“há de interpretar as leis com o espírito ao nível do seu
tempo, isto é, mergulhado na viva realidade ambiente, e não acorrentado a algo
do passado, nem perdido em alguma paragem, mesmo provável, do distante
futuro.” (Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda)
Prescreve
o CP 107 VII que o casamento da vítima com o agente, em determinados crimes1 (notadamente de cunho sexual),
extingue a punibilidade do agente, afigurando-se como determinação imperativa,
cogente, de ordem absoluta.
De outro lado, a Lex
Legum, em seu comando 226 §3º, de braços dados
com a realidade social, reconhece a união estável (formada entre homem e
mulher), conferindo-lhe o status de entidade familiar, enfim, como
núcleo celular formador da família dentro da sociedade brasileira e, por conseguinte,
equiparando-a, quanto aos efeitos jurídicos e sociais, ao casamento civil e
conferindo-lhe proteção especial do Estado.
É
clara e incontroversa, então, a consagração pelo Ordenamento Constitucional da
definição ampla de família, como base (célula-máter)
da sociedade, garantindo-lhe toda proteção necessária, independentemente do
modo pelo qual tenha se originado a união (se pelo casamento civil, se pela
união estável). Curvou-se, indubitavelmente, a Magna Charta
aos usos e costumes2 ditados por uma realidade fática inegável e já reconhecida
de há muito pela melhor doutrina e jurisprudência3.
No
dizer percuciente de JOSÉ AFONSO DA SILVA, “a família como base da
sociedade não é mais constituída somente pelo casamento. Entende-se, também,
como tal, a união estável entre homem e mulher, cumprindo à lei facilitar sua conversão
em casamento, com todos os seus efeitos.”4
Perceba-se,
por oportuno, que o ponto principal da previsão constitucional (CR 226 §3º) é
justamente a proteção conferida a união estável, colocando os
conviventes em patamar de igualdade, no que pertine a
direitos e obrigações, em relação àqueles casados civilmente. Destrinchando:
não se pode impor distinções no que tange à proteção
jurídica dada aos casados, em relação aos conviventes. Havendo proteção
jurídica, estender-se-á a união estável.
Bem
sintetizou o Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO: “se a união estável é
entidade familiar, como determinado pela Constituição, não se pode mais tratar
a união entre homem e mulher, sem o ato civil de casamento, como sociedade de
fato ou concubinato, eis que não se trata mais de mancebia, amasiamento,
mas de entidade familiar.”5
Importa,
então, deixar esclarecida a impossibilidade de distinção na proteção
reconhecida pelo Estado (em sua acepção lata) em face de casados ou
conviventes. Originando-se o núcleo familiar de ambas as espécies, não se pode
dar maior proteção a uma em detrimento da outra, pena de fazer tabula rasa
do dispositivo constitucional e impor prejuízo dos mais graves àquelas pessoas
que preferiram optar pela relação estável sem ato civil de matrimônio.
Por
conseguinte, se a vítima – de um dos delitos capitulados no inciso VII do CP
107 – passa a manter união estável com o agressor, ou mesmo com terceiro (neste
caso se o crime foi praticado sem violência real ou grave ameaça,
ex vi CP 107 VIII), e se dita união é reconhecida como entidade
familiar, isto é, se marcada pelo intuito de formação familiar, com convivência
mútua, lógico que aplicável aqui a norma extintiva da punibilidade,
desaparecendo qualquer interesse na persecução criminal.
Em
verdade, o que se tem no plano concreto do Direito, é que a Lex
Fundamentalis veio a criar uma nova forma
extintiva da punibilidade, ao reconhecer a união estável como entidade
familiar, no Art. 226 § 3º, aplicando-se-lhes todas
as conseqüências decorrentes da proteção jurídica dada ao casamento e suas
repercussões em outros ramos da Ciência Jurídica, como no CP 107 VII.
Essa
norma não pode ser ignorada pelo intérprete! Está ali um novo modelo de
entidade familiar, que veio a atender os anseios de boa parte da sociedade
brasileira que organiza-se informalmente a nível e com
o escopo de FAMÍLIA.
Nas
palavras de RICARDO GALBIATI “as regras estão postas na lei, devendo ser
atendidas, de forma simples e objetiva, e não através de construções
artificiais e nem sempre dignas da posição que ocupa, hoje, a família de fato.”
