Resumo: Este trabalho trata das consequências do reconhecimento da legalidade das uniões poliafetivas e, porventura, do casamento poligâmico no Brasil em relação aos fundamentos que sustentam juridicamente o crime de bigamia no ordenamento jurídico, mais especificamente, com relação ao bem jurídico tutelado pela norma.
Palavras – chave: Bigamia – Bem Jurídico – Uniões Poliafetivas – Casamento Poligâmico – Direito Civil – Direito Penal.
Abstract: This paper deals with the consequences of recognizing the legality of poly-legal unions and, possibly, of polygamous marriage in Brazil in relation to the grounds that legally support the crime of bigamy in the legal order, more specifically, in relation to the legal interest protected by the norm.
Key – words : Bigamy – Legal interest – Poliaffective Unions – Polygamous Marriage – Civil Law – Criminal Law.
Sumário: 1. Introdução. 2. Uniões poliafetivas: uma descrição do presente e um vislumbre do futuro. 3. O crime de bigamia: bem jurídico tutelado e (i)legitimidade frente às mutações do “direito das famílias”. 3.1. O bem jurídico penal como limite ao direito punitivo. 3.2.- o bem jurídico tutelado no crime de bigamia: breve excurso pela doutrina. 3.3. Bigamia e bem jurídico tutelado em face da legitimação jurídica de uniões poliafetivas. 4. Conclusão. 5. Referências.
1-INTRODUÇÃO
Tem sido comum, na área civil, mais especificamente na seara do Direito de Família, atualmente chamado por muitos de “Direito das Famílias” [1], o reconhecimento de uma enorme “mutação” no conceito de família que ultrapassa o modelo tradicional para abranger várias novas modalidades, inclusive sem, necessariamente, a interposição do casamento.
Nas palavras de Gontijo:
“A família passa a ser vista, pela legislação, como uma entidade mais ampla, que deve ser protegida pelo Estado, estendendo este sua influência a formas não tradicionalmente aceitas de organização familiar. Poder-se-ia entender haver nisso uma tentativa de se ampliar o controle do Estado a aspectos da vida familiar, sobre os quais antes ele não influía, como em relação às uniões estáveis. Tal idéia, contudo, pode ser tão extremada quanto a antiga doutrina francesa, fundada na máxima de Bonaparte, segundo a qual, se os concubinos se esquecem ou passam à margem da lei, a lei se desinteressa deles. O alargamento da noção jurídica de família exige proteção e regulamentação dos efeitos da união estável. Mesmo no direito francês, embora não existindo previsão legal, a jurisprudência vem conferindo efeitos e conseqüências ao concubinato. De acordo com essa interpretação, a lei procura aproximar-se mais da realidade social das famílias, adotando novos conceitos e modelos. Como afirma Francisco José Ferreira Muniz "as formas de vida familiar à margem dos quadros legais revelam não ser essencial o nexo família-matrimônio: a família não se funda necessariamente no casamento, o que significa que o casamento e família são para a Constituição realidades distintas. A Constituição apreende a família por seu aspecto social (família sociológica). E do ponto de vista sociológico inexiste um conceito unitário de família". A Constituição passa a reconhecer, então, a multiplicidade de formas de famílias presentes na sociedade, ao afirmar que ela pode ou não ser fundada no casamento, pode ou não ser nuclear (como no caso das famílias monoparentais, por exemplo). Mesmo assim, expressa claramente que tais uniões devem ser incentivadas pela lei a se converterem em casamento. Aqui se encontra a idéia de que a família deve ser tutelada pelo Estado, atuando no sentido de proteger as organizações familiares. Agora, porém, partindo de uma noção ampliada de família. As uniões estáveis ou extramatrimoniais, conquanto socialmente existentes em todos os tempos, são recentemente normatizadas, sobretudo a partir da Constituição de 1988, que as contempla como base de família. É facultado às pessoas escolherem um modelo de família”.[2]
No seio desse quadro plural e diferenciado exsurgem as propostas de reconhecimento jurídico das chamadas “uniões poliafetivas” (que se constituiriam não somente entre dois parceiros ou parceiras, mas podendo ampliar o número de conviventes), o que, certamente, ao menos de forma indireta, atinge o chamado “princípio monogâmico” tradicionalíssimo na conformação das famílias.
Eventual mutação que venha realmente a ocorrer de forma ampla e definitiva no campo civil, provavelmente deverá ser avaliada com relação às suas possíveis repercussões na seara criminal, especialmente no que se refere ao crime de Bigamia, previsto no artigo 235, CP. A questão tem grande relevância, dadas suas potenciais consequências quanto à retração do direito de punir estatal ou a manutenção do “status quo” perante as mudanças que se apresentam na conformação do conceito de família no âmbito civil.
Este trabalho tem por finalidade realizar um prognóstico sobre as possíveis consequências da mutação do conceito de família, especialmente com relação ao reconhecimento de “uniões poliafetivas”, quanto à base de sustentabilidade da legitimação do crime de bigamia no ordenamento jurídico brasileiro.
Anote-se, por oportuno, que tudo quanto será exposto não versa sobre conceitos morais, sejam eles pessoais dos autores deste trabalho, sejam aqueles cultivados pela população em geral. O problema será analisado com absoluta imparcialidade e isenção, estritamente sob o ângulo jurídico.
