As perspectivas da ressocialização frente aos obstáculos decorrentes do etiquetamento social

Kelly Pereira de Castro[1]

Igor de Andrade Barbosa[2]

Resumo: Este artigo tem como principal objetivo a análise das disposições da Teoria do Etiquetamento Social, que é abordada na criminologia, e, com isso, a elucidação de como esse etiquetamento gera interferências na efetividade da ressocialização do indivíduo encarcerado. Para tanto, serão estudadas, primeiramente, os escritos doutrinários a respeito desse tema, suas especificidades e características. Posteriormente, será apontada as interferências que obstam a reinserção ao convívio em sociedade do ex-presidiário. Ao final, se discorrerá sobre os problemas provenientes da estigmatização, a saber: a criminalização da miséria e o controle social. Ademais, destaca-se que a conclusão deste estudo é resultado de uma minuciosa investigação científica, baseada em revisão da literatura específica, utilizando como parâmetro as doutrinas e leis brasileiras, através de uma abordagem qualitativa.

Palavra-chave: Criminologia. Etiquetamento. Ressocialização.

 

Abstract: The main purpose of this article is to analyze the Labeling Approach Theory, frequently studied in criminology, and, after that, the elucidation of the way that this labeling creates an impact in the effectiveness of the re-socialization of the incarcerated people. Furthermore, it will also be studied the interferences that obstructs the reinsertion of the prisoner into society. At last, the problems caused by the social stigmatization will be pointed, namely: the criminalization of poverty and social control. On top of that, it is necessary to say that the conclusion of this study is a result of a scientific investigation, based on a review of the specific literature, using Brazilian law and legal literature, through a qualitative approach..

Keywords: Criminology. Labeling. Resocialization.

 

Sumário: Introdução. 1. A perspectiva da ressocialização. 2. Etiquetamento social. 3. Criminalização da miséria e controle social. Considerações finais. Referências.

 

Introdução

O objetivo do código penal ao estabelecer crimes e penas é precisamente penalizar o indivíduo que pratica condutas contrárias a lei, fazer com que ele se redima do ato cometido e posteriormente inseri-lo na sociedade com esse comportamento desviante corrigido. Entretanto, diversos fatores dificultam esse processo e até mesmo impedem que os efeitos esperados sejam alcançados.

Os noticiários exibidos diariamente demonstram sem escrúpulos o controle de classe, de raça, a criminalização da pobreza, bem como, a opressão que sofrem os recuperados da penalização, sendo de crucial relevância a busca pelo entendimento desses fatores e as consequências eminentes da tentativa de domínio e poder exercido através da pena.

Ante a relevância social evidenciada, este trabalho objetiva fazer um estudo acerca do processo de ressocialização do indivíduo, sob as perspectivas da teoria do etiquetamento social, que por meio de explicações lógicas tenciona demonstrar a reação da sociedade em relação ao indivíduo que fora encarcerado e penalizado.

A análise do controle social ainda existente e muitas vezes exercido de forma implícita integra também os objetivos dessa pesquisa, pois tais fatores nitidamente relacionam-se e são resultantes uns dos outros.

 

1.    A perspectiva da ressocialização

Para fins de compreensão e absorção do conteúdo quanto à perspectiva da ressocialização, faz-se necessário expor os preceitos fundamentais dispostos pela Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, que Institui a Lei de Execução Penal (LEP), onde inicia sua disposição no título I, enunciando os objetivos da aplicação da pena no artigo primeiro, a saber: “Art. 1º. Execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” Evidenciando que há uma preocupação precípua com a inclusão e adaptação social dos sujeitos que foram condenados.

Verifica-se então o alvo e propósito da execução penal, que para além de intentar propiciar uma adequada inserção do indivíduo, visa concedê-lo a oportunidade de se sentir parte novamente do meio social quando retorna recuperado do impasse ocorrido.

Essa discussão acerca da reinserção tem como primazia destacar a humanidade e dignidade de que carece o detento dentro e fora do cárcere, antes e pós-condenação.

Na exposição dos motivos de nº 213 de 9 de maio de 1983 da referida lei, consta no item 13 aclaramento quanto ao objeto e a aplicação da lei de execução, dispondo o seguinte:

“13. Contém o artigo 1º duas ordens de finalidades: a correta efetivação dos mandamentos existentes nas sentenças ou outras decisões, destinados a reprimir e a prevenir os delitos, e a oferta de meios pelos quais os apenados e os submetidos às medidas de segurança venham ter participação construtiva na comunhão social”.