A
lei veio, em verdade, a adequar-se à realidade social, afinal, como já pregava
RUDOLF VON IHERING, não basta ao Direito uma “pretensão normativa, é preciso
que se lhe dê efetividade social”, sendo mister espelhar a realidade fática
e atual da sociedade que lhe incumbe regular.
Nesta linha de intelecção, fácil depreender-se que,
existindo união estável da vítima com o seu agressor, o Estado não poderá
molestá-lo, porque evidenciada a inexistência de conflito de interesses e de martirização aos preceitos penais, em face da proteção de
ordem constitucional dispensada a união estável, garantindo-a como espécie de
organização da família e conferindo-lhe a mesma proteção dada ao casamento.
Do contrário, haverá clara desobediência ao texto magno.
Como
bem concluiu o Juiz MARCO NAHUM, do TACrim/SP, em
trecho de seu voto na Ap.1.135.911/1, julgada pela 4ªCâm.,
v.u., j.2.3.99, é preciso que se reinterprete o “elemento normativo do tipo
‘cônjuge’ nos exatos termos especificados na Carta Magna, ou seja, é o homem
que se une estavelmente à mulher, constituindo família, independentemente do
ato de união ter sido praticado pela lei civil.”
Nesse
diapasão, acentua o ex-magistrado paulista EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA no
sentido de ser “de inteira pertinência a tese da extensão ao companheiro das
normas penais favoráveis ao réu, na qualidade de cônjuge. Trata-se de valorar a
união estável por decorrência das regras constitucionais e legais visando à proteção
da família, ainda que sem os laços oficiais do casamento civil.”
(“União Estável e Seus Reflexos no Direito Penal”, in Revista Brasileira de
Direito de Família, Porto Alegre, Síntese, nº02, jul/ago/set 1999, p.25)
Avulta encalamistrar, hic
et nunc, inclusive, que
os conceitos de Direito de Família, pelo natural subjetivismo e peculiaridade,
sofrem (mais do que qualquer outro ramo da Ciência Jurídica) direta influência
da sociedade, clamando, por conseguinte, por interpretações teleológicas,
valorativas, sem perder de vista que o Direito não pode virar as costas para a
vida cotidiana da própria sociedade que lhe incumbe regular e pacificar.
Não
fosse apenas a expressa previsão normativa contida na regra constitucional
(Art.226 §3º), lembra EDGARD MAGALHÃES NORONHA justificar-se a extinção da
punibilidade no casamento da vítima com o seu agressor, em razão da “plena
satisfação do mal causado, permitindo que ela ocupe na sociedade uma posição de
compostura e decência, não obstante a falta anterior de que participou.” (Direito
Penal, São Paulo : Saraiva, v. 3, 21ª ed., 1994,
p. 235) Disso não discrepa o mestre WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO: “a
ofensa à honra da mulher, repara-se pelo casamento”.6 Aliás, o próprio conteúdo constante
do CC 1548 traz disposição claramente influenciada por essas idéias de
reparação pelo casamento.
No
mesmo sentir, com mais amplidão, CÉZAR ROBERTO BITTENCOURT, para quem a “constituição
da família, a livra da desonra e repara-lhe o mal causado pela conduta
delituosa do agente. Ademais, tratando-se, de regra, de ação privada, a
convolação de núpcias, entre ofensor e vítima, implica o mais ‘completo perdão
tácito’, além da reparação moral”. (Manual de Direito Penal, São Paulo : RT, 5ªed., 1999, p.745)
Em
nossos dias, tendo em vista a transformação imposta pelos costumes, alterou-se
a própria realidade social, construindo-se, a partir das relações de
convivência estável, um novo conceito da família – e, via de conseqüência,
tratando-se da célula-máter da sociedade, afigura-se
um novo tratamento jurídico da matéria.
Ora,
fora de qualquer dúvida, então, que, numa relação concubinária estável,
convivendo o casal harmonicamente, dentro da célula social formada,
exteriorizando atos marcados pelo ânimo familiar, estará satisfeito o
pretenso (em tese) dano causado – e muito bem, diga-se en
passant – inexistindo, de igual modo, qualquer
desrespeito à intimidade ou moral de quem quer que seja. Tudo sem considerar,
ainda, que tais condutas delitógenas são, via de regra, de ação penal privada, consubstanciando o
casamento perdão tácito induvidoso.