Em um primeiro item será exposto, em linhas gerais e sumárias, o estado da arte quanto ao reconhecimento doutrinário, prático e jurisprudencial das “uniões poliafetivas”, procurando realizar um primeiro prognóstico quanto à possibilidade de que tais uniões venham a obter plena legitimação no Brasil.
No seguimento, levar-se-á a efeito um estudo sobre a importância do bem jurídico para a legitimação da previsão de uma conduta como criminosa, apontando, especificamente, qual o bem jurídico tutelado, segundo a doutrina, pelo crime de Bigamia. Nesse ponto, será possível realizar um segundo prognóstico relevante, qual seja, qual o possível futuro dessa infração penal diante das mutações do chamado “Direito das Famílias”?
Em arremate, serão revisados os principais pontos abordados ao longo do trabalho, apresentando-se uma análise conclusiva sobre o tema proposto.
2-UNIÕES POLIAFETIVAS: UMA DESCRIÇÃO DO PRESENTE E UM VISLUMBRE DO FUTURO
Nada mais óbvio do que o fato de que as chamadas “uniões poliafetivas” ensejem uma resistência no mundo social e jurídico, tendo em vista a tradição monogâmica que constitui o modelo tradicional de família no Brasil.
Não obstante, Tartuce noticia que já há dois casos de lavratura de escrituras públicas de reconhecimento de uniões poliafetivas. A primeira, no ano de 2012, do Tabelionato de Tupã – SP, envolvendo um homem e duas mulheres. A segunda, em 2015, do 15º. Ofício de Notas do Rio de Janeiro – RJ, na Barra da Tijuca, envolvendo três mulheres (“união homopoliafetiva”). Segundo o autor, esses atos notariais não padecem de nulidade por “ilicitude do objeto”, nos termos do artigo166, II, do Código Civil, conforme alegado por outros juristas.[3]
Para o autor em destaque a monogamia é princípio do casamento e não da união estável, pois o que o Código Civil estabelece é que não podem se casar as pessoas já casadas, “sob pena de nulidade do segundo casamento” (inteligência dos artigos 1521, VI c/c 1548, CC). [4]
Ademais, o casamento é que implica em dever de “fidelidade” nos termos do artigo 1566, I, CC. Quanto à união estável, não se fala em “fidelidade”, mas em “lealdade” entre os companheiros (artigo 1724, CC). Pode-se pensar que a “lealdade” implicaria em “fidelidade”, mas isso não corresponde à realidade. Conforme leciona Tartuce:
“é possível que alguém seja leal sem ser fiel. Imagine-se, nesse contexto, um relacionamento de maior liberdade entre os companheiros, em que ambos informam previamente que há a possibilidade de quebra de fidelidade, e que aceitam tais condutas”.[5]
Por isso o autor critica a posição da Corregedoria do CNJ que, por meio de Resolução, determinou o impedimento de lavratura de escrituras públicas de uniões poliafetivas no ano de 2016, questão que continua em suspenso no aguardo de uma decisão final. [6]
O fundamento da recomendação de suspensão feita pelo CNJ seria a alegação de que a expressão "união poliafetiva" visa validar relacionamentos com formação poligâmica, em violação ao §3º do art. 226 da CF, que limita "a duas pessoas a constituição de união estável".[7] Porém, a simples leitura do dispositivo constitucional aponta para o fato insofismável de que não há ali nenhuma menção expressa à limitação da união a somente duas pessoas. Na verdade, o que o § 3º., do artigo 226, CF afirma é que é reconhecida a união estável “entre o homem e a mulher” como entidade familiar. O constituinte se refere, portanto, ao homem e à mulher, mas não limita, em momento algum, o número de homens e mulheres, fazendo menção clara e evidentemente aos sexos em que se bipartem os seres humanos. É claro que alguém poderia interpretar que o dispositivo se refere restritivamente a um homem e uma mulher. No entanto, essa interpretação não pode ser considerada como aquela que se faz de um texto expresso e induvidoso. Muito ao reverso, ao fazer referência ao homem e à mulher, parece muito mais correto que esteja trabalhando com os sexos e não estabelecendo um número de integrantes da união, pois, se assim o quisesse, poderia simplesmente ter escrito na Constituição um homem e uma mulher.
Como já mencionado anteriormente, há, porém, entendimento de que as escrituras públicas lavradas a respeito de uniões poliafetivas constituiriam atos jurídicos nulos por ilicitude de seu objeto, ao menos no que tange aos seus efeitos na área do “Direito de Família”.
Simão, por exemplo, afirma que essas escrituras são nulas, sequer admitindo eventual aproximação com o caso dos casamentos homoafetivos já admitidos pelo STF e por Resolução do CNJ. Em suas palavras:
“O Código Civil e a Constituição Federal brasileira não exigem dualidade de sexo como elemento de existência do casamento. Se muda a realidade social, mudam também os elementos de existência do casamento.
Assim, o STJ, ao admitir o casamento de pessoas do mesmo sexo, apenas percebeu que o conceito de casamento se alterou com o passar dos séculos. Não se trata mais de união entre o “homem e a mulher”, mas sim de união entre “pessoas”.