Consoante essa disposição, Avena (2017, p.5) acrescenta: […] “O objetivo da execução de proporcionar condições para a integração social do condenado não se resume ao plano teórico, mas, ao contrário, tem balizado as decisões do Poder Judiciário no momento de decidir sobre a concessão ou negativa de benefícios”. Dados Intrigantes e contraditórios, uma vez que, os noticiários, imprensa e muitos doutrinadores expõem as falhas visíveis e inépcia da ressocialização, decorrentes da má aplicação da pena e ineficácia dos sistemas de controle e coerção.

Infere-se desde logo que a intenção precípua exposta tanto pelo direito penal como pelas garantias da Constituição Federal é de que sempre que houver transgressão às normas haverá punição, o que é justo, uma vez que há necessidade de regras e diretrizes para que haja ordenamento social, entretanto, em tese a punição deveria se dar de forma justa e humana de modo a efetivar a ressocialização.

Conforme expõe o artigo 10º da LEP: “A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. Parágrafo único: A assistência estende-se ao egresso”, fica evidente o dever do estado para com o indivíduo encarcerado e até mesmo pós-encarceramento, com intuito de fornecer a ele uma convivência harmônica de maneira a evitar a incidência de novos crimes, devendo ser cumprido de forma adequada e obedecendo a preceitos fundamentais e constitucionais.

Nessa perspectiva, quanto ao apoio e auxilio ao preso, consta no item 38 da exposição dos motivos da LEP que: “a assistência aos condenados e aos internados é exigência básica para se conceber a pena e a medida de segurança como processo de diálogo entre os seus destinatários e a comunidade”, tendo complementada essa disposição pela informação do item 40, onde articula que “[…] o projeto institui no capítulo II a assistência ao preso e ao internado concebendo-a como dever do estado, visando a prevenir o delito de reincidência e a orientar o retorno ao convívio social […]” tornando patente a intenção elementar de prevenir a reincidência e conceder a esses indivíduos acesso igualitário e com concessão de direitos como qualquer outra pessoa.

Entretanto, o que se questiona nessa concepção é a real aplicabilidade do texto estabelecido na lei de execução penal (e explicitado nos motivos da lei), uma vez que, o índice de criminalidade cresce cada vez mais, sendo ostensivo e patente a exorbitância de pessoas marginalizadas diariamente e praticando cada vez mais crimes e delitos, fazendo com que se contradiga cada vez mais o sistema atual e sua funcionalidade, indagações essas, fundamentais para que haja pensamento crítico e olhar criterioso quanto aos sistemas de controle e penalização, para que sejam modificados ou aprimorados a fim de alcançar o propósito desejado.

Resta claro, portanto, a correlação dos aspectos de aplicação da pena e reinserção adequada do indivíduo, de forma que a falha e ineficiência de um, implica em ruptura do outro, consequenciando o percurso e incidência da criminalidade. Quanto à forma de aplicação da pena e sua ineficiência, Loic Wacquant, aborda na obra “As prisões da miséria” dispondo o seguinte:

“O sistema penitenciário brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do terceiro mundo, […] entupimento estarrecedor dos estabelecimentos, o que se traduz por condições  de vida e de higiene abomináveis, caracterizadas pela falta de espaço, ar, luz e alimentação[…] negação de acesso a assistência jurídica e aos cuidados elementares de saúde, cujo resultado é a aceleração dramática da difusão da tuberculose e do vírus HIV entre as classes populares; violência pandêmica entre detentos, sob forma de maus-tratos, extorsões, sovas, estupros e assassinatos, em razão da superlotação super acentuada, da ausência de separação entre as diversas categorias de criminosos, da inatividade forçada(embora a lei estipule que todos os prisioneiros devam participar de programas de educação ou de formação) e das carências de supervisão (2001, p.11).”

É Irrefutável a ineficiência do sistema de execução penal em efetivar a ressocialização, uma vez que, como dito alhures, todos esses aspectos são interligados, e não há que se falar em reintegração adequada de um indivíduo pós-encarceramento se em nenhuma hipótese antes ele fora tratado com dignidade e humanidade, de forma que gozou apenas da desfiguração de sua identidade. A letra da lei sem efetividade prática, de nada vale, é necessário muito mais que um amontoado de normas para efetivar a ressocialização.