A
união estável é realidade fática inconteste e o Direito não pode deixar de
acomodar-se às novas imposições sociais, pena de perder-se no tempo e no
espaço.
Deflagrar
a persecutio criminis
em face daquele que convive more uxorio com
a vítima dos crimes enunciados no CP 107 VI, importaria apenas e tão-somente
semear a discórdia, desarmonizando uma família e gastando as forças do Estado
para perseguir situações fáticas despidas de conflituosidade!!!
Resta
reconhecer, pois, que a união estável entre vítima e ofensor, formando vínculo
familiar, resulta em extinção de punibilidade, na forma do CP 107 VII.
Oportuno, pela clareza solar, invocar a cátedra do Prof. EDUARDO LIMA DE MATOS,
Promotor de Justiça em Sergipe, magistralmente abordando o tema: “se a
vítima decidiu estabelecer uma entidade familiar do tipo união estável com o
agressor, o Estado deve-lhe proteção, por um mandamento constitucional, ou seja um direito dos concubinos
expressamente consignado. Diante disso, formada a união estável da vítima com o
agente criminoso, tratando-se de uma entidade familiar, extinta estará a
punibilidade em virtude da nova causa criada pelo art. 226 § 3º da CF.” (in
“A união estável e a extinção de punibilidade”, Livro de Teses 9º
Congresso Nacional do Ministério Público, Salvador, 1992, p.152)
Disso
não discrepa JÚLIO FABBRINI MIRABETE (Código Penal Interpretado, São
Paulo, Atlas, 1999, p.567), igualmente antevendo que a extinção de punibilidade
decorre também da “previsão constitucional da união estável como fato
jurídico equiparado ao casamento (art. 226, §3º, da CF).”
O
tratamento constitucional de igualdade, no que pertine
aos efeitos da união estável em relação ao casamento, também já vem sendo
aclamado jurisprudencialmente, como se pode notar: “é de se determinar a
extinção de punibilidade do agente que rapta menor de 17 anos, com seu
consentimento, passando a viver maritalmente com ela, pois o núcleo familiar estávle sem casamento, após a CF/88,
equipara-se ao matrimônio legalizado para fins de extinção de punibilidade,
interpretando-se analogicamente o art. 107, VII, do CP.” (TACrim/SP,
Ap.1.003.851/6, Ac.6ªCâm., m.v., Rel.
Juiz Ivan Marques, e voto vencedor declarado pelo Juiz Mathias Coltro, in RJDTACrim/SP 32:260)
Também
DAMÁSIO E. DE JESUS, ao tratar da união estável como forma de extinção de
punibilidade equiparada ao casamento, elenca decisões
pretórias em socorro ao entendimento ora esposado.7
Ademais,
é importante assinalar que a extinção de punibilidade se opera, em regra, por
razões marcantes de política criminal8,
inclusive no que toca à modalidade extintiva do casamento do agente com a
ofendida. Portanto, vivendo momento histórico em que se propagam ideais de
intervenção mínima do Estado no âmbito penal9
e a concentração da atividade persecutória nos delitos de maior relevância,
seria despropositado, e até mesmo inócuo, procurar penalizar aquele que já vive
maritalmente com a vítima. Ao revés, além de desagregar um núcleo familiar,
poderá importar em fator de revolta e desajustamento social.
Não
se olvide, por outro lado, que o fundamento da previsão normativa do CP 107
(permitindo a extinção da punibilidade pelo subsequens
matrimonium) tem sede no fato de que entre as
partes inexiste conflito, prevalecendo a paz familiar,
elemento que prepondera ao Estado e à sociedade manter.