O mesmo não pode se dizer da poligamia escriturada. Não se trata de elemento de existência, mas sim de requisito de validade do negócio jurídico. Havendo causa de proibição legal, seja ela culminada de sanção penal ou civil, a afronta à norma cogente acarreta nulidade absoluta da escritura poligâmica.
A única conclusão que se chega é que e escritura é nula, nos termos do artigo 166, por motivo evidentemente ilícito (contra o direito) e por fraudar norma imperativa que proíbe uniões formais ou informais poligâmicas”.[8]
O autor em destaque faz uma diferenciação entre “elemento de existência” do casamento e “requisito de validade do negócio jurídico”, com indicação de fundamento da nulidade da união poliafetiva no artigo 166, II, CC (nulidade do negócio jurídico por ilicitude do seu objeto). A nulidade se daria devido ao fato de que o Código Civil, no artigo 1521, VI, prevê expressamente impedimento de que uma pessoa já casada venha a casar-se, e o artigo 1548, II, CC, estabelece a nulidade do casamento por “infringência de impedimento”.
Afirma, porém, que nem o Código Civil, nem a Constituição apresentam como “elemento de existência” do casamento a dualidade de sexos. No entanto, o artigo 1514, CC é expresso ao dizer que o casamento se perfaz quando “homem e mulher” expressam sua vontade perante o juiz de paz. Realmente o Código Civil e a Constituição não conceituam “família” nem “casamento”, de modo que não fazem, num “conceito”, menção expressa ao sexo dos nubentes. Entretanto, a menção é expressa à dualidade sexual no momento em que o ato jurídico do casamento se concretiza (inteligência do artigo 1514, CC). E isso então também poderia ser erigido a requisito de validade do negócio jurídico, dependendo da interpretação que se dê à questão. Também o artigo 1723, CC exige, para o reconhecimento da união estável, que esta se dê entre um “homem e uma mulher”, assim como a Lei da União Estável (Lei 9.278/96), em seu artigo 1º., faz a mesma exigência expressa. Por outro lado, a Constituição também exige sim expressamente o requisito de dualidade de sexos para o reconhecimento da união estável no artigo 226, § 3º.
Dessa forma, parece que não assiste razão a Simão em sua pretensão de afastar qualquer similitude entre o casamento ou união estável homossexual e a união poliafetiva. Tem razão o autor ao afirmar que o STF reconheceu que o conceito de casamento teria “evoluído” com o tempo, não mais se restringindo à união entre “homem e mulher”, mas ampliando-se para a união entre “pessoas”, independentemente do sexo ou orientação sexual. Não obstante, não é sustentável seu intento em distanciar totalmente a abordagem feita pelo Pretório Excelso no caso do casamento ou união homossexual e as uniões poliafetivas, sob o argumento de que se tratava num caso (homossexualidade) de uma nova interpretação de “elementos de existência” e noutro (união poliafetiva) de “requisitos de validade do negócio jurídico”. Logo de início, não é verdade que a lei e a Constituição não mencionam expressamente os sexos dos companheiros ou cônjuges (basta ler os dispositivos). Isso não impediu o reconhecimento dos casamentos e uniões homossexuais. Depois, embora seja fato que a lei proíbe o casamento de quem já é casado, e isso possa ter aplicação por extensão expressa para as uniões estáveis, nos termos do artigo 1723, § 1º., CC (que aplica às uniões estáveis os mesmos impedimentos previstos para o casamento, inclusive o do artigo 1521, VI, CC, a não ser que a pessoa casada esteja separada de fato ou judicialmente). Ainda assim, tal como o STF desprezou, por entender anacrônica, a exigência de diversidade sexual dos nubentes ou companheiros, seria totalmente viável, até com maior facilidade, o acolhimento da legalidade das uniões poliafetivas e, pode-se dizer mais, em um futuro, “de lege ferenda” ou mesmo por construção jurisprudencial, o afastamento da exigência da monogamia mesmo no casamento. Observe-se que neste caso realmente nada há na Constituição que determine o chamado “Princípio Monogâmico”. Existem sim óbices nas leis ordinárias, seja no Código Civil (artigo 1521, VI e 1723, § 1º.), seja no Código Penal (Crime de Bigamia – artigo 235, CP).
A realidade é que o casamento e as uniões estáveis homossexuais foram legitimados pelo STF, no corpo da ADPF 132, recebida como ADIN, e julgada com “eficácia ‘erga omnes’ e efeito vinculante”, bem como pela Resolução CNJ 175/13, ainda que contra a letra da lei e da Constituição, [9] de modo que, a princípio, não se pode enxergar óbice a que o mesmo caminho seja tomado com relação às uniões poliafetivas, as quais, como já visto, não chegam a infringir regra ou princípio constitucional expresso, mas tão somente entrariam em conflito com normas ordinárias que impõem a monogamia.
