Breve estudo sobre a política criminal na atualidade e os constantes riscos de violação aos direitos humanos

Resumo: Considerando que a Lei penal foi desvirtualizada desde a sua gênese, passando a ser instrumento de repressão, onde o legislador coloca na Lei o sentimento de justiça social, o presente artigo propõe uma breve análise das modernas tendências de políticas criminais adotadas no Brasil e os riscos de violação aos Direitos Humanos. Para isso, parte do pressuposto de que a Lei é necessária, todavia deve ser limitada a proteger bens jurídicos relevantes. Neste diapasão, fundamenta-se a pesquisa, em observar a influência do clamor social e satisfação rápida e eficaz por parte do legislador, com a edição de leis cada vez mais severas, bem como a utilização do aparato estatal da força policial repressiva e a utilização do Direito Penal como instrumento de combate e repressão à criminalidade, a fim de se obter uma possível solução para os problemas sociais, o que incorre em grande exagero na intensidade de aplicação da força estatal. A pesquisa tem relevância, devido ao momento de inflação legislativa pelo qual passa o país, e se aterá a uma metodologia indutiva e dedutiva, ou seja, busca-se aferir se o excesso de leis, e a intensidade da repressão adotada pelo Estado são capazes de garantir a paz social, sem que viole os Direitos Humanos em constantes conquistas e construção. Buscar-se-á enfatizar que uma política criminal deve ser racional, e isso significa dizer que não se pode deixar levar pelo clamor social, mas deve pautar-se em possibilidades lógicas de solução da criminalidade.


Palavras-chave: Política Criminal. Direito Penal. Inflação Legislativa. Direitos Humanos.


Abstract: Considering that the penalty law has been distorted since its genesis, becoming a instrument of repression, where the legislator put on Law the feeling of social justice, this paper proposes a brief analysis of modern trends in criminal policy adopted in Brazil and the risks of violating Human Rights. To do so, assumes that the law is necessary, but should be restricted to protect property legal issues. In this vein, the research is based on observing the influence of public outcry and satisfaction quickly and effectively by the legislature, with the enactment of increasingly stringent laws and the use of state apparatus and repressive police force’s use of Criminal Law as a tool against crime and punishment in order to obtain a possible solution to social problems, which incurs a great exaggeration in the intensity of application of state power. The research has relevance, due to the timing of legislative inflation through which passes the country, and to hold on to an inductive and deductive methodology, that is, we seek to assess whether excessive laws, and the intensity of repression adopted by the state are able to guarantee social peace, without violating human rights and achievements in constant construction. It will seek to emphasize that criminal policy should be rational, and this means that it can not be carried away by public outcry, but must be based on logical possibilities in solving the criminality.
Key Words: Criminal Policy. Criminal Law. Legislative inflation. Human Rights.


Sumário: I. Introdução. II. Das modernas políticas criminais. III. Política criminal e direitos humanos. IV. Uma nova concepção do direito e processo penal. V. Considerações finais. VI. Referências.


1. Introdução


A relação Direito Penal, Processo Penal e Política criminal advêm da necessidade de regulamentação da ordem social, por meio da instrumentalização de um diploma legal dogmático, pelo qual o resultado determina e justifica a política criminal adotada pelo Estado.


Historicamente, tomando como apoio a idéia de que crime é a violação de um direito subjetivo, a doutrina demonstrou que para cada preceito penal existe um direito subjetivo tutelado. Logo, a proteção deste bem jurídico penalmente tutelado, torna-se o mister do Direito Penal, mas não só tutelar o direito violado, mas como evitar sua lesão.


Franz von Listz (apud CANTERJI, 2008, p. 26) afirma que “todo direito existe para proteger os interesses da vida humana, e esses interesses são chamados de bem jurídico a partir do momento em que ocorre a previsão”.


Hans Welzel (2004, p. 32), por sua vez, assevera que o bem jurídico


“é um bem vital do grupo ou do indivíduo, que, em razão de sua significância social, é amparado juridicamente”. E mais, afirma que “se a missão do direito é a tutela de interesses humanos, a missão especial do direito penal é a reforçada proteção de interesses, que principalmente a merecem e dela precisem, por meio da cominação e da execução da pena como mal infligido ao criminoso.”


