a teoria do labeling approach preocupou-se em enfrentar. Conde e Hassemer afirmam que diante de uma fronteira visível entre delinquentes e não deliquentes, restam vazias, ou “eticamente insuportáveis” as teorias que caracterizam especificamente o autor do delito (2008, p. 95).


Segundo retratam Conde e Hassemer, “existe um grande número de delitos e de delinqüentes que não chegam a ser descobertos ou condenados” (2008, p. 95). A cifra oculta é um termo que serve para designar essas condutas delituosas que não são perseguidas pelo sistema penal, pois muitas vezes sequer chegam ao conhecimento das instituições oficiais. Os crimes “desvendados” constituem apenas uma pequena porcentagem do total de condutas ilícitas efetivamente existentes em uma sociedade. Assim, a teoria do etiquetamento sustenta que o critério de seleção é a marginalização do individuo.


Seguindo esse raciocínio, desaparece, para o Sistema Penal, a função de combate ao crime, e resta apenas a função de atribuição de etiquetas. A prática de crimes não rotula ninguém, o delinquente passa a ser aquele que corresponde aos critérios de seleção e é etiquetado pelas instâncias punitivas.


 Para que se possa melhor visualizar o “comportamento desviado” importante fazer a distinção entre desvio primário e desvio secundário. Desvio primário é a consequência de uma série de fatores socioeconômicos, culturais e psicológicos e desvio secundário é o resultado do rótulo atribuído ao indivíduo pela sociedade, ou seja, a estigmatização. 


Baratta citando Lemert (2002, p. 90-91) diferencia o desvio primário e o desvio secundário, sendo que o desvio primário refere-se a fatores sociais, culturais ou psicológicos e o desvio secundário, ou desvios sucessivos à reação social (incriminação), esses desvios “são fundamentalmente determinados pelos efeitos psicológicos que tal reação produz no indivíduo objeto da mesma […]”. E ainda:


“[…] sobre o desvio secundário e sobre carreiras criminosas, põem-se em dúvida o princípio do fim ou da prevenção e, em particular, a concepção reeducativa da pena. Na verdade esses resultados mostram que a intervenção do sistema penal, especialmente as penas detentivas, antes de terem um efeito reeducativo sobre o delinqüente determinam, na maioria dos casos, uma consolidação da identidade desviante do condenado e o seu ingresso em uma verdadeira e própria carreira criminosa. […] pode-se observar, as teorias do labeling baseadas sobre a distinção entre desvio primário e desvio secundário, não deixaram de considerar a estigmatização ocasionada pelo desvio primário também como uma causa, que tem seus efeitos específicos na identidade social e na autodefinição das pessoas objeto de reação social […] (2002, p. 90-91)”


Em que pese essa teoria represente um importante avanço para os estudos criminológicos, obviamente, ela vem sofrendo algumas críticas, como bem destaca Baratta (2002, p. 98-99):


“[…] reduzindo, como se viu, a criminalidade à definição legal e ao efetivo etiquetamento, exaltam o momento da criminalização, e deixam fora da análise a realidade de comportamentos lesivos de interesses merecedores de tutela, ou seja, aqueles comportamentos (criminalizados ou não) que aqui denominamos ‘comportamentos socialmente negativos’, em relação às mais relevantes necessidades individuais e coletivas*. A qualidade de desvio efetivo que tais comportamentos problemáticos têm em face do funcionamento do sistema sócio-econômico, ou a sua natureza expressiva de reais contradições daquele sistema, permanece inteiramente obscurecida, reduzindo-se o seu significado ao efeito das definições legais e dos mecanismos de estigmatização e de controle social: a análise das relações sociais e econômicas, que deveria fornecer a chave das diversas dimensões da questão criminal, é desenvolvida em um nível insuficiente, típico das teorias de médio alcance, ou seja, das teorias que fazem parte do setor da realidade social examinada não só o ponto de chegada, mas, também, o ponto de partida da análise. […]”


Conde e Hassemer (2008, p.116-118), ao tratarem dos acertos e desacertos da teoria do etiquetamento, apontam, como desacertos, principalmente a sua incapacidade de propor diretrizes e soluções que superem as simples críticas de outras teorias, bem como a falta de resposta para a pergunta: o que fazer para evitar o delito? Os autores também aduzem a falta de conexão com a realidade e o abandono do estudo dos fatores causais da criminalidade. Por fim, alegam que se a condição de delinquente é algo que se atribui externamente ao sujeito, poder-se-ia concluir que, em não havendo quem produzisse tal atribuição, não existiria mais a figura do delinquente,


A partir dessa breve análise acerca da teoria do etiquetamento, pode-se ter uma noção da evolução da criminologia, que ampliou o objeto de investigação criminológica, revelando que a criminalidade não se trata mais de uma entidade ontológica pré-constituída, mas de uma etiqueta afixada a partir de um processo de seleção altamente discriminatório.