Neste sentido entende Maria Berenice Dias que a monogamia é apenas uma “regra de orientação”, a qual deve se harmonizar com os princípios fundamentais da República. A autora cita Carlos Eduardo PianovskiRuzyk, afirmando:
“Não se trata (a monogamia) de um princípio estatal de família, mas sim de uma regra restrita à proibição de múltiplas relações matrimonializadas, constituídas sob a chancela do Estado”. E prossegue: “Ainda que a lei recrimine de diversas formas quem descumpre o dever de fidelidade, não há como considerar a monogamia como princípio constitucional, até porque a Constituição não a contempla”. [10]
Entretanto, não há confundir as “uniões poliafetivas” com as chamadas “famílias paralelas”. Nas primeiras há uma convivência entre os vários integrantes do núcleo familiar com ciência e lealdade. Nas segundas, um dos parceiros tem outra família sem o conhecimento dos demais envolvidos.
Conforme escólio de Pereira:
“Em alguns casos tem-se uma família paralela, em outros apenas uma relação de amantes e da qual não háconsequências jurídicas. Na união poliafetiva, todos os envolvidos sabem da existência das outras relações, e muitas vezes vivem sob o mesmo teto compartilhando entre si os afetos”. [11]
Também chama atenção para essa distinçãoVecchiatti:
“Primeiro, há que se diferenciar a união poliafetiva das famílias paralelas. Famílias paralelas são aquelas formadas por diferentes núcleos familiares que têm ao menos um integrante comum mantendo comunhão plena de vida e interesses com estes distintos núcleos. Logo, trata-se de situação fática na qual uma pessoa forma mais de uma família conjugal por se relacionar com duas ou mais pessoas que não mantém uma tal relação entre si. Já a união poliafetiva é aquela formada por três ou mais pessoas que mantém uma comunhão plena de vida e interesses entre si”. [12]
É preciso ressaltar que a jurisprudência dominante não tem conferido validade a “famílias paralelas”, tal como advertem Fell e Sanches:
“Denota-se que a jurisprudência dominante não reconhece a união paralela como união estável, salvo se configurada separação de fato ou judicial entre os cônjuges”. [13]
E esse rechaço às “famílias paralelas” no STF e no STJ se dá com fulcro exatamente no chamado “Princípio Monogâmico” e não com assento na questão da falta de lealdade. [14]
Outra questão diz respeito ao argumento de que se a bigamia (em relação ao casamento) é vedada, mesmo que haja conhecimento de todos os envolvidos, também o deveria ser com referência às uniões estáveis. Vecchiatti bem expõe o problema:
“Outro argumento anota que, se a bigamia é proibida (e inclusive constitui crime) e, portanto, se não é possível a família conjugal matrimonializada entre mais de duas pessoas, também não o seria a família conjugal não-matrimonializada. Parece-nos que o argumento seria decorrente de interpretação lógica – pela lógica da proibição legal à bigamia, a poligamia e a união estável polígama também estaria proibida, já que o art. 1.723, §1º, do Código Civil diz que não se considera em união estável quem incidir em algum dos impedimentos matrimoniais. Embora Maria Berenice Dias tenha apontado, (…), que a lei restringe a proibição da bigamia somente ao casamento civil, não à união estável (já que, segundo a melhor hermenêutica, restrições de direitos só existem quando expressas na legislação), cabe reconhecer que este argumento tem uma boa consistência legal (infraconstitucional), ainda mais se nos pautarmos pela isonomia que deve existir entre casamento civil e união estável. Entendemos, todavia, que essa “interpretação lógica” é superável pela consideração de que o rol de entidades familiares do art. 226 da CF/88 é meramente exemplificativo, não taxativo, de sorte ser juridicamente possível o reconhecimento de entidades familiares autônomas, além daquelas previstas nos parágrafos de dito dispositivo constitucional. Afinal, com base nas lições doutrinárias (…) de Paulo Lôbo, Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, a família se forma sempre que houver uma união pautada pela afetividade e estabilidade. Na ADPF 132 e na ADI 4277, o Ministro Gilmar Mendes afirmou, com precisão que “[o] fato de a Constituição proteger, como já destacado pelo eminente Relator, a união estável entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção – nem poderia ser – à união civil, estável, entre pessoas do mesmo sexo” (p. 44 do voto). Logo, o mesmo pode ser afirmado sobre as uniões poliafetivas: a proteção das monoafetivas não implica negativa de proteção às poliafetivas. Entendemos que em uma democracia, ao menos em regra, somente são válidas restrições de direitos se o povo expressamente com elas anuiu, por intermédio de textos normativos. Direitos podem ser concedidos por analogia, mas restrições de direitos não. Entendemos que se pode atenuar judicialmente essa regra apenas em hipóteses de ordens constitucionais de legislar, que imponham a criação de normas restritivas de direitos, caso caracterizada a omissão inconstitucional em tal tema, já que neste caso a vontade do povo em prol de tal restrição de direitos, objetivamente aferível na ordem de legislar (manifestação do Poder Constituinte Originário ou Reformador), estará sendo desrespeitada. (…). Portanto, sempre teremos uma família quando houver uma comunhão afetiva e plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura”.[15]
De acordo com os entendimentos doutrinários acima expostos por Vecchiatti, a limitação numérica que a lei ordinária impõe poderia ser relativizada com referência às uniões estáveis, uma vez que a Constituição Federal não abriga o “Princípio Monogâmico”, mas um conceito bem amplo de família, com fulcro no afeto e no caráter estável do relacionamento. Isso revela que há ao menos uma forte corrente doutrinária a defender a possibilidade de reconhecimento da união poliafetiva como entidade familiar geradora de efeitos nessa seara. Essa tendência ao reconhecimento da união poliafetiva, tal como aconteceu com as uniões homoafetivas, indica para uma consequente tendência de revisão do conceito e dos impedimentos matrimoniais de modo a ultrapassar o modelo monogâmico tradicional regulado na legislação ordinária civil e penal.