Isso significa que a missão do direito penal é amparar valores considerados fundamentais na sociedade, posto que somente ele, tem a capacidade de aplicar pena como conseqüência da infração legal. Entretanto, com tal assertiva, e com amparo na doutrina, é possível dizer que devido a esta característica peculiar, deve ser utilizado em última instância, ou seja, em ultima ratio, quando os demais ramos do direito não forem capazes de resolver o conflito.


Francisco Assis Toledo (1994, p. 06) entende que “bens jurídicos são valores ético-sociais que o Direito seleciona com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”.


Com tal assertiva, fica evidente que um bem jurídico tutelado é dotado de importância social, que por sinal, foi tal importância que levou ao enfoque penal por parte do legislador.


Ademais, por ser a pena a principal característica que diferencia o Direito Penal dos demais ramos, é relevante ressaltar que para que o Direito Penal tenha eficácia e seu objetivo seja alcançado, lançou-se a pena como medida repressora e inibidora da prática delitiva.


José Frederico Marques (1999, p. 139) brilhantemente resume que:


“O Estado pune e castiga porque houve uma conduta humana reprovável que atentou contra os valores primordiais e básicos da convivência social. As sanções extrapenais são insuficientes, em tal caso, para a reparação do mal praticado, e por isso, o Estado reage com mais energia e mais rigor, para impor ao delinqüente a punição merecida.”


Ressalte-se que não é escopo do presente estudo discutir as teorias ou funções da pena, nem tampouco quais seriam os critérios que levaria determinado bem jurídico a ser protegido, apenas se expressa aqui, um pouco de algumas formulações doutrinárias, para que se possa ter um norte para o estudo do tema a ser desenvolvido.


Com o fim da justiça com as próprias mãos, onde prevalecia a força, o que se tornava impossível a harmonia social, e o surgimento do Estado-Poder e do Direito Penal, com a tutela de bens jurídicos definidos, o Estado tem o poder de perseguir o autor do delito e de submetê-lo a um rigoroso procedimento judicial, até que sua responsabilidade delitiva seja finalmente provada, momento em que terá sua sentença decretada.


Destarte, a partir do momento que o Estado avocou a responsabilidade de proteger os bens jurídicos penais e punir quem os viole, proibindo veementemente a autotutela, surgiu o processo penal, sendo do Estado o monopólio do jus puniendi. O que significa dizer que ninguém será punido senão mediante o devido processo penal.


O ordenamento jurídico deu credibilidade e estabilidade às relações sociais, incumbindo ao Direito Processual Penal, tratado como instrumento capaz de garantir a segurança pública, a regulamentação do procedimento de punição do autor do delito.


Neste sentido, ressalvou Salo de Carvalho (2005, p. 89-90) existir:


“uma contraposição entre os direitos fundamentais do imputado e a necessidade de repressão da criminalidade” perfazendo que “os princípios de garantia dos direitos individuais seriam preteridos aos de proteção à segurança, afastando-os momentaneamente como forma de assegurar a devida repressão à criminalidade”.


Logo, o fim do processo penal é a descoberta da verdade e efetivação da lei penal, ou seja, se o indivíduo violou ou não a norma tutelada pelo Direito Penal. Então, nada mais é que a apuração do fato criminoso por meio de atos legalmente ordenados e concatenados.


Entretanto surge aí um dos grandes problemas da seara penal, qual seja a tendência autoritária despertada dos agentes judiciários (Delegados, Policiais, Promotores e Juízes) que reflete diretamente na política criminal traçada pelo Estado, no sentido de eliminar os sujeitos considerados inimigos da sociedade.


Daí surge a grande problemática: como assegurar que a política criminal não seja tendenciosa, e como permitir que ela evolua sem afrontar os limites legais ou supralegais que asseguram os Direitos Humanos? Eis o objetivo deste estudo.


2. Das Modernas Políticas Criminais


Segundo Liszt (apud D’Avila, 2009, p.19) a política criminal


“é a reunião ordenada de princípios, segundo os quais deve ser conduzida a luta da ordem jurídica contra o crime, ou o conjunto sistemático de princípios baseados na investigação científica das causas do crime e conseqüências da pena, segundo as quais o Estado, por meio da pena ou mecanismos a ela análogos, deve conduzir a luta contra o crime”.