Daí,
portanto, não ser despicienda a advertência de
WELLINGTON CÉSAR LIMA E SILVA, eminente representante do Parquet
baiano e professor da matéria, de que “não se poder nos dias de hoje,
abandonar aspecto de suma importância na apreciação do problema da conveniência
da dedução de pretensão punitiva do Estado em juízo. Assim,
as razões de política criminal, frente a ‘nova
sociedade que é nitidamente criminógena’ sob o seu
aspecto de sociedade técnica, assumem elevada significação.” (in “A
mitigação do princípio da obrigatoriedade na sistemática processual penal
brasileira”, Livro de Teses…, p. 157)
Dúvida
não há, pois, que havendo união estável entre vítima e agressor, à luz da
proteção constitucional dedicada à união estável (erigida ao status de
entidade formadora da família), consubstanciada restará a EXTINÇÃO DE
PUNIBILIDADE prevista no Estatuto Repressivo, notadamente no Art. 107, VII,
sequer devendo iniciar-se a persecutio criminis, em face da falta de interesse estatal.
Bibliografia
BITTENCOURT,
Cézar Roberto. Manual de Direito Penal,
São Paulo : RT, 5ªed., 1999
JESUS,
Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado, São Paulo
: Saraiva, 9ªed., 1999
MATOS,
Eduardo Lima de. “A união estável e a extinção de punibilidade”, in Livro de
Teses do 9º Congresso Nacional do Ministério Público :
Salvador, 1992
MIRABETE,
Júlio Fabbrini. Código Penal Interpretado, São
Paulo : Atlas, 1999
MONTEIRO,
Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Direito das Obrigações,
São Paulo : Saraiva, 2ªparte
NORONHA,
E. Magalhães. Direito Penal, São Paulo :
Saraiva, v.3, 21ª ed., 1994
SILVA,
José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo : Malheiros, 12ª ed., 1996
SILVA,
Wellington César Lima e. “A mitigação do princípio da obrigatoriedade na
sistemática processual penal brasileira”, in Livro de Teses do 9º Congresso
Nacional do Ministério Público
: Salvador, 1992
Notas
1. Estupro, atentado
violento ao pudor, posse sexual e atentado ao pudor mediante fraude, sedução,
corrupção de menores e rapto (CP 213
a 221).
2. a LICC 4º, inclusive, elenca
os costumes como fonte do Direito.
3. o Supremo Tribunal
Federal já vinha reconhecendo proteção da lei ao concubinato, como avulta esse decisum lavrado em 3.5.56, no RE31.520,
relatado pelo Min. Afrânio Costa: “a sociedade de fato, entre pessoas de
sexo diferentes, vivendo em concubinato ou quando casados pelo regime da
separação de bens, tem sido reconhecida pelo Supremo Tribunal, ante as
circunstâncias especiais de cada caso.” (publ. DJ
11.3.57, p.763). Aliás, foi a própria Excelsa Corte
que editou as Súmulas nº 35, 380 e 382, também
reconhecendo ao concubinato proteção jurídica.
4. Curso de Direito
Constitucional Positivo, São Paulo, Malheiros, 12ª ed., 1996, p.774
5. in Revista dos Tribunais 667:17 e ss.
6. in Curso de Direito Civil – Direito das
Obrigações, São Paulo : Saraiva, 2ª parte, p.444
7. Código Penal
Anotado, São Paulo : Saraiva, 9ªed., 1999, p.309.
No mesmo sentido: TJ/MS, Ap.Crim.404.893, j.14.12.94
8. “imperativos de
política criminal, como acontece, exemplificativamente, com a graça, o indulto,
a anistia e o casamento do ofensor com a ofendida”, na lúcida observação de
LUIZ VICENTE CERNICCHIARO (cf. Direito Penal na Constituição, São Paulo : RT, 3ªed., 1995, p.81)
9. a respeito do assunto, vislumbrando uma “feição
subsidiária” no Direito Penal, quando fracassadas as demais formas protetivas do bem jurídico, MUÑOZ CONDE (Introducción al Derecho
Penal, Barcelona : Bosch, 1975, p.60). Igualmente
LUIZ LUISI (Os princípios constitucionais penais, Porto Alegre : SAFE, 1991, p.27).
Informações Sobre o Autor
Cristiano Chaves de Farias
Promotor de Justiça – BAHIA
Professor da Faculdade de Direito da UFBA – Universidade Federal da Bahia, FESMIP/BA –
Escola Superior do MP/BA,
EMAB – Escola de Magistrados da Bahia e JusPODIVM – Curso Preparatório para concursos