5. Tratamento


Mesmo considerando o Sistema Penal eficaz, em seu discurso, quanto à forma de tratamento ao crime, é impossível vislumbrar que o mesmo ainda possa alcançar com êxito sua função prometida de ressocialização.


Dessa forma, supondo não existir a seletividade no momento da atuação dos segmentos do Sistema Penal, tem-se que o mesmo acabaria insurgindo-se, de modo igualitário, em todas as situações onde se verificasse a ocorrência de um delito. Na verdade trata-se de uma dinâmica inimaginável. Como bem coloca Zaffaroni:


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“[…] O discurso jurídico penal programa um número incrível de hipóteses em que, segundo o ‘dever ser’, o sistema penal intervém repressivamente de modo ‘natural’ (ou mecânico). No entanto, as agências do sistema penal dispõem apenas de uma capacidade operacional ridiculamente pequena se comparada à magnitude do planificado. […] Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, etc. fossem concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitante que não fosse por diversas vezes, criminalizado (2001, pág. 26). “


Destarte, resta clara a imprescindibilidade do modo de agir seletivo do Sistema Penal.


“Diante da absurda suposição – não desejada por ninguém – de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente aos setores vulneráveis. Esta seleção é produto de um exercício de poder que se encontra, igualmente em mãos dos órgãos executivos, de modo que também no sistema penal ‘formal’ a incidência seletiva dos órgãos legislativo e judicial é mínima (ZAFFARONI, 2001, pág.27).”


Importante apenas salientar que não se quer aqui defender o modo de agir seletivo do Sistema Penal pela sua imprescindibilidade, pelo contrário, defende-se a elisão desse modo de agir, a imprescindibilidade mencionada anteriormente revela-se apenas dentro do próprio sistema.


Apesar desse assunto ser tratado mais adiante, vale aqui destacar a necessidade, retratada por Zaffaroni e Pierangeli, da aplicação do princípio da intervenção mínima, o qual consistiria na limitação da intervenção punitiva e consequentemente na redução da violência exercida pela mesma (2011, p.78).


6. Seletividade do Sistema


A partir do que foi abordado nos temas anteriores, pode-se perceber a dimensão da problemática que envolve o Sistema Penal. Assim, entende-se tratar de um sistema mal estruturado onde seus segmentos não atuam em sintonia, bem como o discurso que o legitima nada tem a ver com seu modus operandi.


Outrossim, em lugar de prevenir o crime (teorias preventivas) ele é um sistema condicionante (teoria do etiquetamento) e, no que concerne ao tratamento dado ao crime/criminoso, o Sistema Penal não consegue sustentar seus fundamentos. Revela-se, então, uma inviabilidade de alcançar a todos da mesma forma, para tanto o principal caminho encontrado pelos seus segmentos é a seletividade.


“[…] ao menos em boa medida, o sistema penal seleciona pessoas ou ações, como também criminaliza certas pessoas segundo sua classe e posição social. […] Há uma clara demonstração de que não somos todos igualmente ‘vulneráveis’ ao sistema penal, que costuma orientar-se por ‘estereótipos’ que recolhem os caracteres dos setores marginalizados e humildes, que a criminalização gera fenômeno de rejeição do etiquetado como também daquele que se solidariza ou contata com ele, de forma que a segregação se mantém na sociedade livre. A posterior perseguição por parte das autoridades com rol de suspeitos permanentes, incrementa a estigmatização social do criminalizado (ZAFFARONI;PIERANGELI, 2011, p.  73).”


O processo de criminalização pode ser dividido em dois, criminalização primária e criminalização secundária. Segundo Zaffaroni (2003, p. 43), criminalização primária consiste na criação de uma lei incriminadora direcionada a determinada classe e criminalização secundária na ação punitiva que recai sobre pessoas concretas, a criminalização secundária se verifica mais facilmente no segmento das agências policiais.