Quanto aos aspectos mencionados, infere-se que, não se podem atingir os propósitos da ressocialização, nessa perspectiva de aplicação da pena que existe atualmente, onde há o encarceramento do indivíduo e supressão de sua dignidade.

As instituições de controle e organização social precisam de atuação e prática muito além do que se possui, pois, caso permaneçam nesta roupagem, servirão apenas como mais um meio de perpetuação da agravante realidade da criminalidade e violência social, corroborando cada vez mais pela estigmatização das classes dominadas (negros e pobres), pela parcela dominadora.

Vê-se, pois, que os presídios e os meios que as penas são aplicadas, fazem com que o compromisso de ressocialização e reintegração sejam deturpados de tal maneira, a servirem apenas como objetos de vingança, domínio e hegemonia.

 

  1. Etiquetamento social

As questões sobre as teorias explicativas da criminalidade foram alvos de muitos debates no século passado. Destarte, nos anos 60 surgiu a teoria do etiquetamento social, também conhecida como labelling approach, na qual integra o seguimento de estudos das teorias do conflito, sendo uma das mais relevantes para a época como também para o grupo pertencente. “As questões centrais do pensamento criminológico a partir desse momento histórico deixam de referir-se ao crime e ao criminoso, passando a voltar sua base de reflexão ao sistema de controle social e suas consequências […] (SHECAIRA, 2008, p. 269)”. De forma que a análise e constatação da criminalidade deixaram de ser do sujeito si, e partiram para o estudo do meio social a que ele está inserido, com intuito de compreender quais influências e manifestações são responsáveis pelo advento e perpetuação da criminalidade e violência.

Estudiosos da teoria afirmam que o processo de interação do delinquente é dificultado principalmente pelas abordagens da sociedade que são estigmatizantes, favorecendo a permanência da conduta desviante do indivíduo que outrora delinquiu.

Há uma divisão em conduta de desviação primária e desviação secundária, a primeira se dá de forma natural maneada por problemas psíquicos, sociológicos ou culturais, quando o agente pratica o primeiro delito, ao passo que na segunda o agente por sofrer fortes influências do controle social e estigmatização acaba por se identificar no meio criminoso estabelecendo permanência no ciclo de práticas cada vez mais crescente de crimes e delitos.

Esse processo de internalização do rótulo estigmatizante, ocorre pelo próprio indivíduo delinquente e encarcerado, e se inicia em muitas ocasiões no seu primeiro contato com a aplicação desumana e impiedosa da pena.

Evidente que os fatores explicitados são conectados, vez que, a conduta e reação da sociedade, bem como do estado para com o indivíduo, reflete muitos mais em como ele se portará no futuro e em como será sua integração social posteriormente ao seu primeiro ato desviante. O que se observa, é que dada a largada da prática do primeiro crime por mais simples que seja, a tendência de reincidência e consolidação desses indivíduos no mundo do crime é imensa.

A afirmação anterior levanta reflexão quanto aos problemas sociais e a parcela de responsabilidade de cada indivíduo que a integra, uma vez que, a repressão funciona como o primeiro passo da estigmatização.

Shecaira (2008, p. 290) afirma que o desviante é alguém a quem o rótulo social de criminoso foi aplicado com sucesso. Manifesto e incontestável que ao passo que há a rotulação de ser um indivíduo criminoso e indigno de compor a sociedade, há a constatação de ser aquele que estigmatiza e etiqueta, como pessoa direita e digna, de forma a favorecer a antagonização da convivência dos indivíduos impedindo a coexistência e harmonia social.

Cumpre ressaltar, que é visível aos olhos a segregação social em virtude dos aspectos mencionados alhures em razão da criminalidade, uma vez que, mesmo superado o Apartheid que foi um regime de segregação racial ocorrido em meados de 1948, ainda podemos notar seus reflexos inclusive de catalogação de negros e pobres como criminosos natos.