Ocorre que as políticas criminais na atualidade são fundamentadas com base nas pesquisas acadêmicas que são levantas nas universidades de vários países. Dentre elas se destacam a tese do abolicionismo, do direito penal máximo e do direito penal mínimo.


A tese abolicionista impulsionada por pesquisadores europeus, propõe o desaparecimento do sistema penal e sua substituição por outras formas de solução dos conflitos, que não a repressora. Defendem a desletigimação do poder punitivo estatal, ante a sua incapacidade de gerir os conflitos aos quais lhe é submetido.


Esta corrente é formada por pensadores extremamente preocupados e comprometidos com a dignidade da pessoa humana, principalmente por entenderem que o Direito Penal é nitidamente direcionado aos pobres, miseráveis, desempregados, e todas aquelas classes de cidadãos marginalizados.


Edmundo Oliveira (apud GRECO, 2009, p. 11) assevera que “ainda prevalece a crença, no seio da coletividade, de que a prisão representa melhor resposta para as inquietações engendradas pelos comportamentos delinqüentes”, o que reforça a tese abolicionista de que a construção de uma sociedade melhor e mais justa só será possível com o fim do sistema penal, pois já está ou sempre esteve, maculado pela ofensa à dignidade do ser humano.


Por sua vez, em contraponto à tese abolicionista, o direito penal máximo tem ganhado força, principalmente nos países vítimas do terrorismo islâmico. Sua principal materialização se faz por meio do movimento lei e ordem que tem como discurso a efetividade da ação repressiva em matéria criminal.


O movimento lei e ordem, surgido nos Estados Unidos, por volta da década de 60, prega um discurso que o direito penal deve ser máximo e eficaz, que nas palavras de Greco (2009, p. 12) faz “a sociedade acreditar ser o Direito Penal a solução de todos os males que a afligem”. E “o convencimento é feito por intermédio do sensacionalismo, da transmissão de imagens chocantes, que causa revolta e repulsa no meio social”.


E seu resultado é a edição de leis cada vez mais severas, como aconteceu no Brasil na década de 90, com a publicação da lei dos crimes hediondos, após a forte pressão da sociedade, com o incansável apoio da mídia.


No mesmo sentido é a teoria da vidraça quebrada ou tolerância zero, que nas palavras de Salo de Carvalho (2005, p. 95) é perceptível


“uma nítida simetria entre as propostas político-criminais propugnadas pelo MLO e as oferecidas pelos defensores da ‘Tolerância Zero’, baseadas no incremento da repressão penal. Todavia, enquanto estes primam pela repressão à criminalidade de rua e bagatelar, entendendo a intolerância como o único mecanismo de prevenção do caos e da desordem social, aqueles reivindicam alta punibilidade às ofensas dos bens jurídicos interindividuais, sobretudo os delitos contra a pessoa e o patrimônio.”


Entretanto, elevada repressão, por si só, não é capaz de combater a criminalidade e garantir a ordem social, apenas apresenta uma aparente tranqüilidade, conforme preconiza Zaffaroni (2005, p. 24):


“vende-se a ilusão de que sancionando leis que reprimam desmensuradamente aos poucos vulneráveis e marginados que se individualizam, e aumentando a arbitrariedade policial, ao legitimar, direta ou indiretamente, todo gênero de violências, inclusive contra quem objeta o discurso publicitário, obter-se-á maior segurança urbana contra o delito comum.”


Outra corrente que tem se destacado é a do Direito Penal do inimigo, que se aproveita do momento de fragilidade pelo qual passa a sociedade, ante os altos índices de criminalidade e crescimento da violência.


Tem como precursor o alemão Gunter Jakobs e parte do pressuposto de que aquele que persiste em infringir a norma penal, violando o bom convívio social, deve ser considerado inimigo e ser afastado definitivamente do meio social.


Segundo sua teoria, seria aplicado o direito penal clássico (do cidadão) unicamente às pessoas que não persistem em delinqüir. Por outro lado, o direito penal do inimigo seria aplicado aos reincidentes, pois segundo ele, “o Direito Penal do cidadão mantém a vigência da norma [prevenção geral e negativa], e o Direito Penal do Inimigo combate o perigo” (JAKOBS, 2005, p. 30).