3-O CRIME DE BIGAMIA: BEM JURÍDICO TUTELADO E (I)LEGITIMIDADE FRENTE ÀS MUTAÇÕES DO “DIREITO DAS FAMÍLIAS”
3.1-O BEM JURÍDICO PENAL COMO LIMITE AO DIREITO PUNITIVO
A partir do reconhecimento do chamado “Princípio da Exclusiva Proteção de Bens Jurídicos” pelo Direito Penal, não mais é possível admitir a promoção de uma determinada conduta em infração penal se tal opção político – criminal não estiver amparada na tutela de um bem jurídico com dignidade penal.
De acordo com essa concepção, reinante no Direito Penal hodierno, o Direito Penal não é instrumento adequado para tutelar a moral, funções administrativas governamentais, alguma ideologia ou religião, entre outras coisas, mas, exclusivamente, “os bens jurídicos mais relevantes”.[16]
Conforme ensinamento de Estefam e Gonçalves pode-se atribuir a Feuerbach, considerado por muitos como o “pai do Direito Penal Moderno”, a originalidade da visão, centrada numa concepção contratualista, segundo a qual o crime seria encarado como “uma ofensa a um direito subjetivo individual”. No seguimento, Birnbaum teria recuperado tal tese, defendendo, contudo,que não seria missão do legislador a criação e bens jurídicos, mas apenas a função de sua garantia. Por seu turno, Binding, em finais do século XIX leva a questão ao patamar onde hoje se acha, postulando quer cabe ao Direito Penal tutelar bens jurídicos. De acordo com Binding, “o bem seria o interesse juridicamente tutelado e a norma o meio (eficaz) para sua proteção, em face da ameaça de pena”. Restava, porém, determinar o que seria exatamente um “bem jurídico”, e mais, quais bens jurídicos teriamdignidade de proteção por intermédio do Direito Penal. Franz vonLizst, no começo do século XX, afirma que os bens jurídicos seriam “interesses juridicamente protegidos”, seja de caráter individual ou coletivo. O conceito de Lizst é submetido à crítica, especialmente tendo em consideração a dificuldade de determinar de forma genérica e cabal quais seriam os interesses humanos dignos de proteção penal. Seria necessário buscar um critério mais objetivo e menos variante para a orientação da dogmática. No seio do neokantismo, Mayer e Honig, na primeira metade do século XX, sustentam que é o legislador quem “cria” os bens jurídicos de acordo com as circunstâncias e conveniências culturais e sociais em que se acha imiscuído. Não havia ainda, contudo, uma noção clara do bem jurídico penal como um limitepara a produção de normas penais. Já com o finalismo, tendo como grande expoente, na década de 1930, Hans Welzel, continua prevalecendo a função do Direito Penal de tutelar bens jurídicos, mas já surge uma preocupação com o delineamento de limites quanto à atividade do legislador na seleção desses bens considerados dignos de proteção penal. Ali já se aponta a necessidade de que, para merecer a tutela específica do Direito Penal, um bem jurídico deve ser “vital” para a coletividade ou para os indivíduos. Atualmente, no bojo do século XXI, impõe-se uma concepção “constitucionalista do Direito Penal, com suas características de subsidiariedade e fragmentariedade. Dessa maneira, o bem jurídico não pode deixar de ser “a expressão de um valor constitucional”. [17]
Percebe-se que o nascimento do conceito de bem jurídico, assim como todo seu desenvolvimento, apontam para uma finalidade de limitação e não de legitimação ou fundamentação genérica com relação ao “ius puniendi” estatal. [18] Trata-se de um conceito “negativo”, que visa conter a arbitrariedade ou a subjetividade do legislador no momento da criação de tipos penais. [19]
Não obstante se tenha já hoje clara a noção de que o bem jurídico serve como limite ao poder de punir estatal e que esse limite deve ser buscado nas normas constitucionais a indicarem quais são os interesses coletivos e individuais dignos de proteção, há que destacar o escólio bem posto de Paschoal, quanto ao fato de que é preciso adicionar a tudo isso a observação de que um bem jurídico deve ser objeto de proteção penal, não somente porque esteja previsto como um interesse social ou individual na Constituição, mas porque, de acordo com a proporcionalidade, a subsidiariedade e a fragmentariedade, seja necessária a proteção especificamente criminal daquele bem. E suas palavras:
“Eventual necessidade de tutela penal não pode resultar de uma análise meramente formal, ou seja, não é razoável propugnar que o legislador está obrigado a criminalizar exclusivamente em função do reconhecimento de um determinado bem jurídico (ou direito fundamental) por parte da Constituição Federal, mas, sim, em razão da carência efetiva de tutela de tal natureza”. [20]
O autor lusitano Figueiredo Dias também aponta para a conformação “subsidiária (ou de ‘ultima ratio’) de bens jurídicos dotados de dignidade penal”. Destaca, entretanto, que essa noção do que seja efetivamente um bem jurídico penal, muito embora básica para a configuração do Direito Penal hodierno, não ensejou, até agora, uma determinação nítida e segura (e pode ser que nunca venha a ter essa característica de segurança ou determinação). Há ingente dificuldade em tornar a noção de bem jurídico penal um “conceito fechado e apto à subsunção”, com capacidade de delineação, afastada qualquer dúvida razoável, de uma ”fronteira entre o que legitimamente pode e não pode ser criminalizado”.[21]
Contudo, é fora de qualquer dúvida o fato de que atualmente não é concebível a criação ou mesmo a manutenção de condutas incriminadas sem que haja a possibilidade de identificar um bem jurídico a ser tutelado por meio da repressão criminal.