Ostensivo então, que há a rotulação social para com os negros, pobres e as pessoas sem escolaridade, demonstrando as falhas da punição e a prevalência do poder de controle. Consoante a segregação criminológica e delinquente, veja- se o disposto abaixo, que evidencia a realidade recorrente:

“A composição do estereótipo do delinquente também é realizada pela ideologia do contrato social. O raciocínio popular é o de que a sociedade é essencialmente justa e, se há pessoas capazes de desrespeitar as regras básicas, forçoso reconhecer que tais desviantes são anormais. E a anormalidade está ligada não ao que pessoa faz, mas ao que ela é. Dessa forma, mesmo sem dispor de informação convincente acerca da prática por parte de dado indivíduo, de um fato preciso, contemplado como típico pela lei penal, reconhecê-lo-emos como delinquente se: pertencendo à classe inferior apresenta registros policiais, o que é apurável por meio das indicações mais visíveis relativas à cor (preto ou mulato), aspecto físico (falhas de dentes, mãos e pés grandes, feições abrutalhadas, olhar oblí-quo), baixa escolaridade (linguagem pobre, pejada de gírias), morador em favela, membro de família desorganizada ou sem família, sem emprego ou subempregado (FREITAS et al.,2017, p. 8).”

Patente a presente rotulação e estereótipo do delinquente, atribuindo o desvio como sendo aspecto inerente a esse indivíduo, de forma que este, uma vez errante não se pode ser aceito com um ser humano normal e digno dos direitos que são comuns a todos.

Mesmo com o passar do tempo e a esperada evolução social, não houve uma supressão da rotulação, mas sim uma maior incidência, mesmo que de forma velada, uma vez que os meios de comunicação facilitaram as manobras de controle e segregação.

Shecaira (2008) trata deste assunto ao falar sobre a cerimônia degradante, a que submetem o envolvido no processo de penalização, onde o condenado e desapoderado de sua identidade, recebendo em troca outra totalmente degradada, fatores esses, que são perceptíveis atualmente, uma vez que, antes da dita justiça penal julgar um indivíduo, a imprensa, a população e o sistema de controle já o fizeram.

Na obra supracitada, é relatado o exemplo do ocorrido na Escola Base em São Paulo, onde os donos de uma creche infantil sofreram fortes acusações e repressão pela imprensa do país inteiro de delitos que sequer havia materialidade e autoria configurados por provas. Tiveram sua honra ferida, local de trabalho depredado, reputação totalmente destruída e ainda foram encarcerados. Processualmente não houve continuação por ausência de provas e denúncias, entretanto, cinco anos após o ocorrido os jornais divulgaram que as vítimas da repressão e estigma social ainda não haviam conseguido reconstruir a vida. Podendo se concluir que o poder do sistema de controle, das mídias e imprensa se traduz de tal forma a ocasionarem efeitos avassaladores e duradouros.

O exemplo citado acima como forma de explicitar a permanência da rotulação é mísero se comparado com os milhares de outros que ocorrem diariamente no país e que sequer chegam ao conhecimento geral, de indivíduos que praticaram um deslize e em decorrência deste foram rotulados, massacrados e encarcerados, não com o intuito apenas de punir o desvio mas sim de vingar a conduta, marginalizar e segregar.

Outro aspecto levantado na teoria do etiquetamento social, é o questionamento quanto a aptidão e efetividade das instituições que são destinadas a regular e controlar a criminalidade, a esse respeito afirma Shecaira:

“Muitas instituições destinadas a desencorajar o comportamento desviante operam, na realidade, de modo a perpetuá-lo. Essas instituições acabam reunindo pessoas que estão à margem da sociedade em grupos segregados, o que dá a eles a oportunidade de ensinar uns aos outros as habilidades e comportamentos da carreira delinquente […] (2008, p. 293).”

Logo, infere-se que o sistema prisional tem servido como uma escola do crime, local onde os abandonados e rejeitados se juntam e se identificam, por estarem em comum na parcela da população que não é aceita e que não será mais considerada como indivíduos normais e dignos.

Outro aspecto latente, ligado diretamente aos efeitos do etiquetamento é o cerceamento de oportunidade ao ex-delinquente, uma vez que a falta de preparo da sociedade em recebê-lo torna o seu retorno ao exercício regular dos direitos comuns, inviável.

Há uma grande alienação da sociedade ao ignorar no delinquente a existência de um ser humano constituinte de direitos e deveres como qualquer outro, violando dessa forma princípios básicos da dignidade humana fornecidos pela Constituição Federal e tratados de direitos humanos.