Para essa teoria, a sociedade se encontra em guerra, sendo os bons contra os maus, devendo o Estado agir preventivamente a fim de prevenir o caos eliminando os inimigos da sociedade, antes que eles a dominam.


Assim, o Estado seria capaz, por meio da segregação entre bons e ruins, de atuar antes da conduta delitiva, aplicando ao “inimigo” o tratamento mais drástico possível, pois este não merece qualquer garantia constitucional ou legal, pois por ser inimigo não é um sujeito de direitos.


Segundo Jakobs (2005, p. 42):


“Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.”


Fica, portanto, evidente, que tal teoria afasta o Direito Penal da regra que objetiva a tutela de um bem jurídico, pois para esta corrente não importa o ato ou a ação, mas o autor, suas características pessoais e sua personalidade.


Zaffaroni (apud CANTERJI, 2008, p. 54), em crítica a tal teoria, afirma que esta se trata de “uma corrupção do Direito Penal, a qual deve reconhecer e respeitar a autonomia moral da pessoa, jamais tendo legitimidade para punir o ser, mas somente o seu agir, já que o Direito Penal regula as condutas humanas”.


Em contrapartida ao direito penal máximo, está lançado a teoria do Direito Penal Mínimo que apregoa ser a finalidade do Direito Penal a proteção de bens jurídicos necessários e vitais ao convívio em sociedade, ou seja, aqueles cuja importância, não são capazes de ser protegido pelos demais ramos do direito.


Nas palavras de Rogério Greco (2009, p. 24):


“O Direito Penal do Equilíbrio tem como ponto central, orientador de todos os outros que o informa, o princípio da dignidade da pessoa humana. O Homem aqui, deve ocupar o centro das atenções do Estado, que, para a manutenção da paz social, deverá somente proibir os comportamentos intoleráveis, lesivos, socialmente danosos, que atinjam os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade.”


Mas é Ferrajoli (2002, pp. 84-85) quem traça um paralelo entre direito penal máximo e mínimo ao finalizar com maestria que:


“a certeza perseguida pelo direito penal máximo está em que nenhum culpado fique impune à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune.”


Isso demonstra que as teorias, desenvolvidas em regra, nas academias, deve ser analisadas com responsabilidade, para que seja aplicada à finco a toda sociedade, como instrumento prático de efetivação do Direito Penal.


Contudo, o que se vê é a desenfreada disseminação de correntes radicais, como a do Direito Penal máximo, que tem sido veementemente aplicado neste século, sem, porém, ter passado por um aprofundamento, além da academia.


Daí surge a preocupação deste trabalho, qual os riscos destas modernas tendências de políticas criminais e os riscos de violação aos Direitos Humanos. Qual a influência do clamor social e qual a reação por parte do legislador, que tende a editar leis cada vez mais severas.


O que leva à utilização do aparato estatal da força policial repressiva e a utilização do Direito Penal como instrumento de combate e repressão à criminalidade, a fim de se obter uma possível solução para os problemas sociais, o que incorre em grande exagero na intensidade de aplicação da força estatal.


Será o excesso de leis, e a intensidade da repressão adotada pelo Estado capaz de garantir a paz social, sem que viole os Direitos Humanos?


3. Política Criminal e Direitos Humanos


A história é pautada pelas constantes violações aos Direitos Humanos. Inicialmente surgiu com as guerras das civilizações antigas, onde o mais forte sobrepunha-se ao mais fraco, posteriormente, com o surgimento do Estado, onde foram traçadas veementes políticas de segregação e violação aos Direitos Humanos.


Com a revolução francesa (1789), surgiu o primeiro diploma legal que garantiu direitos básicos ao cidadão, com a histórica Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e com o fim da segunda guerra mundial e fortalecimento da democracia no mundo, surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).


Desde então, cada país democrático tratou de garantir em suas constituições os direitos básicos de seus cidadãos, a fim de coibir o abuso do poder por parte do Estado, e para garantir a paz social.


No Brasil, com o fim da Ditadura Militar e redemocratização do país, foi elevado em 1988, uma das constituições mais garantista e democrática de toda a América, com expressa previsão de garantias individuais e coletivas.


Fora reservado um título inteiro, (título II), para os direitos e garantias fundamentais do homem, preservando direitos antes desconhecidos do Estado, tais como as liberdades fundamentais, o devido processo legal, a proibição da tortura, o princípio da presunção de não culpabilidade, dentre outros.