3.2-O BEM JURÍDICO TUTELADO NO CRIME DE BIGAMIA: BREVE EXCURSO PELA DOUTRINA
O crime de Bigamia, previsto no artigo 235, CP, está localizado no Título VII – Dos Crimes Contra a Família, Capítulo I – Dos crimes contra o casamento. A família e, por consequência, o casamento, bem como outras formas de constituição da família (v.g. união estável), são dotados de dignidade constitucional, conforme disposto no artigo 226 e parágrafos, CF. Por isso, desde logo, Celso Delmanto e outros, vislumbram no crime de bigamia legitimação constitucional pela proteção da “organização da família”.[22]
Segundo Nucci, o interesse estatal tutelado no crime de bigamia seria a “preservação do casamento monogâmico”. [23]
Na mesma toada, o ensinamento de Damásio, ao aduzir que no crime de bigamia, “a lei penal tutela a ordem jurídica matrimonial, assentada no princípio do casamento monogâmico". [24]
Para Greco o bem juridicamente protegido na bigamia seria “a instituição do matrimônio, relativa ao casamento monogâmico”, embora também não se deixe de proteger “a família” (grifos no original). [25]
Bitencourt aponta como bem jurídico tutelado na bigamia o interesse estatal na proteção da organização jurídica do matrimônio, tendo em destaque o chamado “princípio monogâmico”, que “é adotado, como regra, nos países ocidentais”. [26]
Finalmente apresenta-se o escólio de Mirabete e Fabbrini:
“Com a incriminação da bigamia protege-se, como objeto jurídico, no âmbito geral da organização familiar, o casamento monogâmico, regra na quase totalidade dos países da civilização cristã ocidental. A poligamia, e nesta a poliandria, atacam a ordem jurídica nas suas fundamentais exigências referentes às formas de convivência social estabelecidas pelos termos culturais vigentes”. [27]
Considera-se desnecessária a exposição de mais manifestações doutrinárias acerca do bem jurídico tutelado pelo crime de bigamia, podendo-se afirmar, com segurança, que é consenso tratar-se da proteção da família e do casamento monogâmico.
3.3-BIGAMIA E BEM JURÍDICO TUTELADO EM FACE DA LEGITIMAÇÃO JURÍDICA DE UNIÕES POLIAFETIVAS
Como já frisado na introdução do presente trabalho, independentemente das convicções morais dos autores e de qualquer pessoa, fato é que está em andamento uma dinâmica alteração e ampliação do conceito de família no Brasil e no mundo ocidental em geral. Trata-se de fato empírico que não comporta ser ignorado pelo mundo jurídico, sob pena de que esse mundo jurídico torne-se alienado e estéril diante da realidade que se lhe impõe. É evidente que essa alteração do conceito de família tem direta influência na noção e no regramento da instituição do casamento civil, bem como no reconhecimento das mais diversas formas de uniões estáveis.
Como adverte Cruet, não se pode aderir à “ilusão do legislador” de que pode “criar todo o direito” e nem à “ilusão do juiz que quer tirar todo o direito da lei”. [28]
É bem verdade que, como aduz Goyard – Fabre, o mundo do Direito tem uma face autopoiética, tal qual bem demonstraram Willke e Luhmann, apropriando-se do conceito de autopoiese,criado na década de 1970, pelos biólogos Francisco Varela e Humberto Maturana, para se referirem à capacidade de sistemas biológicos fechados produzirem-se a si mesmos.[29]Efetivamente o Direito se autoproduz, mas isso não lhe concede o apanágio de ignorar ou desprezar o contexto em que se encontra inserido. Como bem destaca Neves, o autopoiese do Direito encontra limites no fato de que também sofre influências externas em sua conformação, fenômeno este que o autor denomina de “alopoiese”. A “alopoiese” incapacita o Direito com relação a uma “autoprodução consistente ou fechamento operativo”, ou seja, não pode se manter infenso às influências filosóficas, sociais, econômicas etc.[30]
No que tange ao casamento e às uniões estáveis, já vimos o reconhecimento da homoafetividade. Como já demonstrado neste texto, embora haja entendimentos de que a questão da homoafetividade teria nuances importantes que a distinguiriam das uniões poliafetivas e que seriam fatores impeditivos de um mesmo percurso evolutivo, é perfeitamente imaginável, e até mesmo prognosticável, que as uniões poliafetivas hetero e homoafetivas acabem, com o tempo, ganhando terreno em termos de reconhecimento jurídico, sendo, inclusive, capazes de ensejar alterações no próprio conceito de casamento exclusivamente monogâmico, conforme previsto no Código Civil e tutelado penalmente pelo Código Penal. A questão sobre a distinção entre “requisitos de validade” e “elementos de existência” do ato jurídico pode, perfeitamente, ser contornada por uma interpretação conforme a Constituição e, especialmente, por uma alteração legislativa no nível ordinário, ajustando o Direito posto à realidade social.