Sobre essa lógica Baratta (2002) aponta a igualdade como elemento que mais sofreu discussões, por apresentar a existência de um  status conferido a indivíduos determinados por parte dos grupos que detêm o poder de criação e aplicação das leis penais, de forma que exercessem com imparcialidade, aplicando a seletividade resultando em um funcionamento influente  no conflito e antagonismo dos grupos sociais. Nesse sentido, vejamos, pois, o que dispõe Freitas e colaboradores:

“Esse é o cenário do atual sistema penal, o qual exerce seu controle por meio da produção de normas jurídicas mais severas (hiperpunitivismo legislativo) e da potencialização do aparelho repressivo (julgadores) direcionados para uma categoria homogênea de criminosos, evidenciando o perverso caráter discriminatório da justiça penal. Vislumbra-se na lógica do controle penal pela ordem formal a discriminação da justiça, tanto na órbita legislativa, com os sujeitos passivos devidamente delimitados pela tipicidade da conduta, quanto na aplicação das leis pelos julgadores, por meio da obediência às tendências sistêmicas e da padronização das decisões, resultando no etiquetamento do delinquente (2017, p. 4).”

O que se nota, portanto, é a padronização tanto das decisões como do tratamento e assistência de algumas classes em detrimento de outras, gerando por consequência uma uniformização, onde sempre as mesmas classes são consideradas delinquentes ou criminosas, aumentando a incidência de marginalização, etiquetamento e rotulação.

Conforme exposição das autoras é perceptível quem está no patamar do sistema de controle sendo os reais protagonistas desses sistemas, e ainda mais claro e patente quem são os submetidos e subordinados a essas imposições nessa relação de poderio.

O exposto e mencionado, causa estranheza e incômodo, pois ao notar tantas conquistas e direitos alcançados, conclui-se ainda que a aplicabilidade efetiva está longe de se concretizar, como também a aplicabilidade geral e igualitária, prezando pelo princípio da isonomia social.

 

  1. Criminalização da miséria e controle social

A discussão sobre as classes padecedoras da rotulação, etiquetamento e controle social não é contemporâneo, em vigiar e punir, Michel Foucault tratou da violência nas prisões e dos métodos coercitivos e punitivos adotados para reprimir a delinquência. Dispõe que toda essa estrutura de punição e enclausuramento não passam de uma exposição da dominação e poder percebidos inclusive na ilustração do Panoptismo, que tem como principal efeito induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Afirma as mudanças ocorridas, pois onde havia intenção de enclausurar e esconder o indivíduo delinquente passa-se a enclausurar e demonstrá-lo como exemplo a não ser seguido, como forma de manter o poder e dominação (2014).

Wacquant (2001, p.94) afirma: […] a todo o momento mais de um terço dos negros entre 18 e 29 anos é ora detido, ora colocado sob a autoridade de um juiz de aplicação de penas ou de um agente de probation, ou ainda está à espera de enfrentar um tribunal. Essa seletividade na punição se vê claramente em cada exposição dos indivíduos penalizados pelo crime, daí, levanta-se o questionamento de qual a relação entre as ações do indivíduo e o meio a qual ele está inserido, bem como, os efeitos das manobras de controle social.

Outro fato que evidencia a seletividade da punição, antes mencionada, é a impunidade dos crimes de colarinho branco. É notório no sistema penal brasileiro uma segregação de classes de criminosos: de um lado, os delinquentes com alto poder econômico, social ou cultural, cujas condutas punidas, conhecidas como crime do colarinho branco, possuem características diferentes dos criminosos das camadas sociais menos abastadas, rotulados frequentemente como criminosos e delinquentes exclusivamente pelo grupo de raça, cor e situação econômica a que integram. (FREITAS et al., 2017). É escandalosamente exposto a diferenciação no que tange a punição dos diferentes tipos penais e os indivíduos que a praticam, vejamos:

“Percebe-se uma escancarada preferência legislativa em criminalizar os autores de crimes contra o patrimônio, em sua maioria pobre, enquanto se imunizam comportamentos típicos de indivíduos pertencentes às classes dominantes, como a sonegação fiscal (FREITAS et al., 2017, p.5).”