Todavia, houve grande distorção por parte da mídia sobre o que sejam os direitos humanos. Hoje se tem a noção que os direitos humanos são leis a proteger delinqüentes, e que incentivam a impunidade.


Os altos índices de criminalidade e o descontrole estatal da ordem social têm levado a muitos, a fomentar a desvirtualização dos Direitos Humanos, o que tem ganhado apoio da sociedade, que acredita ser estes um meio de proteção dos delinqüentes.


Salo de Carvalho (2003, p. 191) dispõe que “o efeito seletivo deste processo, situado aparentemente na esfera econômica, é a descartabilidade do valor da ‘pessoa humana’ e o retorno a um estado pré-civilizatório (bárbaro) no qual impera a lei do mais forte”.


Diante do clamor social e do forte lobby da mídia, o legislador tem pautado uma política criminal rígida, com o escopo de garantir a paz social, sem se atentar aos princípios básicos do cidadão garantidos pela Constituição da República.


O judiciário por sua vez, para apresentar uma resposta rápida à sociedade tem mantido enclausuradas pessoas sem ser submetidas ao devido processo legal, mantendo-as provisoriamente sob a custódia estatal, sem se preocupar com seus direitos básicos.


Pessoas são levadas à condenação sem sequer ter o direito de responder à acusação, mesmo que seja vedado pelo sistema jurídico penal pátrio, fazendo valer a máxima de que nenhum culpado fique impune à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido.


Pune-se indiscriminadamente, sendo a repressão policial forte e notória, o que causa preocupação, por aparentar uma regressão ao primitivismo, onde inexistia o sistema penal, ou demonstra a tendência de um futuro que nos remete ao passado, qual seja, ditador e repressor.


Afinal, é preciso levar em consideração que a todos interessa um sistema penal democrático e garantista, isto porque, nas lições de Salo de Carvalho (2003, p. 96)


“Todas as pessoas, independentemente de terem incorrido em sanção penal, preservam e devem ter asseguradas as condições de dignidade. O garantismo penal, é, pois, um instrumento de salvaguarda de todos, desviantes ou não, visto que, em sendo estereótipo de racionalidade, tem como escopo minimizar a(s) violência (s) (públicas e/ou privadas).”


Ressalte-se que até mesmo o garantismo deve ser limitado, para não incorrer em impunidade, o que tem sido levado a cabo por alguns Tribunais brasileiros que rebatem o excesso legislativo com o garantismo excessivo.


Melhor é o argumento de Guilherme de Souza Nucci (2009. p. 374) “de que adianta, então, quaisquer mudanças se não houver vontade política de cumprir e fazer cumprir a lei? Logo, antes de se alterar descompassadamente a legislação, melhor seria implantar a que já possuímos”.


Assim, uma política criminal deve pautar-se em promover instrumentos de controle à criminalidade, mas sem ferir qualquer ordenamento jurídico, principalmente no que tange aos direitos e garantias do cidadão.


4. Uma nova concepção do Direito e Processo Penal


A criminalidade é comum em qualquer sociedade moderna, o que tem levado a muitos a acreditar ser o Direito Penal o diploma repressor capaz de resolver todos os problemas sociais.


Ocorre que o Direito Penal, enquanto ciência que representa todo o sistema penal, não tem o condão nem a missão de combater a violência ou a criminalidade, pelo contrário, se assim for utilizado, pode servir de fomento ao crime e de instrumento propulsor da violência, tanto por parte do órgão estatal, quanto por parte dos subalternos à norma.


O Direito penal, além de tutelar os bens jurídicos vitais, na verdade, é mais um instrumento limitador do que repressor, isso, porque primeiro serve como advertência, que ignorada tem como conseqüência a pena do tipo incriminador.


Segundo porque surgiu quando o Estado avocou para si a responsabilidade de punir, proibindo a autotutela, isto para limitar o poder punitivo da sociedade. Daí o Direito Penal, para limitar o poder punitivo estatal àquele que infringe as normas sociais.


Perceptível é a limitação estatal de punir, que no corpo do texto da Constituição da República há limitações expressas, como a proibição de penas de morte, perpétuas ou cruéis.