Nesse quadro de possibilidades não é desprezível a hipótese de que, num futuro, as uniões estáveis poliafetivas sejam permitidas e reconhecidas e que, num segundo passo, alterações legislativas ampliem a possibilidade do casamento para o modelo poliafetivo ou poligâmico.Como já visto neste trabalho, o chamado “Princípio Monogâmico” não tem assento constitucional, sendo fruto da regulamentação do casamento no nível da legislação ordinária.
Nessa situação, em que se considerem legais as uniões poliafetivas e também o casamento poligâmico, a alteração dos conceitos civis necessariamente afetará a questão penal no que tange à incriminação da bigamia. Na verdade, o reconhecimento inicial das uniões estáveis poliafetivas, já começará a minar a legitimidade das proibições civis do casamento restrito ao modelo monogâmico e, consequentemente, também iniciará uma erosão quanto à legitimação da punição criminal da bigamia.
Ao reverso do que propõe Simão para quem a admissão da poligamia como uma forma de família legítima, dependeria de revogação do Código Penal (Crime de Bigamia) e do Código Civil (impedimento e nulidade), [31] na realidade, seria a mudança social e de costumes que influenciaria na deslegitimação da legislação antes referida e provocaria sua alteração.
É preciso atentar para a observação de Hironaka em uma abordagem transdisciplinar entre o Direito Civil e o Direito Penal quanto à proteção da família:
“Os mecanismos do Direito Penal postos à disposição da asseguração desta proteção incumbida ao Estado, portanto, devem ver e entender o conceito de família tal qual ele se apresenta hoje, reescrito em múltiplos modelos, para além do tradicional modelo matrimonializado e patriarcalista, como por exemplo, a família informal, a família monoparental, a família anaparental, a família hetero ou homoafetiva, a família biológica ou socioafetiva, a família mosaico ou reconstituída, entre tantos outros arranjos familiares. Esta é a nova feição da família: plural, democrática, igualitária, afirmando-se o seu caráter instrumental e tornando-se meio de promoçãoda pessoa humana, à busca de seu projeto pessoal de felicidade. A família eudemonista, enfim”. [32]
Com fulcro numa interpretação segundo a Constituição, já é possível, na atualidade mesmo, encontrar entendimentos que deslegitimam, desde logo, o crime de bigamia no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista a defesa do reconhecimento das uniões poliafetivas. Neste sentido Vecchiatti:
“Dessa forma, considerando que o princípio da igualdade veda diferenciações jurídicas desprovidas de fundamentação lógico-racional que as justifiquem com base nos critérios diferenciadores erigidos, entendemos ser inconstitucional a criminalização da bigamia (art. 235 do Código Penal) e também inconstitucional o impedimento matrimonial ao casamento civil entre pessoas casadas (artigo 1.521, VI, do Código Civil), por inexistente motivação lógico-racional que justifique a negativa de reconhecimento jurídico às famílias conjugais poliafetivas que não gerem a opressão de um cônjuge relativamente ao(s) outro(s)”.[33]
Sob o prisma penal e de acordo com o “Princípio de exclusiva proteção de bens jurídicos”, a admissão de uniões poliafetivas por si só, com a consequente erosão da monogamia como modelo familiar, ou mais, com a alteração das regras do casamento, admitindo-se a poligamia, restaria totalmente dizimada a legitimação da incriminação da bigamia. Afinal, o bem jurídico tutelado teria simplesmente desaparecido do contexto social e até mesmo jurídico. A família poligâmica seria admitida e também as uniões estáveis e o casamento poliafetivo. Dessa forma os bens jurídicos apontados hoje pela doutrina de forma consensual se desvaneceriam totalmente.
Outro princípio constitucional limitador do direito de punir estatal entraria em jogo. Trata-se do “Princípio da Alteridade ou da Transcêndência”, bem delineado por Feinberg ao chamá-lo de “HarmPrinciple” e dividi-lo em “Harmtoothers” e “Offensetoothers”, distinguindo-os de “Harmto self” e Harmlesswrongdoing e deixando bem evidenciada a diferença entre o dano ou a ofensa a terceiros, o dano a si próprio e a conduta simplesmente imoral.[34] Fato é que a partir do momento que sejam reconhecidas as uniões poliafetivas e até mesmo o casamento, essa opção somente dirá respeito aos envolvidos, não havendo interesses de terceiros tuteláveis. Qualquer espécie de reprovação à conduta terá caráter moral, o que não pode ser objeto de repressão jurídico – penal.