Prando (2018, p.11) expõe em sua obra uma frase que faz refletir, ao dizer que “O corpo negro, para os estudos criminológicos, é o objeto do controle penal”, argumento que infelizmente é verídico e totalmente visto na sociedade hodierna, pois não é tarefa difícil observar os documentos e relatos dos crimes e das penas aplicadas e perceber a quantidade de pessoas negras como sujeitos ativos do crime. Como também, não é difícil notar a diferenciação na forma de abordagem e exposição que é realizada para com o negro da forma que se faz com os brancos e ricos.

Entretanto, esses aspectos contrapõem a previsão constitucional do artigo 3º que expressa os objetivos fundamentais e basilares da república federativa deste país, qual seja, promover sempre o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, como também construir uma sociedade livre, justa e solidária e ainda erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Conquanto, todo esse discurso teórico acerca da igualdade e luta pela erradicação da criminalidade e marginalização tem suas estruturas estremecidas, uma vez que, é perceptível a indefensibilidade de muitas pessoas no que tange sua participação e acesso igualitário a justiça criminal, ao passo que é evidente o poderio de outros para tanto. O que suscita questionamentos quanto a existência de igualdade e isonomia alhures mencionada, aspectos que são garantias da Carta Magna e princípios estatuídos.

Em relação ao controle social exercido, nota-se que aos que exercem o poder, perpetram também o controle de punir e marginalizar, uma vez que é patente que todo o sistema de controle e punição, bem como, toda elaboração das normas e leis processam-se por meio de uma parcela da sociedade que detém o poder, não podendo ser esperado nada além de que expressem suas convicções e intentos a fim de que possam manter o poder e as estruturas sociais continuarem sobre manejo.

Ante o exposto, das perspectivas da ressocialização e da teoria do etiquetamento social, nota-se que ainda estamos deverasmente distante de atingir o status de direitos e igualdade conferidos pela Constituição Federal, uma vez que a inaptidão da sociedade em receber os indivíduos que hora foram encarcerados marginalizando-os apenas perpetua os problemas da criminalidade, tendo o controle social como fator gerador das massas de manobras e padronização da punição e seletividade da pena.

A intenção e interesse dessa discussão, não é de forma alguma afastar a obrigação de responsabilidade pelo cometimento de infrações e delitos, vez que, estas se perfazem em necessidades básicas, para o já mencionado, ordenamento social, requerendo de todos os indivíduo conduta reta e direita perante os preceitos estabelecidos, entretanto, o que se questiona desde o início é a forma, abordagem, aplicação da pena e maneira de recepção social pós-encarceramento que se realiza de diversas formas, e tomam diversas roupagens quando se tratam de classes ou raças distintas.

Sabe-se que o processo de ressocialização, caso efetivado, garantiria a ordem desejada na sociedade, pois que, inseriria no indivíduo o desinteresse para com as práticas delituosas, ao passo que o dignificaria como ser humano pela aplicação justa e igualitária da pena. Tem-se nesse caso a necessidade de haver modificação no cumprimento da pena, de forma a tentar reinserir esse indivíduo seja com a utilização de projetos que o integre e o faça se sentir útil e humano, bem como, com a utilização de auxílio e suporte como meio de o fazer deixar para trás todo o rótulo e lhe inserir maturidade quanto ao seu comportamento e função social.

 

Considerações finais

O presente artigo teve por finalidade trazer à tona a relevante discussão sobre a ressocialização na presente realidade, tanto no que tange as falhas estruturais da sociedade, bem como em relação a falência do sistema carcerário. Com principal objetivo de identificar a efetividade das penas aplicadas, e se tais, geram a esperada e pregada ressocialização. Quanto aos aspectos mencionados, constata-se que se mantivermos essa perspectiva de aplicação da pena, onde há o encarceramento do indivíduo, supressão de sua dignidade, estigmatização e rotulação pós cárcere, certamente será utópica a esperança de que esse indivíduo não volte a delinquir

Dessa forma, percebe-se que, é necessário muito mais do que um amontoado de normas e penas a fim de que seja efetivado o controle social conforme dito alhures, é inadiável a necessidade de que se discuta esses aspectos a fim de modificar todas as estruturas que já se encontram falidas e sem efetividade prática na nossa sociedade.

 

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[1] Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins – UNICATÓLICA. E-mail: [email protected].

[2]  Professor e Orientador do curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins – UNICATÓLICA, Defensor Público-Chefe da União no Estado do Tocantins. E-mail: [email protected].

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