Esbarra, portanto, a discricionariedade legislativa do Estado, na dignidade da pessoa humana, que é respaldada nos Direitos Humanos, devendo sempre ser diferenciado a finalidade da pena, de sua motivação.


Isso enseja a conclusão de que o sistema penal tem como escopo não só estabelecer penas para quem inflijam normas sociais, mas também tem o condão de limitar o poder punitivo, para que não viole garantias fundamentais ou direitos humanos.


Destarte, é mais que chegado o momento de se dar ao Direito Penal e Processual Penal sua verdadeira identidade, pois que se tem é um sistema cada fez mais voraz utilizado como forma de repressão, de autoritarismo e um sistema prisional falido que funciona como depósito de delinqüentes, que são alojados em condições desumanas, aliás, mais desumanas a que muitos se encontravam antes de chegar ao cárcere.


Para isto, é preciso entender o problema da criminalidade como algo complexo, que vai além da vontade humana e que envolve a parte psicológica, biológica, social e moral do indivíduo.


Para uma nova identidade do sistema penal, é indubitável que este se preocupe apenas com os assuntos de maior relevância social, por ser de sua essência, um sistema mais rígido que os demais ramos do ordenamento jurídico, justamente por ter a pena como fator diferenciador.


Canterji (2008, p. 45) dispõe que “outro problema da criminalização de pequenas infrações é a inflação de processos e a sua conseqüente lentidão, já que a estrutura policial e judicial não acompanha tal crescimento”. Tal demora acaba levando o processo a ser fadado ao fracasso devido ao transcurso da prescrição da pretensão punitiva estatal, o que leva a sociedade a ser acometida de uma sensação de impunidade.


Desta forma, a construção de um novo paradigma para o Direto Penal e Processual Penal e para a ciência criminal, depende de estratégia, posto que é preciso mapear, conhecer, definir e demarcar do direito. Ou seja, é preciso interpretar o mundo e associar o direito ao contexto social.


5. Considerações finais


Ante o exposto pelo presente trabalho é perceptível que o Estado brasileiro tem passado por certas dificuldades, no que tange a estabelecer uma política criminal responsável, pautada pelos direitos humanos e com garantia da ordem pública.


 Pouco se tem debatido sobre política criminal e Direitos Humanos e pouco tem se preocupado o legislador com a situação dos cárceres e quais os fatores que levam à delinqüência.


Quando se debate no Brasil sobre a pena de morte é possível se apurar que grande parte da população é favorável, inclusive no meio acadêmico da área jurídica, o que demonstra que a população em geral, assim como o legislador tem se deixado levar pela emoção, escapando-se, ambos, da razão, o que gera preocupação.


A pena, assim como a reclusão temporária (sem ressocialização), é uma falsa ilusão de segurança, pois o apenado voltará e nas palavras de Canterji (2008, p. 87) e “devolverá o grau de violência recebido da sociedade através do sistema penitenciário”.


Munhoz Conde disciplina que (2005, p. 108) “educar para a liberdade em condição de ‘não liberdade’ não só é muito difícil, mas também é uma utopia irrealizável nas atuais condições de vida na prisão”.


Destarte, se o aumento das penas fosse por si só capaz de eliminar ou ao menos reduzir a criminalidade, já se teria no Brasil um “cidadão ideal” e um país sem criminalidade ou com um índice reduzidíssimo.


Logo, é simples se apurar que o Direito Penal deve se ocupar em tutelar bens jurídicos, mas não qualquer bem, mas sim aquele juridicamente relevante, como a vida por exemplo.


Ao se estabelecer o Direito Penal e Processual Penal como instrumentos de limitação do jus puniendi, têm-se um eficaz elemento de efetivação dos Direitos Humanos.


A política criminal, por sua vez, deve ser responsável e também ser pautada em compasso com os Direitos Humanos, sob pena de ser equivocada e inútil, e de colocar em risco não só o ordenamento jurídico de um país, mas toda uma segurança social.


 


Referências

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Informações Sobre os Autores

Diogo Evangelista Barbosa

Acadêmico de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS

Isael José Santana

Possui graduação em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP- (1992), graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Marilia -UNIVEM- (1996) e mestrado em Direito pela Faculdade de Direito de Marília -UNIVEM- (2004). Professor efetivo da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, unidade universitária de Paranaíba/MS


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