Com o esvaziamento do bem jurídico tutelado pelo crime de bigamia na atualidade, em eventual mudança do quadro na área cível, também passará tal ilícito a infringir o “Princípio da Lesividade, da Ofensividade ou do Direito Penal do Dano”, uma vez que passaria a constituir uma conduta incriminada sem que houvesse lesão a qualquer bem jurídico ou interesse jurídica e socialmente digno de tutela. Na realidade, a incriminação da bigamia configuraria uma desarmonia sistemática entre o que se entenda por ilícito civil e ilícito penal, sendo inadmissível que algo que seja considerado lícito nos campos civil ou administrativo, possa ser, ao mesmo tempo, um ilícito penal. De acordo com a lição de Figueiredo Dias:
“As causas de justificação não têm de possuir caráter especificamente penal, antes podem provir da totalidade da ordem jurídica e constarem, por conseguinte, de um qualquer ramo do direito. Esta verificação (…) é compreensível e, ao menos numa larga medida, indiscutível: se uma ação é considerada lícita (conforme ao ‘direito’) pelo direito civil, administrativo ou por qualquer outro, essa licitude – ou ausência de ilicitude – tem de impor-se a nível do direito penal, pelo menos no sentido de que ela não pode constituir um ilícito penal”.[35]E prossegue o autor, apresentando, em reforço, a formulação de Merkel: “sempre que uma conduta é, através de uma disposição do direito, imposta ou considerada como autorizada ou permitida, está excluída, sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo e com base num preceito penal, ser tida como antijurídica e punível”. [36]
Observe-se que o antigo crime de adultério sofreu revogação, mesmo permanecendo como ilícito civil por violação do dever de fidelidade inerente ao casamento. O que dizer então, em um projetado futuro em que as uniões poliafetivas e, quiçá, os casamentos poligâmicos sejam admitidos, com relação ao atual crime de bigamia? As razões que apontavam para a eliminação do adultério como crime, permanecendo apenas como ilícito civil, se multiplicam imensamente no que diz respeito à questão da poliafetividade.
É claro que a bigamia ou poligamia que se imagina aceitável diante de uma nova ordem como lícita sob os prismas civil e penal, seria, necessariamente, aquela em que todos os envolvidos têm plena ciência das circunstâncias da união e a aceitam. A bigamia, por exemplo, às ocultas de um dos envolvidos ou de mais de um deles – assemelhando-se às “famílias paralelas” -, certamente viola o dever de “lealdade”, de forma que poderia subsistir como ilícito penal ou somente civil em uma nova ordem. O que nos parece é que, tal qual o adultério, essa espécie de violação do dever de “lealdade” no casamento ou união estável poliafetivos deveria reduzir-se a mero ilícito civil, tal qual hoje ocorre com o adultério. A diferença seria que para quem optasse pelo casamento ou união estável monogâmicos, haveria o ilícito civil por violação do dever de “fidelidade”, enquanto que no casamento ou união estável poligâmicos, o ilícito civil decorreria da infração à “lealdade”.
4-CONCLUSÃO
O presente trabalho teve por objetivo o estudo e a realização de um prognóstico, despido de qualquer impressão de caráter moral, acerca das chamadas uniões poliafetivas e os possíveis efeitos que seu reconhecimento pode gerar no que se refere ao crime de bigamia. A abordagem foi, portanto, exclusivamente jurídica.
Foi apresentado o estado da arte da discussão acerca a legitimidade das chamadas uniões poliafetivas, constatando-se a existência de grande celeuma no mundo jurídico, com duas ocorrências de expedições de escrituras públicas, ao passo que vigora uma recomendação negativa do CNJ, no aguardo de um posicionamento definitivo. Na doutrina, vozes existem defendendo a possibilidade de reconhecimento legal dessas uniões, bem como aqueles que postulam tratar-se de um ato jurídico nulo porque seu objeto seria ilícito.
Foi estudado o conceito de bem jurídico como limitador do direito de punir do Estado, bem como, especificamente, os bens jurídicos apontados pela dogmática como tutelados pelo atual crime de bigamia. Constatou-se que os bens jurídicos tutelados seriam a organização da família e o princípio monogâmico do casamento, conforme previsto no Código Civil, embora sem previsão expressa (do princípio monogâmico) na Constituição Federal.
A conclusão, diante do quadro exposto, foi a de que se num futuro, próximo ou remoto, vierem a ser reconhecidas as uniões poliafetivas, bem como, por via de consequência possível, o casamento poligâmico, o crime de bigamia perderia sua legitimação diante de princípios que norteiam o direito penal moderno, tais como os de “exclusiva proteção de bens jurídicos”, da “lesividade” e da “alteridade”. Apenas restaria, nos casos de bigamia, em que houvesse engodo de participantes da união, similarmente ao que ocorre com as chamadas “famílias paralelas”, a possibilidade de previsão criminal, mas com maior tendência, para uma sanção de natureza civil, a exemplo do que hoje se opera com o adultério, tendo por base uma violação do dever de “lealdade” que seria a marca dessas uniões poliafetivas ou casamento poligâmicos.
Informações Sobre os Autores
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
Bianca Cristine Pires dos Santos Cabette
Bacharel em Direito, Pós graduanda em Direito Público no Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Inovação Acadêmica Sustentável e Social do Unisal