Observa-se que a criminalização primária é praticada pelo legislador no processo de criação das condutas tipificadas e a criminalização secundária praticada pela polícia e judiciário. Importante lembrar que, além de no momento da elaboração e aplicação da norma a seletividade também vai se mostrar presente no momento da execução da pena.


Focault retrata a seletividade do Sistema Penal e o falso discurso de que a lei é feita para todos:


“[…] processos que encontramos atrás de toda uma série de afirmações bem estranhas à teoria penal do século XVIII: que o crime não é uma virtualidade que o interesse ou as paixões introduziram no coração de todos os homens, mas que é coisa quase exclusiva de uma certa classe social: que os criminosos que antigamente eram encontrados em todas as classes sociais, saem agora “quase todos da última fileira da ordem social” […] nessas condições seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que ela é feita para alguns e se aplica a outros; que em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao contrário do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação não se refere a todos da mesma forma; que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem (2008, p.229)”


Resumidamente o Sistema Penal revela-se potencialmente seletivo tanto no momento em que define as condutas que deverão ser consideradas ilícitas quanto no momento em que escolhe quem deverá ser responsabilizado por praticar essas condutas, bem como quando escolhe sobre quem incidirá a sanção estatal.


Para tanto, para selecionar e criminalizar um indivíduo é preciso que o mesmo tenha praticado uma ação. Assim as instâncias iniciais do Sistema Penal, mais precisamente a polícia, elegem seus candidatos à criminalização e submetem-nos ao poder judiciário, que por sua vez, intervém para “limitar” a violência seletiva segundo critérios próprios diferentes dos que regem o restante do sistema. Estes requisitos não são capazes de eliminar a seletividade, apenas operam na sua redução (ZAFFARONI, 2001, p. 245-246).


“Esse “uso da linguagem” jurídica não pode levar-nos a perder de vista – em momento algum – que o sistema penal escolhe pessoas arbitrariamente e que os requisitos de tipicidade e antijuridicidade (sintetizados na categoria de “injusto penal”) nada mais são que os requisitos mínimos que a agência judicial deve esforçar-se por responder a fim de permitir que o processo de criminalização, em curso, sobre a pessoa arbitrariamente selecionada, possa avançar (ZAFFARONI, 2001, p. 250) “


Ocorre que há um terceiro requisito, a culpabilidade:


“[…] os requisitos, enquanto limites máximos tolerados no exercício de um poder legitimado, se acham “objetivados”, e o estão no sentido de se referirem unicamente à existência real de uma ação conflituosa por sua lesividade (tipicidade e antijuridicidade), com o qual unicamente se diz que há “algo” ao que talvez se possa responder de forma a não deter a criminalização em curso. A agência judicial, no entanto, de modo algum pode pretender extrair daí, sem mais nem menos, a resposta criminalizante […] requer, sem dúvida alguma, uma referência direta e personalizada ao autor, em sua condição pessoal e na situação particular em que teria levado efeito tal conduta (ZAFFARONI, 2001, p. 258)”


Zaffaroni, ao tratar da deslegitimação do Sistema Penal, traz à tona a crise ocasionada por essa seletividade, no conceito de culpabilidade normativa: “A seletividade do sistema penal neutraliza a reprovação: ‘Por que a mim? Por que não a outros que fizeram o mesmo?, são perguntas que a reprovação normativa não pode responder”(ZAFFARONI, 2001, p. 259).


A reprovação pela culpabilidade, diferentemente da tipicidade e ilicitude, que são elementos objetivos, depende muito mais de fundamentos morais e éticos no momento de sua valoração. No Sistema Penal seletivo esses fundamentos são praticamente inexistentes.


 


Referências:

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BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3.ed.  Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002.

BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

CONDE, Francisco Muñoz, HASSEMER, Winfried. Introdução à Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

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GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 11.ed. Niterói-RJ: Impetus, 2009.

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MOLINA, Antonio García-Pablos de & GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 4. ed. São Paulo: Editora revista dos tribunias, 2002.

QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: introdução crítica. São Paulo: Editora Saraiva, 2001.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2001.

ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, volume 1: Parte Geral. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

 

Notas:

[1] Este artigo foi orientado pela Prof. Me. Elisa Celmer. 


Informações Sobre o Autor

Bruna Peluffo Maglioni

Estudante de Direito na Universidade Federal do Rio Grande – FURG.


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